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O contencioso do algodão: cenários para mudança na política de subsídios dos EUA

The cotton dispute: scenarios for change in the U.S. subsidies policy

Resumos

Neste artigo se examina a não adequação dos EUA ao parecer da OMC no contencioso do algodão. Argumenta-se que tal atitude é irracional do ponto de vista do Estado unitário e racional, mas que pode ser explicada por meio de uma perspectiva fragmentada do Estado. Assim, embora a administração desejasse a adequação, cotonicultores e congressistas potencializados por instituições políticas constrangeram as mudanças necessárias. Ao final são projetados cenários para a modificação da política de subsídios agrícolas dos EUA.

Política comercial americana; algodão; OMC


The article examines the non compliance of the United States with the WTO report on the cotton dispute. It is argued that that attitude is not rational from the unitary and rational State point of view, but it can be explained through a fragmented perspective of the State. Thus, although the administration desired to comply, cotton growers and congressists, strengthened by political institutions, constrained the needed changes. In the end, scenarios about possible changes in the U.S. agriculture subsidy policy are projected.

U.S. trade policy; cotton; WTO


ARTIGO

O contencioso do algodão: cenários para mudança na política de subsídios dos EUA

The cotton dispute: scenarios for change in the U.S. subsidies policy

Thiago Lima

Pesquisador do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea CEDEC. Bacharel em Relações Internacionais e mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Unesp, Unicamp e PUC-SP (thiagomasi@uol.com.br)

RESUMO

Neste artigo se examina a não adequação dos EUA ao parecer da OMC no contencioso do algodão. Argumenta-se que tal atitude é irracional do ponto de vista do Estado unitário e racional, mas que pode ser explicada por meio de uma perspectiva fragmentada do Estado. Assim, embora a administração desejasse a adequação, cotonicultores e congressistas potencializados por instituições políticas constrangeram as mudanças necessárias. Ao final são projetados cenários para a modificação da política de subsídios agrícolas dos EUA.

Palavras-chave: Política comercial americana; algodão; OMC

ABSTRACT

The article examines the non compliance of the United States with the WTO report on the cotton dispute. It is argued that that attitude is not rational from the unitary and rational State point of view, but it can be explained through a fragmented perspective of the State. Thus, although the administration desired to comply, cotton growers and congressists, strengthened by political institutions, constrained the needed changes. In the end, scenarios about possible changes in the U.S. agriculture subsidy policy are projected.

Key words: U.S. trade policy; cotton; WTO

Introdução

O sistema multilateral de comércio vive tempos de apreensão e expectativas quanto ao futuro dos subsídios agrícolas concedidos por países ricos aos seus produtores e exportadores. Os EUA estão no centro desse debate pelo seu papel na sociedade internacional e particularmente por causa do contencioso do algodão, travado com o Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC)1 1 Este artigo foi desenvolvido a partir do projeto "As relações entre Executivo, Legislativo e grupos de interesse norte-americanos no contencioso do algodão", apoiado pela FAPESP, no âmbito do projeto temático "Reestruturação econômica mundial e reformas liberalizantes nos países em desenvolvimento", realizado pelo CEDEC/UNICAMP. .

O Órgão de Apelação (OAp) da OMC, confirmando resultados do Órgão de Solução de Controvérsias (OSC), emitiu parecer favorável ao Brasil. Afirmou que políticas americanas relacionadas ao algodão influenciaram a baixa dos preços mundiais e que os EUA deveriam reformar seu programa de créditos à exportação; reclassificar certos subsídios de acordo com as regras da OMC; e eliminar o programa Step 22 2 O Step 2 é parte de um programa federal que autoriza pagamentos a consumidores domésticos de algodão americano e a alguns exportadores. , considerado subsídio à exportação (NCC, 2005).

São objetivos dos EUA na Rodada Doha eliminar subsídios à exportação e à produção que distorcem o comércio agrícola (USTR, 2005). Mas esse país, principal ator do regime comercial, não é capaz de criar uma agenda para atingi-los. Essa incapacidade, que prejudica a negociação em outros temas, pode ocorrer por diversos motivos. Um deles é a debilidade em liderar, que é agravada pela não adequação ao parecer da OMC no contencioso do algodão, isto é, pela não eliminação do Step 2 no prazo estipulado.

Este artigo tem dois objetivos. O primeiro é examinar por que os EUA não se adequaram ao parecer da OMC no prazo estipulado. A baixa relevância do algodão para o conjunto da economia americana reforça nossa indagação e permite lançar uma hipótese: a força política dos grupos de interesse e políticos ligados ao algodão é forte suficiente para constranger a adequação americana ao parecer da OMC. O segundo objetivo é elaborar cenários, a partir desse estudo de caso, para refletir sobre possibilidades de mudança na política de subsídios dos EUA.

Política doméstica e relações internacionais

Para interpretar fatores e atores domésticos americanos relevantes no contencioso do algodão, recorremos à literatura teórica das Relações Internacionais que trata das relações entre os âmbitos doméstico e internacional. Parte-se do pressuposto que questões internacionais têm impactos no âmbito interno, o que leva à politização doméstica de assuntos antes atribuídos à política internacional (Soares de Lima, 2000). A politização doméstica, por sua vez, pode criar estímulos e constrangimentos à ação do Estado quando a distribuição doméstica do poder for fragmentada. Quando isso ocorre, premissas clássicas sobre o Estado unitário e racional perdem poder explicativo, levando à necessidade de um referencial teórico cuja base esteja na visão desagregada do Estado. Nesse sentido, três variáveis domésticas são importantes para a compreensão de uma ação de política externa: as preferências dos atores relevantes; a distribuição de informação; e as instituições que regulam essas relações (Milner, 1997).

Um referencial teórico desses ajusta-se a esse estudo de caso. Por quê os EUA não se adequaram ao parecer da OMC, sendo que o algodão é parte ínfima de sua economia e a não adequação prejudica a liderança em negociações de temas economicamente mais relevantes, como compras governamentais e serviços? Um Estado unitário e racional assumiria o pequeno custo econômico da adequação agrícola para obter ganhos maiores em outros setores. Porém, os EUA não se adequaram ao parecer da OMC. Para interpretar esse comportamento, deve-se olhar para o âmbito doméstico, rompendo a visão do Estado unitário.

A possibilidade de politização e de mobilização de atores domésticos depende da questão internacional. Seguramente o comércio é um dos temas produz mobilização e politização, pois exportações e importações são componentes cada vez mais importantes da renda nacional. Tanto na perspectiva dos produtores, quanto na perspectiva macroeconômica, do balanço de pagamentos, o comércio internacional ganha espaço no debate doméstico (Keohane e Milner, 1996). E, diante da possibilidade de custos e benefícios que poderão ser gerados no exterior, grupos de interesses domésticos, atores do Legislativo e do Executivo tendem a se mobilizar e formar coalizões para fazerem valer suas preferências nas políticas do Estado.

Para Milner (1997) e Soares de Lima (2000), a politização doméstica de questões internacionais tende a ocorrer de maneira mais agressiva em Estados em que o poder é fragmentado, e cujo desenho institucional favoreça a influência da sociedade civil no processo político. Nesses casos, grupos de interesse pressionam o Legislativo e o Executivo para que sejam adotadas políticas de acordo com suas preferências, que sejam capazes de otimizar seus objetivos. Como é desejo dos políticos alcançar ou manter o poder, devem estar atentos às demandas da sociedade e dos grupos que os apóiam, procurando atendê-las para garantir e angariar suporte na sociedade.

Segundo Frieden e Rogowski (1996), não defender o interesse desses grupos ou adotar medidas que os enfraqueçam economicamente significaria enfraquecer a si mesmos. Um exemplo seria adotar uma medida que elevasse o preço internacional de um produto, prejudicando sua venda - exemplo semelhante à eliminação do Step 2. Deve-se reconhecer, porém, que nem toda decisão do Legislativo e do Executivo reflete as preferências desses grupos. Há questões em que a vontade da população em geral ou o interesse de Estado prevalecem, e casos em que a pressão estrangeira motiva decisões (Vigevani, 1995). Nos EUA, compreender as relações entre as preferências de atores do Executivo, do Legislativo e de grupos de interesse é fundamental para se entender a política comercial praticada (Vigevani, Oliveira, Lima e Mendonça, 2005).

Milner (1997) chama a interação entre o Legislativo, o Executivo e grupos de interesse de estrutura de preferências doméstica. Tal estrutura é representada por uma linha unidimensional com dois pólos, um contrário e outro favorável à mudança. A interação das preferências desses três grupos de atores cria uma relação de forças, representada por uma agulha, que se localiza entre os pólos, como mostra a figura abaixo. As instituições que intermediam a relação entre os atores, podem funcionar como variáveis intervenientes entre a relação de forças e a política praticada pelo Estado, como mostra a linha pontilhada.

Para Milner (1997), aprimorando idéias de Putnam (1988), é a estrutura de preferências doméstica que determina as possibilidades de modificação interna em função de questões internacionais. Por exemplo, caso a negociação de um acordo comercial não conte com preferência doméstica majoritária a seu favor, o acordo pode ser refutado pelo congresso ou vetado pelo presidente, e grupos de interesse podem influenciar essas decisões.

A informação tem papel importante na composição das preferências. A informação disponível para os atores domésticos sobre custos e benefícios que poderão ser gerados a partir do exterior, e sobre o andamento de uma negociação por meio da qual o governo lida com o tema internacional, influencia a estrutura de preferências doméstica e pode criar vantagens políticas. Pode influenciar também o nível de accountability dos políticos, o voto e o apoio do eleitor médio e de grupos de interesse. Grosso modo, podemos admitir que se eleitores votam em um candidato que promove políticas que os prejudicam é porque possuem "informações incompletas sobre o comportamento do seu líder" ou, por exemplo, porque "não sabem exatamente qual política comercial seus líderes escolheram num determinado momento" (Mansfield, Milner e Rosendorff, 2002:504).

Entender a composição de forças doméstica é fundamental para a análise. Certos atores podem agir como veto players, isto é, impedir a modificação doméstica a partir de questões internacionais. Por exemplo, o presidente do comitê de agricultura da Câmara pode obstruir um projeto de lei ou o ministro da Economia, responsável pela inflação, não autorizar aumento de tarifas.

Instituições podem ter função determinante nas interações entre grupos de interesse, eleitores e políticos. A literatura identifica dois processos principais nos quais as instituições afetam as preferências que predominarão em um Estado. São os processos eleitoral e decisório, que funcionam como variáveis intervenientes entre as preferências de atores domésticos relevantes e a posição oficial do Estado de duas formas principais: "determinam quais atores têm maior influência no processo político" (Milner, 1997:127); e indicam em quantos pontos uma determinada preferência pode ser vetada, afetando a manutenção ou modificação de uma política (Mansfield e Henisz, 2004).

Fatores como regime político, intensidade da relação sociedade-governo e a concentração do processo decisório são determinantes do grau de politização doméstica de assuntos internacionais (Cortell e Davis Jr, 1996; Carvalho, 2003). Quanto mais esses fatores configurem um ambiente de poder fragmentado, maior a tendência de politização doméstica. Aumentam também as chances de dissenso entre Legislativo e Executivo, resultando em padrões de comportamento que escapam aos modelos do Estado unitário e racional. É essa perspectiva de poder fragmentado que sustentará a análise da hipótese acima e a projeção de cenários para mudança na política de subsídios dos EUA.

O contencioso do algodão Brasil versus EUA

Em 27 de setembro de 2002 a representação brasileira na OMC solicitou consultas com o governo dos EUA, questionando a legalidade de leis e regulamentações que autorizavam subsídios, créditos, doações e assistências à sua indústria do algodão. Os subsídios americanos à indústria do algodão, que ultrapassaram US$ 4 bilhões no mesmo ano e superaram o valor total da produção algodoeira americana, promoveriam queda do preço internacional do produto e desvio de comércio, prejudicando exportações brasileiras para terceiros mercados e violando os artigos 5(c) e 6.3(b) dos Subsidies e Countervailing Measures Agreement, firmado no âmbito da OMC. As perdas brasileiras foram estimadas em US$ 600 milhões somente no ano comercial de 2001 (OMC, 2002).

Consultas ocorreram em 3, 4 e 19 de dezembro de 2002 e em 17 de janeiro de 2003, mas não foram capazes de dirimir o contencioso. Em 6 de fevereiro de 2003, a representação brasileira solicitou abertura de painel contra os EUA (WT/DS267/7) e em 18 de junho, confirmando decisão preliminar de 26 de abril de 2004, o OSC emitiu relatório favorável ao Brasil. O OSC entendeu que o Step 2 era subsídio à exportação, portanto ilegal. O programa de crédito à exportação também foi considerado ilegal e a classificação dos subsídios não distorcivos equivocada. No geral, entendeu-se que "o conjunto da política [americana] rebaixou os preços do mercado internacional, causando prejuízos ao Brasil" (Camargo Neto, 2004).

Os EUA apelaram da decisão em 18 de outubro de 2004 e o encerramento do caso ocorreu em 3 de março de 2005, após parecer do OAp confirmando resultados positivos ao Brasil (OMC, 2005). Para se adequar ao parecer da OMC, os EUA deveriam reformar os créditos à exportação e eliminar o Step 2 até 30 de junho de 2005 (NCC, 2005). Outras medidas devem ser implementadas em até 15 meses.

Em 30 de junho o Departamento de Agricultura (USDA) comunicou alterações em dois programas de crédito, o Export Credit Guarantee Program (GSM-102) e o Supplier Credit Guarantee Program (SCGP), e a desativação do Intermediate Export Credit Guarantee Program (GSM-103). Para Mike Johanns, secretário de Agricultura, essa ação demonstrava comprometimento com a OMC e liderança. "By implementing these changes, we ensure continued U.S. leadership in the WTO Doha negotiations as we work toward an ambitious outcome that will be beneficial for U.S. agriculture" (USDA, 2005a). Essa demonstração, entretanto, teve limites. O Step 2 não foi eliminado no prazo estipulado, minando a liderança dos EUA.

A não adequação mostra a importância de se entender o processo de formulação de política comercial dos EUA. O Executivo, por meio do USDA, adequou os programas de crédito à exportação porque esses poderiam ser modificados administrativamente. Já o Step 2 é matéria do Congresso, o qual não agiu para eliminá-lo, causando constrangimento à administração. Por que o Congresso não agiu? A literatura aponta que razões podem ser encontradas nas relações entre grupos de interesse e o Legislativo e nas instituições.

A relevância econômica e política do algodão e o enviesamento institucional da política agrícola nos EUA

A relevância econômica e política do algodão para os EUA foram avaliadas buscando identificar motivos que limitaram a adequação ao parecer da OMC.3 3 Estatísticas e fontes completas estão publicadas em As relações entre Executivo, Legislativo e grupos de interesse norte-americanos no contencioso do algodão, Cadernos CEDEC nº 73, disponível em www.revistaautor.com.br. No tópico 1, vimos que políticos são movidos por princípios utilitaristas, visando principalmente objetivos eleitorais. Para alcançá-los, devem evitar medidas impopulares para o eleitor médio e angariar apoio de grupos de interesse. Assim, quanto mais relevante em termos econômicos e políticos for a indústria do algodão, mais contraproducente seria adequar os subsídios ao parecer da OMC. Isto é, a alta relevância política e/ou econômica da indústria do algodão dificultaria a eliminação do Step 2.

A relevância do algodão para a economia americana foi examinada no nível nacional, dos estados subnacionais vinculados ao algodão e de seus distritos, a partir de indicadores como o Produto Nacional Bruto (PNB), o Produto Estadual Bruto (PEB), e exportações nacionais e estaduais. Esses indicadores foram comparados com os valores de algodão produzidos e os exportados pelos EUA.

O cultivo de algodão compreende 17 estados dos EUA. Esses estados - Alabama, Arizona, Arkansas, Califórnia, Carolina do Norte, Carolina do Sul, Flórida, Geórgia, Kansas, Louisiana, Mississippi, Missouri, Novo México, Oklahoma, Tennessee, Texas e Virginia - formam o cinturão do algodão, localizado ao sul dos EUA.

No nível nacional, observa-se que embora os EUA sejam o segundo maior produtor mundial de algodão, atrás apenas da China, a produção nacional é parte ínfima do PNB americano (NASS, 2004b). De fato, a contribuição de todo o setor agrícola para esse índice não ultrapassou 1% em 2004. Apesar dos EUA serem o maior exportador mundial de algodão, a exportação nacional desse produto frente ao total exportado pelos EUA, também é bastante reduzida. O setor agrícola possui alguma relevância para as exportações nacionais, representando 7,5% do total entre 1999 e 2003. Analisando a pauta agrícola, verifica-se que o algodão é uma das maiores commodities exportadas dentro da diversificada pauta americana (NASS, 2004). Assim, embora a cotonicultura não possua relevância nacional em termos de comércio internacional, ela é importante segmento da área rural americana.

No nível estadual a soma da produção da agricultura, forestry e pesca não corresponde a 10% do PEB dos estados do cinturão do algodão. Portanto, não é relevante para a economia dos estados. Todavia, ao analisar a contribuição do algodão para o produto agrícola desses estados, nota-se que, em média, de 1995 a 2001, essa ultrapassou 10% em Arkansas, Geórgia, Tennessee e Texas, e 20% em Louisiana e Mississippi. Já a contribuição do algodão para tudo o que é produzido exclusivamente pelas fazendas do cinturão do algodão foi superior a 10% em Arizona e Tennessee, representou mais de 20% em Arkansas, Geórgia e Texas, e mais de 30% em Carolina do Sul, Louisiana, Mississippi, Novo México.

Quanto ao comércio internacional, ainda no nível estadual, as exportações agrícolas comparadas às totais são relevantes para cinco estados do cinturão. De 1999 a 2003, em média, Arkansas, Kansas, Mississippi, Missouri e Oklahoma exportaram mais de 10% do total em produtos agrícolas. Nos dois primeiros houve anos em que exportações agrícolas superaram 50%. Em nove estados a exportação de algodão é relevante na pauta agrícola, embora em nem todos esses estados a agricultura tenha relevância nas exportações. Em Alabama, Arizona, Arkansas, Carolina do Sul, Tennessee e Texas o índice ultrapassou 10% e em Geórgia, Louisiana, Mississippi foi superior a 20%. Esses dados mostram que o algodão é cultura importante no universo rural de mais da metade dos estados do cinturão do algodão.

Os estados dos EUA são subdivididos em distritos de acordo com o tamanho da população. Ao todo a federação possui 438 distritos (Aldrich, 2003). Dos 213 distritos dos 17 estados do cinturão do algodão, há cultura desse produto em 111 distritos, embora o tamanho e a produtividade das plantações sejam assimétricos. Dos 111 distritos, o algodão é um dos três produtos agrícolas mais vendidos em 41 distritos, e está entre os três maiores em termos de área plantada em 54 distritos (NASS, 2004b). Isso significa que essa cultura possui relevância econômica rural para o nível distrital dos estados produtores, e que pode ser potencializada politicamente pelo sistema eleitoral distrital, abordado adiante.

No que se refere à relevância política, foram analisadas a importância da população e dos grupos de interesse ligados à indústria do algodão para que os políticos atinjam seus objetivos eleitorais. Os indivíduos empregados na indústria do algodão têm interesse no contencioso, pois a adequação ao parecer da OMC levará ao aumento dos preços, resultando em perda de competitividade, que poderia se traduzir em desemprego . Assim, desde que informada, dificilmente essa parcela da população votaria em políticos favoráveis à adequação. Nesta perspectiva, deve-se comparar os empregos gerados pela indústria do algodão e o número de eleitores nas eleições presidenciais e para o Senado. Quanto maior a proporção dos empregos gerados pela indústria do algodão em relação ao número de eleitores, maior a relevância eleitoral dessa indústria e menor a propensão dos políticos contrariarem suas preferências.

Antes de comparar, cabe identificar se essa indústria se mobiliza politicamente. A capacidade de mobilização é fundamental para influenciar políticos. Um grupo de interesse pequeno e bem mobilizado pode ter mais influência que um grande grupo disperso (Cintra, 2005).

O National Cotton Council of America (NCC), que congrega empresas e fazendas que compõem a indústria do algodão desde 1938, possui essa qualidade. O objetivo do NCC é assegurar que os interesses relacionados ao algodão sejam levados em consideração pelo governo4 4 Ver www.cotton.org. . Além de dialogar com políticos visando influenciá-los e informá-los, o NCC coleta informação sobre processos políticos de seu interesse e divulga o comportamento dos políticos aos eleitores. Desse modo, pressiona políticos para que ajam no interesse da indústria.

De acordo com o NCC (2004), a indústria do algodão emprega 443.356 pessoas. Esse número corresponde aos eleitores que teriam suas preferências políticas alteradas no caso da adequação ao parecer da OMC. Nacionalmente, esse é um número bastante reduzido, pois em 2000 a população dos EUA era de mais de 281 milhões de pessoas, sendo 129.721 milhões pessoas empregadas. No mesmo ano, o número de pessoas aptas a votar era de 202.609 milhões (USCB, 2002).

Setorialmente, o agregado agricultura, pesca e forestry empregou 951.810 pessoas em 2000, cerca de 0,7% do total de empregos no país. O número é irrelevante se comparado aos mais de 12 milhões (9,4%) de empregos gerados pelo agregado construção, extração e manutenção (USCB, 2002). Todavia, ao comparar o total de empregos gerados por agricultura, pesca e forestry com os empregos criados pelas fazendas de algodão, observa-se que estas empregam cerca de 18% dos trabalhadores desse setor. Ou seja, 18% dos trabalhadores rurais teriam interesse no contencioso do algodão.

Pensar a relevância política - em termos de votos - dos produtores e da indústria do algodão somente no nível nacional não é suficiente. Nos EUA as eleições presidenciais são indiretas, isto é, o presidente não é eleito pela soma de votos populares e sim pela maioria dos votos no colégio eleitoral (Aldrich, 2003). As instituições, como visto acima, podem modificar a relação de forças. Se 18% dos trabalhadores rurais têm vínculo com o algodão no nível nacional, esse número seria aumentado se considerado apenas o cinturão do algodão.

No sistema eleitoral americano, cada estado da federação tem direito a um número de votos de acordo com o número de deputados e senadores que possui. A Flórida possui 25 deputados e, como todos estados, dois senadores, portanto 27 votos. O candidato que obtiver a maioria de votos populares na Flórida leva os 27 votos. O mesmo ocorre nos outros estados, com exceção de Maine e Nebraska. Ao todo são 438 deputados e 100 senadores, somando 538 votos no colégio eleitoral. Portanto, para se eleger presidente, é preciso obter no mínimo 270 votos. Assim, para avaliar o peso dos produtores e da indústria do algodão em termos nacionais, é preciso averiguar quantos eleitores seria possível mobilizar em cada estado e qual a relevância desses eleitores para as eleições presidenciais em cada um deles.

Esse método servirá para a análise da relevância dos produtores e da indústria do algodão nas eleições do Senado. O mandato dos senadores é de seis anos, e eleições ocorrem a cada dois anos para renovação ou substituição de um terço dos cargos. Cada estado é capaz de eleger somente um senador por eleição, tal qual nas eleições distritais para a Câmara dos Deputados. Aquele que obtiver maioria dos votos diretos no estado/distrito sagra-se senador/deputado (Aldrich, 2003).

Foram comparados os empregos gerados pelo agregado agricultura, pesca e forestry em cada estado do cinturão do algodão com o total de votantes nas três últimas eleições presidenciais no estado correspondente. O mesmo foi feito com os empregos criados pelas fazendas e pela indústria do algodão. Constatou-se que os eleitores da indústria do algodão são parte praticamente nula do total de votantes nos estados. Apenas em seis estados ultrapassam 2% do total. Nas eleições para o Senado mantêm-se as baixas proporções.

O agregado agricultura, pesca e forestry também apresenta baixos percentuais, superando 2% do eleitorado em apenas três estados nas eleições presidenciais. Porém, é interessante notar que, embora as fazendas de algodão apresentem baixas taxas em relação ao eleitorado total, quando comparadas com a soma de agricultura, pesca e forestry apresentam um valor significativo para a maioria dos estados. O mesmo ocorre nas eleições para o Senado. Como o algodão é apenas um dos produtos desse agregado, ele possui certa importância política na área agrícola desses estados.

Não foi possível obter dados sobre empregos gerados pela indústria e pelas fazendas de algodão no nível distrital, o que inviabiliza o mesmo tipo de análise para os deputados. Entretanto, tudo leva a crer que os empregados ligados ao algodão teriam relevância maior nos distritos com maior área rural.

Em suma, a análise demonstra que a indústria e as fazendas de algodão geram quantidade pequena dos empregos no cinturão do algodão, ou seja, são capazes de mobilizar poucos eleitores. Disso infere-se, salvo eleições com margens estreitas de vitória, que os votos desses empregados exercem baixa influência sobre as preferências dos candidatos à Presidência e ao Senado. É provável que tenham um peso maior nas eleições de deputados, nos distritos mais rurais. Infere-se também que a baixa relevância desses eleitores para as eleições presidenciais não colocou constrangimento à reforma do programa de crédito feita pela administração.

Doações financeiras para campanhas eleitorais é outra maneira pela qual grupos de interesse podem influenciar as preferências dos políticos. O montante doado pode sugerir o grau de compromisso entre as preferências de políticos e grupos de interesses. Atuar contrariamente às preferências dos doadores pode resultar em perda de recursos na próxima campanha.

De acordo com o Center for Responsive Politics5 5 Ver www.opensecrets.org. , de 1996 a 2004 o setor agrobusiness foi um dos dez maiores doadores para candidatos à Presidência, ao Senado e à Câmara de Deputados federal. As doações do NCC são classificadas no subgrupo Plantação e Processamento Básico, no qual o NCC foi o 6º maior doador em 1996, o 2º em 1998, o 8º em 2000, o 10º em 2002 e o 4º maior em 2004. Assim, o NCC é grande doador dentro do seu subgrupo. Como esse ranking é nacional, se fosse considerado somente o cinturão do algodão a posição do NCC seria maior. Além disso, foram consideradas apenas doações do NCC. Os próprios fazendeiros e empregados, assim como outros grupos ligados ao algodão, fazem doações. Logo, quando os congressistas do cinturão do algodão deliberam sobre assuntos ligados a essa indústria, tendem a considerá-la de maneira diferenciada.

Por fim, cabe abordar o processo de formulação da política agrícola americana e a forma como políticos utilizam-no para defender demandas de seus distritos e estados e angariar apoio por meio de concessões específicas.

Desde 1974 os principais temas da política agrícola são tratados em uma estrutura legislativa abrangente chamada de Farm Bill, reeditada a cada seis anos. Capaz de abarcar diversos temas, ainda que superficialmente ligados à agricultura, a política agrícola se tornou um jogo de soma-positiva, pois muitos congressistas conseguem incluir na Farm Bill alguma demanda cara a seu eleitorado, urbano ou rural, e ganhar popularidade (Browne, 1995).

Basicamente, a reedição da Farm Bill funciona em dois estágios. No primeiro são discutidos temas centrais para os Comitês de Agricultura da Câmara e do Senado, como os programas de subsídio e crédito. Para que esses programas sejam aprovados, os congressistas ligados a interesses rurais contam com apoio de congressistas não diretamente interessados nessas questões. No segundo estágio, garantida a aprovação dos temas centrais, políticos cuja base social é urbana recebem apoio daqueles ligados a bases rurais para suas propostas "não-rurais" (nonfarm), como uso de energia, por exemplo. Esse processo enviesa a política agrícola para um acordo exitoso, fornecendo boa oportunidade legislativa aos membros da eventual maioria. "Farm Bills não são desenhadas para falhar" (Browne, 1995:27).

Embora a política agrícola seja alvo constante de críticas, é improvável que o voto do eleitor médio seja definido pela atuação dos congressistas no que se refere à Farm Bill. A despeito de a maior parte dos recursos federais para a agricultura destinar-se a poucos produtores, geralmente ricos, que é o que atrai boa parte da propaganda negativa sobre o tema, a sensibilidade econômica do eleitor médio é ínfima. Os impostos recolhidos dos eleitores de todo o país para sustentar programas de subsídios agrícolas são muito pequenos para determinar sua opção política (Miller, 2005). Por outro lado, é possível manipular a lei de modo a garantir recursos para eleitorados específicos, como no caso do algodão. Os políticos podem criar regras que beneficiem sua base social em troca de votos e doações, gerando um círculo vicioso (Browne, 1995).

Leis agrícolas e emendas podem ser votadas nos intervalos de reedição da Farm Bill, mas não é comum alterar programas estruturais fora de época. No caso da eliminação do Step 2 a dificuldade é aumentada, pois 24 dos 46 deputados que compõem o Comitê de Agricultura da Câmara, considerado bastante paroquialista, são oriundos do cinturão do algodão.

Hart e Babcock (2002) e Miller (2005) mostram o paroquialismo do Congresso ao analisarem a elaboração da Farm Bill de 2002. Apesar de haver preocupação com a legalidade internacional dos programas, os congressistas sabiam de que "muito dos apoios [e dos subsídios] propostos iriam de encontro aos compromissos feitos pelos EUA na OMC" (Hart e Babcock, 2002:20). Isto é, o interesse doméstico prevaleceu sobre os compromissos internacionais.

Em suma, os cotonicultores e a indústria do algodão possuem força política nos EUA devido as suas doações financeiras e sua importância econômica para área rural de alguns estados do cinturão do algodão. Em termos eleitorais, é baixa a proporção dos eleitores para eleições senatoriais e presidenciais, mas esses possuem maior importância para os deputados de áreas rurais. Além disso, o NCC possui boa mobilização. Esses fatores são potencializados pelo sistema eleitoral distrital e pela política agrícola, um jogo de soma-positiva enviesado para a manutenção dos programas de subsídios.

A análise mostrou limites domésticos à adequação ao parecer da OMC. Mesmo que a administração queira cumprir as exigências da OMC, é preciso convencer o Congresso disso, e não há sinais que apontem nessa direção antes da próxima reedição da Farm Bill, programada para 2007. Prova disso é que o projeto de lei que exclui o Step 2, enviado pelo USDA ao Congresso em 5 de julho de 2005, cria baixas expectativas. A administração pretende que o Step 2 seja eliminado ainda esse ano, mas a opinião de Hufbauer é enfática: "I really do not expect that to happen, because these cotton people are very influential, and there's a lot of money at stake. The lobbying will be intense, and I don't think that as a stand-alone (bill), it can happen". Para ele, "Congress is more likely to address the program when lawmakers begin writing a new farm bill" (Quaid, 2005).

Formulação e execução da política comercial

A Constituição dos EUA atribui ao Congresso, por um lado, a função de regular o comércio exterior. O objetivo é, dentre outros, garantir que diversos interesses econômicos tenham acesso ao Estado por meio de deputados e senadores, resultando em um foro de disputa entre os interesses. Por outro lado, a Constituição delega ao presidente a função de conduzir as relações exteriores e negociar acordos comerciais internacionais, como maneira de garantir coerência à política externa(Jackson, Davey e Sykes Jr., 2002). Assim, foi criado um sistema fragmentado, com dispersão de poder e responsividade à sociedade, o qual exige articulação entre Executivo e Legislativo para a condução da política de comércio internacional. Ao longo do tempo, o padrão de relacionamento entre os dois poderes modificou-se. Houve momentos em que o Congresso ou o presidente possuiu maior ou menor poder sobre o comércio exterior, momentos de baixa e de alta sensibilidade do Executivo e do Legislativo a grupos de interesse, assim como melhor ou pior sinergia entre esses três grupos de atores.

As tensões entre Executivo, Legislativo e grupos de interesse sobre a condução da política comercial levaram à criação do Special Trade Representative (STR) no Trade Expansion Act de 1962. Dentre as funções dessa agência - subordinada ao presidente, mas accountable ao Congresso - estavam a coordenação do interesse comercial das diversas burocracias e a diminuição da utilização do comércio como moeda política pelo Departamento de Estado. No Trade Act de 1974, a agência foi modificada estruturalmente, passando a contar com comitês institucionais de aconselhamento e assessoria técnica permanente do setor privado. Com o Trade Agreements Act de 1979 o STR foi renomeado United States Trade Representative (USTR) e teve seus poderes ampliados (Destler, 1995).

A praxe criou uma relação intensa entre o USTR e o Congresso. Como a regulação do comércio depende do último e a negociação internacional do primeiro, há diálogo constante entre burocratas e congressistas para definir objetivos, limites, concessões, etc. As autorizações comerciais, como o Trade Promotion Authority (TPA), são o maior exemplo disso.

Bergstein (2002) observa as relações entre Executivo e Legislativo para a política comercial destacando as leis de autorização comercial. Segundo ele, desde a Rodada Kennedy nos anos 60, sempre que o presidente buscou autorização do Congresso para negociar uma rodada liberalizante, ele teve de construir maioria legislativa concedendo proteção a indústrias-chave. Numa metáfora interessante, o autor aponta que a política comercial dos EUA dá um passo para trás, protecionista, para então dar dois à frente, rumo à liberalização.

A Farm Bill de 2002 seria um passo para trás. Ou seja, uma concessão do presidente Bush para conseguir maioria legislativa e assegurar a aprovação da TPA em 2002 (Bergstein, 2002). A TPA, basicamente, autoriza o presidente a negociar acordos comerciais com a garantia de que a votação para a ratificação do negociado ocorra sem emendas. Leis de autorização comercial são importante termômetro do Legislativo. Indicam a disposição desse poder em modificar a legislação doméstica em função de acordos internacionais, pois estabelecem condições para a liberalização. Pelo protecionismo concedido ao algodão na Farm Bill de 2002 e pelos limites impostos à negociação agrícola na Rodada de Doha (Embaixada Brasileira em Washington, 2002), pode-se entender que é improvável a modificação substancial e unilateral nos programas de subsídio ao algodão.

A redução "unilateral" é improvável porque o Congresso estipulou na TPA que é interesse dos EUA reduzir subsídios agrícolas com reciprocidade da União Européia (UE) e do Japão. Conforme análise da Embaixada Brasileira em Washington (2002), "a TPA respalda claramente os grandes interesses internos norte-americanos" e constrange o USTR ao deixar "claro o 'preço' das concessões que os EUA venham a fazer: ganhos significativos em acesso a mercados, 'equalização' das condições de abertura entre os diferentes parceiros".

A noção de equalização, ou reciprocidade, na questão agrícola pode ser auferida na proposta encaminhada em julho de 2001 à OMC. Nela, o USTR atrela a eliminação de subsídios agrícolas à exportação e a redução de subsídios distorcivos para 5% do valor total da produção nos EUA à ações iguais da UE e do Japão (USDA, 2002). Em nova proposta, de outubro de 2005, o USTR sugere reduções substanciais de apoios distorcivos e a eliminação dos subsídios à exportação agrícola em cinco anos. Após esse período as demais políticas distorcivas seriam extintas em mais cinco anos. Confirmando a improbabilidade de redução unilateral, o documento afirma que "This is not a unilateral offer it is contingent on bold reforms from all countries participating in the WTO process" (USTR, 2005: 1).

Diante da improbabilidade da redução unilateral, cujos constrangimentos estão concentrados no Congresso, o USTR, o USDA e o NCC desenvolveram a estratégia da "não litigação, sim negociação". Mills, porta-voz do USTR, afirmou que "a negociação, e não o litígio, é a melhor forma de lidar com as distorções na agricultura mundial" Para ele, subsídios e outras questões agrícolas devem ser solucionadas em ambiciosas reformas globais (Folha de S. Paulo, 2005).

A estrutura institucional fragmentada da política comercial dos EUA, cujo centro de referência é o USTR, é importante para legitimar essa estratégia que começou a ser externada após o parecer do OAp. Desprestigiar a OMC não faz parte das preferências da administração, da maior parte do Congresso e da maioria dos grupos agrícolas. O Congresso, porém, não parece disposto a se adequar à OMC, o que mina a liderança dos EUA. Assim, ficou decidido que a melhor alternativa a não cumprir o parecer da OMC é negociá-lo. O NCC (2005) "concorda com o USTR que as mudanças políticas sugeridas pelos painéis nessa disputa devem ser objeto de negociação, não litigação". Para Penn (2005), subsecretário do USDA, o parecer da OMC reafirma a importância da Rodada Doha, pois "os EUA acreditam que a negociação, não o litígio, é a maneira mais eficiente de lidar com distorções em agricultura".

Considerando a assimetria de poder entre Brasil e EUA, não é possível que o primeiro imponha modificações ao segundo. O parecer da OMC potencializou a demanda brasileira com tecnicidade e legitimidade internacionais, resultou em algumas reformas, mas não conseguiu impor a eliminação do Step 2. A reforma do programa de crédito à exportação e a proposta encaminhada ao Congresso para eliminação do Step 2 apontam para o intuito da administração de garantir liderança aos EUA na Rodada Doha e de estabelecer uma agenda de eliminação de subsídios à exportação e redução dos subsídios à produção. Porém, mais do que tema de política externa, a política agrícola é política pública controlada por um Congresso estruturalmente paroquialista em questões agrícolas, cujos processos eleitoral e de criação da Farm Bill potencializam a força política dos cotonicultores, e que prioriza preferências locais em detrimento dos compromissos internacionais. Tendo isso em consideração, vejamos cenários para adequação dos EUA ao parecer da OMC.

Cenários para mudança na política de subsídios dos EUA

A partir da análise acima, foram projetados cenários para a adequação dos EUA ao parecer da OMC. O primeiro cenário mostra a situação atual. Para que houvesse mudança, o contencioso deveria potencializar grupos domésticos que criticam a Farm Bill, a ponto de superar o poder político daqueles que apóiam à manutenção dos programas de subsídio, como o Step 2. Dentre os críticos estão fazendeiros afetados negativamente pelos subsídios; conservadores preocupados com o ajuste fiscal; ambientalistas que combatem a expansão agrícola; e ONGs que acusam a imoralidade dos subsídios por prejudicarem produtores de países pobres (Saunders, 2005; Rainford, 2005; OXFAM, 2004).

Durante anos esses grupos tentaram modificar esses programas, sem sucesso (Browne, 1995; Miller, 2005). A decisão da OMC pode potencializar as preferências desses grupos no debate de reedição da Farm Bill em 2007, mas não há sinais que apontem para essa direção com força suficiente, de modo que se vença o enviesamento institucional da política agrícola. A figura abaixo mostra esse cenário. Há um equilíbrio de forças, mas as instituições do processo eleitoral e da criação da Farm Bill fortalecem os grupos contrários.

Num segundo cenário, adicionam-se grupos interessados em menores barreiras e melhores regras em outros temas comerciais, como serviços e propriedade intelectual. Esses grupos poderiam entrar incisivamente no debate e agregar força aos grupos favoráveis à adequação. Posicionar-se-iam assim para garantir liderança aos EUA e para desobstruir a Rodada Doha. Se a força agregada for suficiente, o enviesamento institucional poderia ser superado, como demonstra a figura abaixo.

Pode-se entender que a intenção brasileira de retaliar os EUA suspendendo direitos de propriedade intelectual buscou trazer outros grupos para o debate. Porém, a ação parece não ter sido eficiente, pois houve ameaça de suspensão de benefícios sob o SGP. Assim, a retaliação não foi adiante e grupos que estavam no alvo do governo brasileiro não receberam o estímulo para entrar no debate.

Num terceiro cenário, acrescentam-se grupos agrícolas eficientes e exportadores. Esses grupos têm interesse em abrir o mercado agrícola mundial e, para isso, é preciso dar continuidade à Rodada Doha. Posicionar-se-iam a favor da adequação ao parecer da OMC, exercendo pressão de dentro da área agrícola e fornecendo estímulo para congressistas romperem o enviesamento institucional, conforme a figura abaixo.

Esse cenário seria interessante ao Brasil por duas razões. Primeiro, seria uma estratégia aplicada a partir do setor privado. Caberia aos grupos agrícolas brasileiros convencer os americanos das vantagens de favorecer a adequação para desobstruir a Rodada Doha. Por ser uma ação privada não haveria, em tese, retaliação dos EUA. Segundo, a pressão seria exercida a partir de interesses agrícolas. Assim, congressistas com base social rural teriam contrapeso dentro do seu próprio distrito eleitoral, tornando politicamente viável agir contra interesses de grupos ligados ao algodão. Ao contrário do que ocorreria caso grupos interessados em propriedade intelectual entrassem no debate, os quais são geograficamente concentrados e muitas vezes localizados em regiões de baixo interesse agrícola, a atividade agrícola ocupa grandes faixas territoriais e está mais dispersa no território. Assim, seria possível mobilizar mais exportadores em mais distritos.

Por fim, o quarto cenário é aquele que leva em conta um acordo para redução de subsídios com Japão e UE. Um compromisso internacional desse tipo potencializaria a posição da administração e reduziria incentivos de congressistas para manter o programa de subsídios ao algodão por adequar-se à TPA. Os legisladores poderiam argumentar que, mesmo o acordo produzindo custos, haveria uma quantidade maior de benefícios, legitimando sua escolha pela redução.

Considerações finais

Esse estudo de caso teve dois objetivos: 1) examinar a hipótese de que os EUA não se adequaram ao parecer da OMC no contencioso do algodão porque a força política dos grupos de interesse e políticos ligados ao algodão foi forte suficiente para constranger mudanças necessárias; e 2) elaborar cenários para pensar a mudança na política de subsídios agrícolas dos EUA.

O caso foi estudado a partir de uma abordagem que permite o exame das relações de força e instituições domésticas, pois a não adequação não encontrava justificativa na concepção de Estado unitário racional. Assim, constatamos que a administração desejava a adequação, mas a eliminação do Step 2 cabia ao Congresso, o qual não agiu devido a força política de grupos de interesses e congressistas potencializados por instituições políticas.

O estudo permitiu elaborar cenários, os quais têm por objetivo estimular a reflexão sobre a melhor estratégia a ser adotada para lidar com os EUA. Estratégia essa que, embora de política externa, deve ir além da visão do Estado como ator unitário e levar em conta a política doméstica americana, suas dissensões e contradições. Ressalta-se, porém, que esses são apenas cenários, projeções sujeitas às intempéries das relações internacionais e da política doméstica.

Política de comércio internacional não é apenas questão de defesa ou promoção de interesses setoriais. Certas ações podem ter intuito mais amplo, de marcar posição e enviar sinais para a sociedade internacional. Por isso, os desdobramentos do contencioso do algodão podem oferecer perspectivas relevantes sobre a posição dos EUA nas negociações internacionais. Reconhecendo que "política externa depende da interna (...), podemos afirmar que a dificuldade de definir políticas, sobretudo de fazer escolhas, é um dos fatores determinantes da debilidade [ou potencialidade] de um país nas relações internacionais" (Vigevani, 1995:321). No caso dos EUA, a política agrícola pode constranger objetivos de política comercial internacional.

Recebido em 17 de novembro de 2005

Aprovado em 28 de fevereiro de 2006

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  • 1
    Este artigo foi desenvolvido a partir do projeto "As relações entre Executivo, Legislativo e grupos de interesse norte-americanos no contencioso do algodão", apoiado pela FAPESP, no âmbito do projeto temático "Reestruturação econômica mundial e reformas liberalizantes nos países em desenvolvimento", realizado pelo CEDEC/UNICAMP.
  • 2
    O
    Step 2 é parte de um programa federal que autoriza pagamentos a consumidores domésticos de algodão americano e a alguns exportadores.
  • 3
    Estatísticas e fontes completas estão publicadas em As relações entre Executivo, Legislativo e grupos de interesse norte-americanos no contencioso do algodão,
    Cadernos CEDEC nº 73, disponível em
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      28 Fev 2006
    • Recebido
      17 Nov 2005
    Centro de Estudos Globais da Universidade de Brasília Centro de Estudos Globais, Instituto de Relações Internacionais, Universidade de Brasília, Campus Universitário Darcy Ribeiro, Brasília - DF - 70910-900 - Brazil, Tel.: + 55 61 31073651 - Brasília - DF - Brazil
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