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A formação e a ruptura: historicidade da literatura latino-americana nos programas críticos de Antonio Candido e Octavio Paz

Formation and Rupture: The Historicity of Latin American Literature in the Critical Programs of Antonio Candido and Octavio Paz

RESUMO

O presente artigo examina como a literatura latino-americana é historicizada nas obras do crítico brasileiro Antonio Candido (1918-2017) e do poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz (1914-1998). As noções de superregionalismo e desenraizamento norteiam a análise sobre como os diferentes usos do passado se desdobram em hipóteses acerca das relações entre identidades culturais e dinâmicas geopolíticas. A descrição dos modelos críticos sugere um programa de investigação acerca das afinidades poéticas dos textos produzidos na América Latina.

PALAVRAS-CHAVE:
Antonio Candido; Octavio Paz; historicidade; literatura; América Latina

ABSTRACT

This article examines how Latin American literature is historicized in the works of Brazilian critic Antonio Candido (1918-2017) and Mexican poet and essayist Octavio Paz (1914-1998). The notions of super-regionalism and rootlessness guide the analysis of how the different uses of the past unfold in hypotheses about the relationship between cultural identities and geopolitical dynamics. The description of the critical models suggests a program of research into the poetic affinities of texts produced in Latin America.

KEYWORDS:
Antonio Candido; Octavio Paz; historicity; literature; Latin America

As relações entre a estética local e as matrizes europeias estão no cerne dos problemas enfrentados pela crítica literária latino-americana desde o século XIX. Das proposições românticas à crítica decolonial, temas recorrentes como nacionalismo, colonialismo, originalidade e imitação aparecem nos debates que buscam relacionar a filiação literária às tradições estrangeiras aos modos de afirmação das identidades culturais da América Latina. Na vasta produção bibliográfica acerca do tema, os modelos analíticos de Antonio Candido (1918-2017) e Octavio Paz (1918-2017) destacam-se como modelos interpretativos de ampla repercussão.

A análise dos programas de investigação aponta diferenças quanto à historicização da literatura latino-americana. Se no modelo sociológico do crítico brasileiro o processo de formação da literatura regional corresponde às dinâmicas de aclimatação cultural de viés nacionalizante, na proposta estético-filosófica apresentada pelo poeta e ensaísta mexicano a originalidade latino-americana derivaria de uma poética do rompimento hostil aos ideais nacionalistas. Exemplarmente expressas nas noções de super-regionalismo, desenvolvida por Antonio Candido, e de desenraizamento, apresentada por Octavio Paz, essas diferenças permitem observar como esses modelos críticos operam a partir de determinados usos do passado mobilizados em historicidades distintas.

O super-regionalismo como etapa de formação da literatura latino-americana

A expressão super-regionalismo aparece em artigo escrito por Antonio Candido cuja versão inicial intitulada “Sous-développement et littérature en Amérique Latine” foi publicada na revista da Unesco Cahiers d’Histoire Mondiale em 1970 e, posteriormente, sob o título “Literatura y subdesarrollo en America Latina”, o texto integrou o livro America Latina en su literatura, lançado em 1972. No artigo, Candido retoma temas analisados anteriormente em obras como Formação da literatura brasileira (1957), livro de referência nos estudos brasileiros, e em Literatura e sociedade (1965), antologia de alguns de seus ensaios mais célebres. Em “Literatura e subdesenvolvimento”, a tese da filiação histórica das letras nacionais às matrizes estrangeiras, apresentada incialmente em Formação da literatura brasileira, é ampliada na afirmação de que “as nossas literaturas latino-americanas, como também as da América do Norte, são basicamente galhos das metropolitanas” (Candido, 1989CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. , p. 151). A metáfora da germinação associa as origens literárias ao terreno das nações e repercute a tópica longeva que remete às categorias românticas, recorrente, por exemplo, nos relatos dos viajantes estrangeiros que circularam no Brasil desde o período colonial (Ricota, 2017RICOTA, Lúcia. Entre raízes e arbustos: a forma arvoral da literatura e da cultura brasileira. Revista USP. São Paulo. n. 113. p. 133-149, 2017., p. 135). Nesse modelo, as formas estéticas são inevitavelmente filiadas aos processos de desenvolvimento histórico e as correspondências entre texto e contexto formam o enredo do florescimento das culturas nacionais.

Em Formação da literatura brasileira o desenvolvimento do sistema literário - resultado da articulação entre elementos expressos na língua, nas temáticas e nos estilos, e fatores sociais como a expansão do campo editorial e do público leitor - está diretamente associado ao princípio da continuidade literária. Essa, por sua vez, garante a consolidação da tradição, sem a qual não haveria “literatura, como fenômeno de civilização” (Candido, 2000CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2000. , p. 24). Apesar de assegurar a nacionalização, a operação do sistema no século XIX não implicou necessariamente a criação de formas originais, haja vista os limites históricos impostos pela vida literária insipiente.

Em “Literatura e subdesenvolvimento” o “vínculo placentário” com as literaturas europeias é tratado como fato natural no quadro de dependência político-econômica vinculado às heranças coloniais. A tópica romântica da exaltação das belezas locais é referida aos instrumentos de afirmação ideológica mobilizados pelos letrados latino-americanos no esforço de compensar “o atraso material e a debilidade das instituições por meio da supervalorização dos aspectos regionais” (Candido, 1989CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. , p. 141). Antonio Candido considera que a penúria cultural oitocentista, caracterizada pela escassez de público leitor, pela debilidade do mercado editorial e pelo consequente amadorismo literário produziu um quadro de alienação cultural, pois diante da realidade desfavorável o escritor latino-americano “escrevia como se na Europa estivesse o seu público ideal, e assim se dissociava muitas vezes da sua terra” (Candido, 1989CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. , p. 148). A dissociação criativa ensejaria a imitação de formas estrangeiras como prática literária.

O pressuposto do vínculo entre a vida literária e o compromisso nacional, inicialmente expressa na tese da formação, é atualizado frente ao problema do subdesenvolvimento. Marcelo Lotufo argumenta que no artigo de Candido a condição de país jovem e atrasado é substituída pela crítica ao subdesenvolvimento, assim os termos “atrasado” e “avançado” deixam de designar um processo histórico contínuo e passam a expressar condições estruturais de um mesmo sistema político (Lotufo, 2019LOTUFO, Marcelo. O nacional e o global em Antonio Candido: uma leitura de Formação da literatura brasileira e "Literatura e subdesenvolvimento. Nau Literária, v. 15, n. 2, p. 45-61, 2019, https://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/102605/56914
https://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiter...
, p. 54). Se na primeira hipótese a literatura, como expressão dos processos de colonização, precisava superar as etapas do atraso, na segunda o problema passa a ser a condição da dependência. A superação da “consciência amena” pela “consciência catastrófica” do atraso - referentes respectivamente à ideologia do país novo predominante nas letras do século XIX e à crítica do subdesenvolvimento na literatura do século XX, respectivamente - é apresentada como manifestação de amadurecimento literário no continente. Se o primeiro movimento buscava superar o descompasso histórico pelo alinhamento com a temporalidade das metrópoles, o segundo enfatiza as relações estruturais de desigualdade e estabelece um conjunto de interações recíprocas que altera as dinâmicas de influência. A mudança de perspectiva redefine as relações entre os “países-fontes” e as nações periféricas, pois a despeito da permanência dos vínculos de origem, o atraso das etapas do processo de formação é substituído pela sincronicidade crítica da dependência.

Em Formação da literatura brasileira a mesma “consciência amena” - que constituiria fase primária da história brasileira - estrutura a dimensão ética da análise da história literária nacional. A tese reafirma a importância da literatura “pobre e fraca”, mas que expressaria o desejo brasileiro de participar da cultura universal. A condição de galho transplantado da árvore portuguesa é justificada pela imaturidade do país jovem, argumentário que seria criticado em “Literatura e subdesenvolvimento”. As transformações no modelo indicam a tentativa de superação dos efeitos do “aristocratismo alienador” pela consciência “da realidade trágica do subdesenvolvimento” que implica “aspiração revolucionária - isto é, do desejo de rejeitar o jugo econômico e político do imperialismo” (Candido, 1989CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. , p. 154).

Em “Literatura e subdesenvolvimento” a construção da tradição literária é compreendida por meio da operação do mecanismo de “causalidade interna”, situação na qual autores de uma mesma nacionalidade servem de referência para gerações posteriores. Para o crítico, o estágio indicaria o amadurecimento das culturas letradas por ensejar a produção de obras de “primeira ordem”, baseadas em referenciais nacionais imediatos. Esse modo de causalidade que potencializa a dinâmica de interação entre diferentes culturas caracteriza etapa superior do sistema literário latino-americano. Segundo Antonio Candido:

A partir dos movimentos estéticos do decênio de 1920; da intensa consciência estético-social dos anos 1930-1940; da crise de desenvolvimento econômico e do experimentalismo técnico dos anos recentes, começamos a sentir que a dependência se encaminha para uma interdependência cultural (se for possível usar sem equívocos esta expressão, que recentemente adquiriu acepções tão desagradáveis no vocabulário político e diplomático). Isto não apenas dará aos escritores da América Latina a consciência da sua unidade na diversidade, mas favorecerá obras de teor maduro e original, que serão lentamente assimiladas pelos outros povos, inclusive os dos países metropolitanos e imperialistas. O caminho da reflexão sobre o desenvolvimento conduz, no terreno da cultura, ao da integração transnacional, pois o que era imitação vai cada vez mais virando assimilação recíproca. (Candido, 1989CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. , p. 154-155).

A fase da “assimilação recíproca” representaria o grau adiantado de desenvolvimento da literatura latino-americana frente aos referenciais estrangeiros. Superação do “regionalismo pitoresco” do século XIX e do “regionalismo problemático” das primeiras décadas do século XX, o super-regionalismo, é apresentado como representação desse novo momento e “expressão da consciência dilacerada do subdesenvolvimento” (Candido, 1989CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989. , p. 162). Nessa nova modalidade, na qual os traços antes pitorescos adquirirem qualidades universais, destacam-se as obras de escritores como Guimarães Rosa, Juan Rulfo, Mario Vargas Llosa, Gabriel Garcia Márquez, Alejo Carpentier, que ganharam fama internacional na segunda metade do século XX.

A valorização do regional-universal como característica da estética do subdesenvolvimento, propriedade distintiva das literaturas periféricas, é reafirmada em “Literatura, espelho da América?”, artigo publicado em 1995. Antonio Candido reafirma a centralidade da literatura na formação dos estados nacionais latino-americanos e os vínculos profundos dessa com a realidade histórica local. Ao mesmo tempo que corresponderia a necessidades urgentes do homem e da sociedade, a literatura latino-americana sofreria “pressão de uma realidade diferente, que parece exótica em face das matrizes” (Candido, 1999CANDIDO, Antonio. Literatura, espelho da América? Revista Remate de Males, (número especial), p. 105-113, 1999., p. 110). O argumento visa explicar as diferenças entre as possibilidades do universalismo moderno europeu, fundado na experimentação da linguagem como crise das formas de representação, e o regionalismo como diferencial do modernismo periférico. Acerca das análises de Vladimir Weidlé sobre a literatura europeia, Candido afirma:

Segundo Weidlé, o Romantismo foi algo dissolvente, que encerrou a era da literatura concebida como estilo. Estilo, no seu modo de ver, é um princípio profundo de unificação, impondo a obediência a certas normas que garantem a identidade da obra e a referem a algo exterior e superior a ela, como a crença religiosa, a fidelidade a ideais, etc. Diz Weidlé que o Romantismo teria rompido o vínculo da obra com essas referências, suprimindo assim a possibilidade de estilo e de coerência, que segundo ele é assegurada sobretudo pelo sentimento religioso. Tendo perdido o estilo e a coerência que ele assegura, a literatura contemporânea é feita de obras voltadas sobre si mesmas, que são fragmentos sem referência externa válida, com todas as grandezas e misérias que isto acarreta. (Candido, 1999CANDIDO, Antonio. Literatura, espelho da América? Revista Remate de Males, (número especial), p. 105-113, 1999., p. 107).

As referências ao crítico russo servem ao argumento de que o romantismo instaura uma crise caracterizada, dentre outros fatores, por uma “tendência para a autodestruição do discurso” que resultaria no esvaziamento das funções representativas da literatura. Candido destaca, no entanto, que na América Latina observa-se a permanência do interesse nas funções comunicativas da linguagem, sendo o super-regionalismo a versão universalista dos esforços de captura da cor local.

Parece, portanto, que nos países onde há zonas de atraso econômico e social não é possível anular a sua representação literária. Elas têm um peso vivo, impõem-se à consciência e então ocorre a fusão que Angel Rama definiu tão bem, - o universalismo das vanguardas servindo de veículo paradoxal para os particularismos tradicionais. Weidlé pensava no sentimento religioso como referência externa que permite a coerência e a comunicação das obras por meio do estilo, que é uma unificação. A literatura dos países novos da América Latina mostra que a nação é uma poderosa referência externa que dá consistência e serve de bússola implícita ou explícita, desde a sua fase de revelação do país, pressupondo o leitor como patriota, até a sua fase de expressão universal, pressupondo o leitor, como cúmplice do discurso, visto sobretudo na sua dimensão inovadora. (Candido, 1999CANDIDO, Antonio. Literatura, espelho da América? Revista Remate de Males, (número especial), p. 105-113, 1999., p. 112-113).

A referência à tese da transculturação narrativa, desenvolvida pelo crítico uruguaio Angel Rama (Rama, 1982RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en América Latina. Montevideo: Fundación Ángel Rama, 1982.), confirma as particularidades dos processos histórico-literários latino-americanos no que tange às dinâmicas de interação estético-políticas com a Europa. Se a tese da formação sugere que o nacionalismo das fases iniciais ocorria com prejuízo do valor estético, em análises posteriores Antonio Candido aponta que a partir da segunda metade do século XX o nacional será o cerne da originalidade latino-americana. Uma vez que o modelo da formação não está fundado em um sistema cronologicamente fechado - e que, portanto, considera que o tempo nos países de modernidade periférica é “feito de avanços e retrocessos, de polirritmias e descompassos, de anacronismos e de acelerações vertiginosas” (Vecchi: Agró, 2009VECCHI, Roberto e AGRÓ, Ettore Finazzi. A formação e a história fraturada: uma dupla aproximação. Literatura e Sociedade, v. 11, p. 196-213, 2009., p. 209) -, a inclusão da temática da dependência altera o padrão de valoração estética, redefine as relações entre a historicidade das formas literárias e as representações da nacionalidade.

A ruptura e o desenraizamento da literatura hispano-americana

Em A busca do presente, transcrição do discurso de agradecimento pelo recebimento do prêmio Nobel de Literatura em 1990, Octavio Paz retoma temas recorrentes de sua obra crítica. O texto resume o percurso intelectual que pode ser caracterizado como uma investigação poética em busca da “tradição da modernidade”.

A modernidade não é uma escola poética e sim uma linhagem, uma família dispersa em vários continentes e que por dois séculos sobreviveu a muitas vicissitudes e desditas: a indiferença pública, a solidão e os tribunais das ortodoxias religiosas, políticas, acadêmicas e sexuais. Ser uma tradição e não uma doutrina permitiu-lhe, simultaneamente, permanecer e mudar. Também deu-lhe diversidade: a aventura poética é distinta e cada poeta plantou uma árvore diferente nesse prodigioso bosque falante. Se as obras são diversas e os caminhos distintos, o que une todos esses poetas? Não uma estética, mas a busca. Minha busca não foi quimérica, ainda que a ideia de modernidade seja uma miragem, um feixe de reflexos. Um dia descobri que não avançava e que voltava ao ponto de partida: a busca da modernidade era uma descida às origens. A modernidade me conduziu ao meu começo, à minha antiguidade. A ruptura se tornou reconciliação. Soube, assim, que o poeta é uma pulsação no rio das gerações. (Paz, 2017PAZ, Octavio. A busca do presente e outros ensaios. Organização e tradução de Eduardo Jardim. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017., p. 82-83).

Essa descida às origens serve de roteiro para a investigação da poesia moderna, entendida como expressão da “tradição da ruptura”. Em Os filhos do barro, publicado em 1974, Octavio Paz considera a aceleração da experiência - responsável pela diluição das distinções rígidas entre passado, presente e futuro - como condição da tradição do moderno, configuração espaço-temporal atravessada por múltiplas temporalidades. Essa característica da modernidade seria efeito da consciência crítica, fator de descontinuidade em relação ao passado e de desestabilização das normativas tradicionais. A literatura produzida a partir do romantismo teria diluído o antagonismo entre o antigo e o novo, pois “a arte moderna não é apenas filha da idade crítica, mas é também crítica de si mesma” (Paz, 1984PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 30).

A análise determina que a partir do século XVIII o pensamento crítico produz um modelo de negação que rompe com padrões estabelecidos, fazendo da modernidade o período histórico que não apenas celebra a mudança, mas a transforma em seu fundamento, ou seja, prioriza o futuro como referência. Nesse tempo projetado no devir, na “idade crítica”, as artes adquirem autonomia pela autorreferência: na medida em que as obras problematizam suas proposições, objetificam-se como expressão de valores próprios, sendo o escrutínio poético incorporado na criação estética, condição que faria da poesia moderna, assimilada tal-qualmente no romance, uma apaixonada negação da modernidade por ser também uma crítica contundente de si mesma.

O tempo do poema não está fora da história, mas dentro dela: é um texto e é uma leitura. Texto e leitura são inseparáveis e neles a história, a mudança e a identidade unem-se sem desaparecer. Não é uma transcendência, mas uma convergência. É um tempo que se repete e que é irrepetível, que transcorre sem transcorrer, um tempo que se volta sobre si mesmo. O tempo da leitura é um hoje e um aqui: um hoje que sucede a qualquer instante e um aqui que está em qualquer parte. O poema é história e é aquilo que nega a história no momento em que a afirma. Ler um texto não-poético é compreendê-lo, apropriar-se de seu sentido; ler um texto poético é ressuscitá-lo, re-produzi-lo. Essa re-produção desenvolve-se na história, mas se abre para um presente, que é a abolição da história. (Paz, 1984PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 203).

No modelo crítico de Octavio Paz, o poema moderno é a “máquina que produz anti-história” (Paz, 1984PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 11), opera em temporalidades que ao se contradizerem, reafirmam e transfiguram o tempo histórico. Essa configuração estética fundada na contradição, caracteriza o romantismo europeu, sendo então atualizada no modernismo hispano-americano. Essa recorrência é explicada pelas afinidades da literatura ocidental, tratada como uma rede de relações, superior às nacionalidades, e caracterizada pela mobilização de figuras comuns.

Em “Alrededores de la literatura hispanoamericana”, conferência proferida na Universidade de Yale em 1976, o crítico mexicano defende a literatura como fator de união continental firmada na língua comum. Elemento distintivo que não corresponderia aos limites da nação ou do povo, a língua hispano-americana atestaria ainda as particularidades poéticas latino-americanas. Ao negarem o tradicionalismo espanhol, os modernistas do final do século XIX teriam criado vínculo com uma tradição universal que possibilitou o diálogo de duas literaturas no âmbito da mesma língua. Esse exemplo reforça a convicção de que:

As literaturas não têm caráter. Melhor dizendo: a contradição, a ambiguidade, a exceção e a indeterminação são características que aparecem em todas as literaturas. No seio de cada literatura há um diálogo contínuo feito de oposições, separações, bifurcações. A literatura é um tecido de afirmações e negações, dúvidas e interrogações. A literatura hispano-americana não é um mero conjunto de obras, mas sim as relações entre essas obras. Cada uma delas é uma resposta, declarada ou tácita, a outra obra escrita por um predecessor, um contemporâneo ou um imaginário descendente. Nossa crítica deveria explorar essas relações contraditórias e nos mostrar como essas afirmações e negações exclusivas também são, de alguma forma, complementares. (Paz, 1981PAZ, Octavio. In/Mediaciones. Barcelona: Editorial Seix Barral, 1981. , p. 26, tradução nossa).

O aparecimento da literatura hispano-americana coincide com a participação no “tecido de afirmações e negações”, originado na modernidade europeia. Esse desenvolvimento possibilitou que as línguas transplantadas superassem a condição de meros reflexos do processo colonial, instituindo a “tradição da ruptura” como experimentação dialética das temporalidades confluentes a partir da descoberta do outro como elemento constitutivo da cultura latino-americana. No entanto, é preciso destacar que na crítica de Octavio Paz a ausência de caráter específico não anula as particularidades oriundas das dinâmicas de interação, complexas e contraditórias, que definem padrões singulares de historicidade e legibilidade dos textos. Nesse sentido, para além dos recortes nacionais, a literatura hispano-americana revela-se como um conjunto de relações entre obras específicas fundadas em problemas comuns no âmbito de tradições híbridas.

O entendimento do universo literário como constituído por tecidos textuais, com tramas formadas a partir do que poderia definir como afinidades poético-escriturais, ganha contornos históricos próprios a partir da atualização romântica do princípio da analogia. Segundo Silviano Santiago, na obra de Paz, esse princípio corresponde a uma compreensão do mundo como um sistema de equivalência no qual a linguagem é uma espécie de duplo “o poeta é o fundador do universo e do saber” (Santiago, 2002SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002., p. 119). Essa formulação estética, realizada primordialmente na literatura francesa, em especial na obra de poetas como Baudelaire e Mallarmé, interpreta o mundo como um conjunto de signos organizados ritmicamente e referenciados por sistemas de correspondência, formas de enunciação e apresentação da realidade. Dessa forma, o poeta funciona como um tradutor de palavras proliferadas no mundo compreendido como texto:

Baudelaire não escreve: Deus criou o mundo, mas que o enunciou, disse-o. O mundo não é um conjunto de coisas, mas de signos: o que denominamos coisas são palavras. Uma montanha é uma palavra, um rio é outra, uma paisagem é uma frase. E todas essas frases estão em contínua mudança: a correspondência universal significa uma perpétua metamorfose. O texto que é o mundo não é um texto único: cada página é a tradução e a metamorfose de outra e assim sucessivamente. O mundo é a metáfora de uma metáfora. O mundo perde sua realidade e se transforma em uma figura de linguagem. No centro da analogia há um buraco: a pluralidade de textos subentende que não há um texto original. Por essa cavidade precipitam-se e desaparecem, simultaneamente, a realidade do mundo e o sentido da linguagem. (Paz, 1984PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 98).

Na poética da analogia o poema reproduz o universo que tenta decifrar, mas na modernidade essa condição está fundada em um “centro vazio”, por não haver unidade ontológica que garanta substância às palavras e às coisas. Se para Dante Alighieri as Sagradas Escrituras eram a chave para a leitura do universo, para os poetas modernos, “o mundo é ilegível, não há livro” (Paz, 1984PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., P. 102). A poesia moderna seria, portanto, a consciência da diversidade sem unidade, rasgada pela negação, pela crítica. Nesse sentido, a “tradição da ruptura” se realiza na medida em que os fundamentos da analogia são transpassados pela ironia. Segundo Maria Esther Maciel, a consciência irônica desse vazio que opera no centro da analogia é, “segundo Paz, o cerne da diferença entre o pensamento analógico moderno e o renascentista” (Maciel, 1995MACIEL, Maria Esther. “Os paradoxos do novo: sobre o conceito de tradição na obra de Octavio Paz”. Aletria: Revista De Estudos De Literatura, v. 3, p. 21-33, 1995., p. 25).

A definição de linhagens letradas identificadas em “famílias, estirpes, tradições espirituais e estéticas” (Paz, 1996PAZ, Octavio. Signos em rotação. Rio de Janeiro: Perspectiva, 1996., p. 126) permite recortar a historicidade da literatura hispano-americana a partir do rompimento em relação à tradição espanhola iniciado pelos modernistas. No entanto, esse movimento não seria em direção à terra natal, mas voltado para Paris, assim “os primeiros escritores hispano-americanos que tiveram consciência de si mesmos e de sua singularidade histórica formaram uma geração de desterrados” (Paz, 1996PAZ, Octavio. Signos em rotação. Rio de Janeiro: Perspectiva, 1996., p.128). Esse direcionamento viabilizou a inserção na modernidade enquanto busca do presente, e logo a “literatura de evasão” se converte em “exploração e regresso”. O desenraizamento, efeito da ruptura, é apresentado como condição do ressurgimento de formas culturais soterradas, da revelação de tradições sepultadas, como as literaturas indígenas. Destaca-se, no entanto, que no âmbito da tradição da ruptura, “regressar não é descobrir”, pois, como instituição da imaginação, a literatura hispano-americana atestaria que a América Latina é, ao mesmo tempo, impossível e inevitável:

Inventar a realidade ou resgatá-la? Ambas as coisas. A realidade se reconhece nas fantasias dos poetas; e os poetas reconhecem suas imagens na realidade. Nossos sonhos nos aguardam ao dobrarmos a esquina. Desenraizada e cosmopolita, a literatura hispano-americana é regresso e procura de uma tradição. Ao procurá-la, a inventa. Mas invenção e descoberta não são os termos que convêm as suas criações mais puras. Vontade de encarnação, literatura de fundação. (Paz, 1996PAZ, Octavio. Signos em rotação. Rio de Janeiro: Perspectiva, 1996., p. 130, grifo nosso).

Como “vontade de encarnação”, a literatura hispano-americana irrompe na conjunção plural de temporalidades que caracteriza a modernidade. Surge quando participa de um corpus letrado unido por relações de oposição e afinidade cuja principal vocação seria a realização plena do presente. Segundo Eduardo Jardim, a poética do pensamento de Octavio Paz está fundada na dialética inconclusiva de solidão e comunhão, princípios estruturantes da vida humana baseados no desejo de recuperação da unidade, e no reconhecimento da impossibilidade da completude. Ainda segundo Jardim, para o crítico mexicano, “a presença simultânea destes dois princípios explica as experiências fundamentais da poesia, do amor e do sagrado” como expressões da precariedade e do inconformismo do homem (Jardim, 2015JARDIM, Eduardo. Paixão crítica: 100 anos de Octavio Paz. O que nos faz pensar: v. 24 n. 37, p. 7-13, 2015., p. 11).

Essa dualidade é analisada historicamente em O labirinto da solidão, obra ensaística em que Paz interpreta a Revolução Mexicana como tentativa de reconquista e avivamento do passado no presente. Iniciada em 1910, a Revolução seria uma tentativa malograda de resgate da unidade cultural perdida e de reelaboração da identidade mexicana. O desejo de desmascaramento do ideário liberal - imposto pela dominação espanhola e pelo caráter elitista do processo de independência realizado no século XIX - seria fruto do desamparo que marcaria a experiência mexicana, ou seja, expressão da “dialética de solidão e comunhão, de reunião e separação que parece presidir toda a nossa vida histórica” (Paz, 2014PAZ, Octavio. O labirinto da solidão. São Paulo: Cosac & Naify, 2014., p. 142). O modelo dialético forjado a partir do caso nacional estrutura as interpretações tanto da história quanto da literatura latino-americanas.

No pensamento poético de Paz o princípio da contradição, definidor da modernidade, articula os processos históricos e estéticos de modo a ressaltar que a poesia é “expressão histórica de raças, nações, classes”, ao mesmo tempo que “nega a história: em seu seio resolvem-se todos os conflitos objetivos e o homem adquire, afinal, a consciência de ser algo mais que passagem” (Paz, 1982PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira , 1982., p. 15). Assim, as formas poéticas negam e transcendem o solo histórico do qual se nutrem, e o desenraizamento é também o deslocamento do histórico no literário. A literatura de fundação opera o retorno às tradições inventadas, ciclo inesgotável do privilégio da criação sobre as realidades históricas. Esse movimento consagra a historicidade de viés hermenêutico, que não separa a potência da experiência poética do entendimento da realidade.

Duas historicidades, dois programas

As diferenças entre os modelos críticos apreendidos das obras de Antonio Candido e Octavio Paz indicam como os usos do passado se desdobram em sistematizações específicas da historicidade da literatura latino-americana. Na tese da formação, a atualização da tópica romântica da germinação associa as formas de desenvolvimento da nação brasileira ao amadurecimento do seu sistema literário, argumento que em “Literatura e subdesenvolvimento”, de Candido, alcança a literatura latino-americana “como a confluência de um tema regional e uma técnica cosmopolita a partir da figura de João Guimarães Rosa, que serve de ponte entre duas literaturas, a brasileira e a hispano-americana” (Aguilar, 2001AGUILAR, Gonzalo. Angel Rama y Antonio Candido: salidas del modernismo. In: ANTELO, R. (org.) Antonio Candido y los Estudios Latinoamericanos. Pittsburgh: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 2001. p. 71-94., p. 81). A ampla repercussão do modelo analítico de Antonio Candido, considerado por Walter Mignolo “um dos mais notáveis críticos literários e culturais da segunda metade do século XX” (Mignolo, 2003MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2003., p. 209), indica a relevância da formação nacional nos critérios de análise sobre os desenvolvimentos culturais no continente e evidencia o prestígio do paradigma historicista, modelo de razão histórica na qual as formas sociais só podem ser interpretadas na estrutura que as envolve, na “alma histórica” que as anima (Reis, 2002REIS, João Carlos. O historicismo, a redescoberta da história. Locus, v. 8, n. 1, p. 9-28, 2002., p. 12).

Nessa configuração, a modernidade engendra a associação entre história e nacionalidade, que por sua vez é traduzida em expressões estéticas. Especificamente no caso latino-americano, a trama do desenvolvimento reproduz as diretrizes germinativas da bildung, aplicadas às culturas subalternizadas. Assim, a germinação caracteriza o empenho civilizatório que firma o nacional como aposto à literatura para que esse “possa se afirmar como autêntico e original, se mantendo estável e rentável no conjunto das nações modernas do Ocidente” (Santiago, 2014SANTIAGO, Silviano. La literatura brasileña desde una perspectiva pós-colonial: um relato. Chuy: Revista de estudios literarios latinoamericanos, n. 1, p. 139-160, 2014. , p. 143). A participação na racionalidade Ocidental, tomada como sinal do enraizamento do exógeno, subsumi a originalidade do regionalismo na pragmática discursiva do localismo e do cosmopolitismo. Esse núcleo dramático, cujo desenvolvimento progressivo remete ao romance de formação, tende a refirmar a hierarquização de identidades culturais forjadas nos princípios da unidade e da diferença. Os contrastes entre as formas orgânicas naturalizadas e suas expressões secundárias motivam o padrão histórico de evolução das culturas.

O horizonte da “assimilação recíproca”, estágio do diálogo da “integração transnacional”, ainda que indique a possibilidade de trocas de influência entre o centro e a periferia, não destitui o valor histórico da tradição que a cronologia impõe, nem a centralidade das diferenças socioeconômicas próprias das dinâmicas de dominação. Dado o protagonismo da formação do sistema literário na constituição de estéticas autóctones, os efeitos da desigualdade e do subdesenvolvimento permanecem como o solo do qual a literatura brota e do qual só pode se libertar como utopia. Nesse modelo a imaginação figura como força de superação que realiza o valor estético da universalidade sob pressão da realidade exótica cujas estruturas são poeticamente dramatizadas de modo a reafirmar as desigualdades do processo de colonização.

Desenvolvida em arquitetura temporal historicista, a narrativa da formação reifica o discurso histórico como moldura que delimita a forma. Assim, a dialética do local e do cosmopolita serve como argumento para reafirmar o pertencimento, a continuidade do histórico no literário. O privilégio do primeiro atesta o sentido positivo da modernidade, sugere que as razões da literatura devem ser entendidas como parte do processo empenhado - haja vista as características do pensamento formativo que “interpreta o passado querendo intervir no presente com vistas ao futuro” (Fischer, 2021FISCHER, Luís Augusto. Duas formações, uma história: das ideias fora do lugar ao perspectivismo ameríndio. Porto Alegre: Arquipélago, 2021., p. 112) - de criação de identidades estético-políticas, sejam elas nacionais, continentais ou civilizatórias.

É precisamente a centralidade da ideia de progresso na modernidade que fundamenta a crítica de Octavio Paz a “colonização do futuro”, projeto de valorização utópica da história como promessa. É a tentativa de superação desse estado de coisas que leva o crítico mexicano a ressaltar o potencial transformador das experiências poéticas, tal como identificada na estética surrealista, entendida “como uma crítica da civilização moderna, com seu culto à razão, e uma proposta de reorientação da poesia na direção da vida” (Jardim, 2007JARDIM, Eduardo. A duas vozes: Hannah Arendt e Octavio Paz. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. , p. 66). A ampliação da intensidade do presente, função da poesia, permitiria a valorização da experiência e a anulação do desejo de futuro mascarado na multiplicidade temporal moderna, voltada para “o tempo que ainda não é, que sempre está a ponto de ser” (Paz, 1984PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 34). Ainda que seja possível lastrear as origens desse modelo crítico na interpretação da história mexicana elaborada em O labirinto da solidão, seus desdobramentos generalizam o alcance e as funções da poesia como acontecimento de ampla repercussão ético-filosófica que não se restringe aos casos nacionais.

Na conclusão de “A busca do presente”, Octavio Paz resume sua compreensão do sentido poético da modernidade:

Simultaneidade de tempos e de presenças: a modernidade rompe com o passado imediato para logo resgatar o passado milenar e converter uma figurinha de fertilidade do Neolítico em nossa contemporânea. Perseguimos a modernidade em suas incessantes metamorfoses e nunca conseguimos pegá-la. Escapa sempre: cada encontro é uma fuga. Abraçamo-la e logo ela se dissipa: era só um pouco de ar. É o instante, esse pássaro que está em toda parte e em nenhuma. Queremos pegá-lo vivo, mas ele abre as asas e se desvanece, tornado um punhado de sílabas. Ficamos de mãos vazias. Então as portas da percepção se entreabrem e aparece o outro tempo, o verdadeiro, o que buscávamos sem saber: o presente, a presença. (Paz, 2017PAZ, Octavio. A busca do presente e outros ensaios. Organização e tradução de Eduardo Jardim. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2017., p. 91-92).

O caráter aberto da consciência moderna permite a vivência do tempo por meio da poesia. Nesse sentido, a compreensão histórica da literatura é também possibilidade de revelação do presente expresso como manifestação poética, haja vista que “o poema é uma virtualidade trans-histórica, que se atualiza na história, na leitura” (Paz, 1984PAZ, Octavio. Os filhos do barro: do romantismo à vanguarda. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984., p. 202). Essa historicidade que privilegia o tempo poético como referencialidade, tendo em vista o esvaziamento ontológico da realidade moderna, valoriza as articulações entre o tempo vivido e as formas textuais. Atribui às figurações poéticas possibilidades de inteligibilidade e de projeção do passado, do presente e do futuro em dinâmicas que remetem às dimensões poético-existenciais do círculo hermenêutico analisado por Paul Ricœur em Tempo e narrativa (Ricœur, 2010RICŒUR, Paul. Tempo e narrativa. São Paulo: Martins Fontes, 2010.).

Os dois modelos depreendidos de um conjunto heterogêneo de obras produzidas ao longo da segunda metade do século XX expressam esforços de sistematização da literatura latino-americana. Evidentemente que os impactos do chamado boom editorial, fenômeno que tornou alguns escritores do continente internacionalmente conhecidos, podem ser percebidos na valorização da literatura local de ambas as interpretações. No entanto, os programas analíticos extrapolam temas circunstanciais e repercutem na formulação das identidades estéticas da literatura latino-americana.

Forjadas em diferentes padrões de referencialidade - a formação historicista e a historicidade poético-hermenêutica -, as elaborações de Antonio Candido e Octavio Paz contextualizam o corpus literário da América Latina no “piso básico de práticas sociais comuns” e na “esfera intersubjetiva que existe e atua como esfera central de orientação valorativa do conjunto” (Quijano, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 117-142., p. 124) das literaturas locais. São modelizações que buscam explicar os sentidos históricos de obras reunidas sob signos culturais variados, mas cuja coerência é tecida de acordo com diferentes usos do passado. Tanto a ênfase na tópica da germinação como premissa da formação dos sistemas literários, quanto a análise da ruptura como condição do desenraizamento, encerram padrões que permitem investigar as afinidades escriturais produzidas nos modos de circulação e consumo letrados da literatura latino-americana.

Referências

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Editado por

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Rachel Esteves Lima

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Mar 2024
  • Aceito
    06 Jun 2024
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