RESUMO
A oftalmologia tem atribuído importância crescente à visão funcional na preservação da autonomia do paciente e no aumento da sua qualidade de vida. Estudos nas áreas da geriatria e psiquiatria demonstram que a deficiência visual adquirida tem impactos negativos ao nível da saúde mental dos pacientes e na diminuição de sua autonomia, e a prevenção da deficiência visual adquirida e o tratamento precoce, sempre que indicado, terão impactos positivos na manutenção de um estilo de vida saudável e ativo.
Transtornos da visão; Baixa visão; Qualidade vida; Idoso; Autonomia pessoal; Atividades cotidianas
ABSTRACT
Ophthalmology has attributed increasing importance to Functional Vision in preserving patient autonomy and increasing their quality of life. Studies in the areas of geriatrics and psychiatry demonstrate that acquired visual impairment has negative impacts on the mental health of users and on the reduction of their autonomy, so that prevention of acquired visual impairment and early treatment, whenever indicated, will have positive impacts on maintaining a healthy and active lifestyle.
Vision disorders, Vision, low; Quality of life, Aged; Personal autonomy; Activities of daily living
TER UMA BOA VISÃO É NEM DAR POR SUA FALTA
Essa capacidade, que a maioria da população dá como adquirida, tem tendência para se deteriorar ao longo da vida, como consequência do envelhecimento, de acidentes ou de patologias desenvolvidas. As repercussões que a deficiência visual acarreta no dia a dia de cada um podem ser diversas e com níveis de gravidade bastante elevados.
Neste artigo de pesquisa básica, com revisão de literatura, pretende-se compreender a importância da visão na autonomia e na qualidade de vida da população, tornando-se cada vez mais importante uma análise rigorosa sobre esse problema que afeta um número tão elevado de pessoas a nível mundial.
A PROBLEMÁTICA DA DEFICIÊNCIA VISUAL
Com o envelhecimento, a probabilidade de desenvolvimento de deficiência visual é muito elevada, acabando por limitar gradualmente a autonomia do indivíduo para a realização de algumas das suas atividades da vida diária (AVDs), podendo, em situações mais avançadas, culminar em deficiência visual grave ou cegueira. Essa deficiência visual ou incapacidade “refere-se às deficiências, limitações e restrições que uma pessoa com uma doença ocular enfrenta no curso da interação com o seu meio físico, social ou comportamental”.(1)
Segundo o Relatório Mundial sobre a Visão, lançado em 2021 pela Organização Mundial da Saúde (OMS),(1) adultos com deficiência visual “geralmente apresentam taxas mais baixas de participação e produtividade na força de trabalho (…) bem como maiores taxas de depressão e ansiedade do que a população em geral”. Já em faixas etárias mais avançadas, essa incapacidade pode “contribuir para o isolamento social, dificuldade em caminhar, maior risco de quedas e fraturas (…)”, além de maior probabilidade de institucionalização em lares e/ou apoio de Centro-Dia. A deficiência visual potencializa ainda a limitação da mobilidade e o declínio cognitivo do indivíduo.
Na revisão de literatura efetuada, constata-se que existe relação direta entre a deficiência visual adquirida e o aumento da incidência de quedas, o aumento da limitação funcional, o controle da postura e o equilíbrio no idoso,(2) bem como no aumento de seu grau de dependência, na diminuição da interação social e no desenvolvimento de quadros de depressão.(3) Santos, em revisão da literatura permite concluir que o indivíduo, que perde a visão devido a alguma doença ou acidente no decorrer da sua vida, apresenta sintomas e comportamentos característicos do transtorno depressivo como reação à cegueira e todo o processo de adaptação à nova realidade.(4)
Considerando a maior longevidade da população, o fato de grande parte das pessoas serem mais ativas até uma fase mais tardia da vida, o crescente leque de comorbilidades e que “um dos primeiros sistemas a sofrer o impacto do processo do envelhecimento fisiológico é o sistema sensorial e, particularmente, o visual, levando a deficiência visual e até mesmo a cegueira”,(5)é urgente valorizar a visão como um dos sentidos mais importantes na manutenção da qualidade de vida.
Aprofundando a análise do Relatório Mundial sobre a Visão,(1)pelo menos 2,2 bilhões de pessoas sofrem de deficiência visual, das quais 1 bilhão com deficiência visual moderada a grave, que poderia ter sido evitada ou ainda não foi tratada. Nessa última condição, 123,7 milhões de pessoas sofrem de erros refrativos não corrigidos e 65,2 milhões de pessoas de cataratas. Considerando que a maioria da população acima dos 70 anos desenvolverá cataratas, o número de pessoas que sofre dessa condição tenderá a aumentar substancialmente ao longo dos próximos anos.
Refletindo nos custos financeiros para o sistema de saúde, embora sejam elevados,(1) serão uma mais valia se considerarmos que proporcionar visão funcional ao paciente trará qualidade de vida; permitirá sua capacitação para a manutenção de suas AVDs e para sua autonomia; permitirá prevenir outros problemas de saúde associados, com impacto direto positivo no Sistema Nacional de Saúde; reduzirá as necessidade de institucionalização em lares ou recurso a apoios da comunidade; e diminuirá a sobrecarga dos cuidadores.
UM OLHAR SOBRE A VISÃO
A visão compreende um conjunto de fatores, que englobam acuidade visual, sensibilidade ao contraste e à cor, noção de profundidade e perceção de movimento. É o conjunto desses fatores que permite que o paciente obtenha o que chamamos de visão funcional. Sua avaliação permite medir a capacidade que cada indivíduo tem na realização das suas AVDs.
Dependendo das AVDs, são utilizadas três distâncias de visão distintas: a visão a curta distância, média distância e longa distância, sendo que, num paciente saudável, a transição visual entre elas é feita de forma perfeitamente natural pelo olho. O mesmo não acontece num paciente com catarata ou erros refrativos, em que a visão para uma ou mais distâncias fica comprometida, sendo necessário recorrer a tratamento oftalmológico para sua correção.
No entanto, quando falamos da importância da visão, existe uma questão a ser clarificada. É de senso comum que, quando é dito ao paciente que tem uma acuidade visual de 100%, correspondente a 10/10 de visão, a partida a sua visão funcional estará garantida. Mas será assim tão linear? A resposta a esta pergunta é não, ou seja, o paciente pode ter uma boa função visual, o que não significa que tenha uma visão funcional (Figura 1).
Se é fato que a acuidade visual é bastante importante, é também essencial ter em conta os restantes fatores associados à visão mencionados e perceber qual a distância de visão que o paciente privilegia e valoriza no seu dia a dia, para garantir a adequada visão funcional do paciente.
É importante compreender também a idade do paciente, se é uma pessoa ativa, se ainda trabalha ou desenvolve alguma atividade mais exigente ao nível da visão (Figura 2) e qual a personalidade e motivações da pessoa.
Se considerarmos que uma visão para perto compreende uma distância de visão até 40cm, uma visão intermédia uma distância entre 40cm e 80cm e uma visão para longe uma distância acima dos 80cm, importa compreender quais as AVDs mais realizadas pelo paciente ao longo do dia e suas expectativas, para que seja possível adaptar o tratamento às necessidades de cada paciente.
VISÃO FUNCIONAL, QUE FUTURO?
Quando consideramos a patologia da catarata, para além dos exames de diagnóstico, começa a ser adotado, em vários países, a escala Catquest-9SF(7) com o intuito de perceber a subjetividade da visão para o paciente. Não obstante, a utilização da escala Lawton e Brody(8) para avaliação das AVDs, bem como quantificar em conjunto com o paciente e sua família o tempo despendido diariamente na realização das diferentes AVD’s, permitirá certamente compreender qual o tipo de visão mais importante na capacitação e para satisfação do paciente, uma vez que, em muitas situações clínicas, o paciente não reúne condições para uma visão independente para todas as distâncias de visão.
A oferta de tecnologia para correção de catarata é cada vez mais vasta e complexa, permitindo o portfólio de lentes intraoculares adaptar cada vez mais a visão do paciente às suas necessidades.(9)
Motivados pela problemática e tirando partido do desenvolvimento científico na área da visão, a sensibilidade para a promoção da visão funcional começa a ser cada vez mais debatida e valorizada, passando o cuidado a ser mais centrado na satisfação do paciente e na sua condição visual, do que apenas na acuidade visual obtida após o tratamento.(10-12)
COMENTÁRIO
Neste sentido, e acreditando num conceito de valor associado à saúde, em que “o desafio é o de combinar a importância de obter os melhores resultados clínicos com a necessidade de satisfazer as expectativas específicas de cada indivíduo”,(13)a valorização da visão funcional assume um papel cada vez mais central na oftalmologia, em especial na cirurgia oftalmológica, orientando os resultados para as necessidades e as expectativas do paciente, de forma a que lhe seja possível recuperar sua autonomia e potenciar um estilo de vida ativo quer em pacientes em idade laboral, quer nos pacientes mais idosos.
REFERÊNCIAS
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1 World Health Organization (WHO). Relatório mundial sobre a visão. Geneva: WHO; 2021 [citado 2022 Jul 13]. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/328717/9789241516570-por.pdf
» https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/328717/9789241516570-por.pdf - 2 Macedo BG, Pereira LS, Gomes PF, Silva JP, Castro NA. Bárbara G. Impacto das alterações visuais nas quedas, desempenho funcional, controle postural e no equilíbrio dos idosos: uma revisão de literatura. Rev Bras Geriatr Gerontol. 2008;11(3):419-32.
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3 Instituto de Olhos Eduardo Paulino. Estudo associa doenças oculares e depressão. 2019 [13 Jul 2023]. Disponível em: https://eduardopaulino.com.br/estudo-associa-doencas-oculares-e-depressao/
» https://eduardopaulino.com.br/estudo-associa-doencas-oculares-e-depressao/ - 4 Santos TC. Deficiência visual adquirida e transtorno depressivo: a depressão como um aspeto psicológico do indivíduo que perde a visão. Rev Cient Multidiscipl Núcleo Conhec. 2007;3(3):101-14.
- 5 Pretto C, Bagatini MD, Baesso JV, Bonadiman BS. Influência da visão na qualidade de vida dos idosos e medidas preventivas a deficiências visuais. Braz J Health Rev. 2020;3(3).
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6 Franco MA. Avaliação da função visual ou avaliação da visão funcional? Visão na Infância. 2019 [citado 2023 Jul 13]. Disponível em: https://www.visaonainfancia.com/avaliacao-da-visao-funcional/
» https://www.visaonainfancia.com/avaliacao-da-visao-funcional/ - 7 Lundström M, Kugelberg M, Montan P, Nilsson I, Zetterberg M, Pesudovs K, Behndig A. Catquest-9SF functioning over a decade - a study from the Swedish National Cataract Register. Eye Vis (Lond). 2020;7(1):56.
- 8 Graf C. The Lawton Instrumental Activities of Daily Living (IADL) Scale. Medsurg Nurs. 2009;18(5):315-6.
- 9 Alarcon A, Cánovas C, Koopman B, Weeber H, Auffarth GU, Piers PA. Enhancing the intermediate vision of monofocal intraocular lenses using a higher order aspheric optic. J Refract Surg. 2020;36(8):520-527.
- 10 Ribeiro F. The importance of functional vision in cataract surgery. In: Individualizing, Patients Outcomes for presbyopia correcting IOLS. EuroTimes Supplment. 2023:3.
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11 Passos AC. Cataract surgery and Functional Vision: The challenge of a more objective approach in pre-operative evaluation. Lisboa: Faculdade de Medicina de Lisboa; 2021 [ citado 2023 Jul 14]. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/51228/1/AnaCPassos.pdf
» https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/51228/1/AnaCPassos.pdf -
12 Silva AF. Desempenho visual e funcional de uma nova lente de foco estendido versus lentes intraoculares multifocal e monofocal [dissertação]. Lisboa: Universidade de Coimbra; 2021 [citado 2023 Jul 14]. Disponível em: https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/98508
» https://estudogeral.uc.pt/handle/10316/98508 -
13 Basto F. O conceito de valor em saúde. Observador; 2021 [ citado 2023 Jul 14]. Disponível em: https://observador.pt/opiniao/o-conceito-de-valor-em-saude
» https://observador.pt/opiniao/o-conceito-de-valor-em-saude
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Instituição de realização do trabalho: Hospital Garcia de Orta, Almada, Portugal.
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Fonte de auxílio à pesquisa: não financiado.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
25 Maio 2023 -
Aceito
15 Jul 2023