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Uso de sangue autólogo intraestromal em perfuração ocular após hidropsia

Use of autologous intrastromal blood in ocular perforation after hydrops

RESUMO

Paciente sexo masculino, 46 anos, portador de ceratocone avançado, evoluiu com hidropsia e perfuração corneana considerada pequena. Inicialmente, foi realizado tamponamento da perfuração com cola de cianoacrilato e lente de contato terapêutica, porém, o ceratocone avançado não permitia estabilização adequada da lente de contato, e o paciente evoluiu com dor intensa, inviabilizando a manutenção da cola de cianoacrilato. Foi indicada, então, a realização de injeção intraestromal de sangue autólogo no centro cirúrgico ambulatorial, que foi efetiva para conter a perfuração. Após melhora do quadro de hidropsia, o paciente foi submetido ao transplante corneano penetrante para reabilitação visual.

Descritores:
Ceratocone; Edema; Perfuração da córnea; Transfusão de sangue autóloga; Transplante de córnea; Cianoacrilatos; Lentes de contato hidrofílicas

ABSTRACT

A 46-year-old male who was already diagnosed with keratoconus presented with hydrops followed by a small corneal perforation. At first, the perforation was managed with a cyanoacrylate glue and therapeutic contact lens; however, the advanced keratoconus did not allow stabilization of the contact lens, and the patient developed intense pain, making it impossible to maintain the cyanoacrylate glue. An intrastromal injection of autologous blood was then performed at the operating room, which was effective in containing the perforation. After the hydrops condition improved, the patient underwent penetrating corneal transplantation for visual rehabilitation.

Keywords:
Keratoconus; Edema; Corneal perforation; Blood transfusion; autologous; Corneal transplantation; Cyanoacrylates; Contact lenses; hydrophilic

INTRODUÇÃO

O ceratocone é uma doença bilateral, assimétrica e progressiva, que cursa com protrusão e afinamento da córnea.(11 Santodomingo-Rubido J, Carracedo G, Suzaki A, Villa-Collar C, Vincent SJ, Wolffsohn JS. Keratoconus: An updated review. Cont Lens Anterior Eye. 2022;45(3):101559.) A doença acomete ambos os sexos, e a prevalência varia em diferentes etnias, entretanto, é estimada em um caso a cada 2.000 indivíduos.(22 Rabinowitz YS. Keratoconus. Surv Ophthalmol. 1998;42(4):297-319.) Acredita-se que fatores genéticos e ambientais estejam envolvidos na patogênese do ceratocone.(33 Lucas SE, Burdon KP. Genetic and environmental risk factors for keratoconus. Annu Rev Vis Sci. 2020;6:25-46.) Os principais achados histopatológicos dessa ectasia são afinamento do estroma corneano e rupturas da membrana de Bowman.(11 Santodomingo-Rubido J, Carracedo G, Suzaki A, Villa-Collar C, Vincent SJ, Wolffsohn JS. Keratoconus: An updated review. Cont Lens Anterior Eye. 2022;45(3):101559.) Tipicamente, a doença inicia-se na puberdade e progride até a quarta década de vida. Quanto às manifestações oftalmológicas, observa-se a presença de astigmatismo irregular e diminuição progressiva da acuidade visual.(22 Rabinowitz YS. Keratoconus. Surv Ophthalmol. 1998;42(4):297-319.) Em estágios avançados da doença, podem ocorrer rupturas da membrana de Descemet e, consequentemente, edema corneano, com piora abrupta da acuidade visual e dor ocular.(44 Fan Gaskin JC, Patel DV, McGhee CN. Acute corneal hydrops in keratoconus - new perspectives. Am J Ophthalmol. 2014;157(5):921-8.) Normalmente, esse quadro, denominado hidropsia aguda, possui resolução espontânea em cerca de 3 meses, mas complicações, como infecção e perfuração, podem ocorrer em raros casos.(44 Fan Gaskin JC, Patel DV, McGhee CN. Acute corneal hydrops in keratoconus - new perspectives. Am J Ophthalmol. 2014;157(5):921-8.)

O presente trabalho relata um caso de hidropsia aguda e o manejo terapêutico proposto após a evolução para perfuração ocular.

RELATO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 45 anos, branco, buscou atendimento no pronto-socorro oftalmológico devido à diminuição da acuidade visual no olho esquerdo associada à dor e à fotofobia há cerca de 15 dias. Apresentava diagnóstico prévio de ceratocone há 18 anos e era usuário de lentes esclerais. Ao exame, apresentava acuidade visual com melhor correção de 0,7 no olho direito e movimento de mãos no esquerdo. À biomicroscopia, estrias de Vogt e sinal de Munson eram observados em ambos os olhos. No olho esquerdo, observava-se também edema corneano localizado principalmente na região central, compatível com hidropsia, e perfuração corneana inferior com Seidel positivo. Foi realizada tomografia de coerência óptica (OCT) para avaliação do segmento anterior que demonstrou cistos intraestromais e rupturas na membrana de Descemet (Figura 1). Diante do quadro de hidropsia aguda associada à perfuração ocular considerada pequena, optou-se por realizar tamponamento da perfuração com cola de cianoacrilato e lente de contato terapêutica, além da prescrição de doxiciclina, antibiótico tópico e lubrificante ocular. No retorno, o paciente não estava mais com a lente de contato e queixava-se de dor intensa no olho esquerdo. Uma vez que o paciente apresentava ceratocone avançado que inviabilizava a estabilização adequada de uma lente de contato terapêutica sobre a córnea e não tolerou o uso de cola de cianoacrilato, foi indicada a realização de injeção intraestromal de sangue autólogo.

Figura 1
Tomografia de coerência óptica de segmento anterior do olho esquerdo demonstrando cistos intraestromais e rupturas na membrana de Descemet.

O procedimento foi realizado no centro cirúrgico ambulatorial, sob anestesia tópica e após adequada assepsia. Através de um acesso venoso periférico no membro superior direito, aspiraram-se 4mL de sangue venoso. Cerca de 100μl do fluido foram injetados no estroma corneano com agulha de 30G, sem intercorrências durante o procedimento (Figura 2).

Figura 2
Aspecto do pós-operatório imediato da injeção intraestromal de sangue autólogo.

No primeiro dia de pós-operatório, o paciente apresentava acuidade visual mantida, câmara anterior formada, opacidade estromal permeada pelo sangue autólogo injetado e Seidel negativo. O aspecto da OCT de segmento anterior no sétimo dia de pós-operatório demonstrou melhora da integridade estromal (Figura 3).

Figura 3
Tomografia de coerência óptica de segmento anterior no sétimo dia de pós-operatório demonstrando melhora da integridade estromal.

Uma vez que o transplante corneano realizado na vigência de hidropsia aguda possui maiores taxas de complicações, aguardou-se melhora do quadro agudo e, então, realizou-se o procedimento cirúrgico para reabilitação visual. No momento, o paciente mantém seguimento pós-operatório do transplante corneano penetrante e, após 4 meses de cirurgia, apresenta acuidade visual de 20/40 no olho operado com uso de correção e botão do transplante transparente (Figura 4).

Figura 4
Biomicroscopia do olho esquerdo após 4 meses da realização de transplante de córnea penetrante.

DISCUSSÃO

A hidropsia aguda é uma complicação que ocorre em estágios avançados de ceratocone devido à ruptura da membrana de Descemet.(44 Fan Gaskin JC, Patel DV, McGhee CN. Acute corneal hydrops in keratoconus - new perspectives. Am J Ophthalmol. 2014;157(5):921-8.) Este evento é considerado raro, e a incidência anual é estimada em 1,43 caso a cada 1.000 pacientes com ceratocone.(55 Barsam A, Petrushkin H, Brennan N, Bunce C, Xing W, Foot B, et al. Acute corneal hydrops in keratoconus: a national prospective study of incidence and management. Eye (Lond). 2015;29(4):469-74.) Os sintomas iniciais da hidropsia são diminuição da acuidade visual, fotofobia e dor. O diagnóstico é realizado com base na história clínica e no exame biomicroscópico, porém, exames como o OCT de segmento anterior podem auxiliar na identificação de complicações e no planejamento terapêutico.(66 Maharana PK, Sharma N, Vajpayee RB. Acute corneal hydrops in keratoconus. Indian J Ophthalmol. 2013;61(8):461-4.)

O quadro comumente apresenta resolução espontânea em alguns meses, entretanto, os pacientes podem apresentar diferentes graus de debilitação visual e desconforto ocular.(44 Fan Gaskin JC, Patel DV, McGhee CN. Acute corneal hydrops in keratoconus - new perspectives. Am J Ophthalmol. 2014;157(5):921-8.) Ainda, uma minoria evolui com complicações decorrentes do quadro de hidropsia, como neovascularização corneana, infecção e perfuração ocular.(77 Lanthier A, Choulakian M. Treatment strategies for the management of acute hydrops. J Fr Ophtalmol. 2021;44(9):1439-44.) Devido ao amplo espectro de possíveis desfechos após um episódio de hidropsia aguda, diversas abordagens terapêuticas já foram propostas. As opções podem ser divididas em manejo conservador, medicamentoso e cirúrgico.(44 Fan Gaskin JC, Patel DV, McGhee CN. Acute corneal hydrops in keratoconus - new perspectives. Am J Ophthalmol. 2014;157(5):921-8.)

O manejo conservador possui como objetivo o alívio de sintomas até que haja resolução espontânea do quadro. Colírios lubrificantes e lente de contato terapêutica são utilizados para alívio da dor e parecem não interferir no tempo de resolução da hidropsia.(77 Lanthier A, Choulakian M. Treatment strategies for the management of acute hydrops. J Fr Ophtalmol. 2021;44(9):1439-44.) O tratamento medicamentoso também pode ser indicado e inclui a prescrição de agentes hipertônicos tópicos para melhora do edema intraestromal, além de corticoides tópicos para diminuição do risco de neovascularização, porém, o benefício dessas medicações é incerto na literatura.(44 Fan Gaskin JC, Patel DV, McGhee CN. Acute corneal hydrops in keratoconus - new perspectives. Am J Ophthalmol. 2014;157(5):921-8.) Diferentes tratamentos cirúrgicos também já foram propostos para a hidropsia aguda. A injeção intracameral de ar ou gases é frequentemente utilizada e tem como objetivo aproximar a membrana de Descemet do estroma corneano para acelerar a resolução do quadro, porém está associada à necessidade de injeções repetidas para que seja eficaz.(77 Lanthier A, Choulakian M. Treatment strategies for the management of acute hydrops. J Fr Ophtalmol. 2021;44(9):1439-44.) Outras opções cirúrgicas envolvem suturas corneanas e, mais recentemente, uso de membrana amniótica para promover a cicatrização.(44 Fan Gaskin JC, Patel DV, McGhee CN. Acute corneal hydrops in keratoconus - new perspectives. Am J Ophthalmol. 2014;157(5):921-8.)

Apesar de rara, cerca de 3% dos pacientes em vigência de hidropsia aguda podem evoluir com perfuração ocular.(55 Barsam A, Petrushkin H, Brennan N, Bunce C, Xing W, Foot B, et al. Acute corneal hydrops in keratoconus: a national prospective study of incidence and management. Eye (Lond). 2015;29(4):469-74.) Devido à raridade da complicação, há poucos relatos na literatura sobre qual seria a melhor abordagem terapêutica nessa situação. Idealmente, o transplante penetrante é evitado nessa fase aguda, devido à alta taxa de falência e à possibilidade de os pontos ficarem frouxos precocemente.(88 Araújo FM, Pegoraro PP, Paganelli F. Acute corneal hydrops with positive Seidel’s sign: a safe and creative management. Oftalmo. 2021;7(1):48-53.) Embora seja uma opção na vigência de perfuração, o uso de lente de contato terapêutica associada à cola de cianoacrilato também foi ineficaz no caso apresentado por conta da curvatura corneana e devido à intolerância do paciente ao uso de cola de cianoacrilato. O uso de gás intracameral também não parecia viável diante da perfuração com Seidel positivo, que poderia possibilitar o redirecionamento de gás para o espaço intraestromal,(88 Araújo FM, Pegoraro PP, Paganelli F. Acute corneal hydrops with positive Seidel’s sign: a safe and creative management. Oftalmo. 2021;7(1):48-53.) além da necessidade de múltiplas injeções na maioria dos pacientes submetidos ao procedimento.(77 Lanthier A, Choulakian M. Treatment strategies for the management of acute hydrops. J Fr Ophtalmol. 2021;44(9):1439-44.)

Mais recentemente, o uso de sangue e seus hemoderivados vem sendo proposto, com o objetivo de estimular a regeneração celular por meio da presença de fatores de crescimento, citocinas e outros agentes biológicos.(99 Alio JL, Rodriguez AE, Martinez LM, Rio AL. Autologous fibrin membrane combined with solid platelet-rich plasma in the management of perforated corneal ulcers: a pilot study. JAMA Ophthalmol. 2013;131(6):745-51.,1010 Alió JL, Toprak I, Rodriguez AE. Treatment of severe keratoconus hydrops with intracameral platelet-rich plasma injection. Cornea. 2019;38(12):1595-8.) Alió et al. relataram um caso de hidropsia aguda em paciente com síndrome de Down que respondeu ao uso de plasma autólogo rico em plaquetas.(1010 Alió JL, Toprak I, Rodriguez AE. Treatment of severe keratoconus hydrops with intracameral platelet-rich plasma injection. Cornea. 2019;38(12):1595-8.) Também já foram descritos casos de hidropsia aguda que apresentaram melhora após o uso de sangue autólogo.(1111 Regis LM, Arcoverde AL, Lobato F, Cunha F. Use of autologous blood as treatment of giant acute hydrops: A case report. Rev Bras Oftalmol. 1998;57(11):881-4.) Devido à maior facilidade e ao menor custo para a obtenção de sangue autólogo, optou-se por utilizar o sangue não processado.

Observa-se, no caso descrito, que o tratamento foi eficaz em conter a perfuração ocular. Propõe-se que o sangue pode tamponar as roturas após a coagulação e estimular a proliferação fibroelástica.(1212 Teixeira LP. Injeção de sangue autólogo intraestromal no manejo da hidropisia nas doenças ectásicas da córnea [trabalho de Conclusão de Curso]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2023.) Além de efetivo, o tratamento possui baixo custo e é de fácil acesso.

Dessa forma, o sangue autólogo mostrou-se uma opção útil na fase aguda da hidropsia enquanto se aguarda o momento adequado para o transplante de córnea para reabilitação visual.

  • Instituição de realização do trabalho:

    Departamento de Oftalmologia, Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
  • Fonte de auxílio à pesquisa:

    trabalho não financiado.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Santodomingo-Rubido J, Carracedo G, Suzaki A, Villa-Collar C, Vincent SJ, Wolffsohn JS. Keratoconus: An updated review. Cont Lens Anterior Eye. 2022;45(3):101559.
  • 2
    Rabinowitz YS. Keratoconus. Surv Ophthalmol. 1998;42(4):297-319.
  • 3
    Lucas SE, Burdon KP. Genetic and environmental risk factors for keratoconus. Annu Rev Vis Sci. 2020;6:25-46.
  • 4
    Fan Gaskin JC, Patel DV, McGhee CN. Acute corneal hydrops in keratoconus - new perspectives. Am J Ophthalmol. 2014;157(5):921-8.
  • 5
    Barsam A, Petrushkin H, Brennan N, Bunce C, Xing W, Foot B, et al. Acute corneal hydrops in keratoconus: a national prospective study of incidence and management. Eye (Lond). 2015;29(4):469-74.
  • 6
    Maharana PK, Sharma N, Vajpayee RB. Acute corneal hydrops in keratoconus. Indian J Ophthalmol. 2013;61(8):461-4.
  • 7
    Lanthier A, Choulakian M. Treatment strategies for the management of acute hydrops. J Fr Ophtalmol. 2021;44(9):1439-44.
  • 8
    Araújo FM, Pegoraro PP, Paganelli F. Acute corneal hydrops with positive Seidel’s sign: a safe and creative management. Oftalmo. 2021;7(1):48-53.
  • 9
    Alio JL, Rodriguez AE, Martinez LM, Rio AL. Autologous fibrin membrane combined with solid platelet-rich plasma in the management of perforated corneal ulcers: a pilot study. JAMA Ophthalmol. 2013;131(6):745-51.
  • 10
    Alió JL, Toprak I, Rodriguez AE. Treatment of severe keratoconus hydrops with intracameral platelet-rich plasma injection. Cornea. 2019;38(12):1595-8.
  • 11
    Regis LM, Arcoverde AL, Lobato F, Cunha F. Use of autologous blood as treatment of giant acute hydrops: A case report. Rev Bras Oftalmol. 1998;57(11):881-4.
  • 12
    Teixeira LP. Injeção de sangue autólogo intraestromal no manejo da hidropisia nas doenças ectásicas da córnea [trabalho de Conclusão de Curso]. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2024
  • Aceito
    27 Jul 2024
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