A cirurgia de catarata está entre as mais realizadas no mundo.(11 Rossi T, Romano MR, Iannetta D, Romano V, Gualdi L, D’Agostino I, et al. Cataract surgery practice patterns worldwide: a survey. BMJ Open Ophthalmol. 2021;6(1):e000464.) O conhecimento científico envolvido nesse procedimento tem avançado consistentemente em muitos aspectos nas últimas décadas, pela diversidade de técnicas cirúrgicas para cada grau de esclerose e dureza nuclear; pela tecnologia por detrás dos aparelhos de facoemulsificação (FACO), otimizando o desempenho facodinâmico e o followability; e pelas inovações da indústria de lentes intraoculares (LIOs), em constante busca por oferecer ao binômio cirurgião-paciente a melhor plataforma possível, que agregue estabilidade, previsibilidade e satisfação. Nesse sentido, o objetivo refrativo para oferecer menor dependência de correção ótica no pós-operatório ganha especial relevância. De fato, o objetivo da cirurgia de FACO e implante de LIO não se restringe mais ao tratamento de um cristalino disfuncional ou opacificado,(22 Haddad JS, Rocha KM, Waring IV GO, Faria-Correia F, Ambrosio Júnior R. Dysfunctional lens syndrome: a prospective review. Rev Bras Oftalmol. 2021;80(5):e0037.) mas à possibilidade de corrigir desvios refracionais com qualidade visual, proporcionando ao paciente maior independência dos óculos e melhor qualidade de vida.(33 Alio JL, Plaza-Puche AB, Férnandez-Buenaga R, Pikkel J, Maldonado M. Multifocal intraocular lenses: An overview. Surv Ophthalmol. 2017;62(5):611-34.) A correção refrativa por meio da FACO tornou-se questão fundamental.
Tanto os cirurgiões como os pacientes buscam o melhor resultado pós-operatório possível. Em outras palavras, as estruturas oculares devem ser preservadas e se manterem saudáveis, a LIO deve estar bem posicionada (de preferência dentro do saco capsular), e a refração alinhada com as expectativas do paciente. É importante ressaltar que a refração ótima não significa necessariamente emetropia com 20/20 de visão não corrigida para longe. O objetivo atual da cirurgia de catarata deve ser proporcionar aos pacientes o desempenho óptico necessário para suas atividades do dia a dia. E, para se alcançar essa abordagem personalizada na era das lentes premium, o planejamento pré-operatório é crucial, assim como compreender e familiarizar-se com o que denominamos "status refracional".
Este editorial apresenta ao leitor, de maneira detalhada, o conceito de desempenho ou status refracional e como sua aplicação rotineira pode auxiliar na tomada de decisão e no alinhamento de expectativas dos pacientes quanto aos possíveis resultados pós-operatórios.
STATUS REFRACIONAL: DEFINIÇÃO E APLICAÇÃO CONCEITUAL
Apesar de tradicionalmente limitado ao sinônimo de refração manifesta e acuidade visual (com e sem correção),(44 Zahidi AA, McIlreavy L, Erichsen JT, Woodhouse JM. Visual and refractive status of children with down's syndrome and nystagmus. Investig Ophthalmol Vis Sci. 2022;63(2):28.,55 Thorn F, Chen J, Li C, Jiang D, Chen W, Lin Y, et al. Refractive status and prevalence of myopia among Chinese primary school students. Clin Exp Optom. 2020;103(2):177-83.) o termo "status refracional" se estende à maneira como a ametropia do paciente e sua correção óptica em uso se relacionam com as atividades do dia a dia, englobando correções refracionais suplementares, como lentes de contato. Em outras palavras, status refracional se refere à compreensão detalhada da forma em que a correção óptica atual do paciente se aplica em suas demandas visuais para longe, intermediário e perto. Além disso, seu conceito deve incluir a refração manifesta e a acuidade visual do paciente, possibilitando ao médico o conhecimento da tolerância do paciente a situações com diferentes qualidades ópticas. Caracterizar o status refracional do paciente inclui também indagar sobre hábitos, ocupação, atividades de lazer e expectativas, o que é possível por meio de uma anamnese detalhada, baseada em perguntas ativas e direcionadas (Tabela 1).
Perguntas a serem questionadas de forma ativa para caracterização do status refracional de um paciente.
Durante a consulta pré-operatória, o cirurgião precisa compreender o status refracional de seu paciente quanto ao passado, ao presente e às expectativas dele. Considerando-se as características ópticas e sua rotina diária, leva-se em conta como era o paciente no passado (história refracional)? Como está ele agora? Como ele se visualiza no futuro? A tabela 1 lista algumas perguntas que podem orientar a coleta do conjunto completo de informações sobre o status refracional de um paciente.
Determinar o status refracional é parte estratégica e necessária da avaliação de pacientes com catarata (os "porquês" e os "comos")(66 Ambrósio Jr R. Multimodal imaging for refractive surgery: Quo vadis?. Indian J Ophthalmol. 2020;68(12):2647-9.) para se otimizarem os resultados cirúrgicos. Como exemplo, a satisfação que um paciente hipermétrope terá com uma LIO para correção de presbiopia irá variar caso ele utilize ou não correção óptica para suas atividades diárias. Do mesmo modo, pacientes míopes podem ser completamente diferentes entre si quanto a suas expectativas, considerando-se que um apresenta miopia desde sua juventude, enquanto o outro desenvolveu miopização secundária à catarata nuclear. Nesses casos, observam-se demandas ópticas distintas que merecem ser abordadas de maneira personalizada.
Outro exemplo: um paciente de 49 anos com grau esférico +1.25 para longe pode não estar utilizando correção óptica rotineiramente, e outro caso semelhante pode se distinguir apenas no detalhe de uso constante dos óculos. Essa informação, comumente omitida das anamneses, é extremamente útil por proporcionar uma noção de tolerância a diferentes qualidades ópticas. Caso se opte por lentes difrativas que impactem de alguma maneira a função de transferência de modulação (MTF, sigla do inglês modulation transfer function) e a sensibilidade ao contraste, esses dois casos muito semelhantes podem ter reações antagônicas em termos de satisfação pós-operatória, mesmo apresentando semelhantes resultados refrativos, já que o primeiro paciente já era acostumado a certo comprometimento do MTF e do contraste em seu dia a dia, ao contrário do segundo. Esse tipo de análise só é possível ao se detalhar o status refracional.
Outros aspectos importantes a serem sublinhados durante a avaliação pré-operatória são: a dioptria atualmente em uso para correção do erro refracional; o tipo de dispositivo óptico – óculos, lentes de contato, seus diferentes tipos etc. –; quando foi a última prescrição óptica feita por um oftalmologista; a acuidade visual para longe sem correção, com a correção em uso atual e com a melhor correção possível; o desempenho visual para perto e intermediário; a satisfação do paciente com sua visão atual sem e com correção; os aspectos qualitativos da visão pré-operatória, como sensibilidade ao contraste e aberrações de alta ordem, além de fenômenos visuais disfotópicos (halos, ofuscamentos ou glares, raios luminosos ou starbusts) e a tolerância do paciente a eles.
O status refracional pode ainda acrescentar dados valiosos no manejo de casos desafiadores, como córneas irregulares ou ectásicas, em que há maior chance de imprecisão biométrica e maior complexidade de escolha da LIO a ser implantada. Por exemplo, em pacientes habituados com o uso regular de lentes rígidas gás-permeáveis (LRGP), é imprescindível se esclarecerem as motivações pós-operatórias relacionadas ao uso destes dispositivos.(77 Mol IE, Van Dooren BT. Toric intraocular lenses for correction of astigmatism in keratoconus and after corneal surgery. Clin Ophthalmol. 2016;10:1153-9.) Caso o paciente busque independência das LRGPs e a topografia de discos de Placido revele astigmatismo corneano central relativamente regular, o implante de LIO tórica pode ser uma opção razoável.(88 Ton Y, Barrett GD, Kleinmann G, Levy A, Assia EI. Toric intraocular lens power calculation in cataract patients with keratoconus. J Cataract Refract Surg. 2021;47(11):1389-97.) No entanto, o cirurgião deve informar ao paciente quanto à pior qualidade visual após a cirurgia. As aberrações corneanas de alta ordem temporariamente corrigidas durante o uso de LRGP, continuarão presentes após a FACO. Portanto, a qualidade visual pós-operatória provavelmente será pior do que a proporcionada pelas LRGPs. Por outro lado, se o paciente pretende manter o uso das lentes rígidas após o procedimento, a LIO tórica não deve configurar entre as opções.
Por fim, a cirurgia de catarata moderna tornou-se oportunidade única para se aprimorar a qualidade de vida dos pacientes reduzindo-se ametropias e a dependência de óculos. Como um procedimento refrativo, a abordagem multimodal(66 Ambrósio Jr R. Multimodal imaging for refractive surgery: Quo vadis?. Indian J Ophthalmol. 2020;68(12):2647-9.) é essencial por meio de múltiplos exames complementares, incluindo topografia e tomografia de córnea, aberrometria de frentes de onda, biometria óptica e calculadoras biométricas modernas e precisas.(99 Goto S, Maeda N. Corneal topography for intraocular lens selection in refractive cataract surgery. Ophthalmology. 2021;128(11):e142-52.
10 Hemmati HD, Gologorsky D, Pineda R 2nd. Intraoperative wavefront aberrometry in cataract surgery. Semin Ophthalmol. 2012;27(5-6):100-6.-1111 Hill WE, Abulafia A, Wang L, Koch DD. Pursuing perfection in IOL calculations. II. Measurement foibles: Measurement errors, validation criteria, IOL constants, and lane length. J Cataract Refract Surg. 2017;43(7):869-70.) Essa abordagem deve estar associada a uma avaliação completa do status refracional para melhor planejamento e escolha da LIO mais apropriada para cada caso. Dessa forma, aumentarão as chances de sucesso, o que significa, em suma, resultados cirúrgicos alinhados às expectativas de cada paciente, proporcionando melhor satisfação. A inteligência artificial desempenhará papel cada vez mais relevante na integração de dados e na consequente facilitação de decisões clínicas.(1212 Ambrósio R Jr, Machado AP, Leão E, Lyra JM, Salomão MQ, Esporcatte LG, et al. Optimized Artificial Intelligence for Enhanced Ectasia Detection Using Scheimpflug-Based Corneal Tomography and Biomechanical Data. Am J Ophthalmol. 2023;251:126-42.,1313 Gutierrez L, Lim JS, Foo LL, Ng WY, Yip M, Lim GY, et al. Application of artificial intelligence in cataract management: current and future directions. Eye Vis (Lond). 2022;9(1):3. Erratum in: Eye Vis (Lond). 2022;9(1):11.)
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Instituição de realização do trabalho: Grupo de Estudos MY/Learning, São Paulo, São Paulo, Brasil.
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Fonte de auxílio à pesquisa: trabalho não financiado.
REFERÊNCIAS
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1Rossi T, Romano MR, Iannetta D, Romano V, Gualdi L, D’Agostino I, et al. Cataract surgery practice patterns worldwide: a survey. BMJ Open Ophthalmol. 2021;6(1):e000464.
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2Haddad JS, Rocha KM, Waring IV GO, Faria-Correia F, Ambrosio Júnior R. Dysfunctional lens syndrome: a prospective review. Rev Bras Oftalmol. 2021;80(5):e0037.
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3Alio JL, Plaza-Puche AB, Férnandez-Buenaga R, Pikkel J, Maldonado M. Multifocal intraocular lenses: An overview. Surv Ophthalmol. 2017;62(5):611-34.
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4Zahidi AA, McIlreavy L, Erichsen JT, Woodhouse JM. Visual and refractive status of children with down's syndrome and nystagmus. Investig Ophthalmol Vis Sci. 2022;63(2):28.
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5Thorn F, Chen J, Li C, Jiang D, Chen W, Lin Y, et al. Refractive status and prevalence of myopia among Chinese primary school students. Clin Exp Optom. 2020;103(2):177-83.
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6Ambrósio Jr R. Multimodal imaging for refractive surgery: Quo vadis? Indian J Ophthalmol. 2020;68(12):2647-9.
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7Mol IE, Van Dooren BT. Toric intraocular lenses for correction of astigmatism in keratoconus and after corneal surgery. Clin Ophthalmol. 2016;10:1153-9.
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8Ton Y, Barrett GD, Kleinmann G, Levy A, Assia EI. Toric intraocular lens power calculation in cataract patients with keratoconus. J Cataract Refract Surg. 2021;47(11):1389-97.
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9Goto S, Maeda N. Corneal topography for intraocular lens selection in refractive cataract surgery. Ophthalmology. 2021;128(11):e142-52.
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10Hemmati HD, Gologorsky D, Pineda R 2nd. Intraoperative wavefront aberrometry in cataract surgery. Semin Ophthalmol. 2012;27(5-6):100-6.
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11Hill WE, Abulafia A, Wang L, Koch DD. Pursuing perfection in IOL calculations. II. Measurement foibles: Measurement errors, validation criteria, IOL constants, and lane length. J Cataract Refract Surg. 2017;43(7):869-70.
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12Ambrósio R Jr, Machado AP, Leão E, Lyra JM, Salomão MQ, Esporcatte LG, et al. Optimized Artificial Intelligence for Enhanced Ectasia Detection Using Scheimpflug-Based Corneal Tomography and Biomechanical Data. Am J Ophthalmol. 2023;251:126-42.
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13Gutierrez L, Lim JS, Foo LL, Ng WY, Yip M, Lim GY, et al. Application of artificial intelligence in cataract management: current and future directions. Eye Vis (Lond). 2022;9(1):3. Erratum in: Eye Vis (Lond). 2022;9(1):11.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
19 Ago 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
30 Jan 2024 -
Aceito
28 Abr 2024