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Literatura de trânsito e transformações da percepção

Transit literature and transformations of perception

RESUMO

As diferentes modalidades da literatura de trânsito (literatura de viagem, literatura pós-colonial, literatura de fluxos migratórios nacionais ou internacionais ou literaturas transnacionais) encenam contatos com alteridade. Esses encontros podem ocorrer com outras configurações culturais, mas também podem ser experiências dentro do próprio contexto de socialização. Em ambos os casos, há um deslocamento que propicia encontros, nos quais as redes de sentido interagem. Nessa interação, destaca-se a forma da condução do olhar para o mundo. O indivíduo pode buscar a manutenção de suas redes primárias de sentido, sua revisão ou mesmo uma confluência, em que os sentidos alheios são reciprocamente absorvidos. Implícita às diferentes formas de trânsito, portanto, encontra-se sempre uma atitude diante da diferença com a qual o indivíduo se depara. Essa atitude remete a estratégias de administração do sentido que se diferenciam conforme a narrativa pessoal e a visão de mundo dos sujeitos que participam da interação. Nessa esteira, este artigo deseja discutir a emergência de percursos da percepção na literatura de trânsito e, na sequência, analisar sua representação nos romances Europastraße 5 ( Rodovia Europa 5), de Güney Dal, e Die juristische Unschärfe einer Ehe ( A indeterminação jurídica de um matrimônio), de Olga Grjasnowa.

PALAVRAS-CHAVE:
literatura de trânsito; Europastraße 5; Güney Dal; Die juristische Unschärfe einer Ehe; Olga Grjasnowa

ABSTRACT

The different modalities of transit literature (travel literature, post-colonial literature, literature on national or international migration flows, or transnational literature) reenact contact with otherness. These encounters can happen under other cultural configurations, but can also be experiences within the context of socialization itself. In both cases, there is a displacement that produces encounters, in which networks of meaning interact. In this interaction, the way of looking at the world plays an important role, so that the individual can try to maintain its primary networks of meaning, look for a revision or even make an effort to generate a confluence, in which the meanings of others are reciprocally absorbed. Implicit to the different forms of transit, there is always an attitude towards the difference that the individual is faced with. This attitude refers to the strategies of meaning management, which differ according to the personal narrative and worldview of the partners engaged in the interaction. With this in mind, this article aims to discuss the emergence of paths of perception in transit literature and, subsequently, analyze its representation in two novels: Güney Dal’s Europastraße 5 and in Olga Grjasnowa’s Die juristische Unschärfe einer Ehe.

KEYWORDS:
transit literature; Europastraße 5; Güney Dal; Die juristische Unschärfe einer Ehe; Olga Grjasnowa

Com base nas mais diversas motivações, atores sociais deixam seu espaço de primeira socialização e buscam se assentar em novas coordenadas geográficas, de forma passageira ou definitiva, a fim de concretizar sua existência. Isso vale para os deslocamentos internacionais, mas se estende igualmente para o movimento inter-regional ou em direção a espaços urbanos dentro de um mesmo país ( CURY, 2006CURY, Maria Zilda Ferreira. “Uma luz na escuridão: migração e memória”. In: VAZ, Artur Emilio Alarcon; BAUMGARTEN, Carlos Alexandre; CURY, Maria Zilda Ferreira (org.). Literatura e imigrantes: sonhos em movimento. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, POS-LIT; 2006. p. 9-33.; 2015CURY, Maria Zilda Ferreira. Auroras migrantes. Letras de Hoje, v. 59, n. 2, p. 185-190, 2015.). Em todos esses contextos, o sujeito deixa a rede semiótica conhecida e internalizada para buscar oportunidades que condigam com suas necessidades identitárias. O deslocamento, portanto, sempre contém dois vetores importantes: um movimento geográfico e um movimento semiótico. Para isso, não é necessário que os dois ocorram simultaneamente, ou seja, é possível se deslocar geograficamente, sem que isso implique numa transformação das redes semióticas, e é possível transformar as redes semióticas sem sair do lugar. O que vai definir a transformação não é o deslocamento espacial em si, mas o modo como o indivíduo se apropria do mundo, ou seja, como ele se utiliza do olhar para tecer narrativas de realidade. É esse olhar que vai classificar, posicionar e hierarquizar, nomeando as formas de ser no mundo. A transformação emerge da alteração no crivo de percepção e, com isso, da atitude adotada para ir ao encontro do outro e do mundo, com suas complexas dimensões de sentido.

Na discussão literária, são muitas as modalidades em que essa confluência entre deslocamento espacial e semiótico formam o foco de atenção. Para esta discussão, retomamos algumas dessas formatações discursivas a fim de verificar como elas problematizam a transformação do olhar, começando pelos relatos de viagem. A literatura de viagem teve um papel de destaque para a encenação de diferentes formas de deslocamento e de encontros interculturais. Em sua definição, Thompson (2011THOMPSON, Carl. Travel writing. London: Routledge, 2011.) elenca dois critérios centrais para a caracterização desse gênero:

Viajar é empreender um deslocamento [journey], um movimento no espaço. Talvez esse deslocamento [journey] seja épico em escala, levando o viajante para o outro lado do mundo ou através de um continente, ou montanha acima; talvez seja mais modesto em escopo, ocorrendo dentro dos limites do próprio país ou região do viajante, ou mesmo apenas de sua localidade imediata. De qualquer forma, começar qualquer deslocamento [journey] ou, na verdade, simplesmente colocar os pés além da própria porta da frente, é encontrar rapidamente a diferença e a alteridade. Todas as viagens são, assim, um confronto com, ou, de forma mais otimista, uma negociação daquilo que às vezes se denomina alteridade. ( THOMPSON, 2011THOMPSON, Carl. Travel writing. London: Routledge, 2011., p. 9). 1 1 To travel is to make a journey, a movement through space. Possibly this journey is epic in scale, taking the traveller to the other side of the world or across a continent, or up a mountain; possibly it is more modest in scope, and takes place within the limits of the traveller’s own country or region, or even just their immediate locality. Either way, to begin any journey or, indeed, simply to set foot beyond one’s own front door, is quickly to encounter difference and otherness. All journeys are in this way a confrontation with, or more optimistically a negotiation of, what is sometimes termed alterity ( THOMPSON, 2011, p. 9).

O primeiro critério é o deslocamento espacial. Segundo Thompson, ele não se restringe ao encontro com outras culturas ou à experiência do exótico, podendo incluir igualmente o movimento do cotidiano. Para a definição da literatura de viagem, esse critério tem grande relevância, definindo o escopo do corpus que pode ser estudado sob essa terminologia. Para esta discussão, o critério mais importante remete ao fato de que o indivíduo deixa o espaço familiar, no qual domina as regras e os sentidos que o atravessam, para adentrar uma esfera em que predominam outros modos de estruturar a rede semiótica, uma rede que indica como atores sociais podem se movimentar nessas coordenadas.

Ao lado do deslocamento, Thompson indica o encontro com a alteridade. Esse encontro pode ser o ponto de partida para transformação das redes semióticas internalizadas pelo indivíduo, uma vez que se depara com outras formas de estar no mundo e organizar as tessituras que coordenam ações e comportamentos. Em consonância com as formas de administração da alteridade que o indivíduo adota, o encontro com o outro pode desencadear transformações do si, já que, no seu esforço de apropriação de realidade, o sujeito se vê confrontado com a necessidade de identificar semelhanças e diferenças, inserindo-as em sua própria narrativa de mundo e do si. Desse confronto, pode emergir o diálogo com um anseio de compreensão da alteridade ou um fechamento que bloqueia todos os sentidos que ameaçam a manutenção do si. O deslocamento, nesse contexto, não é espacial, mas sim discursivo, uma vez que a negociação dos sentidos impacta no modo como narrativas são retoricamente organizadas. A transformação do olhar se traduz em transformação da narrativa.

Mary Louise Pratt identifica um movimento semelhante em seu estudo canônico sobre as relações entre centros imperiais e colônias. Para a estudiosa, esses encontros criam “zonas de contato” que revelam as formas como a perspectiva adotada impacta na narrativa a ser constituída:

“Zona de contato” na minha discussão é frequentemente sinônimo de “fronteira colonial”. Mas enquanto o último termo se baseia em uma perspectiva expansionista europeia (a fronteira é uma fronteira apenas no que diz respeito à Europa), “zona de contato” muda o centro de gravidade e o ponto de vista. Invoca o espaço e o tempo onde sujeitos, antes separados pela geografia e pela história, estão copresentes, o ponto em que agora se cruzam as suas trajetórias. O termo "contato" coloca em primeiro plano as dimensões interativas e improvisadas dos encontros imperiais tão facilmente ignorados ou suprimidos por relatos de conquista e dominação, contados da perspectiva do invasor. Uma perspectiva de “contato” enfatiza como os sujeitos se constituem em e por suas relações uns com os outros. ( PRATT, 2008PRATT, Mary Louise. Imperial eyes: travel writing and transculturation. London: Routledge, 2008. , p. 8). 2 2 “Contact zone” in my discussion is often synonymous with “colonial frontier”. But while the latter term is grounded within a European expansionist perspective (the frontier is a frontier only with respect to Europe), “contact zone” shifts the center of gravity and the point of view. It invokes the space and time where subjects previously separated by geography and history are co-present, the point at which their trajectories now intersect. The term “contact” foregrounds the interactive, improvisational dimensions of imperial encounters so easily ignored or suppressed by accounts of conquest and domination told from the invader’s perspective. A “contact” perspective emphasizes how subjects get constituted in and by their relations to each other. ( PRATT, 2008, p. 8).

A discussão de Mary L. Pratt tem como objeto de análise os relatos de viagem na confluência entre império e colônias. Nesse estudo, ela oferece dois instrumentos analíticos que nos parecem importantes para os propósitos deste artigo: contato e perspectiva. O primeiro termo remete ao encontro e ao modo como indivíduos são constituídos no marco da negociação de sentidos. O contato, com suas assimetrias de poder, impacta na forma como a rede semiótica que classifica e posiciona atores sociais é mantida, revisada, subvertida ou imposta. Dessa confluência emerge uma narrativa de mundo e do si que passa a ser utilizada como crivo de apropriação de realidade. Isso tem validade para os encontros entre membros do centro imperial e das colônias, foco de Pratt, mas vale igualmente para o encontro entre outros atores sociais que negociam sentidos nas mais diversas intersecções culturais.

O segundo elemento é a perspectiva. A perspectiva adotada é relevante para os relatos de viagem propriamente ditos, mas é igualmente imprescindível em qualquer outra forma de mediação da realidade (diegética), em que o leitor tem acesso ao mundo (ficcional) por meio da versão dos fatos apresentada a partir de um determinado ponto de vista. O que interessa a Pratt parece residir no comportamento ou disciplinamento do olhar, de modo que ela questiona em seu estudo como esse olhar, de cuja perspectiva o leitor tem acesso aos relatos, enfeixa sua energia intelectual para decodificar e encenar o mundo. Suas perguntas buscam identificar que ordens, hierarquias e posicionamentos esse olhar distingue ou como a interpretação mediada por esse olhar estabelece narrativas que definem o ser no mundo. Esse movimento da percepção não desbrava somente o espaço, mas sobretudo os sentidos que a condicionam. Encontrar, enxergar, representar são diferentes momentos desse encontro com o outro.

A dinâmica do olhar também é um elemento central na concepção das literaturas chamadas transculturais ou transnacionais. Em seu estudo sobre o transnacionalismo, Steven Vertovec (2004VERTOVEC, Steven. Migrant Transnationalism and Modes of Transformation. International Migration Review, v. 38, n. 3, p. 970-1001, 2004. ) identifica a bifocalidade como característica central de atores sociais que transitam entre diferentes pertencimentos culturais, isso é, a habilidade de enxergar com proficiência as diferentes malhas semióticas que atravessam os espaços de seu pertencimento. Com foco na emergência de um corpus literário que encena essa experiência, Dagnino (2012DAGNINO, Arianna. Transcultural Writers and Transcultural Literature in the Age of Global Modernity. Transnational Literature, v. 4, n. 2, p. 1-14, 2012.) escreve:

Dentro de um contexto literário mais específico, estou teorizando que este cenário sociocultural também está dando origem a uma nova geração de escritores culturalmente móveis, a quem chamo de “escritores transculturais”. Ou seja, escritores imaginativos que, por escolha ou por circunstâncias de vida, experimentam um deslocamento cultural, vivem experiências transnacionais, cultivam proficiência bilíngue / plurilíngue, mergulham fisicamente em múltiplas culturas / geografias / territórios, expõem-se à diversidade e mantêm identidades flexíveis, plurais. Enquanto se movem fisicamente por todo o mundo e por diferentes culturas, eles se encontram cada vez menos presos à síndrome do migrante / exílio tradicional e se tornam mais aptos a abraçar as oportunidades e a liberdade que a diversidade e a mobilidade lhes conferem. É graças a esse status específico, argumento, que esses escritores móveis se encontraram na vanguarda na captura e expressão de uma sensibilidade transcultural emergente. ( DAGNINO, 2012DAGNINO, Arianna. Transcultural Writers and Transcultural Literature in the Age of Global Modernity. Transnational Literature, v. 4, n. 2, p. 1-14, 2012., p. 1-2). 3 3 Within a more specific literary context, I am theorising that this socio-cultural scenario is also giving birth to a new generation of culturally mobile writers, whom I call “transcultural writers”. That is, imaginative writers who, by choice or by life circumstances, experience cultural dislocation, live transnational experiences, cultivate bilingual/pluri-lingual proficiency, physically immerse themselves in multiple cultures/geographies/territories, expose themselves to diversity and nurture plural, flexible identities. While moving physically across the globe and across different cultures, they find themselves less and less trapped in the traditional migrant/exile syndrome and become more apt instead to embrace the opportunities and the freedom that diversity and mobility bestow upon them. It is thanks to this specific status, I argue, that these mobile writers have found themselves at the forefront in capturing and expressing an emerging transcultural sensitivity. ( DAGNINO, 2012, p. 1-2).

Esse corpus literário compartilha com aqueles já mencionados a encenação do movimento espacial, em que personagens se deslocam de um lugar de origem, imergindo na experiência com a alteridade de outro espaço cultural. No lugar do assentamento e da estabilização, a realidade diegética encena a flexibilidade e a abertura como vetores de acesso ao mundo. Claro, os autores que Dagnino descreve parecem pertencer muito mais a uma elite internacional, exitosa no mercado editorial, hoje em Nova York, amanhã em Paris, possivelmente mais atenta aos imperativos do mercado que à experiência transnacional, com suas dimensões de desestabilização do sentido. Efetivamente, muitos autores considerados transnacionais não o são por opção, mas sim por circunstâncias existenciais, como a autora também afirma, cuja prática literária busca dar voz a experiências que escapam aos parâmetros existentes de representação ficcional. Dentre essas vozes, há aquelas que procuram uma forma de problematizar a localização sociocultural, simulando um processo de apropriação das redes semióticas locais, sem a renúncia do conhecimento cultural de origem. Para isso, a “expressão de uma sensibilidade transcultural” passa por um processo de treinamento do olhar que não só enxerga a diferença, mas que igualmente logra identificar a dinâmica semiótica da qual emerge a rede de oposições que produz a lógica da diferença.

Nessas diferentes formas de conceber literatura e encenar experiências de interação com a alteridade, a atitude frente à administração do sentido se revela central. Isso é, mais importante que o sistema de posicionamento global, que fornece as coordenadas para o movimento no espaço, é a habilidade de identificar a localização nas coordenadas do sentido que definem motivações. É essa habilidade que determina o modo como o indivíduo se posiciona na dimensão espaço-temporal, instaurando ou não sentidos. De acordo com Landowski (2016LANDOWSKI, Eric. Presencias del outro. Tradução para o espanhol de Desiderio Blanco. Lima: Fondo Editorial, 2016. ):

Semióticamente hablando, es cosa ya sabida, no hay espacio-tiempo como referente puro o como objeto de estudio dado a priori. Lo único que hay son sujetos que, a través de las modalidades variables de la captación de su “aquí-ahora”, construyen las condiciones de su relación consigo mismos como un “yo”. Desde ese punto de vista, toda construcción identitaria, toda “búsqueda de sí-mismo”, pasa por un proceso de localización del mundo, del mundo como alteridad y como presencia (más o menos “presente”) en relación consigo mismo. E inversamente, toda exploración del mundo, todo “viaje”, en cuanto experiencia de la relación con un “aquí-ahora”, que debe ser redefinida sin cesar, equivale a un proceso de construcción del yo. ( LANDOWSKI, 2016LANDOWSKI, Eric. Presencias del outro. Tradução para o espanhol de Desiderio Blanco. Lima: Fondo Editorial, 2016. , p. 91).

Nesse horizonte, a gênese do sentido está relacionada a um esforço de criação de referências, em que o sujeito se posiciona e posiciona o outro numa rede de sentidos que guiam a concretização existencial. No lugar da passagem superficial que olha mas não enxerga, essa forma de relacionamento com o espaço empreende um esforço de reconhecer as dinâmicas de sentido que subjazem às motivações dos interlocutores. Nisso, ocorre uma transformação não somente no modo como sentidos são administrados, mas sobretudo na forma como eles impactam no próprio indivíduo, ao tecer elos com as redes semióticas que atravessam essa experiência. Assim, a viagem representa um deslocamento do si, o qual passa por uma transformação do conjunto de sentidos que embasa sua imagem e a imagem das coordenadas em que se movimenta no mundo. Em sua discussão sobre a ideia de trânsito na literatura canadense, Balint (2020BALINT, Adina. Représentations de la mobilité dans le récit de soi contemporain au Canada francofone. Voix plurielles, v. 17, n. 1, p. 112-124, 2020.) escreve:

Assim é como deve se entender o valor agregado do movimento: por um lado, como abertura para o intangível e seu benefícios e, por outro lado, como postura em oposição ao estabelecido, como estando a caminho com, em direção ao outro e daí, para a infinidade de possibilidades e imaginações. 4 4 C’est ainsi qu’il convient de comprendre la plus-value du mouvement: d’une part comme ouverture à l’immatériel et à ses bienfaits et, d’autre part, comme posture en opposition à l’établi, comme être en chemin avec, vers l’autre et de là, vers l’infini de possibilités et d’imaginaires . ( BALINT, 2020, p. 117). ( BALINT, 2020BALINT, Adina. Représentations de la mobilité dans le récit de soi contemporain au Canada francofone. Voix plurielles, v. 17, n. 1, p. 112-124, 2020., p. 11).

Trata-se, portanto, de uma atitude que condiciona o modo como o indivíduo enfeixa seu esforço cognitivo para se apropriar da realidade e inserir seus sentidos na própria narrativa do si.

As diferentes formatações das literaturas de trânsito confluem para uma prática textual em que o deslocamento espacial serve como ponto de partida para problematizar dinâmicas de sentido. Quando personagens deixam um espaço de origem para se estabelecer num novo contexto social, de modo temporário ou não, elas passam por um processo de reposicionamento nas redes semióticas que compõem a tessitura identitária, encenada na realidade diegética. Nesse trânsito do sentido, pode ocorrer uma fragilização das narrativas que definem seu ser no mundo (ficcional), desencadeando um processo de revisão das referências espaço-temporais que servem de coordenadas para suas ações. Assim, as redes internalizadas no processo de socialização primária, por exemplo no que diz respeito a questões de gênero, raça, classe, sexualidade e religião, por vezes, perdem sua validade, gerando uma fragilização de sua localização nas coordenadas do sentido. Com efeito, o novo espaço cultural não raramente adota outras narrativas de mundo, causando no sujeito uma sensação de desestabilização e alteridade, frente a interpretações de realidade desconhecidas. Aqui impactam os vestígios memoriais, como propõe Zilá Bernd (2013BERND, Zilá. Lire les littératures de la migration à partir des vestiges mémoriels. In: ERTLER, Klaus-Dieter; IMBERT, Patrick (eds.). Cultural challenges of migration in Canada: Les défis culturels de la migration au Canada. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2013. p. 361-370. ).

Nesse horizonte, destaca-se a importância da atitude diante das novas cartografias do sentido. Dessa perspectiva, as atitudes frente à alteridade vão definir como o indivíduo, independentemente de ser agente ativo ou passivo na produção da diferença, processa as redes semióticas com as quais se vê confrontado e como ele as insere em sua realidade pessoal, produzindo presença. Assim, é menos importante se o percurso de deslocamento se dá do lugar de origem em direção a um novo espaço de assentamento ou de modo inverso, quando atores sociais, após uma longa permanência em outro espaço social, retornam às origens. Os dois trajetos podem desencadear, em proporções semelhantes, processos de estranhamento, em que interlocutores encontram e negociam alteridade. O que define o grau de transformação é a atitude do interlocutor diante da diferença, revisando sua própria localização no mundo ou neutralizando sentidos, de modo a bloquear o impacto da alteridade. O que se transforma é o olhar para o mundo.

A experiência com a alteridade pode fragilizar o condicionamento cultural, revelando o etnocentrismo inerente a uma apropriação de mundo indiferenciada. Para Natália Ramos, o distanciamento de práticas etnocentristas nos percursos de percepção, por meio da problematização de “filtros culturais”, representa um elemento-chave para a formação do futuro ( RAMOS, 2009RAMOS, Natália. Diversidade cultural, educação e comunicação intercultural − políticas e estratégias de promoção do diálogo intercultura. Revista Educação em Questão, v. 34, n. 20, p. 9-32, 2009. ; 2011). Nesse sentido, o encontro com outras visões de mundo revela uma chance de extensão do escopo de visão e, com isso, de transformação do olhar. Vale lembrar que se trata de um conhecimento em potencial que pode desencadear novas formas de enxergar o lugar de origem com suas práticas interacionais, mas pode igualmente não impactar na visão de mundo do respectivo sujeito, deixando sua perspectiva, em grande medida, inalterada. As diferentes literaturas de trânsito voltam sua atenção para essas dinâmicas, problematizando a partir de deslocamentos espaço-culturais as transformações do olhar.

Na sequência deste artigo, o foco recai sobre dois romances oriundos do contexto de fluxos migratórios a fim de comparar como esse olhar é encenado na respectiva realidade diegética. O primeiro romance é Europastraße 5 ( Rodovia Europa 5), de Güney Dal. Publicado em 1981, o texto remete à primeira leva de imigrantes turcos que começa a chegar à Alemanha no início da segunda metade do século XX. O segundo romance é Die juristische Unschärfe einer Ehe ( A indeterminação jurídica de um matrimônio) de Olga Grjasnowa. Publicado em 2014GRJASNOWA, Olga. Die juristische Unschärfe einer Ehe. München: Carl Hanser Verlag, 2014. , o texto tem como foco o deslocamento de imigrantes do leste europeu, no período pós União Soviética. Os dois romances problematizam o encontro com a alteridade no novo país de assentamento, mas também encenam um momento de retorno ao país de origem. O relato e as interações das personagens revelam atitudes frente às redes semióticas com as quais são confrontadas. Nosso interesse se volta a seu olhar e como é transformada ou não a atitude adotada diante da complexidade do outro.

Güney Dal: Europastraße 5

O romance retrata as experiências do casal turco Salim e Sünbül na Alemanha. Durante uma visita ao filho, o pai de Salim falece, o que ocorre depois que seu visto já tinha expirado. Para evitar problemas com as autoridades de imigração, o protagonista decide levar o corpo do pai de carro para a Turquia. Uma parte substancial do enredo está ambientado na rodovia, onde Salim encontra outros turcos que estão voltando para o país. Na interação entre o protagonista e os outros viajantes, o romance oferece a plataforma para encenar as transformações do olhar. Isso ocorre especialmente com base na família turca de Ferit Bey, com a qual o protagonista interage em grande parte do trajeto. Como o protagonista, essa família foi para a Alemanha para trabalhar e está voltando definitivamente para a Turquia. Em diferentes episódios, os membros da família relatam suas experiências e visões de mundo, revelando como o contato com a alteridade impactou (ou não) suas modalidades de apropriação de mundo.

A família está composta pelos pais e quatro filhos, dos quais um é bebê. Dentre os outros, encontram-se o primogênito Kayhan, que fica na Alemanha, o filho do meio, Cem, que se interessa por questões políticas, e a filha Nurcan, que se encontra na adolescência. Tanto o pai como a mãe revelam uma visão de mundo pautada pelos princípios patriarcais, com papeis sociais bem definidos e sem espaço para questionamentos. Os anseios e desafios de cada um dos filhos traz à tona a dinâmica de posicionamento frente às mais diversas alteridades com as quais se veem confrontados durante sua permanência no país. O protagonista, ao passo que serve de interlocutor, treina seu olhar a partir das experiências que lhe são relatadas pelos membros da família. Cada um dos filhos remete a questões diferentes, todas elas sensíveis para uma socialização patriarcal, voltada para a prática da submissão. Dentre elas encontram-se a homossexualidade, o comunismo e a autonomia feminina.

O primeiro ponto concerne ao filho primogênito, relatado pela mãe durante a carona com Salim e Sünbül. A partir de seu olhar, o leitor tem acesso ao modo como ela interpreta a realidade e se posiciona nas redes semióticas, no que diz respeito à homossexualidade de Kayhan.

Dizia-se que Kayhan já estava morando com esse alemão como homem e mulher há anos. O homem nem mesmo o manda trabalhar, dizem que ele o vigia enciumado, como uma esposa que fica em casa. Quando ouvi isso, passei muito mal. Tive episódios de febre e erupção na pele. Eu não toquei mais na comida. E a ferida em meu coração não parava de crescer. Como Kayhan, que sempre foi tão apegado a mim, pôde fazer isso, fiquei pensando ... E meu marido, ele diz ter sabido disso há muito tempo. Mesmo quando ainda frequentava a escola profissionalizante, dizem que fazia essas coisas. E diz que esse também foi o motivo pelo qual Ferit sempre batia nele. ( DAL, 1990DAL, Güney. Europastrasse 5. Tradução do turco para o alemão de Carl Koß. München, Zürich: Piper, 1990., p. 110). 5 5 Da hieß es, Kayhan würde schon seit Jahren mit diesem deutschen Kerl wie Mann und Frau zusammenleben. Der Mann schickt ihn nicht mal zur Arbeit, er soll ihn eifersüchtig bewachen wie eine Ehefrau, die zu Hause bleibt. Als ich das hörte, ging es mir dann sehr schlecht. Ich bekam dauern Fieberanfälle und Ausschlag. Ich rührte keinen Bissen mehr an. Und die Wunde in meinem Herzen wuchs immer weiter. Wie kann Kayhan, der immer so an mir gehangen hatte, das nur machen, dachte ich immer wieder … Und mein Mann, der will das schon viel früher gewußt haben. Schon als er noch auf die Berufsschule ging, soll er solche Sachen getrieben haben. Und das soll auch der Grund gewesen sein, warum Ferit ihn immer verprügelte. ( DAL, 1990, p. 110).

O crivo de percepção da figura materna adota a narrativa da heterossexualidade como padrão para decodificar a realidade, produzindo sentidos a partir dessa visão de mundo. Seu relato revela que seu olhar para alteridade parte da rede semiótica de sua socialização primária, de modo que ela classifica, hierarquiza e nomeia em consonância com a macronarrativa herdada. A despeito da proximidade que ela tem com o filho, ela não logra enxergar seu ser no mundo, uma existência que se diferencia na forma como concretiza a sexualidade, adotando, portanto, outras redes semióticas para se movimentar nas coordenadas sociais. No lugar da produção de presença ou da imersão nos sentidos que a alteridade produz, a mãe reage com um bloqueio que, num primeiro momento se traduz em forma de impacto físico, na sequência, na exclusão sistemática do filho de seu espaço.

A figura paterna, por sua vez, intensifica essa reação ao utilizar da violência como estratégia de silenciamento. Em ambos os casos, o esforço não reside em produzir encontro ou diálogo com a alteridade do filho, mas sim em submetê-lo aos parâmetros semióticos adotados por eles. Nesse contexto, toda a energia cognitiva enfeixada pelo olhar é investida na manutenção da semelhança e na estabilização da narrativa de origem. Como o filho não se enquadra nessa narrativa, eles passam a negar sistematicamente sua existência, impedindo igualmente toda forma de interação familiar que pudesse dar azo a alguma revisão.

O olhar da mãe reproduz a interpretação de realidade da figura paterna, sem realmente se atrever a questionar essa visão de mundo. O pai, por sua vez, surge como vetor constante que investe ininterruptamente na manutenção de sua rede semiótica. Ele expulsa o primogênito de casa e o declara morto por não se inserir na prática dominante da sexualidade. Diante dessa experiência de insubordinação que exige a transformação do olhar, o pai intensifica a vigilância sobre os outros filhos. Esse é o caso de Cem, o filho do meio:

Nós entregamos as coisas ontem à noite e estávamos no caminho de volta quando ele começou a discutir comigo novamente. Ele despejou tudo que eu não posso ouvir mais uma vez. Eles mudariam o sistema na Turquia e viria o socialismo. Agora cale a boca, eu disse a ele algumas vezes. Você pode acreditar nessa merda o quanto quiser, mas queremos ir lá primeiro, encher a barriga e dormir. E o cachorro realmente não para de falar! Realmente diz que sou fascista porque fui criado pelos soldados. E tentaria educar meus filhos para fazer isso também. ( DAL, 1990DAL, Güney. Europastrasse 5. Tradução do turco para o alemão de Carl Koß. München, Zürich: Piper, 1990., p. 134-135). 6 6 Wir haben gestern nacht die Sachen abgegeben und waren auf der Rückfahrt, da fing der wieder an, mit mir zu streiten. Er hat wieder all das aufgetischt, was ich nicht hören kann. Das System würden sie ändern in der Türkei, und der Sozialismus würde kommen. Nun halt endlich die Klappe, hab ich ihm ein paar Mal gesagt. Du kannst ja an diesen Scheiß glauben, soviel du willst, aber wir wollen jetzt erst mal hinfahren, uns den Magen vollschlagen und uns ausschlafen. Und der Hund hört doch tatsächlich nicht auf zu reden! Sagt doch tatsächlich ich wäre Faschist, weil ich bei den Soldaten aufgezogen wurde. Und würde versuchen auch meine Kinder dazu zu erziehen. ( DAL, 1990, p. 134-135).

Cem se encontra numa fase em que começa a interpretar as redes semióticas que atravessam o mundo com os próprios olhos. Nesse momento, sua forma de apropriação da realidade ainda oscila entre submissão à narrativa paterna, com sua lógica de decodificação, e a instauração de um olhar próprio que se posiciona diante da alteridade. Enquanto Kayhan se volta para a alteridade do corpo, Cem enfeixa seu interesse em direção a questões políticas, incluindo em seu escopo dimensões relacionadas com o país de origem dos pais. A partir dessa perspectiva, seu olhar vislumbra a alteridade inerente à organização do espaço social e suas narrativas de comunidade. Ao falar de mudanças de sistema, Cem indica que interage com outras narrativas de mundo, tentando compreender as redes semióticas que elas preveem. No lugar de um Estado autoritário, ele imagina outras formas de participação.

Se num primeiro passo seu olhar se volta para dinâmicas sociais, num segundo, ele transfere essa estrutura para o microcosmo familiar, no qual identifica na figura paterna uma instância autoritária que impede a instauração de uma voz própria. Nesse cenário, Cem tem duas alternativas: ou adota a narrativa paterna, com sua disposição semiótica, a fim de assegurar a manutenção do investimento afetivo, ou, no caso de insubordinação, ao optar por afirmar o próprio olhar sobre o mundo, precisa antecipar o silenciamento por meio da violência. O olhar de Cem ainda oscila entre essas diferentes modalidades de organizar o sentido e de se posicionar diante dele. A figura paterna, por sua vez, tem um posicionamento definitivo que não está aberto a negociações ou transformações. Dessa perspectiva, a realidade instaurada pelo olhar paterno emerge como confirmação da rede semiótica tida por válida, mantendo uma atitude intransigente diante de qualquer forma de alteridade que venha questionar sua interpretação de realidade.

O primogênito Kayhan é afastado da família; Cem é silenciado por meio da violência; a filha Nurcan, por fim, acaba procurando por outros caminhos, já que a exposição da alteridade aos olhos paternos desemboca em exclusão. Como os outros filhos, Nurcan também se vê confrontada com formas de alteridade, mais especificamente, com modalidades de pensar o corpo feminino e sua autonomia:

Os turcos não chamam isso de pila ... Ah, sim. Eles dizem meios de controle para que nenhuma criança nasça, dizem pílula... Claro, minhas amigas na scola, quero dizer, todo mundo na escola toma pílula. Até as menininhas alguns anos mais novas que eu tomam... Tenho quatorze anos e meu pai é contra eu tomar pílula, e minha mãe também. Ficam chateados com isso... Fui ao médico às escondidas... Minhas amigas alemãs me levaram lá; e o médico falou, ela está bem saudavel. O médico queria conversar com meus pais, mas... ( DAL, 1990DAL, Güney. Europastrasse 5. Tradução do turco para o alemão de Carl Koß. München, Zürich: Piper, 1990., p. 129-130). 7 7 Die Türken sagen ja nicht pile dazu ... Ach ja. Sie nennen das Mittel zur Kontrolle, damit kein Kind geboren wird, sie sagen Tabletten … Natürlich, meine Freundinnen in der sule, ich meine in der Schule nehmen alle die Pille. Sogar die kleinen Mädchen, die ein paar Jahre jünger sind als ich, nehmen sie … Vierzehn bin ich, und mein Vater ist dagegen, daß ich die Pille nehme, und meine Mutter auch. Sie ärgern sich darüber … Ich bin heimlich zum Arzt gegangen … Meine deutschen Freundinnen haben mich hingebracht; und der Arzt hat es da gesagt, sie ist ganz gezunt. Der Arzt wollte mit meinen Eltern reden, aber... ( DAL, 1990, p. 129-130). Os lexemas “pile” (“pila”), “sule” (“scola”) e “gezunt” (“saudavel”) procuram representar uma espécie de idioleto de imigrantes turcos, recuperando uma interferência da língua primária na língua secundária.

Como seus irmãos mais velhos, Nurcan encontra outras redes semióticas em espaços onde interage com atores sociais pertencentes ao grupo dominante do país de assentamento. Essa interação lhe pavimenta o caminho de acesso a novas formas de interpretar o mundo, de classificar ações e adotar atitudes. No caso de Nurcan, isso se refere à utilização de anticoncepcionais. Ao interagir com suas colegas de escola, ela passa a ser confrontada com a alteridade inerente a uma rede semiótica que pensa o corpo feminino como independente e autônomo, de modo que se oferecem auxílios para que a administração corporal possa ser satisfatória. Enquanto suas colegas já detêm o conhecimento necessário para concretizar suas existências, com base numa narrativa pautada pela autonomia, ela precisa primeiramente ter acesso a esse tipo de conhecimento, para depois poder procurar a ajuda necessária. Essa constelação sugere que suas amigas podem conversar abertamente sobre isso com seus pais, sem que a alteridade se instale ou a articulação da sexualidade seja silenciada. Nurcan, por sua vez, identifica que não há possibilidades para esse diálogo com os pais, pelo contrário, ela antecipa uma série de sanções que conduziriam à obliteração desse excerto de sua realidade pessoal. Ao contrário dos rapazes, portanto, ela não procura confrontar os pais com outras redes semióticas, na esperança de transformar seus olhares. Ao invés disso, ela identifica as estratégias viáveis, vive sua alteridade, mas não desafia o ímpeto silenciador da família.

Nessas diferentes formas de localização, a imagem da viagem se encontra em dois níveis. Por um lado, é possível identificá-la como elemento estruturador do enredo ao encenar a viagem propriamente dita de retorno à Turquia, a qual oportuniza o encontro com o protagonista Salim e fornece o elo causal para o relato no nível diegético. Por outro lado, no nível do relato das personagens, a imagem da viagem se instaura quando os diferentes membros da família expõem suas modalidades de interação com as redes semióticas. Nisso, elas revelam de que forma, de fato, transitam ou não entre as narrativas que constituem sua realidade. Nesse movimento, Güney Dal tem como foco de crítica a comunidade de imigrantes na Alemanha, chamando a atenção para como a intransigência implica num alto potencial de destruição. Os três filhos transitam entre as diferentes culturas, construindo suas identidades a partir dessa confluência simbólica. Para o protagonista Salim, o encontro com a família representa um treinamento simbólico, já que ele se vê interpelado a refletir sobre as próprias atitudes. Nesse cenário, ele tem duas opções de itinerário: reproduzir a estagnação do encontro por meio da intransigência ou trilhar o percurso da negociação de sentidos.

Olga Grjasnowa: Die juristische Unschärfe einer Ehe

O romance de Grjasnowa também se enquadra numa espécie de literatura de trânsito. Aqui, o casal Leyla e Altay deixa o Azerbaijão, passando por um período de formação na Rússia e deslocando-se posteriormente para a Alemanha, onde se assentam. Como no romance precedente, o leitor também encontra a encenação do regresso, um momento em que o casal retorna para o país de origem e enxerga dimensões novas. Ao contrário da família turca de Dal, que pertence a uma classe social menos favorecida, as personagens de Grjasnowa transitam nos círculos de elite. Em ambos os casos, o pensamento patriarcal atravessa as narrativas de realidade, condicionando o pertencimento.

Enquanto os personagens de Dal aparentemente têm clareza sobre o lugar de pertencimento (ao menos os pais), a protagonista Leyla de Grjasnowa não tem tanta certeza:

Moscou era claramente o centro, o que ela não conseguia realmente explicar. Especialmente porque os triângulos não tinham estritamente um centro, mas uma ponta. Certeza, Leyla só tinha de que Berlim não dava a sensação de ser a reta final e, como não tinha outra ideia, decidiu pelo menos voltar ao ponto de partida. ( GRJASNOWA, 2014GRJASNOWA, Olga. Die juristische Unschärfe einer Ehe. München: Carl Hanser Verlag, 2014. , p. 128). 8 8 Moskau war eindeutig das Zentrum, was sie sich nicht wirklich erklären konnte. Vor allem, da Dreiecke kein Zentrum im eigentlichen Sinn hatten, sondern eine Spitze. Sicher war sich Leyla nur, dass Berlin sich nicht wie die Zielgerade anfühlte, und da sie keine andere Idee hatte, beschloss sie, wenigstens zum Ausgangspunkt zurückzukehren. ( GRJASNOWA, 2014, p. 128).

Para corroborar essa ideia, o romance traz a ilustração de um triângulo com o nome das três cidades em cada ponta: Moscou, Berlim, Bacu. De certa forma, a protagonista precisa encontrar clareza para si mesma sobre como se posicionar nessa cartografia. Efetivamente, nenhum dos três espaços consegue oferecer um conjunto de redes semióticas que abarque a totalidade de suas necessidades, no entanto, seu trânsito nessas práticas simbólicas treina seu olhar para seus anseios. Nesse sentido, a volta para o primeiro espaço de socialização cultural se oferece como chance para verificar até que ponto ele ainda oferece potenciais de identificação.

Nas diferentes etapas de deslocamento cultural, Leyla reconhece com acuidade crescente sua desidentificação com o modelo patriarcal. É dessa perspectiva de não pertencimento que ela decodifica as redes semióticas que encontra ao retornar para o espaço de primeira socialização cultural:

As primeiras semanas em Bacu foram terrivelmente insossas. Cada uma por si, Salomé e Nazim tentaram introduzir Leyla na sociedade, mas ela não se encaixava em lugar nenhum: ela não tinha mais amigos na cidade, e a maioria das mulheres de sua idade já era casada e tinha família. As mulheres a quem foi apresentada, filhas e amigas de seus pais, todas pareciam frustradas a Leyla. Cada um delas foi humilhada e abusada à sua maneira. Todo um exército de infelizes Madame Bovarys. (GRJASNOWA, 2014, p. 151). 9 9 Die ersten Wochen in Baku waren anstößig fad. Unabhängig voneinander versuchten Salome und Nazim Leyla in die Gesellschaft einzuführen, doch sie passte nirgends dazu: Freunde hatte sie keine mehr in der Stadt, und die meisten Frauen in ihrem Alter waren bereits verheiratet und hatten Familien. Die Frauen, die ihr vorgestellt wurden, Töchter und Freunden ihrer Eltern, machten alle einen frustrierten Eindruck auf Leyla. Jede von ihnen war auf ihre eigene Art gedemütigt und misshandelt worden. Eine ganze Armee unglücklicher Madame Bovarys. ( GRJASNOWA, 2014, p. 151).

A protagonista volta para o Azerbaijão, após uma permanência prolongada na Alemanha. A primeira experiência do reencontro é a sensação de ausência de sentido. Enquanto as amigas se encontram completamente imersas nas redes semióticas que proporcionam vetores teleológicos para suas existências, ela experimenta a sensação de desorientação, de modo que não logra se inserir nas dinâmicas estabelecidas. Ao tomar conhecimento de outras possibilidades de constituição das redes de sentido, ela identifica que as narrativas existentes no seu primeiro espaço de socialização são insuficientes, restringindo em demasia o escopo de sua concretização identitária. Essa dimensão se revela, em especial, ao enfeixar o raio de seu olhar em direção às mulheres que circulam em sua proximidade social. Nessa perspectiva, sua percepção enxerga as diferenças existentes nos papeis de gênero e o impacto que as redes semióticas locais têm sobre essa condição. A frustração e a analogia traçada com o destino de Madame Bovary sugerem limitações e dinâmicas de silenciamento no modo como os sentidos são administrados nesse espaço. O olhar em trânsito da protagonista consegue comparar essas realidades e compreender o alcance das malhas de sentido que imperam nessas coordenadas.

Durante essa permanência no país de origem, Leyla empreende uma viagem pela região, juntamente com sua namorada Jonoun, que viera ao Azerbaijão com Altay, o marido de fachada de Leyla. Ainda em Berlim, ela pôde viver sua sexualidade livremente, sem precisar ocultar seu envolvimento com outra mulher. As redes semióticas e as narrativas disponíveis permitiram essa expressão, em maior ou menor grau. Durante sua viagem, Leyla começa a enxergar outras formas de viver essa sexualidade, agora num espaço cultural menos pré-disposto à tolerância. Assim, ao visitar a casa de campo de sua avó, ela vislumbra o relacionamento de Sweta, que cuida da casa, e uma mulher que ela discretamente apresenta como sua prima:

Uma vez Leyla quis visitar as duas, as mulheres não estavam em casa e Leyla perambulou por seu apartamento com a consciência pesada. Era pequeno e transbordava de evidências da vida partilhada: lembranças de suas viagens por toda a URSS, as paredes estavam cheias de estantes de livros e na frente da lombada do livro havia fotos nas quais as duas mulheres eram sempre mostradas em um terno abraço. Os objetos foram uma confirmação de sua vida em conjunto. No quarto, uma dúzia de ícones pendurados ao lado de um retrato a óleo de Lenin. Havia apenas uma cama, é claro. Jonoun estava fascinada com a mentira das velhas mulheres, a coexistência inocente das virgens Maria e Lenin só acrescentava a isso. ( GRJASNOWA, 2014GRJASNOWA, Olga. Die juristische Unschärfe einer Ehe. München: Carl Hanser Verlag, 2014. , p. 222-223). 10 10 Einmal wollte Leyla die beiden besuchen, die Frauen waren nicht zu Hause, und Leyla streifte mit schlechtem Gewissen durch ihre Wohnung. Sie war klein und übervoll mit Zeugnissen des gemeinsamen Lebens: Mitbringsel von ihren Reisen durch die gesamte UdSSR, die Wände waren mit Bücherregalen vollgestellt, und vor den Buchrücken standen Fotografien, auf denen die beiden Frauen stets in zärtlicher Umarmung abgebildet waren. Die Dinge waren eine Bestätigung für ihr gemeinsames Leben. Im Schlafzimmer hing ein Duzend Ikonen neben einem in Öl gemalten Porträt von Lenin. Es gab natürlich nur ein Bett. Jonoun war von der Lüge der alten Frauen fasziniert, das unschuldige Nebeneinander der Jungfrauen Maria und Lenin tat sein Übriges . ( GRJASNOWA, 2014, p. 222-223).

Ao contrário de Leyla e Jonoun, que têm liberdade para afirmar sua identidade no espaço público sem temer represálias, especialmente em Berlim, as duas mulheres optam pela discrição, adaptando suas narrativas, em consonância com as possibilidades disponíveis nessas coordenadas. O espaço privado, contudo, indica que não reprimem nem renunciam à expressão de seu envolvimento. Pelo contrário, toda a rede semiótica que caracteriza esse espaço remete a uma narrativa conjunta que constrói sentidos compartilhados. Ao mesmo tempo que não renunciam a seus anseios, elas tampouco optam por sua exposição no espaço público, possivelmente antecipando o desencadeamento de exclusão ou de boicotes no acesso a chances. Nesse cenário, elas controem suas próprias redes de sentido, sem tentar transformar as macronarrativas que atravessam o espaço social em que vivem, revelando um alto grau de agência na medida em que não permitem o silenciamento de seus anseios, mas sem se sacrificar numa disputa que já está decidida de antemão.

Nesse contexto, o olhar de Leyla se revela suscetível para a diversidade das redes semióticas. Num primeiro momento, ela consegue identificar o conjunto de sentidos e o modo como eles estão relacionados, podendo reconstruir uma narrativa que se oculta a olhos externos. Num segundo momento, e talvez esse seja o mais importante, Leyla não decodifica essa rede com base no escopo de suas oportunidades. Como mulher pertencente à classe média alta, com um capital econômico que lhe permite transitar em qualquer centro metropolitano, com um capital social que pode amenizar quedas e exclusões, e cuja experiência revela que todas as portas se abrem à sua chegada, ela poderia adotar uma atitude de derisão pelo caminho trilhado pelas duas mulheres. No lugar desse olhar derisório, ele se revela surpreendentemente respeitoso, dirigindo sua atenção para a criatividade, com a qual administram os sentidos e criam espaços de afirmação do si. Trata-se de um olhar que não adota o princípio da hierarquização, preferindo identificar confluências e, sobretudo, respeitando velocidades e limitações alheias. Esse encontro com o outro não busca classificar, ele busca compreender as redes semióticas do outro e dialogar com esses sentidos.

Altay, o marido de fachada de Leyla, faz experiências parecidas. Como homem homossexual, ele teve contato com discriminação e silenciamento durante sua permanência de formação na Rússia. Em Berlim, a expressão pública da homossexualidade deixa de ser um problema, de modo que o escopo de sentidos com os quais pode expressar sua narrativa de si se estende substancialmente. Essas duas experiências fazem parte de um percurso de treinamento do olhar, ao qual se soma o regresso ao Azerbaijão, onde passa a decodificar as redes semióticas, no presente diegético. Como Leyla, Altay rapidamente percebe como as redes semióticas de seu país de origem condicionam a expressão da sexualidade. Seu olhar, contudo, apresenta outra atitude diante da alteridade:

Altay saiu para a sacada. O anfitrião permaneceu no quarto e gesticulou freneticamente para indicar que ele também deveria entrar. Altay sorriu, o outro gesticulava de forma cada vez mais selvagem. Quando Altay voltou ao quarto, seu amante disse-lhe: ‘Você não deveria ter feito isso’. Seu bigode tremelicava.

Fazer o quê?
Sair.
Por que não?
Alguém certamente te viu. ( GRJASNOWA, 2014GRJASNOWA, Olga. Die juristische Unschärfe einer Ehe. München: Carl Hanser Verlag, 2014. , p. 198). 11 11 Altay ging hinaus auf den Balkon. Der Gastgeber blieb im Zimmer und bedeutete ihm mit hektischen Handbewegungen, ebenfalls hineinzugehen. Altay lächelte, der andere gestikulierte immer wilder. Als Altay wieder im Zimmer stand, sagte sein Liebhaber zu ihm: Das hättest du nicht machen sollen. Seine Mundwickel zuckten. Was machen? Hinausgehen. Wieso nicht? Jemand hat dich bestimmt gesehen . ( GRJASNOWA, 2014, p. 198).

O primeiro aspecto que Altay identifica é a dificuldade de conhecer pessoas. Como no caso das duas mulheres a cuja vida privada Leyla tem acesso por instantes, também nessa situação impera o silêncio e o comportamento velado. O parceiro anônimo de Altay rompe essa barreira e o leva a sua casa, mas com uma série de cuidados que revelam seu medo de sanções subsequentes. Altay não enxerga esse medo que já se manifestara no caminho à casa, quando o parceiro prevê um conjunto de medidas para dissimular indícios semióticos que pudessem sugerir um envolvimento homossexual. Altay, por sua vez, não hesita em sair para a sacada, franqueando redes semióticas ao mundo exterior que seu parceiro claramente queria ocultar. Vindo de Berlim e, portanto, familiarizado com uma cultura mais afeita a esse conjunto de sentidos, Altay não reconhece qualquer problema em sua visibilidade e uma possível conexão com o anfitrião. O anfitrião, por sua vez, claramente indica desconforto, antecipando as consequências que isso pode ter. Ao contrário de Altay, ele tem fluência nas redes semióticas dominantes nas coordenadas locais e vislumbra os sentidos que podem emergir da visão de alteridade.

Nessa esteira, há duas atitudes que caracterizam o olhar dessas personagens. O anfitrião tem conhecimento sobre como os sentidos são administrados localmente e toma as precauções para não colidir com uma máquina de silenciamento, sabendo que não tem meios para debelá-la. O olhar de Altay, por sua vez, oscila entre insensibilidade e inabilidade de decodificar o que a rede semiótica revela. Tendo sido socializado nesse espaço, seria possível assumir que ele tem conhecimento das narrativas que circulam nessas coordenadas. Nesse caso, seu olhar revela insensibilidade, sabendo que sua permanência é passageira e tendo os meios para viver numa cidade que lhe permite expressar o si. Por outro lado, o conjunto de comportamentos que Altay traz a lume ao longo do enredo sugere certa sensibilidade. Nesse caso, sua atitude indica inabilidade de ler os sentidos que motivam o comportamento de seu parceiro. Em ambos os casos, é um olhar um tanto indiferente para a realidade de seu interlocutor. Ele afirma sua alteridade, mas não respeita a velocidade e os limites que caracterizam seu anfitrião.

Mais tarde, quando Altay encontra Farid, ele se vê confrontado com um outro olhar. Como Altay, Farid pertence à classe abastada de seu país, tendo experiência com metrópoles internacionais e capaz de neutralizar o olhar idealizador. É ele que relativiza a tolerância do assim chamado ocidente, confrontando a idealização berlinense de Altay com uma outra perspectiva: “Farid continuou com um sorriso: Você só é aceito lá mediante determinadas condições. Que tipo de gay você seria se não se vestisse bem, não se interessasse por design de interiores, por música de vanguarda, culinária e estilo de vida?” ( GRJASNOWA, 2014GRJASNOWA, Olga. Die juristische Unschärfe einer Ehe. München: Carl Hanser Verlag, 2014. , p. 226). 12 12 Farid fuhr lächelnd fort: Dort wirst du doch nur unter bestimmten Umständen akzeptiert. Was wärst du bloß für ein Schwuler, wenn du dich nicht gut anziehen, dich für Innendesign, Avantgardemusik, Kochen und Lifestyle interessieren würdest? ( GRJASNOWA, 2014, p. 226). Esse olhar sobre as metrópoles do Atlântico Norte não idealiza, nem acredita ingenuamente que alteridade é aceita com base numa convicção puramente democrática. A aceitação tem um preço e tem condições que precisam ser cumpridas para garantir o “bilhete de entrada” ao espaço da tolerância. Ao contrário do primeiro parceiro, que se encontra paralisado por conta do medo, Farid conta com uma rede de proteção econômica e social, tendo, com isso, um maior trânsito entre diferentes redes semióticas. Com base nessa fluência, ele desafia a visão bastante simplista de Altay, revelando um olhar menos idealizador e mais sóbrio no que diz respeito à distribuição de chances e ao encontro com a alteridade.

Considerações finais

Nos dois romances, o trânsito desencadeia encontros com a alteridade. Ao passo que a realidade diegética simula um deslocamento espacial, ensejando episódios em que os personagens são confrontados com relatos da alteridade, ela igualmente encena trânsitos do sentido. Tanto no deslocamento espacial como no trânsito semiótico, o olhar ocupa um papel central. Ao encenar processos percepcionais, o romance não só concede acesso à realidade diegética, como também dirige sua atenção ao processo de produção de sentido, a partir da interação com os diferentes contextos em que os personagens se movimentam. Nisso, o pertencimento a um determinado espaço cultural é menos importante que a habilidade de enxergar as redes de sentido que atravessam o espaço de interação. O olhar que emerge dessas situações difere de acordo com a atitude adotada por cada personagem ( Quadro 1):

Quadro 1:
O olhar frente à alteridade

As diferentes interações encenam deslocamentos espaciais, mas também transformações do sentido, em que as cartografias são impostas, negociadas ou revisadas, produzindo “zonas de contato” e “localização”. Desse contato, podem emergir sensibilidades que pré-dispõem o olhar a enfeixar sua atenção a diversas frentes, procurando detectar as narrativas que condicionam o si e o mundo naquele espaço. O contrário também ocorre, isso é, no lugar de uma sensibilidade suscetível para a alteridade, pode emergir um movimento de silenciamento, indiferença ou imposição, com um olhar incapaz de divisar a alteridade semiótica que configura a realidade do interlocutor.

No lugar da construção de muros sólidos entre literatura nacional, estrangeira ou transnacional, os romances da literatura de trânsito se inserem num esforço de sensibilização do olhar, direcionando a atenção não ao desenho de linhas demarcatórios, mas sim a uma atitude frente ao outro. Essa atitude não é uma, nem é sólida, tampouco caracteriza todo um grupo. Pelo contrário, ela está atrelada a um conhecimento semiótico que busca transcender os sentidos estabilizados da própria socialização. Nesse trânsito entre espaços e sentidos, esses romances encenam formas de “localização”, revelando como o olhar pode, ou não, ser transformado a partir do contato com outras redes de sentido.

REFERÊNCIAS

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  • CURY, Maria Zilda Ferreira. “Uma luz na escuridão: migração e memória”. In: VAZ, Artur Emilio Alarcon; BAUMGARTEN, Carlos Alexandre; CURY, Maria Zilda Ferreira (org.). Literatura e imigrantes: sonhos em movimento. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, POS-LIT; 2006. p. 9-33.
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  • LANDOWSKI, Eric. Presencias del outro Tradução para o espanhol de Desiderio Blanco. Lima: Fondo Editorial, 2016.
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  • RAMOS, Natália. Diversidade cultural, educação e comunicação intercultural − políticas e estratégias de promoção do diálogo intercultura. Revista Educação em Questão, v. 34, n. 20, p. 9-32, 2009.
  • RAMOS, Natália. Educar para a interculturalidade e cidadania: princípios e desafios. In: ALCOFORADO, Luís et al (org.). Educação e formação de adultos. Políticas, práticas e investigação .Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011. p. 189-200.
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  • VERTOVEC, Steven. Migrant Transnationalism and Modes of Transformation. International Migration Review, v. 38, n. 3, p. 970-1001, 2004.
  • 1
    To travel is to make a journey, a movement through space. Possibly this journey is epic in scale, taking the traveller to the other side of the world or across a continent, or up a mountain; possibly it is more modest in scope, and takes place within the limits of the traveller’s own country or region, or even just their immediate locality. Either way, to begin any journey or, indeed, simply to set foot beyond one’s own front door, is quickly to encounter difference and otherness. All journeys are in this way a confrontation with, or more optimistically a negotiation of, what is sometimes termed alterity ( THOMPSON, 2011RAMOS, Natália. Educar para a interculturalidade e cidadania: princípios e desafios. In: ALCOFORADO, Luís et al. (org.). Educação e formação de adultos. Políticas, práticas e investigação .Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011. p. 189-200. , p. 9).
  • 2
    “Contact zone” in my discussion is often synonymous with “colonial frontier”. But while the latter term is grounded within a European expansionist perspective (the frontier is a frontier only with respect to Europe), “contact zone” shifts the center of gravity and the point of view. It invokes the space and time where subjects previously separated by geography and history are co-present, the point at which their trajectories now intersect. The term “contact” foregrounds the interactive, improvisational dimensions of imperial encounters so easily ignored or suppressed by accounts of conquest and domination told from the invader’s perspective. A “contact” perspective emphasizes how subjects get constituted in and by their relations to each other. ( PRATT, 200PRATT, Mary Louise. Imperial eyes: travel writing and transculturation. London: Routledge, 2008. 8, p. 8).
  • 3
    Within a more specific literary context, I am theorising that this socio-cultural scenario is also giving birth to a new generation of culturally mobile writers, whom I call “transcultural writers”. That is, imaginative writers who, by choice or by life circumstances, experience cultural dislocation, live transnational experiences, cultivate bilingual/pluri-lingual proficiency, physically immerse themselves in multiple cultures/geographies/territories, expose themselves to diversity and nurture plural, flexible identities. While moving physically across the globe and across different cultures, they find themselves less and less trapped in the traditional migrant/exile syndrome and become more apt instead to embrace the opportunities and the freedom that diversity and mobility bestow upon them. It is thanks to this specific status, I argue, that these mobile writers have found themselves at the forefront in capturing and expressing an emerging transcultural sensitivity. ( DAGNINO, 2012DAGNINO, Arianna. Transcultural Writers and Transcultural Literature in the Age of Global Modernity. Transnational Literature, v. 4, n. 2, p. 1-14, 2012., p. 1-2).
  • 4
    C’est ainsi qu’il convient de comprendre la plus-value du mouvement: d’une part comme ouverture à l’immatériel et à ses bienfaits et, d’autre part, comme posture en opposition à l’établi, comme être en chemin avec, vers l’autre et de là, vers l’infini de possibilités et d’imaginaires . ( BALINT, 2020BALINT, Adina. Représentations de la mobilité dans le récit de soi contemporain au Canada francofone. Voix plurielles, v. 17, n. 1, p. 112-124, 2020., p. 117).
  • 5
    Da hieß es, Kayhan würde schon seit Jahren mit diesem deutschen Kerl wie Mann und Frau zusammenleben. Der Mann schickt ihn nicht mal zur Arbeit, er soll ihn eifersüchtig bewachen wie eine Ehefrau, die zu Hause bleibt. Als ich das hörte, ging es mir dann sehr schlecht. Ich bekam dauern Fieberanfälle und Ausschlag. Ich rührte keinen Bissen mehr an. Und die Wunde in meinem Herzen wuchs immer weiter. Wie kann Kayhan, der immer so an mir gehangen hatte, das nur machen, dachte ich immer wieder … Und mein Mann, der will das schon viel früher gewußt haben. Schon als er noch auf die Berufsschule ging, soll er solche Sachen getrieben haben. Und das soll auch der Grund gewesen sein, warum Ferit ihn immer verprügelte. ( DAL, 1990DAL, Güney. Europastrasse 5. Tradução do turco para o alemão de Carl Koß. München, Zürich: Piper, 1990., p. 110).
  • 6
    Wir haben gestern nacht die Sachen abgegeben und waren auf der Rückfahrt, da fing der wieder an, mit mir zu streiten. Er hat wieder all das aufgetischt, was ich nicht hören kann. Das System würden sie ändern in der Türkei, und der Sozialismus würde kommen. Nun halt endlich die Klappe, hab ich ihm ein paar Mal gesagt. Du kannst ja an diesen Scheiß glauben, soviel du willst, aber wir wollen jetzt erst mal hinfahren, uns den Magen vollschlagen und uns ausschlafen. Und der Hund hört doch tatsächlich nicht auf zu reden! Sagt doch tatsächlich ich wäre Faschist, weil ich bei den Soldaten aufgezogen wurde. Und würde versuchen auch meine Kinder dazu zu erziehen. ( DAL, 1990DAL, Güney. Europastrasse 5. Tradução do turco para o alemão de Carl Koß. München, Zürich: Piper, 1990., p. 134-135).
  • 7
    Die Türken sagen ja nicht pile dazu ... Ach ja. Sie nennen das Mittel zur Kontrolle, damit kein Kind geboren wird, sie sagen Tabletten … Natürlich, meine Freundinnen in der sule, ich meine in der Schule nehmen alle die Pille. Sogar die kleinen Mädchen, die ein paar Jahre jünger sind als ich, nehmen sie … Vierzehn bin ich, und mein Vater ist dagegen, daß ich die Pille nehme, und meine Mutter auch. Sie ärgern sich darüber … Ich bin heimlich zum Arzt gegangen … Meine deutschen Freundinnen haben mich hingebracht; und der Arzt hat es da gesagt, sie ist ganz gezunt. Der Arzt wollte mit meinen Eltern reden, aber... ( DAL, 1990, DAL, Güney. Europastrasse 5. Tradução do turco para o alemão de Carl Koß. München, Zürich: Piper, 1990.p. 129-130). Os lexemas “pile” (“pila”), “sule” (“scola”) e “gezunt” (“saudavel”) procuram representar uma espécie de idioleto de imigrantes turcos, recuperando uma interferência da língua primária na língua secundária.
  • 8
    Moskau war eindeutig das Zentrum, was sie sich nicht wirklich erklären konnte. Vor allem, da Dreiecke kein Zentrum im eigentlichen Sinn hatten, sondern eine Spitze. Sicher war sich Leyla nur, dass Berlin sich nicht wie die Zielgerade anfühlte, und da sie keine andere Idee hatte, beschloss sie, wenigstens zum Ausgangspunkt zurückzukehren. ( GRJASNOWA, 2014GRJASNOWA, Olga. Die juristische Unschärfe einer Ehe. München: Carl Hanser Verlag, 2014. , p. 128).
  • 9
    Die ersten Wochen in Baku waren anstößig fad. Unabhängig voneinander versuchten Salome und Nazim Leyla in die Gesellschaft einzuführen, doch sie passte nirgends dazu: Freunde hatte sie keine mehr in der Stadt, und die meisten Frauen in ihrem Alter waren bereits verheiratet und hatten Familien. Die Frauen, die ihr vorgestellt wurden, Töchter und Freunden ihrer Eltern, machten alle einen frustrierten Eindruck auf Leyla. Jede von ihnen war auf ihre eigene Art gedemütigt und misshandelt worden. Eine ganze Armee unglücklicher Madame Bovarys. ( GRJASNOWA, 2014GRJASNOWA, Olga. Die juristische Unschärfe einer Ehe. München: Carl Hanser Verlag, 2014. , p. 151).
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    Einmal wollte Leyla die beiden besuchen, die Frauen waren nicht zu Hause, und Leyla streifte mit schlechtem Gewissen durch ihre Wohnung. Sie war klein und übervoll mit Zeugnissen des gemeinsamen Lebens: Mitbringsel von ihren Reisen durch die gesamte UdSSR, die Wände waren mit Bücherregalen vollgestellt, und vor den Buchrücken standen Fotografien, auf denen die beiden Frauen stets in zärtlicher Umarmung abgebildet waren. Die Dinge waren eine Bestätigung für ihr gemeinsames Leben. Im Schlafzimmer hing ein Duzend Ikonen neben einem in Öl gemalten Porträt von Lenin. Es gab natürlich nur ein Bett. Jonoun war von der Lüge der alten Frauen fasziniert, das unschuldige Nebeneinander der Jungfrauen Maria und Lenin tat sein Übriges . ( GRJASNOWA, 2014GRJASNOWA, Olga. Die juristische Unschärfe einer Ehe. München: Carl Hanser Verlag, 2014. , p. 222-223).
  • 11
    Altay ging hinaus auf den Balkon. Der Gastgeber blieb im Zimmer und bedeutete ihm mit hektischen Handbewegungen, ebenfalls hineinzugehen. Altay lächelte, der andere gestikulierte immer wilder. Als Altay wieder im Zimmer stand, sagte sein Liebhaber zu ihm: Das hättest du nicht machen sollen. Seine Mundwickel zuckten. Was machen? Hinausgehen. Wieso nicht? Jemand hat dich bestimmt gesehen . ( GRJASNOWA, 2014, GRJASNOWA, Olga. Die juristische Unschärfe einer Ehe. München: Carl Hanser Verlag, 2014. p. 198).
  • 12
    Farid fuhr lächelnd fort: Dort wirst du doch nur unter bestimmten Umständen akzeptiert. Was wärst du bloß für ein Schwuler, wenn du dich nicht gut anziehen, dich für Innendesign, Avantgardemusik, Kochen und Lifestyle interessieren würdest? ( GRJASNOWA, 2014GRJASNOWA, Olga. Die juristische Unschärfe einer Ehe. München: Carl Hanser Verlag, 2014. , p. 226).

Editado por

editor-chefe: Rachel Esteves Lima
editor executivo: Cássia Lopes Jorge Hernán Yerro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    12 Ago 2022
  • Aceito
    14 Nov 2022
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