EDITORIAL
A sobrecarga dos transtornos mentais baseado nas pesquisas sobre World Mental Health
Jordi Alonso
MD. PhD, Professor de Saúde Pública da Universidade Pompeu Fabra (UPF), Diretor do Programa de Epidemiologia e Saúde Pública do IMIM nstituto de Pesquisa do Hospital Mar, CIBERESP, Barcelona, Espanha
Cunhado em um estudo de referência,1 o conceito de sobrecarga global de doença (GBD) tem contribuído enormemente para visualizar a importância dos transtornos mentais que ocorrem na comunidade. O número de Anos de Vida para Adequação à Deficiência (DALYs) perdidos em razão das condições específicas de saúde, isto é, a combinação de mortalidade prematura e deficiência associável à condição, identificou, em 1990, a depressão unipolar grave como sendo a quarta causa da sobrecarga global (3,7%). Prognósticos atualizados para 2030 estimam que a depressão unipolar grave será a principal causa de toda a deficiência no mundo. Outros transtornos mentais e comportamentais, tais como distúrbios de álcool, serão onerosos em todo o globo.
Iniciadas uma década mais tarde, os questionários da World Mental Health (WMH) da Organização Mundial da Saúde (OMS), com mais de 150 mil entrevistados em 28 países diferentes, representam atualmente o maior conjunto de questionários para pesquisas epidemiológicas transnacionais já realizadas sobre transtornos mentais. A WMH representa importante contribuição para o conhecimento da sobrecarga global dos transtornos mentais. Ela avalia estimativas sobre a incidência dos transtornos mentais utilizando o mais moderno instrumento para medir tais transtornos: o Composite International Diagnostic Interview (CDI do inglês). Ele avalia a deficiência associada a transtornos mentais (e não mentais) em amostras de populações em todo o mundo.
Os resultados mostram que os transtornos mentais são bastante comuns em todos os países estudados. As estimativas sobre o predomínio da existência de qualquer transtorno DSM-IV/CIDI variam (variação interquartil entre os países) de 18,1%-36,1%. Um transtorno mental existente a vida inteira foi encontrado em mais de um terço dos entrevistados em cinco países (Colômbia, França, Nova Zelândia, Ucrânia, Estados Unidos); em mais de um quarto em seis países (Bélgica, Alemanha, Líbano, México, Holanda, África do Sul); e em mais de um sexto em outros quatro (Israel, Itália, Japão, Espanha). Os dois países restantes, China (13,2%) e Nigéria (12,0%), apresentaram estimativas de prevalência consideravelmente menores e que tendem a cair cada vez mais.2 O Transtorno Depressivo Grave é especialmente predominante e incapacitante no mundo inteiro.3 Uma descoberta importante feita pelos questionários da WMH é o maior risco de transtornos mentais estimado para coortes mais jovens. Avaliar se esta é uma estimativa apurada é fundamental para se saber qual a sobrecarga dos transtornos mentais nos anos próximos anos.
A sobrecarga dos transtornos mentais
Para abordar a sobrecarga dos transtornos mentais, as pesquisas da WMH se concentraram em várias dimensões: impacto sobre o curso de vida, funcionamento da produtividade e desempenho e o estado geral de saúde. As análises levaram em conta a idade de início dos transtornos mentais e compararam países de níveis econômicos superior, médio e inferior. O impacto é estimado tanto em nível individual (impacto médio sobre uma pessoa com um transtorno), como em nível populacional (impacto sobre a comunidade após calcular a média de todas as pessoas com transtornos e de todos os outros sem). Todas estas análises foram recentemente compiladas em um volume a ser publicado. 4
O controle dos impulsos iniciais e transtornos por uso de substâncias estão associados a chances menores de concluir os estudos, enquanto alguns transtornos de humor e ansiedade têm efeito sobre a conclusão do ensino secundário (ou seja, antes da universidade). A idade do primeiro casamento também é afetada por distúrbios mentais pré-matrimoniais, humor e ansiedade, sendo associados a casamentos em idades mais avançadas e a idades menors no primeiro divórcio. Fobia específica, depressão grave e abuso de álcool estão associados às maiores proporções do risco atribuível a uma população, tanto para o casamento tardio quanto para divórcio prematuro. Um subestudo específico da WMH permitiu abordar a violência física conjugal, que foi relatada por um ou por ambos os cônjuges em 20% dos casais de nossas pesquisas. Os transtornos de externalização do marido aumentam em 70% as chances de violência conjugal. O risco atribuível a uma população para a violência conjugal relacionado a transtornos mentais pré-matrimoniais foi estimado em 17,2%, ou seja, um em cada seis casais. A estimativa de casais que sofrem violência conjugal poderia ser evitada se eliminássemos os transtornos mentais antes do casamento.
Indivíduos com uma doença mental grave (SMI do inglês), conforme critérios definidos tanto para transtorno bipolar I, como para qualquer outro diagnóstico de 12 meses com indícios de incapacidade grave de desempenho, ganharam, em média, um terço menos que o salário médio. Essas perdas equivalem a 0,3% -0,8% do total nacional de salários. Tanto a probabilidade crescente de não ter rendimentos, quanto a de ter ganhos reduzidos, entre aqueles com rendimentos, são componentes importantes dessas perdas. Além disso, os entrevistados com transtornos mentais com idade de concluir os estudos não só reduziram os vencimentos do cônjuge, como também apresentaram maior deficiência, menor probabilidade de emprego, de casamento, e de um cônjuge empregado.
Os entrevistados da WMH atribuíram maior deficiência aos transtornos mentais do que aos distúrbios físicos que comumente ocorrem e que estão incluídos nas pesquisas. Esse padrão vale para todas as doenças, bem como, para os distúrbios tratados. A desagregação mostra que a deficiência de transtornos mentais, maior do que a de transtornos físicos, limita-se à deficiência no funcionamento do papel social e pessoal, ao passo que a deficiência no funcionamento do papel produtivo geralmente se compara aos transtornos físicos e mentais. A incapacidade medida pelo WHODAS-II, um instrumento com oito dimensões, é maior entre os entrevistados com transtornos mentais do que com distúrbios físicos. Todas as dimensões individuais do WHODAS-II, assim como os entrevistados com transtornos mentais, apresentaram pontuações significativamente maiores do que aqueles fisicamente saudáveis. As 19 condições avaliadas nos questionários da WMH (10 físicas, 9 mentais) seriam responsáveis por 71,5% da proporção de risco atribuível à população (PARP) de todas as deficiências (24,7% para transtornos mentais).
Finalmente, o episódio de depressão grave, atrás somente de condições neurológicas e insônia, é a condição que causa maior impacto sobre a saúde observada, embora o ajuste para comorbidade tenha reduzido as estimativas específicas da condição com variação substancial entre condições. Isso sugere que parte da sobrecarga de alguns transtornos mentais, depressão mais especificamente, é devido à sua probabilidade de coexistir com outras doenças (ambas mentais e físicas).
Desafios da pesquisa
Os questionários da WMH ressaltam consideráveis diferenças internacionais no predomínio de transtornos mentais comuns no mundo inteiro.5 Ao usar métodos estritamente comparativos e prestar considerável atenção às questões culturais, as pesquisas da WMH sugerem que a variação na predominância de transtornos mentais está muito mais associada às variáveis contextuais nos países participantes (tais como nível de educação ou desigualdades), do que a questões metodológicas (como métodos de pesquisa ou índices de resposta). Deve-se esclarecer se a variação internacional no predomínio de transtornos mentais se deve a fatores culturais e a outros, que questionam a equivalência e/ou a relevância das atuais definições de transtornos mentais. No entanto, o que mais preocupa são as diferenças encontradas no acesso aos serviços de saúde entre as pessoas com transtornos mentais. Países de baixa renda estão em clara desvantagem.6 Em nítido contraste com a variação mencionada anteriormente, associar os transtornos mentais às desvantagens no curso de vida, deficiência e saúde pouco observada é muito semelhante entre os países com nível de desenvolvimento econômico diferente (superior, médio ou baixo, de acordo com a classificação do Banco Mundial).
O Consórcio WMH tem estimulado a interação ativa de uma grande comunidade de pesquisadores em todo o mundo. Alguns projetos de pesquisa foram desenvolvidos como fruto dessa interação. Estudos sobre adolescentes foram realizados em alguns países. Em outros lugares, amostras de DNA foram coletadas no ato da entrevista e serão posteriormente analisadas com o intuito de tentar contribuir para o estudo da variação do genoma e de transtornos mentais, assim como do gene, através da interação do meio ambiente. Estão sendo planejados estudos metodológicos para refinamento de instrumentos que podem ser usados em diferentes ambientes, tais como a população em geral e serviços de saúde. Sem dúvida, os questionários da WMH irão contribuir para melhorar o nosso conhecimento a respeito da sobrecarga de transtornos mentais em todo o mundo. Mas há ainda muitos desafios de pesquisa que precisam ser tratados, para dimensionar esse importante problema.
Referências
- 1. Murray C, Lopez A. Murray CJL, Lopez AD. Evidence-Based Health Policy: lessons from the Global Burden of Disease Study. Science. 1996; 274: 740-3.
- 2. Kessler RC, Aguilar-Gaxiola S, Alonso J, Chatterji S, He Y, Heeringa S et al. Global Mental Health Epidemiology. In: Sorel E (Ed.) 21st Century Global Mental Health. Sudbury Mass: Jones and Bartlett; 2012 (forthcoming).
- 3. The WHO World Mental Health Survey Consortium. Prevalence, severity, and unmet need for treatment of mental disorders in the World Health Organization World Mental Health Surveys. JAMA. 2004; 291:2581-90.
- 4. Alonso J, Chatterji S, He Y (Eds.). The Burdens of Mental Disorders in the World Mental Health Surveys. Cambridge, UK: CUP; 2012 (forthcoming).
- 5. Weissman MM, Bland RC, Canino GJ, Faravelli C, Greenwald S, Hwu H-G, et al. Cross-national epidemiology of major depression and bipolar disorder. JAMA. 1996; 276:293-9.
- 6. Wang PS, Aguilar-Gaxiola S, Alonso J, Angermeyer MC, Borges G, Bromet EJ, et al. Use of mental health services for anxiety, mood, and substance disorders in 17 countries in the WHO world mental health surveys. Lancet 2007; 370(9590):841-50.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Jun 2012 -
Data do Fascículo
Mar 2012