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Distiquíase congênita: uma afecção de difícil tratamento

Congenital distichiasis: a condition difficult to be treated

RESUMO

A distiquíase congênita é uma condição rara, de origem controversa, com opções terapêuticas cujos resultados nem sempre são favoráveis. Este é o relato de caso de uma criança do sexo masculino, de 7 anos, portadora de distiquíase congênita afetando as quatro pálpebras, com permanência de alguns folículos pilosos distiquiáticos mesmo tratados cirurgicamente pela técnica da divisão interlamelar, com aplicação seletiva de crioterapia e de eletrólise. O tratamento da distiquíase congênita envolveu a necessidade de associar técnicas, a fim de se obterem resultados mais efetivos.

Descritores:
Distiquíase congênita; Pálpebras; Cílio; Crioterapia; Eletrólise; Criança

ABSTRACT

Congenital distichiasis is a rare condition, of controversial origin, with therapeutic options not always having favorable results. This is a case report of a seven-year-old male child with congenital distichiasis affecting all eyelids, with the presence of some distichiasis hair follicles despite surgical treatment using the interlamellar division technique, selective application of cryotherapy and electrolysis. The treatment of congenital distichiasis involves the need to combine techniques to achieve more effective results.

Keywords:
Congenital distichiasis; Eyelids; Eyelashes; Cryotherapy; Electrolysis; Child

INTRODUÇÃO

A distiquíase é uma rara condição caracterizada por fileira anômala de cílios que emergem do óstio das glândulas de Meibômio ou adjacente a elas, podendo ser congênita ou adquirida.(11 O’Donnell BA, Collin JR. Distichiasis: management with cryotherapy to the posterior lamella. Br J Ophthalmol. 1993;77(5):289-92.33 Anderson RL, Harvey JT. Lid splitting and posterior lamella cryosurgery for congenital and acquired distichiasis. Arch Ophthalmol. 1981;99(4):631-4.) As manifestações clínicas são secundárias ao contato dos cílios com a superfície ocular, causando hiperemia, lacrimejamento e desepitelização corneana, com risco de úlceras e opacidades.(22 Singh S. Distichiasis: An update on etiology, treatment and outcomes. Indian J Ophthalmol. 2022;70(4):1100-6.)

Existem várias opções para o tratamento da distiquíase,(44 Mccracken MS, Kikkawa DO, Vasani SN. Treatment of trichiasis and distichiasis by eyelash trephination. Ophthal Plast Reconstr Surg. 2006;22(5):349-51.) como uso de eletrólise, quando o número de cílios distiquiáticos (CD) é menor que cinco, ou do laser de argônio quando o número de cílios que tocam o olho é maior, o que ocorre geralmente na distiquíase adquirida. Porém, na distiquíase congênita, geralmente há grande quantidade de cílios que tocam o bulbo ocular, havendo necessidade de tratamento cirúrgico, como a divisão intermarginal com enxertia, que apresenta tempo cirúrgico elevado e necessidade de sítio doador; a divisão intermarginal com remoção mecânica de cada cílio sob microscopia; a ressecção da lamela contendo os CD, com risco de deformar a margem ciliar;(22 Singh S. Distichiasis: An update on etiology, treatment and outcomes. Indian J Ophthalmol. 2022;70(4):1100-6.) a trepanação individual de cada folículo sem a divisão intermaginal, dentre outras. No entanto, nenhuma das técnicas pode ser considerada ideal.

O objetivo deste estudo foi relatar a experiência com uma criança portadora de distiquíase congênita tratada com a técnica da divisão interlamelar associada à aplicação de crioterapia na lamela posterior, associando-se o uso de eletrólise nos cílios que recresceram. O Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (CAAE: 75897023.0.0000.5411) aprovou este relato, e o termo de consentimento foi assinado pelo responsável.

RELATO DO CASO

Criança do sexo masculino, 7 anos, com queixa de irritação ocular há 4 anos, procurou o Hospital das Clínicas de Botucatu, em Botucatu (SP), para tratamento. Nunca havia feito tratamentos anteriores e negava queixas sistêmicas e antecedentes familiares. À biomicroscopia, todas as pálpebras mostravam acometimento, com 18 CD na pálpebra superior direita (PSD), 28 na pálpebra inferior direita (PID), 24 na pálpebra superior esquerda (PSE) e 18 na pálpebra inferior esquerda (PIE). Havia hiperemia conjuntival e ceratite puntata bilateral, sem outras alterações oculares.

Foi indicada a cirurgia para remoção dos CD por divisão interlamelar associada com crioterapia aplicada na lamela posterior, sob anestesia geral e sob microscópio cirúrgico. O procedimento foi facilitado pela colocação de pinça de calázio na margem palpebral, procedendo-se à divisão interlamelar com bisturi lâmina 15 anteriormente à emergência dos CD, até profundidade que permitisse a exposição dos bulbos pilosos (Figura 1A). Após a remoção mecânica dos folículos com pinça de ponto delicada tracionando-se diretamente a raiz dos folículos, a crioterapia (Cryofast Ophthalmic CT-902, Alimed TEC, Barueri, SP, Brasil), usando óxido nitroso à temperatura de −20°C e pressão de 51kg/cm³ foi aplicada como tratamento adjuvante. Finalizando o procedimento, realizou-se a sutura das lamelas com pontos simples de fio de poliglactina 7-0 (Vycril, Atramat, Cidade do México, México).

Figura 1
(A) Olho direito, com distiquíase congênita caracterizada por fileira anômala de cílios finos, esbranquiçados, com alteração da convexidade e tocando o bulbo ocular, localizados nas pálpebras inferior e superior. (B) Divisão interlamelar mostrando os bulbos de cílios do olho direito, durante o intraoperatório da segunda abordagem para tratamento de distiquíase congênita. (C) Fotodocumentação do olho esquerdo, 7 meses após o segundo procedimento operatório, para tratamento de distiquíase congênita, mostrando a margem palpebral sem deformidades, com poucos cílios distiquiáticos e estética satisfatória.

Três meses após a cirurgia, o número de CD diminuiu muito, permanecendo cinco CD na PSD, quatro na PID, sete na PSE e sete na PIE, com manutenção da ceratite puntata. Nova divisão interlamelar foi realizada (Figura 1B), associando-se com aplicação de eletrólise nos CD esparsos, utilizando a radiofrequência monopolar (bisturi eletrônico microprocessado modelo SS-501S, WEM Equipamentos Eletrônicos Ltda., Brasil), com potência 3mJ por 3 segundos em cada folículo, à profundidade de aproximadamente 2mm. A aplicação era considerada satisfatória e interrompida quando a região perifolicular se torna esbranquiçada.

Sete meses após a cirurgia, o paciente relatava melhora completa dos sintomas (Figura 1C), apesar do exame biomicroscópico mostrar cinco CD na PSD, dois na PID e seis na PSE, e a córnea ainda apresentar puntatas esparsas em ambos os olhos.

DISCUSSÃO

Relatamos um caso de distiquíase congênita que foi tratada com cirurgia de divisão interlamelar com remoção mecânica dos folículos mal posicionados, seguida de aplicação localizada de crioterapia e de eletrólise, com melhora dos sintomas, apesar da permanência da distiquíase.

Apesar de ser entidade congênita, o paciente apresentou sintomas depois dos 3 anos de idade, provavelmente porque o filme lacrimal de crianças é mais espesso e se reduz com os anos.(55 Lavezzo MM, Schellini AS, Padovani CR. Avaliação comparativa do ritmo de piscar em crianças normais em idade pré-escolar. Arq Bras Oftalmol. 2007;70(3):481-6.)

A técnica cirúrgica empregada foi a divisão interlamelar com remoção mecânica dos bulbos pilosos, associada à crioterapia exclusivamente na lamela posterior. A divisão das lamelas palpebrais associada à crioterapia foi descrita para tratamento da distiquíase adquirida em 1981, com sucesso em apenas 54% dos casos.(33 Anderson RL, Harvey JT. Lid splitting and posterior lamella cryosurgery for congenital and acquired distichiasis. Arch Ophthalmol. 1981;99(4):631-4.) Embora a taxa de cura tenha sido baixa, trata-se de uma técnica simples, que respeita a anatomia palpebral e permite a observação direta dos folículos sob microscopia, possibilitando a remoção ou a destruição seletiva dos bulbos distiquiáticos e ainda não havia sido utilizada em distiquíase congênita. A associação da remoção mecânica e individualizada dos CD pelo bulbo dos mesmos foi realizada com o intuito de aumentar o sucesso da técnica.

A dissecção das lamelas deve ser cuidadosa, feita até a exposição dos folículos, com profundidade de aproximadamente 2 à 3mm, de forma a permitir a remoção dosCD, sem danificar o tecido adjacente.(66 Sheth T, Attzs M, Tambe K. A new perspective in oculoplastic surgical management of symptomatic distichiasis in lymphedema-distichiasis syndrome. Orbit. 2018;38(5):424-7.)

A crioterapia destrói os folículos pilosos por congelamento. Quando usada de forma isolada no tratamento da distiquíase, cursa com elevada taxa de recidiva,(44 Mccracken MS, Kikkawa DO, Vasani SN. Treatment of trichiasis and distichiasis by eyelash trephination. Ophthal Plast Reconstr Surg. 2006;22(5):349-51.) com risco de despigmentação da pele, deformidades permanentes da margem palpebral e ablação de cílios saudáveis.(11 O’Donnell BA, Collin JR. Distichiasis: management with cryotherapy to the posterior lamella. Br J Ophthalmol. 1993;77(5):289-92.,33 Anderson RL, Harvey JT. Lid splitting and posterior lamella cryosurgery for congenital and acquired distichiasis. Arch Ophthalmol. 1981;99(4):631-4.) No caso descrito, foi utilizado como tratamento adjuvante à cirurgia e após a remoção mecânica de CD, tendo sido aplicada apenas na lamela posterior, evitando-se efeitos adversos.

Técnicas de excisão da faixa tarsoconjuntival contendo os CD, com ou sem interposição de enxerto de mucosa bucal ou tarsoconjuntival, apresentam baixa recorrência, poucas complicações e resultado cosmético satisfatório.(66 Sheth T, Attzs M, Tambe K. A new perspective in oculoplastic surgical management of symptomatic distichiasis in lymphedema-distichiasis syndrome. Orbit. 2018;38(5):424-7.1010 Dortzbach RK, Butera RT. Excision of distichiasis eyelashes through a tarsoconjunctival trapdoor. Arch Ophthalmol. 1978;96(1):111-2.) Porém, são mais trabalhosas, envolvem sítio doador e podem deformar a margem palpebral.

Os cílios normais apresentam turnover de 4 a 6 semanas,(22 Singh S. Distichiasis: An update on etiology, treatment and outcomes. Indian J Ophthalmol. 2022;70(4):1100-6.,44 Mccracken MS, Kikkawa DO, Vasani SN. Treatment of trichiasis and distichiasis by eyelash trephination. Ophthal Plast Reconstr Surg. 2006;22(5):349-51.) sendo importante reavaliar o paciente depois deste período. Assim, o exame do nosso paciente mostrou novamente CD, o que pode decorrer da não destruição do bulbo piloso ou pelo crescimento de novos CD.

Quando nosso paciente apresentou novos CD, optou-se pelo emprego da mesma técnica operatória, associando o uso da eletrólise, por se ter número muito menor de cílios a destruir e pelo fato de os cílios se apresentarem esparsos, distantes uns dos outros na pálpebra. O uso da divisão interlamelar associada à eletrocoagulação com cautério com agulha monopolar já foi sugerido no tratamento da distiquíase,(55 Lavezzo MM, Schellini AS, Padovani CR. Avaliação comparativa do ritmo de piscar em crianças normais em idade pré-escolar. Arq Bras Oftalmol. 2007;70(3):481-6.,1111 Creppe MC, Silva MR, Schellini SA. Tratamento por eletrólise do mal posicionamento dos cílios palpebrais. Rev Bras Oftalmol. 1996;55(8):595-600.) somente indicada quando se têm poucos cílios anômalos,(22 Singh S. Distichiasis: An update on etiology, treatment and outcomes. Indian J Ophthalmol. 2022;70(4):1100-6.) como observado neste segundo momento em nosso paciente.

Outras alternativas para tratar a distiquíase seriam microtrepanação dos bulbos anômalos, com resultados semelhantes ao uso do eletrocautério e do laser de argônio.(22 Singh S. Distichiasis: An update on etiology, treatment and outcomes. Indian J Ophthalmol. 2022;70(4):1100-6.) Apesar do laser de argônio ser utilizado para triquíase, a chance de sucesso na distiquíase se reduz, por serem cílios hipopigmentados e com folículos mais profundos.(22 Singh S. Distichiasis: An update on etiology, treatment and outcomes. Indian J Ophthalmol. 2022;70(4):1100-6.) Além disso, requer colaboração do paciente, dificultando seu uso em pacientes pediátricos não sedados.

O procedimento aqui utilizado para tratar a distiquíase congênita mostra a simplicidade da técnica, o respeito à anatomia palpebral e sua preservação e a eficiência em reduzir o número de CD. Porém, ressalta a chance de recidiva ou recorrência dos CD, mostrando como é difícil o tratamento definitivo da distiquíase congênita.

Portanto, a distiquíase congênita pode ser tratada com divisão interlamelar associada com a aplicação da crioterapia ou eletrólise diretamente sobre os bulbos anômalos, com possibilidade de destruição seletiva dos CD. Porém, há necessidade de acompanhamento, devido à possibilidade de recrescimento dos cílios que tocam o bulbo ocular.

  • Instituição de realização do trabalho:

    Departamento de Oftalmologia, Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Botucatu, SP, Brasil.
  • Fonte de auxílio à pesquisa:

    trabalho não financiado.

REFERÊNCIAS

  • 1
    O’Donnell BA, Collin JR. Distichiasis: management with cryotherapy to the posterior lamella. Br J Ophthalmol. 1993;77(5):289-92.
  • 2
    Singh S. Distichiasis: An update on etiology, treatment and outcomes. Indian J Ophthalmol. 2022;70(4):1100-6.
  • 3
    Anderson RL, Harvey JT. Lid splitting and posterior lamella cryosurgery for congenital and acquired distichiasis. Arch Ophthalmol. 1981;99(4):631-4.
  • 4
    Mccracken MS, Kikkawa DO, Vasani SN. Treatment of trichiasis and distichiasis by eyelash trephination. Ophthal Plast Reconstr Surg. 2006;22(5):349-51.
  • 5
    Lavezzo MM, Schellini AS, Padovani CR. Avaliação comparativa do ritmo de piscar em crianças normais em idade pré-escolar. Arq Bras Oftalmol. 2007;70(3):481-6.
  • 6
    Sheth T, Attzs M, Tambe K. A new perspective in oculoplastic surgical management of symptomatic distichiasis in lymphedema-distichiasis syndrome. Orbit. 2018;38(5):424-7.
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  • 10
    Dortzbach RK, Butera RT. Excision of distichiasis eyelashes through a tarsoconjunctival trapdoor. Arch Ophthalmol. 1978;96(1):111-2.
  • 11
    Creppe MC, Silva MR, Schellini SA. Tratamento por eletrólise do mal posicionamento dos cílios palpebrais. Rev Bras Oftalmol. 1996;55(8):595-600.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2024
  • Aceito
    27 Jul 2024
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