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Endocardite de Libman-Sacks, anticorpos antifosfolípides e trombose arterial no lúpus ertitematoso sistêmico: relato de caso

Resumos

Relato de caso de paciente de 38 anos, feminina, com lúpus eritematoso sistêmico (LES) que apresentou evento tromboembólico arterial agudo em membro inferior direito. A investigação evidenciou a presença de anticorpos antifosfolípides e vegetação asséptica em válvula mitral, endocardite de Libman-Sacks (eLS). São discutidas as possíveis causas de eventos tromboembólicos arteriais no LES, com ênfase nas recomendações atuais para diagnóstico e tratamento da eLS

endocardite de Libman-Sacks; síndrome do anticorpo antifosfolípide; anticorpos antifosfolípides; lúpus eritematoso sistêmico


Case report of a 38-year-old female patient with systemic lupus erythematosus (SLE) who presented an acute arterial thromboembolic event in the right lower limb. Investigation showed the presence of antiphospholipid antibodies and sterile vegetation in the mitral valve, Libman-Sacks endocarditis (LSE). Possible causes of thromboembolic events in SLE are discussed, with emphasis on current recommendations for diagnosis and treatment of LSE

Libman-Sacks endocarditis; antiphospholipid antibody syndrome; antiphospholipid antibodies; systemic lupus erythematosus


RELATO DE CASO

Endocardite de Libman-Sacks, anticorpos antifosfolípides e trombose arterial no lúpus ertitematoso sistêmico: relato de caso

Raul Amorim MarquesI; Carolina Salim Gonçalves FreitasI; Romeo CecconII; Sandra Gofinet PasottoIII

IMédico Residente (R2) de Clínica Médica do Hospital do Servidor Público Municipal - HSPM

IIMédico Reumatologista, Coordenador do Serviço de Reumatologia do HSPM

IIIDoutora pela FMUSP, médica reumatologista do Hospital das Clínicas da FMUSP

Correspondência para Correspondência para: Dra. Sandra Gofinet Pasotto Faculdade de Medicina da USP, Disciplina de Reumatologia Av. Dr. Arnaldo, nº 455, 3º andar, sala 3190. Cerqueira César São Paulo, SP. CEP: 01246-903 E-mail: sandrapasoto@yahoo.com.br

RESUMO

Relato de caso de paciente de 38 anos, feminina, com lúpus eritematoso sistêmico (LES) que apresentou evento tromboembólico arterial agudo em membro inferior direito. A investigação evidenciou a presença de anticorpos antifosfolípides e vegetação asséptica em válvula mitral, endocardite de Libman-Sacks (eLS). São discutidas as possíveis causas de eventos tromboembólicos arteriais no LES, com ênfase nas recomendações atuais para diagnóstico e tratamento da eLS.

Palavras-chave: endocardite de Libman-Sacks, síndrome do anticorpo antifosfolípide, anticorpos antifosfolípides, lúpus eritematoso sistêmico.

INTRODUÇÃO

A endocardite de Libman-Sacks (eLS), caracterizada por vegetações estéreis nas válvulas cardíacas, é detectada por ecodopplercardiograma em 11% dos pacientes com lúpus eritematoso sistêmico (LES).1 Geralmente cursa de forma assintomática, porém casos com necessidade de troca valvar foram descritos.2

Foi observada associação entre eLS e anticorpos antifosfolípides (aAFs), com aumento do risco de fenômenos tromboembólicos nestes pacientes.1 Relatamos caso de paciente com LES, eLS e síndrome antifosfolípide (SAF), que apresentou evento tromboembólico arterial periférico agudo. Discutimos as possíveis causas deste evento, com ênfase nas recomendações atuais para diagnóstico e tratamento da eLS.

RELATO DE CASO

Para este relato, foi obtido consentimento da paciente, feminina, 38 anos, parda, auxiliar de enfermagem. Acompanhada no Serviço de Reumatologia do Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM) desde março/2005 com diagnóstico de LES, quando apresentou erupção malar, fotossensibilidade, poliartrite simétrica não erosiva de pequenas e grandes articulações e púrpura palpável nos membros inferiores. Previamente ao diagnóstico, teve três gestações: 1ª - feto nascido a termo de parto cesáreo; 2ª - pré-eclâmpsia e parto cesáreo prematuro na 30ª semana; 3ª - aborto espontâneo na 8ª semana. Após a segunda gestação, evoluiu com hipertensão arterial sistêmica (HAS). Tabagista, sem uso de anticoncepcionais.

À época do diagnóstico de LES, apresentava hemograma normal, com 250.000 plaquetas, ureia/creatinina normais, VHS aumentada, fração C3 do complemento diminuída, C4 no limite inferior da normalidade e proteinúria de 24h de 360 mg. Os anticorpos antinucleares (FAN em HEp-2) foram positivos (pontilhado, 1:1280); anti-DNA nativo negativo; anti-Sm, anti-RNP, anti-Ro/SS-A positivos e anti-La/SS-B negativo. Apresentava anticorpos anticardiolipina (IgG: 30 GPL, IgM: 70 MPL) e anticoagulante lúpico positivos. Histologia das lesões purpúricas revelou vasculite leucocitoclástica.

Iniciou-se tratamento com prednisona 1 mg/kg/dia, difosfato de cloroquina 250 mg/dia, losartana 100 mg/dia, nifedipina 20 mg/dia e ácido acetilsalicílico (AAS) 100 mg/dia. Contudo, a paciente abandonou tratamento por um ano e, apesar disto, evoluiu com melhora clínica e redução da dose de corticoide. Em janeiro/2008, apresentava-se sem queixas, com VHS, C3/C4 normais, em uso irregular de prednisona 20 mg/dia e AAS.

Em 15/02/08, procurou Pronto Socorro do HSPM por dor no membro inferior direito (MID) há 15 dias, com piora intensa há dois dias. Encontrava-se em regular estado geral, corada, afebril, PA = 160 x 100 mmHg. Exame pulmonar normal. À ausculta cardíaca, observou-se desdobramento de B2 em foco pulmonar. O MID apresentava-se cianótico, frio (desde a extremidade distal da perna) e sem pulsos palpáveis (pedioso e tibial posterior). O MI esquerdo apresentava coloração e temperatura normais e pulsos distais palpáveis, porém diminuídos. Não foram observadas lesões cutâneas ou orofaríngeas, artrites, nem deformidades articulares.

Doppler arterial de MID evidenciou obstrução em tibial posterior (terço distal). Arteriografia demonstrou oclusão poplíteo-distal direita (Figura 1). Eletrocardiograma normal. Ecocardiograma transtorácico com imagem de vegetação em válvula mitral (16 x 3,9 mm) (Figura 2), derrame pericárdico de 99 mL e fração de ejeção de 66%. Ecocardiograma transesofágico confirmou presença de vegetação mitral, colhidos seis pares de hemoculturas de sítios diferentes, todos negativos. Hemoglobina = 10,6 mg/dL, 275000 plaquetas e 7000 leucócitos, ureia = 23/ creatinina = 1,2 mg/dL, sedimento urinário normal. Anticorpo anti-DNA nativo negativo e anticorpos anticardiolipina IgG (13,6 GPL) indeterminado e IgM (2,4 MPL) negativo, com anticoagulante lúpico positivo. VHS = 69 mm, proteína C reativa (PCR) = 3,95 mg/L , C3 diminuído e C4 normal.



Iniciou-se anticoagulação com heparina não fracionada, depois mantida com warfarina (INR- 2,5-3,5). Foram também introduzidos prednisona (40 mg/dia), difostato de cloroquina, enalapril (40 mg/dia) e nifedipina (30 mg/dia). A paciente evoluiu com melhora da dor e perfusão no MID (clinicamente e ao doppler) e sem perda tecidual, recebendo alta hospitalar em 29/02/08. Não chegou a fazer controle ecocardiográfico no momento da alta.

DISCUSSÃO

Relatamos caso de paciente com LES (critérios do Colégio Americano de Reumatologia)3 que apresentou fenômeno tromboembólico arterial agudo em MID, o qual pode ter sido decorrente de eLS ou SAF. De fato, a mesma apresentava vegetação asséptica em válvula mitral; além de história de pré-eclâmpsia e parto prematuro em associação com anticorpo anticoagulante lúpico positivo em duas ocasiões, caracterizando diagnóstico de SAF.4 Provavelmente, apresentava também arteriopatia aterosclerótica, que aparece prematuramente no LES, principalmente em associação com HAS, tabagismo e uso crônico de corticóide5 e que pode ter contribuído para a oclusão vascular.

Em estudo com 342 pacientes lúpicos, eLS foi detectada por ecodopplercardiograma em 11% dos casos, mais frequentemente na válvula mitral.1 Após quatro anos de seguimento, insuficiência e/ou estenose valvar foram frequentes e dois pacientes candidatos à cirurgia cardíaca foram à óbito.1 Assim, o diagnóstico de eLS é de fundamental importância. Para tanto, a ecocardiografia é atualmente o melhor método de imagem e, em estudo prospectivo, controlado e randomizado, o ecocardiograma transesofágico mostrou-se superior ao transtorácico na detecção das vegetações valvares da eLS no LES.6

Devemos lembrar ainda que endocardite infecciosa não é incomum em pacientes lúpicos com eLS, sendo imperativo diagnóstico diferencial. Neste aspecto, três dados laboratoriais são úteis: contagem leucocitária, níveis de PCR e de aAFs.2 Os leucócitos tendem a diminuir durante atividade lúpica, o inverso ocorrendo na endocardite infecciosa. Quanto aos aAFs, é pouco provável que níveis elevados sejam decorrentes de processos infecciosos, sugerindo mais LES. A PCR muito elevada sugere processo infeccioso, pois pacientes lúpicos são menos capazes de montarem uma resposta exuberante desta proteína, contudo, para diagnóstico diferencial definitivo, as hemoculturas são mais importantes.2 No presente, fizemos diagnóstico de eLS, pois a contagem de leucócitos era normal, PCR pouco elevada, positividade dos aAFs e seis pares de hemoculturas negativos.

Observa-se risco aumentado de eventos tromboembólicos na eLS, que pode ser em parte decorrente da presença dos aAFs.1,2 Pacientes com anticorpo anticardiolipina IgG em títulos moderados a altos apresentam maior incidência de lesões valvares, entretanto há pacientes com doença valvar nos quais o anticoagulante lúpico é o único aAF detectado.2 Mais recentemente, títulos moderados a altos de anticorpo anti-β2-glicoproteína-I foram associados à doença valvar na SAF.7 Em nosso serviço, não dispomos da pesquisa desse anticorpo, mas enfatizamos sua importância na avaliação de pacientes com suspeita de SAF.8

É escassa a informação na literatura sobre o tratamento da eLS. Sabe-se que a utilização de corticóide e imunossupressores parece não ter efeito sobre as lesões valvares, porém a anticoagulação deve ser utilizada no tratamento de pacientes com fenômenos tromboembólicos.2 Em relato de paciente com LES, SAF, eLS com vegetação mitral e crises convulsivas, a anticoagulação oral levou à resolução das convulsões e da vegetação detectada através da ecocardiografia.9 Contudo, estudo avaliando pacientes com SAF primária e lesões valvares mostrou persistência das mesmas apesar da anticoagulação oral.10

No presente, a paciente recebeu warfarina para manter INR entre 2,5-3,5, difosfato de cloroquina e, como apresentava indícios de atividade de doença (derrame pericárdico, aumento de VHS e C3 diminuído), prednisona - 40 mg/dia. Neste aspecto, deve ser considerado que estudos prospectivos, controlados e randomizados mostraram que tanto a anticoagulação moderada (INR 2,0-3,0) quanto a mais intensiva (INR 3,0-4,0) com warfarina foram similarmente eficazes para prevenção de novos eventos tromboembólicos em pacientes com SAF após a primeira trombose.11 Entretanto, nestes estudos, pacientes com eventos arteriais constituíram menos da metade da população avaliada e alguns especialistas recomendam anticoagulação mais intensiva para doentes com SAF e trombose arterial.8

Já a utilidade potencial da hidroxicloroquina em prevenir eventos relacionados à SAF se mantém no caso de pacientes com LES, particularmente aqueles com aAFs, pois há evidência de menor número de fenômenos trombóticos com seu uso.12

Submetido em 08/09/2009.

Aprovado, após revisão, em 04/10/2010.

Declaramos a inexistência de conflito de interesse.

Disciplina de Reumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - FMUSP.

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  • Correspondência para:

    Dra. Sandra Gofinet Pasotto
    Faculdade de Medicina da USP, Disciplina de Reumatologia
    Av. Dr. Arnaldo, nº 455, 3º andar, sala 3190. Cerqueira César
    São Paulo, SP. CEP: 01246-903
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      08 Set 2009
    • Aceito
      04 Out 2010
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