Resumo
A síndrome da fibromialgia juvenil (SFJ) é uma condição dolorosa não inflamatória crônica que ocorre principalmente em meninas entre nove e 15 anos. Pode ser caracterizada por dores generalizadas e constantes em várias regiões do corpo, distúrbios do sono, fadiga diurna e estado de humor alterado. Fatores psicológicos e biológicos concomitantes resultaram na diminuição da capacidade de lidar com a dor. A qualidade de vida das crianças que sofrem de dores crônicas, e a de seus cuidadores, é severamente prejudicada e a ocorrência de sintomas de ansiedade e depressão é mais comum nessa população. Este estudo objetivou fazer uma revisão sistemática da literatura dos fatores psicossociais relacionados com a SFJ. Os achados revelam uma percepção divergente entre pacientes e parentes em relação aos efeitos da condição. As mães dos pacientes tendem a classificar a doença com uma gravidade maior do que os próprios pacientes. Os pacientes com fibromialgia parecem compartilhar os mesmos traços de personalidade e parece existir um tipo de ambiente familiar favorável à ocorrência da doença. As implicações psicológicas e funcionais devem ser tratadas com métodos que ajudem pacientes e parentes a modificar suas estratégias de enfrentamento dos problemas cotidianos, a aliviar as consequências disfuncionais da dor e da fadiga e a diminuir o risco de catastrofização.
Palavras-chave: Fibromialgia; Adolescentes; Crianças; Psicologia; Revisão
Abstract
Juvenile fibromyalgia syndrome (JFMS) is a non-inflammatory chronic pain condition that occurs mainly in girls aged 9–15 years. JFMS is characterized by constant widespread pain in different parts of the body, poor sleep quality, daytime sleepiness and an altered mood. Concomitant psychological and organic factors result in a diminished capacity to cope with pain. The quality of life of individuals with chronic pain and their caregivers is severely restricted and the occurrence of symptoms of anxiety and depression is common in this population. The aim of the present study was to perform a systematic review of the literature on psychosocial factors related to JFMS. The findings reveal differences in opinion between patients and family members regarding the effect of the condition, as mothers tend to classify JFMS as more severe than the patients themselves. Individuals with JFMS seem to share the same personality traits and there seems to be a type of family environment that is favorable to the occurrence of this condition. Psychological and functional aspects should be treated with methods that can help patients and family members alter their coping strategies regarding day-to-day problems, attenuate the dysfunctional consequences of pain and fatigue and diminish the risk of catastrophizing that individuals submitted to constant pain develop in relation to their surrounding environment.
Keywords: Fibromyalgia; Adolescent; Child; Psychology; Review
Introdução
A síndrome da fibromialgia em crianças e adolescentes é uma condição dolorosa não inflamatória crônica que ocorre principalmente em meninas entre nove e 15 anos;1 assim, a condição recebe o nome de síndrome da fibromialgia juvenil (SFJ). Trata-se de uma síndrome relativamente pouco estudada, mas que pode ser caracterizada, principalmente, por dores generalizadas e constantes em várias regiões do corpo, distúrbios do sono, fadiga diurna, estado de humor alterado e condição psicológica afetada. Apesar das grandes semelhanças entre a SFJ e a síndrome correlata na vida adulta, a redução na atividade física, o absenteísmo escolar e os recursos de enfrentamento reduzidos nos jovens justificam a análise diferenciada da fibromialgia em jovens.2-5 A qualidade de vida das crianças com dores crônicas e a de seus cuidadores é severamente restringida e a ocorrência de sintomas de ansiedade e depressão é mais comum6 nessa população.
O objetivo deste estudo foi fazer um levantamento das informações disponíveis na literatura sobre os fatores psicossociais relacionados com a SFJ. Primeiramente, fez-se uma busca sistemática nas bases de dados eletrônicas PubMed, Scielo, Lilacs e Medline com as palavras-chave "fibromialgia", "criança", "juvenil", "fibromialgia primária" e "síndrome" e os operadores booleanos. Foram selecionados artigos em inglês, português e espanhol cuja metodologia estudasse as características descritivas ou os fatores associados à ocorrência da SJF, entre 1985 e 2014. A busca resultou em 108 estudos. Foram excluídos editoriais, cartas ao editor, resumos de conferências, artigos de revisão sobre outros temas e artigos cujo foco era a fibromialgia em adultos ou cujo assunto principal eram instrumentos diagnósticos, e não os pacientes. No fim do procedimento, foram selecionados 54 artigos. Em seguida, foram excluídos 12 artigos cujo foco era o tratamento, mas que não levavam em conta as características psicossociais dos indivíduos. No fim, foram analisadas 42 referências pediátricas e sete textos complementares.
Prevalência e etiologia
O diagnóstico da SFJ ainda é objeto de debates na literatura em relação a qual critério usar1,6,7 (mais especificamente os do Colégio Americano de Reumatologia8 [ACR] ou os de Yunus e Mais9), a aferição da força a ser aplicada na avaliação dos tender points ,6,7,9-11 a definição de cefaleia7 e quais seriam os instrumentos mais adequados para avaliar a ansiedade e a depressão. Uma revisão sistemática alemã7 propôs que o próprio termo "síndrome da fibromialgia juvenil" deveria ser descartado, em razão da falta de consistência diagnóstica. Em parte por conta dessas dificuldades metodológicas, a prevalência de SFJ varia de 1%8 a 6% entre os diferentes estudos.4
Não existem estudos conclusivos sobre as possíveis causas e os fatores de risco da SFJ. As especulações sobre as possíveis relações entre fatores genéticos e metabólicos envolvidos com a doença carecem de evidências científicas. Alguns estudos buscaram demonstrar a ocorrência de alterações hormonais12,13 na fibromialgia, mas não especificamente em pacientes jovens. Buskila e Neumann14 e Feng et al.15 identificaram genes candidatos a eliciarem a fibromialgia, mas a concorrência de fatores ambientais e familiares ainda dificulta que se chegue a conclusões definitivas sobre a determinação da doença. Todavia, a ideia não pode ser descartada, uma vez que a literatura mostra ocorrências de baixas doses de hormônio do crescimento16 e síndrome da hipermobilidade,17 ambas consideradas de origem genética, em pacientes com SFJ. O que se pode afirmar, com certo grau de segurança, é que a SFJ ocorre agregada a condições familiares ainda não geneticamente comprovadas. Os parentes de jovens com SFJ relatam maiores níveis de fadiga18 e têm distúrbios do sono. Além disso, Roizenblatt et al.19 encontraram 71% de mães com fibromialgia em um grupo de 35 crianças com SFJ.
Características
Existe uma discussão na literatura sobre a SFJ ser uma entidade nosológica independente ou apenas a versão juvenil da síndrome da fibromialgia em adultos2,6,7,20-22 Buslika et al.4 encontraram uma remissão espontânea dos sintomas em 73% dos pacientes avaliados após um seguimento de 30 meses. Em outro seguimento de um ano, Mikkellson3 relatou uma persistência da doença em apenas 26% da população avaliada. Ambos os estudos dão o indicativo do que seria uma manifestação da doença diferente da versão adulta, que em geral não apresenta remissão,23 ainda que os pacientes tratados muitas vezes apresentem melhorias significativas na funcionalidade. Uma série de casos24 apontou que os pacientes com SFJ que desistiram do tratamento, além de ser os de mais idade da amostra, tinham características mais próximas da manifestação adulta da fibromialgia e, portanto, se diferenciavam dos casos que deram seguimento ao tratamento. Por outro lado, há autores que veem as diferenças entre adultos e jovens como uma gradação dos sintomas ou como resultado de longos períodos sem tratamento por parte dos adultos que já sofriam de dores generalizadas na infância.5,6,25,26 Portanto, a detecção precoce da SFJ seria um indicativo de melhor prognóstico,2 com ganhos significativos na qualidade de vida20 e funcionalidade para aqueles que recebem tratamento adequado. Por outro lado, aqueles com dores generalizadas não adequadamente tratadas teriam uma maior chance de desenvolver fibromialgia.21
As alterações no padrão de sono parecem ser um fator comum aos pacientes com SFJ. Mikkelsoon3 relatou que, em um estudo com seguimento de um ano, todas as crianças avaliadas tinham distúrbios do sono. Um estudo feito no Brasil27 identificou que 43% da amostra tinham sono não restaurador. Outro estudo28 encontrou uma grande semelhança entre os padrões de sono das crianças com fibromialgia e seus pais. Geralmente, pais e filhos não apresentavam uma boa qualidade do sono. Outro estudo,29 que usou a polissonografia para avaliar a qualidade do sono de pacientes com SFJ, identificou que os indivíduos apresentavam demora a começar a dormir, redução no tempo total de sono, sono não restaurador e maiores períodos de vigília durante a noite; além disso, 42% da população avaliada apresentavam movimento excessivo dos membros durante o sono.
Kashikar-Zuck et al.1 propuseram um modelo conceitual para a compreensão da SFJ que tem como fator central a percepção alterada da dor e que considera a fibromialgia como a concorrência de fatores psicológicos e orgânicos que resultam em diminuição na capacidade de lidar com a dor. Isso diferencia a síndrome de outras doenças psicossomáticas, uma vez que o padrão de expressão da dor na fibromialgia é relativamente constante e persistente, enquanto as dores psicossomáticas tendem a ser muito mais inconstantes.
Aspectos psicológicos da síndrome da fibromialgia juvenil
Os pacientes com SFJ têm uma pior qualidade de vida,30 apresentam mais sintomas de depressão5,24,25,31 e ansiedade24,25,32 do que jovens com outros tipos de dor crônica33 e controles. Isso resulta em uma maior quantidade de comportamentos disfuncionais e incapacidade34 relacionadas com a doença, como maiores níveis de absenteísmo escolar e consultas a serviços de saúde.27 Na verdade, um estudo sobre o tema35 encontrou que 12% dos pais optaram pela educação domiciliar em razão das dores frequentes enfrentadas por seus filhos, contra 2% da população geral nos Estados Unidos. Além disso, a quantidade de faltas na escola das crianças com SFJ chega a 41 dias por ano, contra nove dias por ano da população geral.
O debate em torno das origens da SFJ ainda precisa elucidar melhor as relações entre os aspectos fisiológicos e psicológicos da doença. Vários autores têm buscado caracterizar a doença com relação a esses aspectos, mas existem poucos estudos que trazem impacto sobre a compreensão da relação de causa ou consequência das várias comorbidades e agravantes psicológicos encontrados nos jovens que sofrem de dores generalizadas. A começar pela influência familiar no desenvolvimento da doença, vários estudos19,22,36,37 relatam uma concomitância dos sintomas entre pais e filhos com fibromialgia. Recentemente, um estudo sobre a dor generalizada em jovens26 encontrou uma quantidade maior de pais com dor, fibromialgia e problemas mentais. Contudo, ainda não há estudos que tenham sido capazes de estabelecer relações de causalidade.
Em relação às evidências de envolvimento de fatores genéticos, a influência dos pais no comportamento aprendido das crianças é amplamente conhecida e pode estar associada ao acréscimo de reações pouco funcionais à dor e, portanto, contribuir para o desenvolvimento dos fatores que colaboram para o diagnóstico de SFJ, como a ansiedade e a depressão. Por exemplo, o padrão de sono semelhante19,27 dos pacientes e parentes pode ser influenciado por fatores sociais ou de moradia que não foram avaliados nos estudos que usaram a polissonografia disponíveis na literatura.27,28
Alguns estudos demonstram que os jovens com fibromialgia parecem vir de famílias cujos membros são mais desorganizados e ansiosos do que os controles,36,38 o que também influenciaria a forma de enfrentar os problemas cotidianos. Seus pais também apresentavam maior dor, relacionamentos afetivos piores37 e tenderam a usar serviços de saúde com mais frequência. Outros exemplos da influência ambiental no desenvolvimento dos padrões de comportamento dos jovens com fibromialgia podem ser encontrados no modo como eles reagem aos fatores desencadeantes ou resultantes da dor. Um estudo sobre as estratégias de enfrentamento a situações aversivas18 demonstrou que os jovens com SFJ usam mais estratégias de fuga e evitação de problemas (problem-focused avoidance ) do que os controles, o mesmo padrão de enfrentamento usado pelos pais. Além disso, Sil et al.39 fizeram uma pesquisa sobre a influência do ambiente familiar no desenvolvimento dos jovens com SFJ. Ela concluiu que um ambiente altamente controlado pelos pais pode levar a graus mais elevados de depressão nesses jovens, sem influenciar nas condições de saúde física. Isso parece coerente, uma vez que ambientes controlados possibilitam menos reações de fuga e evitação e levam a um maior nível de desamparo e, consequentemente, à depressão.
Um fator interessante que aparece na literatura sobre a psicologia da SFJ é a percepção divergente entre pacientes e parentes sobre as condições de vida dos jovens.22 As mães dos pacientes tendem a classificar a doença com mais gravidade do que os próprios pacientes,37 ainda que as crianças atuem mais eficazmente do que os adultos para a diminuição da dor.34 Libby e Glenwick40 demonstraram que os jovens avaliados sofrem mais em consequência dos aborrecimentos cotidianos do que em função dos sintomas cardinais da doença ou grandes eventos estressantes. O apoio familiar parece ser um grande fator protetor de agravos. Do mesmo modo, no dia a dia, o temperamento desses jovens resulta em mais problemas comportamentais do que em controles saudáveis.36 Portanto, parece que os pacientes com SFJ gastam muita energia na lida com os sintomas da doença e estão em desvantagem social frente às outras pessoas.
Os adultos41 e jovens34,42 com fibromialgia parecem compartilhar os mesmos traços de personalidade e estratégias disfuncionais de enfrentamento de problemas. Além disso, parece existir um tipo de ambiente familiar favorável à ocorrência da doença. Portanto, pode-se especular que ainda que a doença não seja de origem psicológica, ela produz uma queda na qualidade da vida funcional18 dos pacientes, o que pode ser um fator comum para o desenvolvimento ou agravamento da síndrome.
Tratamento
Há amplo consenso na literatura de que o tratamento para a fibromialgia deve ser multiprofissional1,2,6 e focado em intervenções não farmacológicas, com o uso de medicamentos apenas para o controle dos sintomas e das comorbidades.7 O tratamento deve envolver fisioterapia,32 exercícios43 e psicoterapia.44,45 Intervenções comportamentais33 também são eficazes e instruir os pais em relação aos sintomas da doença favorece o diagnóstico precoce.46
Ainda que não seja possível determinar quais abordagens psicológicas são as mais eficazes, Kashikar-Zuck et al. têm usado a terapia cognitivo-comportamental com sucesso no tratamento desses pacientes.46 Há até um estudo randomizado47,48 do mesmo grupo que demonstrou melhoria funcional nesses pacientes, mas sem um seguimento para comprovar os efeitos do tratamento em longo prazo. O mesmo autor descreve que sua prática clínica em psicoterapia cognitivo-comportamental consiste em submeter o paciente a treino de relaxamento muscular e técnicas de distração, estimulação ativa e estratégias cognitivas para reduzir a angústia e fortalecer o enfrentamento ativo, uma abordagem que leva à redução da angústia e da incapacidade.
Contudo, quando o objetivo da terapia cognitivo-comportamental era aumentar os níveis de atividade física dos jovens com fibromialgia,49 a abordagem foi menos eficaz do que intervenções educativas. Ambas não melhoram a adesão a tais atividades. Outro estudo usou a terapia cognitivo-comportamental para o tratamento da dor e obteve resultados moderados no pós-intervenção e no seguimento.24 Porém, esse estudo tem problemas metodológicos, como a heterogeneidade na idade da amostra usada, que variava entre oito e 18 anos. Os pacientes de mais idade foram justamente os que desistiram do tratamento.
Conclusões
Após esta revisão de literatura, o tópico sobre a definição de a SFJ ser uma doença diferenciada de sua correlata na vida adulta ainda permanece indefinido, uma vez que os pesquisadores da área levantam evidências favoráveis a ambas as posições. Sob o ponto de vista das características de personalidade, há semelhanças no modo disfuncional como os adultos e jovens com fibromialgia enfrentam seus problemas diários e na percepção alterada da dor. Contudo, a percepção da gravidade da doença indica uma diferença importante, uma vez que os jovens tendem a caracterizar a doença como menos grave e enfrentam melhor seus sintomas.
Um modo de ajudar a demonstrar uma possível gradação da doença compatível com a idade seria a feitura de novos estudos que diferenciassem crianças de adolescentes com SFJ. A mesma lógica se aplica às modalidades de tratamento, uma vez que a maior parte dos artigos que aborda o tratamento da doença o faz de modo limitado, não chega a resultados conclusivos. Os trabalhos futuros deverão se basear em estudos de coorte e ensaios clínicos sobre a SFJ.
Ainda que a fibromialgia não seja classificada como uma doença psiquiátrica, suas implicações psicológicas e funcionais devem ser tratadas com seriedade e com o uso de métodos próprios da psicologia que ajudem pacientes e parentes a modificar suas estratégias de enfrentamento dos problemas cotidianos, a aliviar as consequências disfuncionais da dor e da fadiga e a diminuir o risco de catastrofização que as pessoas submetidas a dores constantes desenvolvem em relação ao ambiente que as cerca. Portanto, nos parece que a avaliação psicológica caso a caso dos pacientes com SFJ seja essencial para a definição da estratégia terapêutica a ser usada, uma vez que há poucas evidências sobre a melhor abordagem psicológica para esses casos e apenas a terapia cognitivo-comportamental é citada na literatura.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jan-Feb 2016
Histórico
-
Recebido
23 Out 2014 -
Aceito
17 Jul 2015