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Anquilobléfaro filiforme congênito

Ankyloblepharon filiforme adnatum

RESUMO

O anquiloblefáro filiforme congênito é uma rara anomalia congênita, caracterizada por uma fusão palpebral, parcial ou completa, cuja incidência é de 4,4 por 100 mil recém-nascidos. Normalmente, o anquiloblefáro filiforme congênito constitui uma malformação solitária, de ocorrência esporádica, no entanto, pode estar associado a outras malformações. O pediatra possui papel imprescindível para observar as alterações clínicas do recém-nascido e dar orientação para o tratamento adequado. O objetivo deste estudo foi relatar o caso de recém-nascido de termo que teve diagnóstico precoce de anquiloblefáro filiforme congênito associado a outras malformações congênitas, tendo desfeito as aderências em procedimento cirúrgico oportuno, evitando-se a evolução para futuras complicações visuais do paciente.

Descritores:
Recém-nascido; Anormalidades do olho; Anormalidades congênitas; Pálpebras; Fenda labial/complicações; Fissura palatina/complicações

ABSTRACT

Ankyloblepharon filiforme adnatum is a rare congenital anomaly, characterized by partial or complete palpebral fusion, with an incidence of 4.4 per 100,000 newborns. Normally, ankyloblepharon filiforme adnatum constitutes a solitary malformation, with sporadic occurrence, however, it can be associated with other malformations. Pediatricians play an essential role in observing clinical changes in newborns and providing guidance on appropriate treatment. The this study aims to report the case of a full-term newborn who had an early diagnosis of ankyloblepharon filiforme adnatum associated with other congenital malformations.

Keywords:
Infant, newborn; Eye abnormalities; Congenital abnormalities; Eyelids; Cleft lip/complications; Cleft palate/complications

INTRODUÇÃO

O anquilobléfaro filiforme congênito (AFC) é uma patologia congênita rara, com incidência média de 4,4 para cada 100 mil nascidos-vivos, descrita pela primeira vez por Joseÿ Von Hasner em 1881 como uma anormalidade caracterizada pela adesão parcial ou completa das bordas ciliares das pálpebras superiores e inferiores. Essa fusão ocorre em um determinado estágio do desenvolvimento ocular, porém sua permanência após nascimento torna-se anormal. As pálpebras se fundem por volta da nona semana de gestação e, por volta do sétimo mês gestacional, ocorre a separação espontânea da pálpebra superior com a inferior. Essa separação pode ser prejudicada devido a alguns fatores, como a parada temporária do crescimento epitelial, uma rápida proliferação anormal do mesoderma ou uma combinação dos dois fatores, a qual permite a união do mesênquima não epitelializado em determinados pontos. Pode também ocorrer devido à falha do apoptose em uma fase crítica do desenvolvimento palpebral.(11 Elbashier SE, Zakharchenko L, Boyle MA. Ankyloblepharon filiforme adnatum. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed. 2018;103(3):F207.44 Solyman O, Elhusseiny AM, Hashem HA. Severe bilateral ankyloblepharon filiforme adnatum. J AAPOS. 2020;24(4):251-2.)

O AFC pode se apresentar como anomalia ocular isolada ou como manifestação de uma síndrome multissistêmica. Foi subdivida, por alguns autores, em grupo I (sem anormalidade associadas), grupo II (alterações cardíacas ou do sistema nervoso central), grupo III (síndrome epidérmica) e grupo IV (fenda labial e/ou palatina), podendo ter outras associações, como hidrocefalia, meningocele, imperfuração anal, sindactilia bilateral, glaucoma congênito e/ou alterações cardíacas (persistência do canal arterial e defeitos do septo ventricular).(33 Vieira MJ, Campos S, Carvalheira F, Arruda H, Martins J, Sousa JP. et al. Ankyloblépharon filiforme adnatum: case report and literature review, Rev Soc Portuguesa Oftalmol. 2021;45(1):.49-5.)

Por ser uma patologia ocular considerada rara, ainda há muito o que se descobrir, principalmente relacionado à patogênese, apesar de existirem muitas teorias descritas. Assim, é desconhecido por muitos profissionais o que dificulta seu diagnóstico precoce, que é realizado por meio do exame clínico do recém-nascido (RN).

Este estudo teve como objetivo relatar o caso de recém-nascido de termo que teve diagnóstico precoce de anquiloblefáro filiforme congênito associado a outras malformações congênitas. É importante, para todos os profissionais que fazem o atendimento neonatal, conhecer essa patologia, para possibilitar a realização de um diagnóstico precoce e, assim, indicar a correção cirúrgica nos primeiros dias de vida, evitando complicações visuais graves e irreversíveis para o paciente.

RELATO DO CASO

Um RN do sexo feminino, de termo, nasceu por via de parto cesárea, indicada por sofrimento fetal agudo e malformações fetais observadas em ultrassom obstétrico. A rotura das membranas foi no ato do parto. Ele apresentou oligodrâmnio e mecônio em moderada quantidade. Foi pontuado o Apgar 8/9, e o RN não necessitou de reanimação ao nascer. Foram evidenciadas alterações morfológicas como fendas labial e palatina, malformação em região vaginal, membro inferior esquerdo encurtado com movimentação limitada e alterações em dedos dos pés (Figura 1). O RN foi encaminhado à unidade de cuidados intermediários para manejo clínico e investigação.

Figura 1
Recém-nascido com fenda labiopalatatina associada a anquilobléfaro filiforme congênito.

Durante a internação, foi realizada avaliação da geneticista, observado hipertelorismo, fenda labial e palatina bilateralmente, excesso de pele em região cervical, hipoplasia de grandes lábios e sindactilia entre segundo, terceiro, quarto e quinto pododáctilos bilateralmente. Foi coletado o cariótipo banda G, tendo sido solicitados outros exames para rastrear outras malformações. Exames de ultrassonografia transfontanela e de abdome total não apresentaram alterações, e o ecocardiograma infantil demonstrou forame oval pérvio (FOP) e refluxo tricúspide discreto, sem repercussão clínica. O exame oftalmológico foi prejudicado por secreção amarelada em grande quantidade nos olhos do RN, indicado o tratamento tópico ocular com colírio do antibiótico tobramicina, iniciado com 5 dias de vida do RN e mantido até resolução do quadro infeccioso, que ocorreu com 10 dias de tratamento.

Após o tratamento ocular tópico, o RN foi reavaliado pelo oftalmologista, que observou dificuldade em abertura ocular para realização do exame de fundoscopia, devido à aderência entre as pálpebras bilateralmente (Figura 2). Foi então confirmada a hipótese diagnóstica de AFC e indicado o tratamento cirúrgico para correção das sinéquias.

Figura 2
Recém-nascido com fusão localizada nas pálbebras, característica do anquilobléfaro filiforme congênito.

O procedimento foi realizado no 19° dia de vida do RN, em unidade de tratamento intensivo neonatal, em beira leito do paciente. Após colocação de campos cirúrgicos, assepsia e sedoanalgesia do RN com midazolam por via endovenosa, foi realizada a secção das aderências, utilizando uma tesoura de Vannas, com manutenção do colírio de tobramicina no pós-operatório por mais 7 dias.

O RN apresentou boa evolução clínica, com abertura ocular total bilateralmente (Figura 3). Recebeu alta hospitalar com 21 dias de vida, sendo encaminhado ao seguimento ambulatorial com geneticista, oftalmologista e seguimento multidisciplinar.

Figura 3
Abertura ocular total após a correção cirúrgica do anquilobléfaro filiforme congênito.

DISCUSSÃO

O AFC é caracterizado pela presença de bandas finas únicas ou múltiplas de tecido conjuntivo entre as pálpebras superiores e inferiores, impedindo a abertura total do olho. Pode ocorrer esporadicamente ou seguir um padrão de transmissão autossômica dominante, além de existir a possibilidade de estar associada a outras doenças, como a trissomia do cromossomo 18.(22 Stolowy N et al. Ankyloblépharon filiforme adnatum. J Français d’Ophtalmol, 2019; 42(3):E125-e126.,44 Solyman O, Elhusseiny AM, Hashem HA. Severe bilateral ankyloblepharon filiforme adnatum. J AAPOS. 2020;24(4):251-2.)

O relato de caso descreve um RN com alteração morfológica observada ainda durante o pré-natal – presença de fenda labiopalatina por ultrassonografia gestacional. Porém, apenas após nascimento, com a realização do exame neonatal clínico detalhado, foram observadas alterações oculares (abundante secreção ocular bilateral) associadas a outras alterações morfológicas. Após avaliação por geneticista e oftalmologista, foi possível realizar o diagnóstico precoce do AFC associado a fenda labiopalatina, hipoplasia de grandes lábios e sindactilia entre segundo, terceiro, quarto e quinto pododáctilos bilateralmente.

O AFC pode estar isolado ou, na maioria dos casos, ser associado à fissura labiopalatal. Pode surgir, ainda, relacionado a algumas síndromes, como síndrome de Edward (trissomia 18), síndrome de Hay-Well, síndrome do pterígio poplíteo e displasia de unhas, além de outras associações com alterações de outros sistemas, como sistema nervoso central e cardíaco.(22 Stolowy N et al. Ankyloblépharon filiforme adnatum. J Français d’Ophtalmol, 2019; 42(3):E125-e126.,33 Vieira MJ, Campos S, Carvalheira F, Arruda H, Martins J, Sousa JP. et al. Ankyloblépharon filiforme adnatum: case report and literature review, Rev Soc Portuguesa Oftalmol. 2021;45(1):.49-5.,55 Dharma AD, Loebis R. Ankyloblepahron filiforme adnarum in a newborn baby girl. Vis Sci Eye Health J. 2022;1(2):35-7.,66 Hakam J, Zakoun M, Belghmaidi S, Hajji I, Moutaouakil A Ankyloblepharon filiform adnatum: a case report. J Soc Marocaine d’Ophtalmol. 2021;30(2):22-4.)

A avaliação das pálpebras faz parte fundamental do exame clínico neonatal, principalmente se presente alguma anomalia congênita, tendo como objetivo principal diagnosticar alterações que possam causar problemas funcionais futuros.(77 Rodriguez-Garcia R, Rodriguez-Silva R, Vargas-Álvarez JE. Anquilobléfaron filiforme adnatum. Bol Clin Hosp Infant Edo Son. 2021;38(2):155-9.,88 Tajir M, Lyahyai J, Guaoua S, El Alloussi M, Sefiani A. Ankyloblepharon-ectodermal defects-cleft lip-palate syndrome due to a novel missense mutation in the sam domain of the tp63 gene. Balkan J Med Genet. 2020;23(1):95-8.) O diagnóstico de AFC é realizado de forma clínica, porém, pela raridade do caso, ainda há dificuldade do diagnóstico, principalmente por pediatras, pelo desconhecimento da patologia, postergando a correção cirúrgica. Como observado no caso relatado, o diagnóstico foi aos 9 dias de vida, devido à secreção ocular no RN, necessitando realizar tratamento tópico, e, em posterior avaliação oftalmológica, foi identificada a patologia.

O tratamento é geralmente cirúrgico, sendo indicado logo após o nascimento, para melhor conforto do paciente, por meio de um procedimento simples, com liberação das bandas aderidas. Na ausência de um tratamento ideal, o AFC pode gerar graves alterações visuais futuras, porém, se realizado de forma oportuna, o prognóstico visual é bom.(66 Hakam J, Zakoun M, Belghmaidi S, Hajji I, Moutaouakil A Ankyloblepharon filiform adnatum: a case report. J Soc Marocaine d’Ophtalmol. 2021;30(2):22-4.,99 Sarawa S, Jain K, Agarwal R. A newborn with ankyloblepharon filiforme adnatum. J Clin Ophthalmol Res. 2018; 6(2):63:5.,1010 Stankovic-Babic G, Vujanovic M, Cekic S. Ankyloblephaton filiforme adnatum with a bilateral cleft lip and palate. Srp Arh Celok Lek. 2018;146(7-8):447-51.) No caso descrito, após diagnóstico do AFC, foi programado procedimento cirúrgico, sendo realizado sem intercorrências, com uso, no pós-operatório, de antibiótico tópico e, posteriormente, com seguimento ambulatorial.

No caso relatado, apesar das malformações associadas ao AFC, não foram identificadas alterações no sistema nervoso central, e as alterações cardíacas observadas ao ecocardiograma não apresentavam repercussões clínicas.

O lactente seguiu em acompanhamento ambulatorial com oftalmologista e geneticista. Ainda haverá programação para procedimento de correção da fenda labiopalatina.

Percebe-se a importância de identificar o AFC, podendo prevenir a ambliopia e contribuir para um bom prognóstico oftalmológico do paciente, por meio de uma intervenção cirúrgica oportuna. Além disso, devido à possibilidade de estar associado a outras alterações, faz-se necessária uma investigação complementar para outras malformações, em especial do sistema nervoso central e cardíaco.

Apesar de raro, o diagnóstico de AFC é simples e sem necessidade de exames complementares, pois o diagnóstico é clínico. Além disso, o tratamento também é simples, sem grandes riscos durante procedimento. Ressalta-se ainda que o maior objetivo de detectar precocemente essa anomalia é indicar o tratamento a fim de evitar complicações visuais graves e irreversíveis para o paciente.

DECLARAÇÃO DE CONSENTIMENTO

Os autores certificam que obtiveram formulário de consentimento apropriado do paciente. No formulário, a mãe do paciente deu seu consentimento para que suas imagens e outras informações clínicas fossem relatadas. A mãe entende que o nome da criança não será divulgado e serão realizados os devidos esforços para ocultar sua identidade, mas o anonimato não pode ser garantido.

  • Instituição de realização do trabalho: Universidade Federal do Maranhão – UFMA.
  • Fonte de auxílio à pesquisa: trabalho não financiado.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Elbashier SE, Zakharchenko L, Boyle MA. Ankyloblepharon filiforme adnatum. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed. 2018;103(3):F207.
  • 2
    Stolowy N et al. Ankyloblépharon filiforme adnatum. J Français d’Ophtalmol, 2019; 42(3):E125-e126.
  • 3
    Vieira MJ, Campos S, Carvalheira F, Arruda H, Martins J, Sousa JP. et al. Ankyloblépharon filiforme adnatum: case report and literature review, Rev Soc Portuguesa Oftalmol. 2021;45(1):.49-5.
  • 4
    Solyman O, Elhusseiny AM, Hashem HA. Severe bilateral ankyloblepharon filiforme adnatum. J AAPOS. 2020;24(4):251-2.
  • 5
    Dharma AD, Loebis R. Ankyloblepahron filiforme adnarum in a newborn baby girl. Vis Sci Eye Health J. 2022;1(2):35-7.
  • 6
    Hakam J, Zakoun M, Belghmaidi S, Hajji I, Moutaouakil A Ankyloblepharon filiform adnatum: a case report. J Soc Marocaine d’Ophtalmol. 2021;30(2):22-4.
  • 7
    Rodriguez-Garcia R, Rodriguez-Silva R, Vargas-Álvarez JE. Anquilobléfaron filiforme adnatum. Bol Clin Hosp Infant Edo Son. 2021;38(2):155-9.
  • 8
    Tajir M, Lyahyai J, Guaoua S, El Alloussi M, Sefiani A. Ankyloblepharon-ectodermal defects-cleft lip-palate syndrome due to a novel missense mutation in the sam domain of the tp63 gene. Balkan J Med Genet. 2020;23(1):95-8.
  • 9
    Sarawa S, Jain K, Agarwal R. A newborn with ankyloblepharon filiforme adnatum. J Clin Ophthalmol Res. 2018; 6(2):63:5.
  • 10
    Stankovic-Babic G, Vujanovic M, Cekic S. Ankyloblephaton filiforme adnatum with a bilateral cleft lip and palate. Srp Arh Celok Lek. 2018;146(7-8):447-51.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Jan 2024
  • Aceito
    15 Fev 2024
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