Acessibilidade / Reportar erro

Fratura espontânea bilateral do colo femoral em paciente com osteodistrofia renal Trabalho desenvolvido no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil.

Resumos

Relatamos um caso de fratura bilateral do colo femoral em paciente com osteodistrofia renal tratada com osteossíntese. Nesse tipo de paciente, é necessário estar atento à possibilidade de ocorrência de fraturas espontâneas do colo femoral, mesmo com exame radiográfico inicial normal.

Fraturas do colo femoral; Osteodistrofia renal; Fixação de fratura


We report a case of bilateral fracturing of the femoral neck in a patient with renal osteodystrophy who was treated by means of osteosynthesis. In this type of patient, there is a need to remain watchful for the possibility of occurrences of spontaneous fracturing of the femoral neck, even if the initial radiographic examination is normal.

Fractures of the femoral neck; Renal osteodystrophy; Fracture fixation


Introdução

As fraturas patológicas bilaterais do colo femoral já estão bem descritas na literatura,11. Kalaci A, Yanat AN, Sevinç TT, Doğramaci Y. Insufficiency fractures of both femoral necks in a young adult caused by osteoporosis: a case report. Arch Orthop Trauma Surg. 2008;128(8):865-8.,22. Voss L, DaSilva M, Trafton PG. Bilateral femoral neck stress fractures in an amenorrheic athlete. Am J Orthop (Belle Mead NJ). 1997;26(11):789-92. porém aquelas relacionadas especificamente à osteodistrofia renal são raras.33. Karapinar H, Ozdemir M, Akyol S, Ulkü O. Spontaneous bilateral femoral neck fractures in a young adult with chronic renal failure. Acta Orthop Belg. 2003;69(1):82-5.Relatamos um caso de paciente adulta com insuficiência renal crônica e osteodistrofia renal que apresentou fratura bilateral espontânea do colo femoral tratada com fixação interna e cujas radiografias iniciais eram normais.

Relato do caso

Paciente do gênero feminino, 43 anos, foi internada para um segundo transplante renal. Apresentava antecedente de insuficiência renal crônica havia nove anos, de etiologia desconhecida, e fora submetida havia oito anos a um primeiro transplante renal, que falhou em virtude de estenose da artéria renal. Foi removido esse rim transplantado quatro meses depois; desde então a paciente vivia sob hemodiálise. Também apresentava insuficiência cardíaca congestiva, em tratamento com anti-hipertensivos e diuréticos. No mês anterior à internação foi também diagnosticada com hiperparatireoidismo secundário e apresentava hipocalcemia (7,1 mg/dL, valor normal: 8,4-10,5 mg/dL) e valores extremamente elevados de paratormônio (> 2.500 pg/mL, valor normal: 10-69 pg/mL). Foi iniciada terapia com calcitriol por via oral (três doses de 7 μg por semana).

Três semanas após o segundo transplante renal, ainda internada, a paciente queixou-se de dor súbita e contínua no quadril esquerdo, sem qualquer traumatismo, e que a impedia de caminhar. Ela apresentava um arco de movimento completo, porém doloroso nesse quadril, sem atitude antálgica; o exame físico do quadril direito era completamente normal. Radiografias nessa ocasião evidenciaram redução do grupo principal do trabeculado de tensão no fêmur proximal (índice de Singh grau 4), rarefação óssea difusa, espessamento do periósteo nas corticais femorais e protrusão acetabular, achados relacionados à osteodistrofia renal; nenhum traço de fratura estava presente (fig. 1). Suspeitamos de provável fratura oculta do colo do fêmur esquerdo e uma ressonância magnética nuclear (RMN) foi solicitada. A paciente foi orientada a permanecer em repouso no leito até o exame.

Figura 1
Radiografia inicial em anteroposterior da bacia. Nenhuma fratura foi identificada.

Cinco dias após essa primeira avaliação, a paciente apresentou dor no quadril direito e pioria da dor no quadril esquerdo. Novas radiografias foram solicitadas e demonstraram fratura incompleta da superfície superior do colo femoral, bilateralmente (fig. 2). A RMN foi então cancelada.

Figura 2
Radiografia anteroposterior da bacia cinco dias após o exame inicial que evidencia fratura incompleta bilateral do colo femoral (setas).

Dois dias após esse diagnóstico, a paciente foi submetida a osteossíntese. Foi posicionada em decúbito dorsal horizontal em mesa radiotransparente e imagens dos quadris foram obtidas com o intensificador de imagens. Usamos uma incisão reta de 4 cm na face lateral de cada quadril, imediatamente distal à região mais proeminente do trocânter maior. Fios guias foram introduzidos e as fraturas, fixadas com parafusos canulados. Usamos somente dois parafusos canulados de 7 mm em cada quadril, de acordo com o que havíamos planejado no pré-operatório, uma vez que o colo femoral era bastante estreito.

A paciente recebeu alta hospitalar duas semanas após a osteossíntese, sem dor e com arco de movimento dos quadris quase completo. Foi mantida sem carga nos membros inferiores e avaliada clínica e radiograficamente uma vez ao mês em regime ambulatorial, até o quinto mês após a osteossíntese, quando as radiografias demonstraram consolidação óssea completa (fig. 3). Nessa avaliação aos cinco meses de pós-operatório ela foi orientada a usar um andador e, no mês subsequente, foi autorizada a deambular com carga total, sem apoio externo. Ela foi vista pela última vez um ano após a osteossíntese, sem qualquer queixa.

Figura 3
Radiografia em anteroposterior da bacia cinco meses após a osteossíntese que demonstra consolidação das fraturas.

Discussão

A osteodistrofia renal é uma condição relativamente comum e uma das maiores causas de morbidade em pacientes sob tratamento dialítico para insuficiência renal ou mesmo após o transplante renal.

A azotemia crônica tem um efeito marcante no metabolismo da vitamina D, no cálcio, no fósforo e na secreção do paratormônio e todas essas alterações metabólicas levam à remodelação óssea patológica observada na osteodistrofia renal.44. Mankin HJ. Rickets osteomalacia and renal osteodystrophy. An update. Orthop Clin North Am. 1990;21(1):81-96. Ao contrário da osteopenia e da osteoporose observadas nesses pacientes, as fraturas patológicas do colo femoral são geralmente sintomáticas.55. Singh M, Nagrath AR, Maini PS. Changes in trabecular pattern of the upper end of the femur as an index of osteoporosis. J Bone Joint Surg Am. 1970;52(3):457-67.Diversos casos de fraturas do colo femoral em pacientes com osteodistrofia renal já foram relatados,11. Kalaci A, Yanat AN, Sevinç TT, Doğramaci Y. Insufficiency fractures of both femoral necks in a young adult caused by osteoporosis: a case report. Arch Orthop Trauma Surg. 2008;128(8):865-8.,33. Karapinar H, Ozdemir M, Akyol S, Ulkü O. Spontaneous bilateral femoral neck fractures in a young adult with chronic renal failure. Acta Orthop Belg. 2003;69(1):82-5.,66. Schaab PC, Murphy G, Tzamaloukas AH, Hays MB, Merlin TL, Eisenberg B, et al. Femoral neck fractures in patients receiving long-term dialysis. Clin Orthop Relat Res. 1990;260:224-31.,77. Taylor LJ, Grant SC. Bilateral fracture of the femoral neck during a hypocalcaemic convulsion. A case report. J Bone Joint Surg Br. 1985;67(4):536-7. mas casos bilaterais são raros.33. Karapinar H, Ozdemir M, Akyol S, Ulkü O. Spontaneous bilateral femoral neck fractures in a young adult with chronic renal failure. Acta Orthop Belg. 2003;69(1):82-5.

Apesar de as fraturas incompletas do colo femoral serem passíveis de tratamento conservador, optamos pela osteossíntese para reduzir a possibilidade de desvio dessas fraturas e, consequentemente, a necessidade de cirurgias mais extensas e complexas, uma vez que diversos autores relataram elevado índice de complicações, incluindo morte, em pacientes que necessitaram de artroplastia do quadril enquanto estavam sob tratamento dialítico para insuficiência renal crônica.88. Sunday JM, Guille JT, Torg JS. Complications of joint arthroplasty in patients with end-stage renal disease on hemodialysis. Clin Orthop Relat Res. 2002;397:350-5.,99. Sakalkale DP, Hozack WJ, Rothman RH. Total hip arthroplasty in patients on long-term renal dialysis. J Arthroplasty. 1999;14(5):571-5. O tempo prolongado para obtenção da consolidação óssea no caso aqui relatado (cinco meses) possivelmente é consequência da mineralização óssea deficiente apresentada pelos pacientes com osteodistrofia renal.1010. Mataliotakis G, Lykissas MG, Mavrodontidis AN, Kontogeorgakos VA, Beris AE. Femoral neck fractures secondary to renal osteodystrophy. Literature review and treatment algorithm. J Musculoskelet Neuronal Interact. 2009;9(3):130-7.

Existem poucos relatos na literatura sobre osteossíntese bilateral do colo do fêmur em pacientes com osteodistrofia renal.1010. Mataliotakis G, Lykissas MG, Mavrodontidis AN, Kontogeorgakos VA, Beris AE. Femoral neck fractures secondary to renal osteodystrophy. Literature review and treatment algorithm. J Musculoskelet Neuronal Interact. 2009;9(3):130-7. Nossa intenção é que o caso aqui relatado possa servir de alerta aos ortopedistas para a possibilidade de fraturas bilaterais do colo do fêmur em pacientes com osteodistrofia renal que apresentam dor súbita e espontânea, mesmo com radiografias iniciais normais; um elevado grau de suspeita é necessário nesses pacientes, para que fraturas não desviadas sejam identificadas e tratadas precocemente e se evitem, assim, cirurgias mais complexas e dispendiosas e se reduza o risco de complicações.

  • Trabalho desenvolvido no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (USP), Ribeirão Preto, SP, Brasil.

REFERENCES

  • 1
    Kalaci A, Yanat AN, Sevinç TT, Doğramaci Y. Insufficiency fractures of both femoral necks in a young adult caused by osteoporosis: a case report. Arch Orthop Trauma Surg. 2008;128(8):865-8.
  • 2
    Voss L, DaSilva M, Trafton PG. Bilateral femoral neck stress fractures in an amenorrheic athlete. Am J Orthop (Belle Mead NJ). 1997;26(11):789-92.
  • 3
    Karapinar H, Ozdemir M, Akyol S, Ulkü O. Spontaneous bilateral femoral neck fractures in a young adult with chronic renal failure. Acta Orthop Belg. 2003;69(1):82-5.
  • 4
    Mankin HJ. Rickets osteomalacia and renal osteodystrophy. An update. Orthop Clin North Am. 1990;21(1):81-96.
  • 5
    Singh M, Nagrath AR, Maini PS. Changes in trabecular pattern of the upper end of the femur as an index of osteoporosis. J Bone Joint Surg Am. 1970;52(3):457-67.
  • 6
    Schaab PC, Murphy G, Tzamaloukas AH, Hays MB, Merlin TL, Eisenberg B, et al. Femoral neck fractures in patients receiving long-term dialysis. Clin Orthop Relat Res. 1990;260:224-31.
  • 7
    Taylor LJ, Grant SC. Bilateral fracture of the femoral neck during a hypocalcaemic convulsion. A case report. J Bone Joint Surg Br. 1985;67(4):536-7.
  • 8
    Sunday JM, Guille JT, Torg JS. Complications of joint arthroplasty in patients with end-stage renal disease on hemodialysis. Clin Orthop Relat Res. 2002;397:350-5.
  • 9
    Sakalkale DP, Hozack WJ, Rothman RH. Total hip arthroplasty in patients on long-term renal dialysis. J Arthroplasty. 1999;14(5):571-5.
  • 10
    Mataliotakis G, Lykissas MG, Mavrodontidis AN, Kontogeorgakos VA, Beris AE. Femoral neck fractures secondary to renal osteodystrophy. Literature review and treatment algorithm. J Musculoskelet Neuronal Interact. 2009;9(3):130-7.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2014

Histórico

  • Recebido
    04 Jul 2013
  • Aceito
    19 Jul 2013
Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia Al. Lorena, 427 14º andar, 01424-000 São Paulo - SP - Brasil, Tel.: 55 11 2137-5400 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbo@sbot.org.br