RESUMO
A oftalmopatia de Graves é a doença orbitária mais comum e acomete 25 a 50% dos pacientes portadores da Doença de Graves e é mais frequente no sexo feminino, entre a segunda e quinta décadas de vida. A doença apresenta uma fase aguda e uma crônica, evoluindo lenta e progressivamente até estabilizar, sendo raros os casos de resolução espontânea. O tratamento dependerá da fase em que a doença se encontra e está baseado principalmente na corticoterapia via oral e endovenosa e/ou radioterapia, sendo a colchicina empregada em casos isolados. No seguinte relato de caso, abordaremos uma forma atípica de manifestação clínica da Oftalmopatia de Graves em paciente eutireoideia com anticorpos negativos na sua apresentação inicial.
Descritores: Oftalmopatia de Graves; Eutireoidea; Manifestação atípica; Anticorpos negativos; Colchicina; Relato de caso
ABSTRACT
Graves ‘ophthalmopathyis themost commonorbital diseaseand affects25-50% of the patients withGraves’ disease. It`s morecommon in females, between the second andfifth life`s decade. The disease hasanacute andachronic stage, slowly progressing until it stabilizes, with rarecasesof spontaneous resolution.The treatment depends on thestage andthe disease ismainly treated withoralor intravenous corticosteroids with or without radiotherapy;colchicine is usedin individual cases. In the followingcase report, we discuss an atypicalmanifestation ofGraves’ ophthalmopathyin an euthyroid patientwith negative antibodiesin the inicial presentation.
Keywords: Graves’ ophthalmopathy; Euthyroid; Atypical manifestation; Negative antibodies; Colchicine; Case reports
INTRODUÇÃO
A oftalmopatia de Graves é a doença orbitária mais comum e acomete 25 a 50% dos pacientes portadores da Doença de Graves(1). É uma doença autoimune caracterizada pela deposição de imunocomplexos antitireoglobulina nos músculos extraoculares. Nas fases iniciais da doença existe uma infiltração dos tecidos adiposo, muscular e conjuntivo da órbita por linfócitos T, mastócitos, macrófagos e plasmócitos(2-4). Acredita-se que os linfócitos T ativados dirigidos contra as células foliculares tireoidianas reconheçam e se liguem a antígenos semelhantes presentes nos tecidos orbitários. Macrófagos e células dendríticas iniciam a resposta imunológica que é propagada pelo recrutamento de células T sensibilizadas(2-4). A partir daí passam a ser liberados diversos mediadores inflamatórios (IFN gama, TNF, IL1) que estimulam os fibroblastos a produzirem glicosaminoglicanos, que, com sua característica hidrofílica, atraem água para os tecidos adiposo, conjuntivo e muscular resultando em edema, e por conseguinte, fibrose de toda a periórbita, com hipertrofia dos músculos extraoculares , principalmente dos retos medial e inferior e da gordura orbitária, resultando em aumento do volume orbitário, manifestado primariamente como proptose(2-4).
A oftalmopatia de Graves, embora seja mais frequente entre a segunda e quinta década de vida, pode ocorrer em qualquer faixa etária. É oito vezes mais frequente em mulheres, porém nos homens o acometimento é mais grave. Em geral surge quando há disfunção tireoidiana, porém as alterações oculares ou orbitárias podem preceder ou suceder a disfunção tireoidiana em até 18 meses(2).
Atualmente existem importantes sistemas de classificação da severidade e atividade da doença. Neste contexto podem ser citados o NOSPECS que inclui os seguintes critérios: classe 0 para o paciente que não apresenta sinais ou sintomas; classe 1 para o que apresenta apenas sinais (retração de pálpebra superior, olhar fixo, retração da pálpebra superior no olhar para baixo e proptose acima de 22mm) e sem sintomas; classe 2 nos que apresentam envolvimento de partes moles (sintomas e sinais); classe 3 nos pacientes com proptose; classe 4 quando ocorre acometimento da musculatura extraocular; classe 5 quando há envolvimento corneano, e classe 6 naqueles com perda de acuidade visual (envolvimento do nervo óptico) e o CAS (clinical activity score) que inclui sinais de inflamação aguda como hiperemia, dor, edema e alteração funcional secundária à presença de inflamação(1-3).
A doença evolui lenta e progressivamente até estabilizar, sendo relatado casos raros de resolução espontânea. Geralmente se manifesta clinicamente na fase aguda com hiperemia ocular, quemose, edema palpebral, proptose em graus variados, diplopia, acometimento da musculatura extrínseca ocular, sendo os músculos mais acometidos respectivamente o reto inferior, o medial, o superior e por último o lateral. Os sinais mais frequentes são a retração da pálpebra superior no olhar para baixo (lidlag), retração palpebral inferior (que piora na tentativa de elevação do olho), frequência reduzida de piscamento, diminuição da convergência, incapacidade de manter a fixação no olhar lateral e aparência assustada na tentativa de fixação (sinal de Kocher). Na fase crônica do processo inflamatório, alguns pacientes desenvolvem músculos restritos, fibróticos, o que pode aumentar o desvio observado na fase aguda(2,3).
O tratamento é baseado na fase na qual a doença se encontra (aguda ou crônica). Na fase aguda o tratamento anti-inflamatório de escolha é a corticoterapia por via oral ou endovenosa. Associada à corticoterapia se empregam a radioterapia, utilizando-se o acelerador linear, em dez sessões contínuas e nos casos mais severos em dez sessões semanais, com doses totais de 2000cGy. Outra opção de tratamento medicamentoso é o uso da colchicina, na dose de 0,5 a 1,5 mg/dia, isolada ou associada à radioterapia e/ou a corticosteroide, com boa resposta terapêutica.
Excetuando-se os casos de urgência em que há risco de perda da visão, por exposição da córnea ou por neuropatia óptica compressiva, o tratamento cirúrgico deve ser indicado na fase inativa da orbitopatia de Graves. Este tratamento é constituído pela descompressão orbitária, tratamento do estrabismo, correção da retração palpebral e blefaroplastia estética, nesta ordem(2,3).
No seguinte relato de caso, abordaremos uma forma atípica de manifestação clínica da oftalmopatia de Graves.
RELATO DE CASO
EMS, 49 anos, feminino, parda, solteira, auxiliar de limpeza, procedente de São Bernardo do Campo (SP) foi encaminhada ao Setor de Órbita da Disciplina de Oftalmologia da Faculdade de Medicina do ABC com queixa de dor em olho esquerdo há 5 meses, associado a olho vermelho, visão dupla, embaçamento visual, inchaço palpebral e intensa dor à movimentação ocular. Negava antecedentes pessoais e familiares de doenças oculares prévias. Como antecedentes pessoais sistêmicos apresentava história de câncer de colo uterino tratado há 8 anos.
A acuidade visual com a melhor correção era de OD 20/25 e OE 20/40. À inspeção foram encontradas alterações apenas em olho esquerdo: edema bipalpebral 2+/4+, exotropia e hiperemia conjuntival 2+/4+. A motilidade ocular extrínseca apresentava limitação às lateroversões, sendo discreta à adução e severa à abdução. Os reflexos pupilares fotomotores direto e consensual estavam preservados.A pressão intraocular foi aferida na técnica de aplanação e apresentava no OD 12mmHg e no OE 36mmHg (13h). No segmento anterior e na fundoscopia não foram encontradas alterações. Foram solicitados inicialmente as seguintes dosagens séricas: TSH, T4 livre, anticorpo antitireoglobulina (Ac Anti-TG), anticorpo antitireoperoxidase (Ac Anti-TPO) e TRAB,Ac Antinucleares (ANA),Ac Anti-DNA nativo, Ac Anti-Sm, Ac Anti-histona, VDRL, CH50,ECA, Lisozima,Cálcio,FR,FAN, VHS,ANCA-c e ANCA-p. Além destas dosagens foram solicitados os seguintes exames: PPD, RX de tórax, USG abdominal, TC órbita, dosagem de cálciourinário e exame ginecológico completo. Foi introduzido colchicina via oral (0,5 mg 12/12hs), maleato de timolol e tartarato de brimonidina, ambos 1 gota a cada 12 horas no olho esquerdo.
Após 4 semanas, a paciente retornou com melhora parcial da dor, do edema palpebral e da hiperemia conjuntival, mantendo a queixa de diplopia. A PIO aferida era de OD: 13 mmHg e OE: 16mmHg (13hs). À motilidade extrínseca apresentava limitações às lateroversões e em supraversão de OE. Entre os exames solicitados, apenas os seguintes apresentaram-se fora dos padrões de normalidade: 1) A TC de órbita (figura 1) mostrou um espessamento do músculo reto medial do olho esquerdo; 2) PPD (19mm = forte reatora); 3) VHS da primeira hora (40mm) e 4) Rx de tórax revelou a presença de múltiplas consolidações difusas no parênquima pulmonar em região hilar sugestivas de alteração cicatricial pulmonar (figura 2). Foi também indicada biópsia do músculo reto medial do OE sob anestesia geral e a paciente encaminhada para avaliação da pneumologia que solicitou: 1) tomografia computadorizada de tórax evidenciando múltiplas lesões hiperatenuantes em parênquima pulmonar sugestivas de calcificação e processo cicatricial antigo (figura 1) e pesquisa direta de BK cujo resultado foi negativo.
Tomografia computadorizada de órbita-A) Corte coronal (janela de partes moles); B) Corte axial (janela de partes moles); presença de espessamento do músculo reto medial do olho esquerdo com envolvimento do tendão no momento do atendimento inicial da paciente; C) Corte coronal (janela de partes moles); D) Corte axial ( janela de partes moles); presença de espessamento difuso dos músculos extraoculares do olho direito no pré-operatório imediato antes de realizada a biópsia
Exame de imagem: A) radiografia de tórax – presença de múltiplas consolidações difusas no parênquima pulmonar em região hilar sugestivas de alteração cicatricial pulmonar; B) tomografia computadorizada de tórax com presença de múltiplas lesões hiperatenuantes em parênquima pulmonar sugestivas de calcificações e processo cicatricial antigo
Os resultados de todos os exames descritos acima e a liberação clínica para o procedimento cirúrgico proposto foram obtidos após 7 semanas. No momento da internação a paciente apresentava melhora significativa dos sinais e sintomas do OE e comprometimento agudo do OD. À motilidade extrínseca apresentava limitações moderadas às lateroversões e em supraversão do OD (figura 3). A opção por novo estudo de imagem (TC de órbita) e após análise das imagens (figura 1) indicou-se biópsia do reto medial e inferior do OD sob anestesia geral e pela solicitação de nova dosagem sérica de TSH, T4 livre, Ac Anti-TG, Ac Anti-TPO e TRAB.
foto clínica: apresentação clínica no pré-operatório imediato com presença de hiperemia conjuntival, edema bipalpebral e limitação da movimentação ocular extrínseca no olho direito e melhora importante dos sinais e sintomas no olho esquerdo
O estudo anatomopatológico revelou a presença de tecido muscular esquelético estriado com intenso infiltrado inflamatório linfoplasmocitário com predominância de linfócitos T e presença de macrófagos achados compatíveis com fase inflamatória da Oftalmopatia de Graves. A dosagem sérica do TRAB foi de 35U/L, interpretado como resultado positivo. Os demais resultados apresentaram-se dentro da normalidade.
DISCUSSÃO
A oftalmopatia tireoidiana é classificada em doença aguda ou inflamatória, de caráter progressivo e histologicamente associada com infiltração linfocítica e alterações edematosas, e em doença crônica ou inativa, associada com alterações fibróticas e infiltração gordurosa nos tecidos retro-orbitários, especialmente nos músculos extraoculares(5,6). A fase aguda da doença apresenta como principais sintomas: dor, hiperemia conjuntival, edema e hiperemia palpebral, proptose, edema de carúncula, quemose, diplopia e embaçamento visual(3). O acometimento é bilateral em 80% dos casos geralmente se manifesta em pacientes com hipertireoidismo, com envolvimento de dois ou mais músculos extraoculares sem acometimento tendíneo(7). Neste caso, a manifestação inicial foi unilateral, com envolvimento de apenas um músculo extraocular (RM OE) e do respectivo tendão em uma paciente em estado eutireoideo, clínico e laboratorial. A literatura revela que apenas 10% dos pacientes com oftalmopatia tireoidiana não desenvolvem hipertireoidismo como manifestação inicial da doença(7). Destes, 3% apresentam hipotireoidismo e 7% eutireoidismo(7). Dos pacientes eutireoideos (7%), apenas 2,5% não apresentam positividade para Ac Anti-TG, Ac Ant-TPO e/ou TRAB, revelando o caráter atípico da apresentação clínica inicial da doença neste caso.
A biópsia deve ser indicada nos casos em que o diagnóstico é duvidoso baseado apenas no quadro clínico e nos exames complementares, ou quando há recorrência ou resistência ao tratamento, sendo assim de grande valia para descartar diagnósticos diferenciais.
A colchicina, droga utilizada no tratamento da paciente em questão age inibindo a mobilidade, quimiotaxia, adesão e fagocitose dos granulócitos; diminui os níveis das moléculas de adesão; inibe a ação e proliferação dos fibroblastos e linfócitos e inibe a síntese de colágeno. Tal droga foi indicada pelo fato de a paciente ser forte reatora ao PPD sendo neste caso contraindicado o uso de corticoide sistêmico.
Um estudo comparou o uso da colchicina ao da prednisona no tratamento de 22 pacientes na fase inflamatória da oftalmopatia de Graves. Todos os pacientes com similaridades quanto à idade, sexo e hábitos de tabagismo com eutiroidismo há pelos menos 3 meses foram randomizados em 2 grupos. O grupo 1 (G1) recebeu colchicina (1,5mg/dia) e o grupo 2 (G2) foi tratado com prednisona (0,75mg/kg/dia). Apesar de ter sido verificada uma diminuição da atividade clínica da doença nos 2 grupos, os pacientes tratados com colchicina não sofreram os efeitos colaterais da prednisona como ganho de peso, queixas gástricas, fraqueza, depressão e alteração da pressão arterial, assim como observado no presente caso(8).
A radioterapia orbital é um importante tratamento coadjuvante da orbitopatia de Graves severa em atividade devido aos seus efeitos anti-inflamatórios e imunossupressores locais. Cerca de 60% dos pacientes tratados apresentam resposta favorável(9). O sucesso na abordagem dependerá de uma correta seleção dos pacientes mostrando-se melhores resultados quanto mais precoce for instituída.
-
Trabalho realizado na Faculdade de Medicina do ABC (FMABC) – Santo André (SP) - Brasil.
REFERÊNCIAS
- 1 Kuriyan AE, Phipps RP, Feldon SE.The eye and thyroid disease. Curr Opin Ophthalmol.2008;19(6):499-506.
- 2 Höfling Lima AL, Morales PH, Manso PG, Farah ME. Alterações oculares de doenças sistêmicas: retinopatia diabética e oftalmopatia de Graves. RBM Rev Bras Med.2006;63(5).
- 3 Saraci G, Treta A.Ocular changes and approaches of ophthalmopathy in basedow - graves- parry- flajani disease. Maedica (Buchar). 2011;6(2):146-52.
- 4 Weetman AP. Thyroid-associated eye disease: Pathophysiology. Lancet. 1991;338(8758):25-8. Review.
- 5 Fung S, Malhotra R, Selva D. Thyroid orbitopathy. Aust Fam Physician. 2003;32(8):615-20. Review.
- 6 Yokoyama N, Nagataki S, Uetani M, Ashizawa K, Eguchi K. Role of magnetic resonance imaging in the assessment of disease activity in thyroid-associated ophthalmopathy.Thyroid. 2002;12(3):223-7.
- 7 Stamato FJ, Manso PG, Maciel JR, Wolosker AM, Maciel RM, Furlanetto RP. Colchicine as a new option for the clinical treatment of Graves' ophthalmopathy. Proceedings of the VIth International Symposium on Graves' Ophthalmopathy, Amsterdam, November 27 to 28, 1998, p. 22.
- 8 Stamato FJ, Maciel RM,Manso PG, Wolosker AM, Paiva ER, Lopes AC,et al. Colchicina no tratamento da fase inflamatória da oftalmopatia de Graves: um estudo prospectivo e randomizado com prednisona. Arq Bras Oftalmol.2006;69(6):811-6.
- 9 Pitz S, Kahaly G, Rösler HP, Krummenauer F, Wagner B, Stübler M, et al. [Retrobulbar irradiation for Graves' ophthalmopathy - long-term results]. Klin Monbl Augenheilkd. 2002;219(12):876-82.German.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jul-Aug 2015
Histórico
-
Recebido
11 Jun 2012 -
Aceito
03 Set 2012