RESUMO
A encefalomielite aguda disseminada é uma doença rara, aguda, inflamatória e desmielinizante do sistema nervoso central, presumivelmente associada, em mais de três quartos dos casos, a infecções (virais, bacterianas ou inespecíficas) e imunizações ou sem qualquer antecedente indentificável. Habitualmente, apresenta um curso monofásico com início de sintomas inespecíficos na fase prodrómica, podendo evoluir com alterações neurológicas multifocais e até à perda total da acuidade visual. Descrevemos o caso de um menino de 9 anos com quadro inicial de edema de papila causado por encefalomielite aguda disseminada devido a Bartonella henselae. Apesar da gravidade da doença, o diagnóstico e o tratamento precoce proporcionaram bons desfechos.
Descritores: Encefalomielite aguda disseminada; Neurite óptica; Doenças desmielinizantes; Bartonella henselae
ABSTRACT
Acute disseminated encephalomyelitis is a rare, acute, inflammatory, and demyelinating disease of the central nervous system. Presumably associated in more than three quarters of cases by infections (viral, bacterial, or nonspecific) and immunizations or without any identifiable antecedent. It usually presents a monophasic course with onset of nonspecific symptoms in the prodromal phase and may evolve with multifocal neurological changes and even visual acuity loss. We describe a case of a 9-year-old boy with an initial picture of papillary edema caused by acute disseminated encephalomyelitis due to Bartonella henselae. Despite the severity of the disease, early diagnosis and treatment provided good outcomes.
Keywords: Encephalomyelitis, acute disseminated; Optic neuritis; Demyelinating diseases; Bartonella henselae
INTRODUÇÃO
A encefalomielite aguda disseminada (ADEM) é uma doença rara, aguda, inflamatória e desmielinizante do sistema nervoso central (SNC), com envolvimento multifocal, atingindo a substância branca cerebral e a medula espinhal.(1) A incidência de ADEM infantil foi relatada como 0,23 a 0,4 por 100 mil pacientes.(2) A doença afeta crianças (principalmente menores de 10 anos) e preferencialmente adultos, e a média da idade de início é entre 3,6 e 7 anos de idade.(2–4) Crianças do sexo masculino tendem a ser afetadas com mais frequência do que crianças do sexo feminino.(3,4)
Manifesta-se com início súbito, predominantemente em crianças e adultos jovens, sendo precedida em mais de três quartos dos casos por infecções (virais, bacterianas ou inespecíficas), imunizações ou sem qualquer antecedente identificável.(1)
Habitualmente, apresenta um curso monofásico com início de sintomas inespecíficos na fase prodrómica, como cefaleia, febre, vômitos, mal-estar, mialgia e anorexia, podendo evoluir com alterações neurológicas do estado de consciência, crises convulsivas focais ou generalizadas, psicoses e até sintomas neurológicos multifocais, como defeitos de campo visual, afasia, défice motor e sensitivo, ataxia, paralisia de nervos cranianos, neurite óptica com edema de disco bilateral e até perda visual total.(4) A encefalopatia ocorre 2 a 6 semanas após o aparecimento de linfadenopatia, e os pacientes geralmente se recuperam com poucas ou nenhuma sequela, apesar da gravidade.(5) Ainda que a baixa de acuidade visual durante a fase aguda da doença possa ser severa, mostrada em estudo como em torno de 20/600 em pacientes com associação de ADEM e neurite óptica, a maioria das crianças se recupera totalmente com progressão da acuidade visual em semanas (57; 89%).(6,7)
A bartonelose, por sua vez, é considerada uma zoonose mundial, cuja transmissão se dá por meio de arranhadura de gato.(8) A associação foi descrita pela primeira vez por Debr em 1931. Somente em 1992, Bartonella henselae (anteriormente conhecida como Rochalimaea henselae) foi identificada como o principal agente causador da doença da arranhadura do gato.(9)
A forma típica ocorre em cerca de 90% dos casos, é caracterizada por ser subaguda, com linfadenite regional e, em metade dos casos, está associada a manifestações sistêmicas, como febre, mal-estar e sudorese noturna. As formas atípicas podem incluir manifestações musculoesqueléticas, neurológicas, dermatológicas e hepatoesplênicas.(9,10)
O objetivo deste relato foi demonstrar uma patologia grave, rara, com etiologia nem sempre confirmada e que pode ser facilmente confundida, mas que, com diagnóstico e tratamento precoce, apresenta bons desfechos.
RELATO DO CASO
Paciente do sexo masculino, 9 anos, branco e estudante, queixava-se de cefaleia de forte intensidade e baixa acuidade visual no olho direito há 10 dias. Referia arranhadura de filhote de gato em hemiface direita no mesmo período. O animal era doméstico e pertencia ao vizinho, tendo ocorrido o caso enquanto brincava com ele. Negou trauma e afirmava boa acuidade visual prévia em ambos olhos. Sem histórico de quadro gripal ou vacinação prévia ao início dos sintomas. Ao exame oftalmológico: acuidade visual com correção; conta dedos a 1 m em olho direito (OD) e 20/20 em olho esquerdo (OE). Motilidade ocular extrínseca preservada. Reflexos pupilares direto OD 2+/4+, OE 4+/4+, consensual OD 3+/4+, OE 2+/4, com presença de defeito pupilar aferente relativo em olho direito. Biomicroscopia demonstrava conjuntiva tarsal com presença de papilas, em ambos os olhos. Fundoscopia com OD com disco óptico pálido e bordos mal delimitados 360° e OE sem alterações. Laboratorias e sorologias sem alterações, exceto para Bartonella henselae, imunoglobulinas G (IGG) 1:640 (reagente)/ imunoglobulinas M (IGM) 1:100 (reagente); líquor mostrando pleocitose linfocítica, ausência de bandas oligoclonais e aquaporia 4; tomografia computadorizada de crânio com focos hipoatenuantes subcorticais em região parietal bilateral; ressonância magnética de crânio com lesões acometendo assimetricamente a substância branca subcortical frontoparietotemporo-occipital bilateral, estendendo-se aos centros semiovais e substância branca periventricular esquerda, notando-se sinais de infiltração das cápsulas interna e externa, bem como tálamo à esquerda, com focos lesionais nos giros do cíngulo. Extensas lesões de aspecto tumefativo com hipersinal no T2/FLAIR, notando-se focos sugestivos de necrose central dados por hipersinal no T2, sinal intermediário no FLAIR e hipossinal no T1, identificando-se também focos com aspecto variado de impregnação pelo meio de contraste, em situação parietal direita (Figuras 1 a 3). Paciente foi internado com diagnóstico de ADEM e iniciou metilprednisolona 15mg/kg/dia endovenoso por 3 dias associados a doxiciclina 100mg via oral, evoluindo com melhora do quadro em acompanhamento neurológico e oftalmológico, com acuidade visual de 20/20 em ambos olhos.
(A a D) Ressonância magnética de crânio evidenciando hipersinal em lesões assimétricas da substância branca subcortical frontoparietotemporal-occipital bilateral, estendendo-se aos centros semiovais e substância branca periventricular esquerda, com focos lesionais nos giros do cíngulo. Estensa lesão de aspecto tumefativo com hipersinal no T@/FLAIR, notando-se focos sugestivos de necrose central. (A, C e D) Lesão da substância branca subcortical parietotemporal à direita. (B) Lesão assimétrica da substância branca subcorital parietotemporal-occipital bilateral.
DISCUSSÃO
A ADEM é um distúrbio desmielinizante agudo do SNC e é caracterizada por envolvimento multifocal da substância branca.(11) Sinais neurológicos difusos com lesões multifocais no cérebro e na medula espinhal caracterizam a doença.(12)
Seu diagnóstico constitui uma tarefa difícil e quase nunca infalivelmente certa, principalmente quando não há um infecção prévia bem especificada ou quando há uma apresentação atípica, como no paciente relatado, em que a estrela macular não estava presente, apesar de comum nesses casos. Embora vírus sejam a etiologia infecciosa mais comuns, bactérias e parasitas podem estar, raramente envolvidos também.(10,11) Ainda que, na maioria das vezes, a apresentação da doença tenha caráter monofásico, ela pode apresentar caráter recidivante em 10 a 30% dos casos, o que dificulta sua distinção com outras doenças desmielinizantes como a esclerose múltipla, por exemplo.(12)
Diferentemente da bartonelose que apresenta diagnóstico baseado principalmente na sorologia, para diagnosticar ADEM, não existe um marcador biológico específico ou teste de confirmação. A análise do líquor pode ser útil, porém, por vezes, estará normal. Assim como a ressonância magnética, apesar de sua sensibilidade, diagnósticos diferenciais, como esclerose múltipla devem ser lembrados e distinguidos pelo curso clínico da doença ao longo do tempo.
O tratamento da ADEM baseia-se em altas doses de corticoide por pulsoterapia com metilprednisolona (20 a 30mg/kg/dia; máximo 1g/dia) por 3 a 5 dias, seguidos de prednisolona via oral (1 a 2 mg/kg/dia) por 1 a 2 semanas, com redução gradual em 2 a 6 semanas. Como opção para pacientes corticorresistentes ou em recidivas, utiliza-se a imunoglobulina humana endovenosa (2g/kg) por 2 a 5 dias.(13,14) Quanto a Bartonella henselae, o valor do antibiótico, bem como outras modalidades de tratamento, è discutível, devido ao quadro autolimitado na maioria dos casos; ainda assim apresenta boa resposta terapêutica ao uso de doxicilina, ciprofloxacino ou eritromicina, entre outros.
O presente caso contribui para as discussões acerca dessa patologia que nem sempre apresenta um diagnóstico etiológico claro, porém, com auxílio de exames de imagem, anamnese e laboratoriais (sorologias para Bartonella henselae no caso em questão), pode-se propor uma provável etiologia, um diagnóstico adequado e um tratamento precoce, para garantir um bom desfecho sem repercussões visuais ou sequelas graves.
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
23 Fev 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
06 Jul 2023 -
Aceito
11 Dez 2023