Resumos
A fibrodisplasia ossificante progressiva (FOP) é uma doença genética rara, atinge um indivíduo a cada dois milhões de nascimentos e tem como principal consequência a ossificação heterotópica: formação de ossos extras em locais indevidos. Trata-se de uma doença autossômica dominante, geralmente resultado de uma mutação nova no gene do receptor ACVR1 no caminho da sinalização da proteína osteomorfogênica. Esta anormalidade não tem relação com sexo, etnia ou consanguinidade. O presente trabalho relata o caso de de A.C., 17 anos, cuja investigação iniciou-se aos quatro anos de idade, mas cujo diagnóstico de FOP foi firmado aos 15 anos, depois de passar por vários especialistas em diferentes centros. A paciente faz parte de uma família de três irmãos, cuja antecedência não revela casos semelhantes.
Miosite Ossificante; Ossificação Heterotópica; proteína ACVR1; Genética
Progressive ossifying fibrodysplasia is a rare genetic disease that affects one individual in every two million births. Its main consequence is heterotopic ossification, i.e. formation of additional bone in abnormal locations. It is an autosomal dominant disease, usually caused by a new mutation in the ACVR1 receptor gene, which is in the signaling pathway for bone morphogenic protein. This abnormality is not related to gender, ethnicity or consanguinity. The present study reports the case of A.C., a 17-year-old girl. Her clinical investigation began at the age of four years, but she was only diagnosed with FOP at the age of 15 years, after being evaluated by several specialists in different centers. The patient has two siblings, but her family history did not reveal any similar cases.
Myositis Ossificans; Ossification, Heterotopic; ACVR1 Protein; Genetics
RELATO DE CASO
Fibrodisplasia ossificante progressiva: relato de caso
Fabiana RomaniI; Simone de Menezes KaramII
IAcadêmica de Medicina do Sexto Ano da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) - Rio Grande, RS, Brasil
IIProfessora da Área Materno-Infantil da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Rio Grande (FURG) - Rio Grande, RS, Brasil
Correspondência Correspondência: Rua Dom Bosco, 1.017, bloco 4, ap. 215, bairro Hidráulica 96211-092 - Rio Grande, RS E-mail: fabyromani@yahoo.com.br
RESUMO
A fibrodisplasia ossificante progressiva (FOP) é uma doença genética rara, atinge um indivíduo a cada dois milhões de nascimentos e tem como principal consequência a ossificação heterotópica: formação de ossos extras em locais indevidos. Trata-se de uma doença autossômica dominante, geralmente resultado de uma mutação nova no gene do receptor ACVR1 no caminho da sinalização da proteína osteomorfogênica. Esta anormalidade não tem relação com sexo, etnia ou consanguinidade. O presente trabalho relata o caso de de A.C., 17 anos, cuja investigação iniciou-se aos quatro anos de idade, mas cujo diagnóstico de FOP foi firmado aos 15 anos, depois de passar por vários especialistas em diferentes centros. A paciente faz parte de uma família de três irmãos, cuja antecedência não revela casos semelhantes.
Descritores: Miosite Ossificante; Ossificação Heterotópica; proteína ACVR1; Genética
INTRODUÇÃO
Os portadores da FOP podem ser reconhecidos como pessoas que formam dois esqueletos: um deles no lugar normal, que se desenvolve durante a fase de formação do embrião; e outro em local anormal, que se desenvolve após o nascimento(1). Ao nascer, o esqueleto da criança é aparentemente normal; porém, já costuma exibir os primeiros sinais da doença, que são malformações esqueléticas variadas, sendo a principal delas a malformação dos háluces(2). Essa característica está presente em 95% dos pacientes com FOP. Pode-se também encontrar outras malformações no esqueleto, como defeitos na coluna cervical, polegares curtos e osteocondromas na porção proximal das tíbias.
A doença costuma iniciar no pescoço e nos ombros e progride para as costas, tronco e membros.
Os sintomas começam a aparecer antes dos 20 anos de idade, frequentemente antes dos 10 anos. Caracterizam-se por inchaços avermelhados nos ombros e costas que desaparecem com o tempo, mas que deixam um osso no local onde havia a inflamação. Os joelhos e quadril comumente são afetados na adolescência e início da idade adulta.
Os ossos formados pela FOP são resultado da transformação progressiva de tecidos moles em cartilagem e osso. É um processo idêntico ao da regeneração óssea pós-fratura. O organismo pode passar meses sem formar novos ossos, como se a doença estivesse adormecida; porém, sem aviso prévio e sem qualquer lesão ou trauma, ossos podem surgir em locais inesperados (ligamentos, músculos, tendões). Como consequência, o movimento nas áreas afetadas se torna difícil ou impossível. A neoformação óssea é designada surto ou flare up. Esse processo geralmente é doloroso, acompanhado de febre baixa e não há qualquer medicação que possa impedi-lo, uma vez que já tenha iniciado. O edema local pode ter vários fatores causais:
Ocorrência dos surtos ou flare up;
Restrição dos movimentos dificultando o bombeamento do sangue no interior dos músculos ossificados;
Compressão das veias e vasos linfáticos pelos ossos novos;
Formação de coágulo sanguíneo.
Segundo estudos, os ossos extras podem gerar complicações cardiopulmonares, principalmente quando associadas a quadros gripais ou infecciosos. Por este motivo, todas as infecções, devem ser tratadas agressivamente nesses pacientes. Alguns pacientes podem apresentar sobrecarga cardíaca direita em virtude da hipertensão pulmonar que desenvolvem, o chamado Cor Pulmonale(3).
Os sinais radiológicos evidentes da FOP são calcificações anormais tanto em pododáctilos quanto em quirodáctilos, gerando malformações e traves ósseas. Também é relevante a presença de hálux valgo e outras alterações desse pododáctilo. Além disso, fusões vertebrais e presença de osteocondromas já foram relatadas nesses pacientes(4). De forma geral, esse "neoesqueleto" gera complicações odontomorfológicas, limitações na mobilidade, comprometimento cardiopulmonar e sobrecarga cardíaca direita.
RELATO DE CASO
Paciente de quatro anos de idade encaminhada pelo ortopedista ao Serviço de Genética Médica do HCPA em 1998 para investigação. Apresentava dificuldades para movimentar membros e pescoço, as quais eram progressivas e, além disso, pequenos "tumores ósseos" no dorso. Tais manifestações clínicas foram associadas ao quadro de espinha rígida e permaneceu em acompanhamento ambulatorial. Depois de passar por vários especialistas em diferentes centros, foi reavaliada e solicitada radiografia de todo o seu esqueleto. Assim, seis anos após a primeira hipótese diagnóstica e 10 anos após o início dos sintomas, foi firmado o diagnóstico de fibrodisplasia ossificante progressiva (FOP). No entanto, antes da conclusão diagnóstica, a paciente foi submetida a fisioterapia, procedimentos odontológicos e anestésicos que não trouxeram benefícios e, ao contrário, promoveram algumas ossificações.
Quanto aos antecedentes familiares, não foram observados casos semelhantes ou que possam ter relação com a referida doença. A paciente é constituinte de uma família de três irmãos hígidos (Figura 1).
O diagnóstico foi baseado nos achados característicos evidenciados no exame clínico e nos exames de imagem. No exame físico, a paciente apresentava hálux malformado, característica clássica da FOP, e formação de "protuberâncias" em regiões de tecidos moles mais superficiais pelo corpo (Figura 2), alterações importantes de mobilidade (marcha, elevação e extensão dos membros superiores) e de fala também. Certa dificuldade respiratória também está presente, em virtude principalmente da diminuição da expansibilidade pulmonar. À radiografia de tórax e de membros superiores foram observadas ossificações em regiões de tecidos moles (junto às escápulas, ombros e tíbia), havendo formação de pontes ósseas (Figuras 3, 4 e 5). À radiografia de pés foi constatado o achado característico de encurtamento dos háluces (Figura 6). Na tomografia computadorizada de crânio pôde ser visualizada importante diminuição da amplitude da movimentação mandibular (Figura 7).
Além dos achados já mencionados, a paciente foi submetida a coleta de material para análise molecular de DNA e segue em acompanhamento clínico ambulatorial.
DISCUSSÃO
É de suma importância compreender que a FOP deve ser prontamente identificada, baseando-se apenas na história clínica, no exame físico e nos achados radiográficos, pois não devem ser feitos procedimentos invasivos para determinação diagnóstica, tais como biópsias, excisionais ou não, uso de anestésicos, e, inclusive, os tratamentos odontológicos são contraindicados, já que, com frequência, desencadeiam ossificações na região. Dados recentes revelaram que 67% dos pacientes com FOP foram submetidos a procedimentos invasivos e 68% receberam tratamentos desnecessários(5), como foi o caso da paciente em questão. O encurtamento do hálux não foi observado em algumas das avaliações realizadas e, em outras, foi observado mas não relacionado à FOP. Embora esse tipo de malformação possa ocorrer em outras condições genéticas ou como uma malformação congênita isolada, deve sempre remeter à possibilidade diagnóstica de FOP(4).
Ainda não há cura para essa doença e seu prognóstico é pobre, já que os atuais tratamentos ainda são apenas sintomáticos. A expectativa de vida desses pacientes, entretanto, costuma ser longa, já que muitos deles não desenvolvem grandes comorbidades. Complicações respiratórias pela formação de fitas ósseas que circundam e imobilizam o tórax (síndrome restritiva), ou desnutrições graves causadas por dificuldades no ato de alimentar-se, podem limitar o tempo de vida dos pacientes com FOP. De qualquer forma, essas pessoas atingem a idade adulta, podendo chegar até os 70 anos, quando os surtos são pouco frequentes. No entanto, o ritmo da doença varia de paciente para paciente. Infelizmente, a maioria dos afetados encontra-se confinada à cadeira-de-rodas ou ao leito por volta da segunda década de vida, pois os ossos extras vão progressivamente criando pontes entre as articulações causando imobilidade.
Outro cuidado importante é manter a higiene, especialmente dentária, pois dessa forma evitaremos problemas odontológicos futuros, cujos tratamentos são grandes vilões para esses pacientes, por serem potenciais desencadeantes de flare ups e consequentes ossificações heterotópicas(3).
Apesar de todas as limitações a que esses indivíduos estão sujeitos, atividades socializadoras devem ser incentivadas, tais como o lazer, o trabalho e o convívio familiar e social, levando em conta, claramente, os devidos cuidados com traumatismos, prolongando, portanto, o bem-estar do paciente. Nesse contexto, é imprescindível citarmos iniciativas de mérito como o da International
Fibrodysplasia Ossificans Progressiva Association (IFOPA), cujos fundamentos são a inserção desses pacientes na sociedade e o fato de tornar pública a existência dessa enfermidade, para que a população de forma geral e também os próprios familiares compreendam as limitações, mas, principalmente, a necessidade de os pacientes com FOP terem uma vida menos restrita e mais feliz(6).
Por fim, a descoberta do gene responsável pelo desenvolvimento da doença trouxe perspectivas de tratamento a longo prazo e não apenas paliativas como as utilizadas no presente momento(4).
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem ao Dr. Renato Barbosa Xavier, responsável pelo encaminhamento da paciente ao nosso serviço.
Trabalho recebido para publicação: 05/10/2010, aceito para publicação: 26/11/2010.
Trabalho realizado na Área Acadêmica do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Júnior da Universidade Federal de Rio Grande (FURG). Endereço: Rua Visconde de Paranaguá, 102, Centro 96200-190 - Rio Grande, RS.
Os autores declaram inexistência de conflito de interesses na realização deste trabalho / The authors declare that there was no conflict of interest in conducting this work
Este artigo está disponível online nas versões Português e Inglês nos sites: www.rbo.org.br e www.scielo.br/rbort
- 1. Shafritz AB, Shore EM, Gannon FH, Zasloff MA, Taub R, Muenke M, et al. Overexpression of an osteogenic morphogen in fibrodysplasia ossificans progressiva. N Engl J Med. 1996;335(8):555-61.
- 2. Gonçalves AL, Masruhsa MR, Campos CC, Delai PLR; Vilanova LCP. Fibrodysplasia ossificans progressiva. Arq Neuropsiquiatr. 2005; 63(4):1090-3.
- 3. Wagman RB, Kantanie SL, Kaplan FS. O q é FOP? Um guia para famílias. 2003.
- 4. Kaplan FS, Xu M, Glaser DL, Collins F, Connor M, Kitterman J, et al. Early diagnosis of fibrodysplasia ossificans progressiva. Pediatrics. 2008;121(5):e1295-300.
- 5. Kitterman JA, Kantanie S, Rocke DM, Kaplan FS. Iatrogenic harm caused by diagnostic errors in fibrodysplasia ossificans progressiva. Pediatrics. 2005;116(5):e654-61.
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6International Fibrodysplasia Ossificans Progressiva Association (IFOPA). FOP Conection; 2004.
Correspondência:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Fev 2012 -
Data do Fascículo
2011
Histórico
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Aceito
26 Nov 2010 -
Recebido
05 Out 2010