Acessibilidade / Reportar erro

DOR LOMBAR E ALTERAÇÕES DO POSICIONAMENTO ARTICULAR EM CICLISTAS: UM ESTUDO TRANSVERSAL

RESUMO

Introdução:

A dor lombar é uma das queixas mais comuns nos praticantes de ciclismo. Pode ter como fator predisponente a desarmonia do conjunto ciclista-bicicleta. O Bike Fit é uma técnica que visa ajustar a bicicleta às características individuais do ciclista.

Objetivos:

Investigar a relação entre o posicionamento do ciclista na bicicleta e a ocorrência de queixas de dor lombar.

Métodos:

Os dados obtidos durante o Bike Fit de 62 ciclistas amadores foram utilizados no estudo. Os ciclistas foram filmados durante a pedalada em um rolo estacionário e a análise das imagens foi realizada pelo software Kinovea®. Os dados relacionados com a queixa de dor lombar e ao posicionamento na bicicleta foram utilizados no teste do Qui-quadrado e de regressão logística binária.

Resultados:

A média de idade foi de 38,06 ± 8,82 anos, 87,7% da amostra foi composta por homens e a dor lombar foi constatada em 40,3% (25/62) dos participantes. A análise univariada mostrou correlação positiva entre a dor lombar e as seguintes variáveis: ângulo de dorsiflexão do tornozelo (X2 = 6,947, p = 0,014) e alcance dos membros superiores (X2 = 5,247; p = 0,032). A regressão logística binária mostrou uma associação positiva entre alcance dos membros superiores e dor lombar (r = 2,728; p = 0,002) e associação negativa para avanço dos joelhos e dor lombar (r = -2,281; p = 0,007).

Conclusão:

Os ciclistas com dor lombar apresentam alterações de posicionamento na bicicleta, o que reforça a importância da avaliação do conjunto ciclista-bicicleta. Entretanto, não é possível afirmar se as alterações de posicionamento observadas na amostra estudada são causas ou consequências da dor lombar. Nível de evidência: Nível III; Estudo observacional transversal.

Descritores:
Ciclismo; Dor lombar; Ergonomia; Postura

ABSTRACT

Introduction:

Low back pain is one of the most common complaints among cyclists. The disharmony of the cyclist-bike combination may be a predisposing factor. Bike Fit is a technique that aims to adjust the bike to the individual characteristics of the cyclist.

Objectives:

To investigate the relationship between the cyclist’s position on the bicycle and the occurrence of complaints of low back pain.

Methods:

Data obtained during Bike Fit from 62 amateur cyclists were used in the study. Cyclists were filmed during the act of pedaling on a stationary roller and image analysis was performed using Kinovea® software. Data related to complaints of low back pain and positioning on the bicycle were used in the Chi-Square test and binary logistic regression.

Results:

The mean age was 38.06 ± 8.82 years, 87.7% of the sample was composed of men and low back pain was found in 40.3% (25/62) of the participants. Univariate analysis showed a positive correlation between low back pain and the following variables: ankle dorsiflexion angle (X2=6.947, p=0.014) and upper limb reach (X2=5.247; p=0.032). Binary logistic regression showed a positive association between reaching with the upper limbs and low back pain (r=2.728; p=0.002) and a negative association between knee advancement and low back pain (r= -2.281; p=0.007).

Conclusion:

Cyclists with low back pain present changes in their position on the bicycle, which reinforces the importance of evaluating the cyclist/bike combination. However, it is not possible to state whether the positional changes observed in the study sample are causes or consequences of low back pain. Level of evidence: Level III; Cross-sectional observational study.

Keywords:
Bicycling; Low back pain; Ergonomics; Posture

RESUMEN

Introducción:

El dolor lumbar es una de las quejas más frecuentes en los practicantes de ciclismo. Puede tener como factor predisponente la falta de armonía del conjunto ciclista-bicicleta. Bike Fit es una técnica que tiene como objetivo ajustar la bicicleta a las características individuales del ciclista.

Objetivos:

Investigar la relación entre la posición del ciclista en la bicicleta y la aparición de quejas de lumbalgia.

Métodos:

En el estudio se utilizaron datos obtenidos durante el Bike Fit de 62 ciclistas aficionados. Los ciclistas fueron filmados durante el acto de pedalear sobre un rodillo estacionario y el análisis de las imágenes se realizó utilizando el software Kinovea®. Los datos relacionados con las quejas de dolor lumbar y la posición en la bicicleta se utilizaron en la prueba de Chi-Cuadrado y regresión logística binaria.

Resultados:

La edad media fue de 38,06 ± 8.82 años, el 87,7% de la muestra estuvo compuesta por hombres y se constató dolor lumbar en el 40,3% (25/62) de los participantes. El análisis univariado mostró una correlación positiva entre el dolor lumbar y las siguientes variables: ángulo de dorsiflexión del tobillo (X2 = 6,947, p = 0,014) y alcance de las extremidades superiores (X2 = 5,247; p = 0,032). La regresión logística binaria mostró una asociación positiva entre el alcance de las extremidades superiores y el dolor lumbar (r = 2,728; p = 0,002) y una asociación negativa para el avance de la rodilla y el dolor lumbar (r = -2,281; p = 0,007).

Conclusiones:

Los ciclistas con dolor lumbar presentan cambios en su posición sobre la bicicleta, lo que refuerza la importancia de la evaluación del conjunto ciclista-bicicleta. Sin embargo, no es posible afirmar si los cambios posicionales observados en la muestra estudiada son causas o consecuencias del dolor lumbar. Nivel de evidencia: Nivel III; Estudio observacional transversal.

Descriptores:
Ciclismo; Dolor de la región lumbar; Ergonomía; Postura

INTRODUÇÃO

O ciclismo é uma das práticas esportivas mais tradicionais do mundo, e esta modalidade pode ser uma opção recreacional ou desportiva de competição, além de meio de transporte alternativo, capaz de propiciar aos seus adeptos uma melhora do condicionamento físico e, consequentemente, incrementar a qualidade de vida.11 Burke ER. Physiology of cycling. In: Garrret WE, Kirkendall DT, organizers. Exercise and Sport Science. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2003. p. 759-70.,22 Carmo JC. Biomecânica aplicada ao ciclismo. In: Anais Congresso Brasileiro de Biomecânica, 9, 2001, Gramado. Gramado: Sociedade Brasileira de Biomecânica; 2001. p. 42-7.,33 Chiu MC, Wu HC, Tsai NT. The relationship between handlebar and saddle heights on cycling comfort. In: Yamamoto S, editor. Human interface and the management of information. Information and interaction design. Berlin: Springer; 2013. p. 12-9. Pedalar é uma atividade bípede de alta complexidade que exige um trabalho multiarticular da região lombo-pélvica e dos membros inferiores, produzindo e conduzindo energia mecânica para transformá-la em energia cinética gerando propulsão.44 Too D. Biomechanics of cycling and factors affecting performance. Sports Med. 1990;10(5):286-302.,55 Fonda B, Sarabon N. Biomechanics of Cycling. Sport Sci Rev. 2010;XIX(1-2):187-210.

O ciclo da pedalada pode ser dividido em fase de propulsão (inicia-se a zero graus - ponto morto superior, sendo finalizada a 180° - ponto morto inferior) e recuperação (tem início a 180° e término a 360°).66 Lefever-Button S. Cycling. In: Shamus E, Shamus J. Sports Injury – Prevention & Rehabilitation. New York: McGraw-Hill; 2001. p. 459-483.,77 Bertucci W, Grappe F. Biomécanique du pédalage. In: Grappe F. Cyclisme et optimization de la performance: sciences et méthodologie de l’entraînement 2e edition. Paris: De Boeck Université; 2009. p. 195-208. Os grupos musculares mais envolvidos na pedalada são, os extensores e flexores do quadril e joelho e, os flexores plantares e dorsiflexores do tornozelo. A transferência de energia é garantida pela co-contração muscular tendo como protagonistas os músculos uniarticulares - geradores de força. Já a tarefa de conduzí-la aos pedais, fica a cargo dos músculos biarticulares.55 Fonda B, Sarabon N. Biomechanics of Cycling. Sport Sci Rev. 2010;XIX(1-2):187-210.

Além dos músculos responsáveis pela pedalada, vários outros, incluindo, paravertebrais, abdominais e dos membros superiores, necessitam de constante ativação para manter a postura do tronco, cabeça e segmentos superiores durante o ato da pedalada.88 Abt JP, Smoliga JM, Brick MJ, Jolly JT, Lephart SM, Fu FH. Relationship Between Cycling Mechanics and Core Stability. J Strength Cond Res. 2007;21(4):1300-4.

Por ser uma atividade altamente repetitiva, os praticantes de ciclismo estão mais propensos a lesões por overuse, sejam elas agudas ou crônicas. Afinal, durante uma hora de atividade, o ciclista pode realizar cerca de 5000 ciclos de pedalada.99 Holmes J, Pruitt A, Whalen N. Lower extremity overuse in bicycling. Clin Sports Med. 1994;13(1):187-205. As regiões mais acometidas por lesões por overuse em ciclistas são a coluna cervical, joelho, região inguinal, nádegas, mãos e região da coluna lombar. Normalmente as lesões reportadas pelos ciclistas possuem menor gravidade, mas a alta incidência, que pode atingir 87% dos praticantes, deve ser vista como um sinal de alerta.1010 Schwellnus MP, Derman EW. Common injuries in cycling: prevention, diagnosis and management. SAFP. 2005;47(7):14-9.,1111 Van der Walt A, Janse van Rensburg DC, Fletcher L, Grant CC, Van der Walt AJ. non-traumatic injury profile of amateur cyclists. SA J Sports Med. 2014;26(4):119-22.

O desajuste no conjunto ciclista-bicicleta pode ser um fator que predispõe ao aparecimento de lesões não traumáticas, uma vez que alterações biomecânicas no ato de pedalar podem estar associadas às lesões. Como ferramenta de prevenção, utiliza-se um protocolo de ajustes denominado Bike Fit. Partindo dos princípios da cinesiologia e biomecânica, objetiva-se por meio desta técnica, melhorar o desempenho, maximizar o conforto e minimizar os índices de lesões musculoesqueléticas. No Bike Fit o profissional ajustará os componentes da bicicleta a fim de posicionar os ângulos articulares do ciclista de acordo com valores de referência encontrados na literatura.1212 Di Alencar TAM, Matias KFS. Bike Fit e sua Importância no Ciclismo. Rev Movimenta. 2009;2(2):59-64.,1313 Bini R, Daly L, Kingsley M. Changes in body position on the bike during seated sprint cycling: Applications to bike fitting. Eur J Sport Sci. 2020;20(1):35-42. Uma das disfunções com maior prevalência no ciclismo é a lombalgia, que pode acometer até 60% dos praticantes. A postura inadequada sobre a bicicleta, assim como problemas de adequação dos componentes da bicicleta ao ciclista pode favorecer o desenvolvimento da lombalgia.1414 Bini RR, Senger D, Lanferdini FJ, Lopes AL. Joint kinematics assessment during cycling incremental test to exhaustion. IES. 2012;20(1):99–105.

De acordo com o exposto, o objetivo do estudo foi investigar a existência de associação entre a presença de dor lombar e as alterações de posicionamento articular sobre a bicicleta observada em ciclistas amadores durante um atendimento de Bike Fit

MATERIAIS E MÉTODOS

Tipo de Estudo

Estudo observacional e transversal.

Cuidados Éticos

Todas as recomendações das resoluções CNS 466/2012, CNS 510/2016 e suas complementares foram observadas. O estudo somente foi iniciado após a aprovação do protocolo de pesquisa pelo comitê de ética em pesquisa, sob o parecer número 3.412.247.

Participantes

A amostra foi composta por conveniência, de forma não probabilística. Os dados foram coletados de prontuários de 62 ciclistas que haviam sido submetidos a um atendimento de Bike Fit.

Critérios de Inclusão

Foram considerados os prontuários de homens e mulheres com idade entre 18 e 60 anos que haviam sido submetidos a um atendimento de Bike Fit entre os anos de 2017 e 2019.

Procedimentos

Todas as avaliações foram realizadas por um único profissional e cada sujeito foi submetido ao protocolo de avaliação somente uma vez. O protocolo de avaliação está sintetizado abaixo.

Identificação

Consistiu em informações relacionadas ao ciclista, tais como: sexo, idade, peso, altura, tempo de prática, modalidade praticada, frequência semanal, objetivos com o Bike Fit, dentre outras. Além disso, dados relacionados à bicicleta também foram coletados nessa etapa. Por exemplo: marca, modelo, tamanho do quadro, tipo e tamanho da mesa, selim, guidão, dentre outros.

Avaliação do posicionamento dos tacos

A avaliação e ajuste do posicionamento dos tacos das sapatilhas foram realizados de acordo com o posicionamento do pé do ciclista no solo e características anatômicas do ciclista. Para cada participante da pesquisa, o eixo do pedal foi ajustado de forma que ficassem posicionadas entre as articulações metatarso-falangeanas do primeiro e do quinto dedo, com um grau de rotação lateral de cinco a 15°C. O procedimento foi realizado com o auxílio de um gabarito de tacos da marca Ergon®.

Avaliação dinâmica da pedalada

Para análise do posicionamento articular do ciclista, durante o ato de pedalar, foi utilizada uma avaliação dinâmica em duas dimensões. Para o processo, oito marcadores foram posicionados em pontos anatômicos recomendados pela literatura.1515 Phil B. Bike Fit: Optimise your bike position for high performance and injury avoidance. London: Bloomsbury; 2014. Os pontos são: articulação metatarso-falangeana do quinto dedo, ponto atrás da sapatilha (alinhado com o quinto metatarso), maléolo lateral da fíbula, epicôndilo lateral do fêmur, trocânter maior do fêmur, ângulo acromial da escápula, epicôndilo lateral do úmero e processo estilóide da ulna. O processo de marcação dos pontos foi realizado com o ciclista sobre a sua bicicleta, que estava afixada em um rolo de treinamento estacionário (Tranzx®, modelo jd118). Para a obtenção das imagens, cada ciclista foi filmado por cerca de um minuto, no plano sagital (vista lateral). A filmagem foi realizada por uma câmera (Logitech® C920), posicionada a três metros do ciclista e com uma altura de 1,20 metros do solo. A análise das imagens foi conduzida no software Kinovea®. Cada um dos ângulos avaliados (flexão plantar, extensão de joelho, knee over pedal spindle (KOPS), flexão de joelho, flexão de quadril, flexão de tronco e arm pit) possui valores de referência descritos na literatura.1515 Phil B. Bike Fit: Optimise your bike position for high performance and injury avoidance. London: Bloomsbury; 2014.

Os ângulos de flexão plantar do tornozelo e de extensão do joelho foram analisados quando o pedal se encontrava a 180°, ou seja, no ponto mais baixo da pedalada (Figura 1). Para análise da flexão de joelho, quadril, tronco e alcance dos membros superiores (arm pit), o pedal deveria se encontrar no ponto mais alto do ciclo. (Figura 2) Para analisar o posicionamento do joelho em relação ao pedal (KOPS), a pedivela deveria se encontrar no ponto médio do ciclo, com o pé do lado avaliado, posicionado para frente. (Figura 3)

Figura 1
Posição de análise dos ângulos de flexão plantar do tornozelo e extensão da articulação do joelho. Respectivos valores de referência: 90° à 100° e 35° à 40°.
Figura 2
Posição de análise do ângulo de flexão da articulação do joelho, quadril, tronco e arm pit. Respectivos valores de referência: 105° à 115°, 60° à 80°, 40° à 60° e 70 à 80°.
Figura 3
Posição de análise do KOPS. Valor de referência: marcador do epicôndilo lateral do fêmur, posterior à linha traçada de forma perpendicular ao solo (-).

Análise Estatística

As variáveis ordinais foram submetidas à análise estatística descritiva, por meio da utilização de medidas de tendência central e de dispersão (média ± desvio padrão) e as variáveis categóricas foram apresentadas com valores de frequência absoluta e relativa (n e ou %).

Foram realizadas análises univariadas usando o teste qui-quadrado quando todas as células da tabela de contingência tinham ao menos cinco sujeitos e o teste exato de Fisher para as demais análises, com o objetivo de avaliar a associação entre duas variáveis categóricas. Todos os dados referentes à dor lombar (variável desfecho) foram cruzados com os dados referentes ao posicionamento do ciclista em relação à bicicleta (variáveis explicativas). Após essa verificação, foram destacadas as associações com significância estatística e, para realizar a análise multivariada, foram incluídas todas as associações com valor p igual ou inferior à 0,20. O nível de significância de 0,05 foi estabelecido para todas as análises multivariadas. A estatística descritiva, testes de qui-quadrado, exacto de Fisher e regressão logística binária foram realizados pelo pacote estatístico Statistical Package for Social Sciences (SPSS® – versão 25.0).

RESULTADOS

A média de idade dos participantes da amostra foi de 38,06 ± 8,82 anos e, 88,7% dos participantes são homens. Em relação ao objetivo com o Bike Fit, 85,5% da amostra procurava conforto e performance. Quanto ao tempo de prática, 98,4% sujeitos tiveram um mínimo de três meses e máximo de 360 meses, com média de 91,95 meses (± 92,39). A dor lombar foi observada em 40,3% (n = 25) dos ciclistas.

Quanto aos ajustes no posicionamento, 98,4% dos ciclistas necessitaram de algum ajuste nos tacos, ver Tabela 1.

Tabela 1
Distribuição dos ajustes no posicionamento da bicicleta em relação ao ciclista (n=62).

A análise univariada mostrou associação entre dor lombar e alcance de membros superiores (X2=5,247; p=0,022) e dorsiflexão (X2= 6,947, p=0,008). Foram incluídas na regressão logística binária todas as variáveis que apresentaram p<0,2 na análise univariada: alcance de membros superiores, dorsiflexão de tornozelo, avanço de joelhos e extensão de joelhos, ver Tabela 2.

Tabela 2
Análise univariada entre as variáveis de exposição e a dor lombar (n=62).

Foi realizada uma regressão logística binária para verificar se o alcance de membro superior, avanço de joelhos, dorsiflexão de tornozelo, extensão de joelhos e flexão plantar são preditores de dor lombar.O modelo contendo alcance de membros superiores e avanço dos joelhos foi significativo [x2(1) = 15,533; p<0,001, R2Negelkerke=0,299]. O alcance de membros superiores foi um preditor significativo (OR=15,296; IC 95%= 2,637 – 88,731) bem como o avanço dos joelhos (OR=0,102; IC 95%=0,02 – 0,534). As variáveis dorsiflexão de tornozelo, flexão plantar de tornozelo e extensão de joelho não foram incluídas no modelo de regressão.

Foi observada uma associação positiva entre o alcance do membro superior e a presença de dor lombar, ou seja, alteração no alcance dos membros superiores está diretamente associada à presença de dor lombar (coeficiente b0 = 2,728). Existe também uma associação negativa entre o avanço do joelho e a dor lombar. O que indica que o avanço dos joelhos, considerando os valores de referência ideais, minimiza a ocorrência de dores lombares (coeficiente b0 = -2,281), ver Tabela 3.

Tabela 3
Modelo de regressão logística binária dos fatores associados com dor lombar.

DISCUSSÃO

O presente estudo objetivou investigar a associação entre a presença de dor lombar e as alterações de posicionamento articular sobre a bicicleta em ciclistas amadores. Partindo do princípio de que o Bike Fit visa garantir segurança, conforto, desempenho efetivo e prevenir lesões por meio da adaptação da bicicleta e ajuste de seus componentes de acordo com a particularidade de cada indivíduo, observa-se a associação significativa entre a dor lombar e algumas medidas de posicionamento articular.

A maior parte da amostra do estudo foi composta por homens (88,7%), o que corrobora com os achados de alguns estudos internacionais e nacionais. Araújo,1616 Araújo PB. Sintomatologia dolorosa em ciclistas noturnos de Campina Grande/PB. Dissertação (Graduação de Bacharelado em Fisioterapia). Campina Grande: Universidade Estadual da Paraíba; 2013. por exemplo, discorre a respeito da existência de um preconceito social sobre a mulher na prática do ciclismo, o que pode interferir na participação deste público na atividade. Contudo, atualmente, nota-se um aumento da participação de mulheres no ciclismo, tanto esportivo, como recreacional.1717 Bogusiak K, Pyfel M, Puch A, Kopertowska M, Werfel D, Neskoromna-Jędrzejczak A. Characteristics and risk factors of bike-related accidents: Preliminary analysis. Adv Clin Exp Med. 2018;27(10):1403-9.

Ressalta-se ainda, o grande percentual de ciclistas que buscaram o Bike Fit visando o conforto e a performance (85,5%). Tal fato, possivelmente, encontra-se relacionado com os objetivos da técnica, que são: maximizar a performance e o conforto, além de minimizar o risco de lesões.1212 Di Alencar TAM, Matias KFS. Bike Fit e sua Importância no Ciclismo. Rev Movimenta. 2009;2(2):59-64.

De acordo com os achados do presente estudo, a alteração no alcance dos membros superiores (arm pit) possui associação significativa e positiva com a queixa de dor lombar. De acordo com os estudos de Savelberg, Van de Port e Willems;1818 Savelberg HHCM, Van de Port IGL, Willems PJB. Body Configuration in Cycling Affects Muscle Recruitment and Movement Pattern. J Appl Biomech. 2003;19(4):310-24. Dorel, Couturier e Hug;1919 Dorel S, Couturier A, Hug F. Influence of different racing positions on mechanical and electromyographic patterns during pedalling. Scand J Med & Sci Sports. 2009;19(1):44-54. Diefenthaeler et al.;2020 Diefenthaeler F, Bini RR, Karolczak APB, Carpes FP. Ativação muscular durante a pedalada em diferentes posições do selim. RBCDH. 2008;10(2):161-9. o aumento do alcance resulta em aumento da flexão de tronco, o que por sua vez interfere no recrutamento muscular da região lombar, podendo provocar alterações biomecânicas e gerar compensações musculoesqueléticas, que em conjunto, poderiam explicar as queixas do ciclista.

Esse resultado pode ser explicado, pelo menos de forma parcial, pelo fato de que os músculos da coluna, quando trabalham em alongamento excessivo, tendem a produzir menos força, o que pode comprometer o ajuste postural e resultar em fadiga e desconforto. O recuo excessivo do selim implica em um posicionamento de avanço dos membros superiores gerando uma flexão excessiva do tronco e um maior alongamento da musculatura da coluna.2020 Diefenthaeler F, Bini RR, Karolczak APB, Carpes FP. Ativação muscular durante a pedalada em diferentes posições do selim. RBCDH. 2008;10(2):161-9.

Outro resultado importante foi a associação negativa observada entre o avanço dos joelhos (KOPS) e a presença de dor lombar. De acordo com os dados apresentados, o avanço dos joelhos está associado a menor chance de ocorrência de dor lombar. O reposicionamento do selim, avançando-o em relação ao top tube da bicicleta, pode atenuar a flexão do tronco e reduzir as queixas de lombalgia. Sabidamente, a diminuição da flexão do tronco é um fator que pode minimizar a ocorrência da lombalgia.1818 Savelberg HHCM, Van de Port IGL, Willems PJB. Body Configuration in Cycling Affects Muscle Recruitment and Movement Pattern. J Appl Biomech. 2003;19(4):310-24.,1919 Dorel S, Couturier A, Hug F. Influence of different racing positions on mechanical and electromyographic patterns during pedalling. Scand J Med & Sci Sports. 2009;19(1):44-54.,2020 Diefenthaeler F, Bini RR, Karolczak APB, Carpes FP. Ativação muscular durante a pedalada em diferentes posições do selim. RBCDH. 2008;10(2):161-9.Entretanto, é preciso considerar que, um avanço da posição do joelho em relação ao eixo do pedal, pode aumentar as forças compressivas da patela sobre o fêmur e assim, predispor o ciclista a quadros relacionados à dor anterior de joelho e ou à desgastes prematuros das cartilagens articulares.2121 Sanner WH, O’Halloran WD. The biomechanics, etiology, and treatment of cycling injuries. J Am Podiatr Med Assoc. 2000;90(7):354-76. Deste modo, faz-se necessário encontrar um posicionamento ótimo do selim, que permita o alívio da tensão muscular da região lombar e que impeça o aumento das forças de compressão fêmoro-patelares.

Apesar de não ter sido foco de investigação neste estudo, é importante ressaltar que outro fator que pode estar associado com queixa de dor lombar é a fraqueza dos músculos lombo-pélvicos, que interferem na estabilidade desta região podendo gerar sobrecarga e desconforto. A estabilidade lombo-pélvica ainda é importante para garantir adequada conservação e transferência de energia para os pedais.2222 Willardson JM. Core Stability Training for Healthy Athletes: A Different Paradigm for Fitness Professionals. NSCA. 2007;29(6):42-9.

23 Asplund C, Ross M. Core stability and bicycling. Curr Sports Med Rep. 2010;9(3):155-60.
-2424 Streisfeld GM, Bartoszek C, Creran E, Inge B, Mcshane MD, Johnston T. Relationship Between Body Positioning, Muscle Activity, and Spinal Kinematics in Cyclists With and Without Low Back Pain. Sports Health. 2016;9(1):75–9. Essa possibilidade é aventada em pacientes com dores crônicas na região lombar há algum tempo, contudo, estudos recentes demonstram que a ativação neuromuscular dos músculos do core não ocorre de forma menos intensa ou tardia em pacientes com lombalgia, quando comparados à pacientes sem dores lombares.2525 Sanderson A, Rushton AB, Martinez Valdes E, Heneghan NR, Gallina A, Falla D. The effect of chronic, non-specific low back pain on superficial lumbar muscle activity: a protocol for a systematic review and meta-analysis. BMJ Open. 2019;9(10):e029850. Outro ponto importante, sobre o assunto, é que para a prática do ciclismo, não há necessidade de força extrema nos músculos do complexo lombo-pelve-quadril, um controle neuromuscular e uma força muscular razoável já pode ser considerado satisfatório.1515 Phil B. Bike Fit: Optimise your bike position for high performance and injury avoidance. London: Bloomsbury; 2014.

Refutando tais hipóteses, uma revisão sistemática de Streisfeld et al.2424 Streisfeld GM, Bartoszek C, Creran E, Inge B, Mcshane MD, Johnston T. Relationship Between Body Positioning, Muscle Activity, and Spinal Kinematics in Cyclists With and Without Low Back Pain. Sports Health. 2016;9(1):75–9. que buscou avaliar se existem relações entre o posicionamento corporal, cinemático da coluna e atividade muscular em ciclistas ativos com dor lombar não traumática, demonstrou que os desequilíbrios da ativação da musculatura central e da coluna podem sim serem considerados fatores de risco para lombalgia em ciclistas. No presente estudo, a ativação muscular e os desequilíbrios musculares não foram objeto de investigação.

Ainda é prematuro afirmar se os desequilíbrios musculares afetam a cinemática da coluna ou, se a alteração na cinemática da coluna é que resulta no desequilíbrio da ativação muscular. Independentemente se são causa ou efeito, os achados podem indicar que o controle motor inapropriado pode ser importante no mecanismo da dor lombar em ciclistas. Importante destacar que a fim de maximizar a produção de força,1414 Bini RR, Senger D, Lanferdini FJ, Lopes AL. Joint kinematics assessment during cycling incremental test to exhaustion. IES. 2012;20(1):99–105. ou de aliviar um sintoma percebido, um ciclista pode alterar seu posicionamento na bicicleta.2626 Elmer SJ, Barratt PR, Korff M, Martin JC. Joint specific power production during submaximal and maximal cycling. Med Sci Sports Exerc. 2011;43(10):1940-7.,2727 Van Hoof W, Volkaerts K, O’Sullivan K, Verschueren S, Dankaerts W. Comparing lower lumbar kinematics in cyclists with low back pain (flexion pattern) versus asymptomatic controls—field study using a wireless posture monitoring system. Man Ther. 2012;17(4):312-17.

Este estudo apresenta algumas limitações. O tempo de prática da amostra foi mensurado, porém, o volume de treino não pôde ser estabelecido. Tal fato não possibilita inferir se o tempo e o volume de prática interferem na presença de queixa. Outra limitação é que a ativação ou desequilíbrios musculares não foram avaliados durante o estudo. Além do mais, a amostragem não probabilística, utilizada aqui, impede que os resultados sejam generalizados. É importante salientar que os estudos sobre o Bike Fit ainda são escassos o que impede a comparação dos achados aqui apresentados com os de outros estudos. Sugere-se que novas pesquisas sejam realizadas a fim de endereçar questões não abordadas neste estudo. Também é necessário que os profissionais de saúde voltem à atenção para o ciclismo, afinal, trata-se de uma atividade esportiva em constante crescimento no Brasil.2828 Lobo Z, Andrade V, Rodrigues J, Marino F, Binatti G. Perfil do Ciclista. Transporte Ativo e LABMOB-UFRJ. Parceria nacional pela mobilidade por bicicleta. [Internet]. 2018 [acesso em 2019 jun 7]; (2):1-31. Disponível em: http://www.ta.org.br/perfil/perfil18.pdf
http://www.ta.org.br/perfil/perfil18.pdf...

CONCLUSÃO

Ciclistas com dor lombar apresentam alterações no posicionamento sobre a bicicleta, o que sugere que a avaliação do posicionamento deve ser realizada em ciclistas com lombalgia. Entretanto, não é possível afirmar se as alterações de posicionamento observadas na amostra estudada são causas ou consequências da dor lombar.

REFERENCES

  • 1
    Burke ER. Physiology of cycling. In: Garrret WE, Kirkendall DT, organizers. Exercise and Sport Science. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2003. p. 759-70.
  • 2
    Carmo JC. Biomecânica aplicada ao ciclismo. In: Anais Congresso Brasileiro de Biomecânica, 9, 2001, Gramado. Gramado: Sociedade Brasileira de Biomecânica; 2001. p. 42-7.
  • 3
    Chiu MC, Wu HC, Tsai NT. The relationship between handlebar and saddle heights on cycling comfort. In: Yamamoto S, editor. Human interface and the management of information. Information and interaction design. Berlin: Springer; 2013. p. 12-9.
  • 4
    Too D. Biomechanics of cycling and factors affecting performance. Sports Med. 1990;10(5):286-302.
  • 5
    Fonda B, Sarabon N. Biomechanics of Cycling. Sport Sci Rev. 2010;XIX(1-2):187-210.
  • 6
    Lefever-Button S. Cycling. In: Shamus E, Shamus J. Sports Injury – Prevention & Rehabilitation. New York: McGraw-Hill; 2001. p. 459-483.
  • 7
    Bertucci W, Grappe F. Biomécanique du pédalage. In: Grappe F. Cyclisme et optimization de la performance: sciences et méthodologie de l’entraînement 2e edition. Paris: De Boeck Université; 2009. p. 195-208.
  • 8
    Abt JP, Smoliga JM, Brick MJ, Jolly JT, Lephart SM, Fu FH. Relationship Between Cycling Mechanics and Core Stability. J Strength Cond Res. 2007;21(4):1300-4.
  • 9
    Holmes J, Pruitt A, Whalen N. Lower extremity overuse in bicycling. Clin Sports Med. 1994;13(1):187-205.
  • 10
    Schwellnus MP, Derman EW. Common injuries in cycling: prevention, diagnosis and management. SAFP. 2005;47(7):14-9.
  • 11
    Van der Walt A, Janse van Rensburg DC, Fletcher L, Grant CC, Van der Walt AJ. non-traumatic injury profile of amateur cyclists. SA J Sports Med. 2014;26(4):119-22.
  • 12
    Di Alencar TAM, Matias KFS. Bike Fit e sua Importância no Ciclismo. Rev Movimenta. 2009;2(2):59-64.
  • 13
    Bini R, Daly L, Kingsley M. Changes in body position on the bike during seated sprint cycling: Applications to bike fitting. Eur J Sport Sci. 2020;20(1):35-42.
  • 14
    Bini RR, Senger D, Lanferdini FJ, Lopes AL. Joint kinematics assessment during cycling incremental test to exhaustion. IES. 2012;20(1):99–105.
  • 15
    Phil B. Bike Fit: Optimise your bike position for high performance and injury avoidance. London: Bloomsbury; 2014.
  • 16
    Araújo PB. Sintomatologia dolorosa em ciclistas noturnos de Campina Grande/PB. Dissertação (Graduação de Bacharelado em Fisioterapia). Campina Grande: Universidade Estadual da Paraíba; 2013.
  • 17
    Bogusiak K, Pyfel M, Puch A, Kopertowska M, Werfel D, Neskoromna-Jędrzejczak A. Characteristics and risk factors of bike-related accidents: Preliminary analysis. Adv Clin Exp Med. 2018;27(10):1403-9.
  • 18
    Savelberg HHCM, Van de Port IGL, Willems PJB. Body Configuration in Cycling Affects Muscle Recruitment and Movement Pattern. J Appl Biomech. 2003;19(4):310-24.
  • 19
    Dorel S, Couturier A, Hug F. Influence of different racing positions on mechanical and electromyographic patterns during pedalling. Scand J Med & Sci Sports. 2009;19(1):44-54.
  • 20
    Diefenthaeler F, Bini RR, Karolczak APB, Carpes FP. Ativação muscular durante a pedalada em diferentes posições do selim. RBCDH. 2008;10(2):161-9.
  • 21
    Sanner WH, O’Halloran WD. The biomechanics, etiology, and treatment of cycling injuries. J Am Podiatr Med Assoc. 2000;90(7):354-76.
  • 22
    Willardson JM. Core Stability Training for Healthy Athletes: A Different Paradigm for Fitness Professionals. NSCA. 2007;29(6):42-9.
  • 23
    Asplund C, Ross M. Core stability and bicycling. Curr Sports Med Rep. 2010;9(3):155-60.
  • 24
    Streisfeld GM, Bartoszek C, Creran E, Inge B, Mcshane MD, Johnston T. Relationship Between Body Positioning, Muscle Activity, and Spinal Kinematics in Cyclists With and Without Low Back Pain. Sports Health. 2016;9(1):75–9.
  • 25
    Sanderson A, Rushton AB, Martinez Valdes E, Heneghan NR, Gallina A, Falla D. The effect of chronic, non-specific low back pain on superficial lumbar muscle activity: a protocol for a systematic review and meta-analysis. BMJ Open. 2019;9(10):e029850.
  • 26
    Elmer SJ, Barratt PR, Korff M, Martin JC. Joint specific power production during submaximal and maximal cycling. Med Sci Sports Exerc. 2011;43(10):1940-7.
  • 27
    Van Hoof W, Volkaerts K, O’Sullivan K, Verschueren S, Dankaerts W. Comparing lower lumbar kinematics in cyclists with low back pain (flexion pattern) versus asymptomatic controls—field study using a wireless posture monitoring system. Man Ther. 2012;17(4):312-17.
  • 28
    Lobo Z, Andrade V, Rodrigues J, Marino F, Binatti G. Perfil do Ciclista. Transporte Ativo e LABMOB-UFRJ. Parceria nacional pela mobilidade por bicicleta. [Internet]. 2018 [acesso em 2019 jun 7]; (2):1-31. Disponível em: http://www.ta.org.br/perfil/perfil18.pdf
    » http://www.ta.org.br/perfil/perfil18.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2021
  • Aceito
    15 Ago 2022
Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte Av. Brigadeiro Luís Antônio, 278, 6º and., 01318-901 São Paulo SP, Tel.: +55 11 3106-7544, Fax: +55 11 3106-8611 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: atharbme@uol.com.br