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Fratura diafisária da tíbia e lesão do tornozelo - Relato de caso Trabalho desenvolvido no Grupo de Cirurgia do Trauma, Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

RESUMO

Os autores relatam um caso de fratura diafisária de tíbia associado à lesão do tornozelo. As características clínicas, radiológicas e cirúrgicas são discutidas. A avaliação de lesões associadas são muitas vezes negligenciadas e de difícil diagnóstico. Quando um torque no membro inferior ocorre, o tornozelo fica suscetível a uma lesão simultânea. É essencial uma avaliação cuidadosa baseada no aspecto clínico, radiográfico, intra e pós-operatório para recuperação funcional.

Palavras-chave:
Fixação interna de fraturas; Instabilidade articular; Tornozelo

ABSTRACT

The authors report on a case of tibial shaft fracture associated with ankle injury. The clinical, radiological and surgical characteristics are discussed. Assessment of associated injuries is often overlooked and these injuries are hard to diagnose. When torque occurs in the lower limb, the ankle becomes susceptible to simultaneous injury. It is essential to make careful assessment based on clinical, radiographic, intraoperative and postoperative characteristics in order to attain functional recovery.

Keywords:
Internal fracture fixation; Joint instability; Ankle

Introdução

A primeira descrição da associação de fraturas diafisárias da tíbia com lesão adicional do tornozelo foi feita por Weber11. Weber BG. Injury of the ankle joint. Huber: Bern Stuttgart Wien; 1972. em 1972. Pelo fato de a lesão da tíbia ser visível e óbvia, uma potencial lesão associada no tornozelo pode ser negligenciada. A instabilidade da sindesmose tibiofibular distal pode levar à subluxação do tálus. Uma vez não diagnosticada, uma artrose do tornozelo pode se instalar apesar do tratamento feito para a fratura diafisária da tíbia apresentar excelente redução, estabilização e consolidação.22. Georgiadis GM, Ebraheim NA, Hoefllinger MJ. Displacement of the posterior malleollus during intramedullary tibia nailing. J Trauma. 1996;41(6):1056-8.

Relato clínico

Paciente do sexo masculino, com 28 anos, vítima de acidente motociclístico, com fratura exposta dos ossos da perna direita (fig. 1), classificada como Gustilo IIIA.33. Gustilo RB, Anderson JT. Prevention of infection in the treatment of one thousand and twenty-five open fractures of long bones: retrospective and prospective analyses. J Bone Joint Surg Am. 1976;58(4):453-8. Foi submetido a limpeza, lavagem do membro, desbridamento das lesões teciduais e fixação externa dos ossos da perna de forma transarticular na articulação do tornozelo com o objetivo do controle de dano local.

Figura 1
Imagem da fratura exposta diafisária dos ossos da perna sem evidência de lesão na articulação do tornozelo.

No sexto dia de evolução após o trauma, com a melhoria do envoltório de partes moles do membro inferior esquerdo, foi feita a fixação interna com haste intramedular bloqueada na fratura da tíbia. Durante o ato cirúrgico observou-se a luxação anterior da articulação tibiotársica (fig. 2A e B). Optou-se pela redução aberta e fixação interna da fratura-luxação do tornozelo com placa e parafusos na fíbula, comprovou-se a incompetência da sindesmose do tornozelo com o teste de Cotton44. Cotton FJ. Fractures and joint dislocations. Philadelphia: WB Saunders; 1910. positivo. Associamos a estabilização da pinça articular tibiofibular com um parafuso de situação, incluindo as corticais da fíbula e a cortical lateral da tíbia, proximal à articulação tibiofibular distal, sem a abordagem direta dessa. A revisão das radiografias finais no pós-operatório do primeiro dia demonstrou uma incongruência articular da fíbula, que tinha traço de fratura multifragmentário. A tomografia axial computadorizada do tornozelo permitiu confirmar a existência de subluxação tibiofibular anterior (fig. 3A e B).

Figura 2
Imagem radiográfica após a inserção da haste intramedular, que evidencia luxação do tornozelo e instabilidade ligamentar. (A) Imagem em anteroposterior; (B) Imagem em perfil.

Figura 3
(A) Imagem radiográfica após a redução aberta e fixação interna da fíbula com um parafuso suprasindesmal tricortical em anteroposterior; (B) Corte axial da tomografia que demonstra a incongruência na articulação tibiofibular distal e subluxação dela.

Durante a internação, seis dias após o ato operatório, o paciente foi submetido ao terceiro procedimento cirúrgico, na busca da redução aberta, reconstrução ligamentar e estabilização da articulação tibiofibular distal após revisão das osteossínteses anteriores.

No ato operatório, observamos a avulsão da cápsula articular da articulação do tornozelo na região superior e lateral, assim como do ligamento tibiofibular anterior (fig. 4). A tática cirúrgica adotada foi retirada da placa da fíbula para a revisão da redução da fratura do tornozelo.

Figura 4
Imagem clínica intraoperatória que demonstra a cápsula articular rota, assim como o ligamento tibiofibular anterior.

Por visão direta procedemos à redução da fíbula distal à incisura fibular da tíbia e a fixamos provisoriamente na articulação com fio de Kirschner liso (fig. 5). Comprovada a redução articular, passou-se à osteossíntese da fratura da fíbula, por meio de placa de reconstrução longa, pois comprovamos uma falha óssea na região da fragmentação da fratura. Para a reconstrução da falha usamos enxerto ósseo esponjoso autólogo. No tornozelo, foi feita a sutura da cápsula articular, do ligamento tibiofibular anterior e da sindesmose anterior. Para a proteção da reconstrução ligamentar foram aplicados dois parafusos de situação. A haste intramedular bloqueada usada para o tratamento da fratura da diáfise da tíbia que seguia sem intercorrência foi mantida.

Figura 5
Imagem intraoperatória da estabilização provisória após a redução aberta da articulação tibiofibular distal.

A movimentação ativa do tornozelo foi estimulada imediatamente após o procedimento. Após oito semanas do último procedimento, os parafusos de posição da articulação tibiofibular distal foram retirados.

O paciente mantém-se sem queixas dolorosas, deambula com carga plena e sem auxílio. A amplitude de movimento no fim do tratamento é de 20° de dorsiflexão e 40° de flexão plantar, simétrica ao contralateral. A avaliação funcional final foi excelente, totalizou 99 pontos após a aplicação do questionário American Orthopaedic Foot and Ankle Society (Aofas) Ankle-Hindfoot Scale.

Discussão

As fraturas diafisárias da tíbia associadas às lesões ligamentares no tornozelo apresentam um potencial elevado de instabilidade, são frequentemente negligenciadas, com risco de complicações como o desenvolvimento de osteoartrose secundária e desempenho funcional desfavorável quando não diagnosticadas e tratadas.22. Georgiadis GM, Ebraheim NA, Hoefllinger MJ. Displacement of the posterior malleollus during intramedullary tibia nailing. J Trauma. 1996;41(6):1056-8.and55. Stuermer EK, Stuermer KM. Tibial shaft fracture and ankle joint injury. J Orthop Trauma. 2008;22(2):107-12.

No nosso paciente, a avaliação intraoperatória com teste de Cotton mostrou ser suficiente e eficiente para a avaliação da sindesmose, dispensou outros exames para comprovar a incompetência ligamentar.66. Stoffel K, Wysocki D, Baddour E, Nicholls R, Yates P. Comparison of two intraoperative assessment methods for injuries to the ankle syndesmosis. A cadaveric study. J Bone Joint Surg Am. 2009;91(11):2646-52.

As radiografias de controle após a segunda cirurgia mostraram a subluxação do tornozelo, embora não tenha sido percebida no momento final do ato operatório. A tomografia computadorizada do tornozelo confirmou a má redução e tornou possível identificar o trajeto percorrido pelo parafuso de situação com disposição inadequada. Demonstrou ser ferramenta auxiliar eficaz, não só elucidou possível dúvida diagnóstica ao avaliarmos os cortes axiais77. Schwarz N, Köfer E. Postoperative computed tomography - based control of syndesmotic screws. Eur J Trauma. 2005;31(3):66-70. como foi útil no planejamento do tratamento definitivo.

A estabilização intraoperatória com fios de Kirschner temporários é, na literatura, a opção às pinças, com relato de diminuição nas taxas de má redução da sindesmose negligenciada, conforme a técnica empregada no terceiro procedimento operatório no caso descrito.77. Schwarz N, Köfer E. Postoperative computed tomography - based control of syndesmotic screws. Eur J Trauma. 2005;31(3):66-70. A redução adequada da articulação tibiofibular distal tem mostrado ser fator prognóstico importante para o desfecho funcional nas lesões de tornozelo com lesão da sindesmose.77. Schwarz N, Köfer E. Postoperative computed tomography - based control of syndesmotic screws. Eur J Trauma. 2005;31(3):66-70.,88. Nimick CJ, Collman DR, Lagaay P. Fixation orientation in ankle fractures with syndesmosis injury. J Foot Ankle Surg. 2013;52(3):315-8.and99. Sagi HC, Shah AR, Sanders RW. The functional consequence of syndesmotic joint malreduction at a minimum 2 -year follow- up. J Orthop Trauma. 2012;26(7):439-43.

As variáveis possíveis no emprego dos parafusos de situação, os que protegem o reparo ligamentar da articulação do tornozelo durante o movimento livre, são tema de debate. A quantidade, o diâmetro e a fixação em três ou quatro corticais seguem na literatura.1010. Moore JA Jr, Shank JR, Morgan SJ, Smith WR. Syndesmosis fixation: a comparison of three and four cortices of screw fixation without hardware removal. Foot Ankle Int. 2006;27(8):567-72. A opção no nosso paciente para o emprego de dois parafusos de 3,5 mm deveu-se à má qualidade da fixação do primeiro a ser instalado, o tricortical mais distal, que atingiu à tíbia na zona metafisária em que a cortical lateral era delgada.

A literatura sugere que não há diferenças no desfecho entre os pacientes submetidos à retirada ou não dos parafusos suprassindesmais de situação antes da marcha com apoio livre do membro.1111. Schepers T. To retain or remove the syndesmotic screw: a review of literature. Arch Orthop Trauma Surg. 2011;131(7):879-83. Em nosso paciente procedemos à retirada dos parafusos após oito semanas.

A função articular encontra-se adequada, simétrica e sem queixas, no acompanhamento em curto prazo. Não imaginamos motivo para evolução diversa das demais fraturas do tornozelo que após a consolidação não costumam apresentar deterioração quando as relações fisiológicas e biomecânicas estão mantidas.

Conclusão

A avaliação das lesões do tornozelo associadas às fraturas diafisárias da tíbia é descrita na literatura como negligenciada pelo difícil diagnóstico e aconteceu conosco. É necessária a avaliação cuidadosa baseada tanto no aspecto clínico como no radiográfico no pré e intraoperatório, com a lembrança da possibilidade da lesão associada.

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  • Trabalho desenvolvido no Grupo de Cirurgia do Trauma, Departamento de Ortopedia e Traumatologia, Santa Casa de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2016

Histórico

  • Recebido
    14 Ago 2015
  • Aceito
    31 Ago 2015
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