Até que ponto o acaso ou, colocando a questão em outros termos, as tramas curiosas da história do Brasil no campo da agricultura, da alimentação e nutrição justificam a diversidade de experiências, relatos e, porque não dizer, a contribuição variada e riquíssima que caracteriza a participação do nosso país desde os primórdios do descobrimento até nossos dias nesta trilogia de relações explicitadas nos unitermos do título?!
A crônica do descobrimento de novas terras desde que a frota pioneira até um tanto aventureira da esquadra de Pedro Álvares Cabral desembarcou no Brasil, foi, curiosamente, uma resenha de anotações de fatos que cabiam como abertura de páginas novas, ou melhor, de sugestivos capítulos de livros inaugurais de temas de alimentação e nutrição em terras de língua portuguesa na América latina.
Assim, as escrituras de Pero Vaz de Caminha, poderiam ser consideradas como uma carta humanista e discreta dos bastidores oficiais descrevendo o cerimonial da descoberta através do marco da Cruz de Malta como símbolo do branco europeu ocupando a praia na enseada de Porto Seguro. No entanto, em suas anotações descrevia as expedições colonizadoras para consolidar a posse das novas terras continentais, até as sucessivas vagas de embarcações cada vez maiores e mais seguras.
Na verdade, nessa carta estavam sendo apresentadas às riquezas potenciais que permeavam nosso futuro como celeiro mundial de alimentos entre o novo e o velho mundo, do triângulo Brasil, Europa, Ásia, mesclando cores, sabores de velhos e novos continentes, colonizados pela ousadia de gerações, fazendo e refazendo os costumes, os desfechos e, portanto, a história.
Caminha, mais que um burocrata entusiasmado com a nudez das índias, percebeu que a terra aqui “plaina, chã e mui formosa” era, de fato, um solo privilegiado onde se plantando, tudo nela prosperaria.1 Estas perspectivas proféticas dos descobridores europeus logo estimularam o trânsito de vai e vem estre os povos e culturas.
Esses povos vinham da Ásia, do médio/leste europeu (Espanha, França), um pouco de etnia eslava e muitos africanos, estes já empurrados pelo chicote e pela masmorra da escravidão, manchando de sangue de escravos e da fome com todo o seu cortejo de sintomas, em que eram desenhados os rosários raquíticos nas junções costocondrais como as contas dos terços religiosos que exaltavam o sacrifício dos miseráveis estigmatizados pelas mazelas do corpo e da alma.2
E assim, os apetrechos da fé misturando-se com os rituais das crenças cristãs, foram se espalhando pelo litoral, zona da mata e agreste, onde a natureza ofertava os solos mais ricos do novo mundo, ao lado das extensas planícies entre as muralhas geográficas das Montanhas Rochosas e dos Alegânis ou Montes Apalaches delimitando o mapa dos solos agrícolas feitos com a paciência geológica dos aluviões, do barro pegajoso do massapê, nas terras do sem fim das Américas.
É um desenho impressionista, mas são as manchas e as cores de um mundo pigmentado pelos sinais pandêmicos que redesenham a cartografia da exclusão, com a sintomatologia das pragas, do raquitismo pélvico das mulheres, da osteomalácia, do béri-béri, escorbuto, das sufusões hemorrágicas, das formas paralíticas da deficiência de tiamina, de riboflavina, a mais “inocente” das doenças da fome, e que agora ressurgem nos ecossistemas da pobreza, que reaparecem no novo e até no velho mundo de Deus e dos homens.3,4 Vejam-se os relatos técnicos da Organização Mundial da Saúde (OMS), da Organização das Nações Unidas Para Agricultura e Alimentação (FAO) e outras instituições.5,6 O tema, que aparentemente havia adormecido com a sonolência dos séculos, retorna ao mundo atual.
Há, evidentemente, um pouco de frustração, de revolta, de queixas internas e externas ao selecionar estas mazelas como marcas que não se apagam. Sim, o mundo continua manchado, como nos tempos que Josué de Castro escreveu a Geografia e a Geopolítica da Fome.3,7 E, nos casos mais escuros ainda: O livro negro da fome, também de Josué de Castro, com suas dezenas de livros e mais de duas centenas de artigos, publicados em diversas línguas e até mesmo em idiomas já extintos, como o sânscrito.8
É lamentável e até revoltante o desdobramento do progresso científico, que assume todos os níveis de um crescimento sem os conselhos saudáveis da ética que possa moderar o apetite pantagruélico do lucro, expresso semanticamente como logro. Economia do consumismo, criando uma versão unilateral que defende a explicação mais atual e, sobretudo, mais futurista do que passa a se entender como o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.9
Fica-se em constrangedora dúvida: o fim dos novos caminhos, sem a saudável sinalização da ética. A genética como ponto de partida e ponto de chegada, associada ao condicionamento comportamental do tipo ortodoxamente pavloviano.
O português, nosso ancestral nas páginas de história, bom de arado puxado por bois para remover a camada cultivável de terra e, acima de tudo, como força motriz, as engrenagens dentadas das moendas de cana-de-açúcar, e o trabalho historicamente criminoso das levas de negros trazidos à força da Angola e Costa do Marfim, marcam a imagem e consolidam a primeira e grande agroindústria nas fertilíssimas terras da colônia lusa. Da fartura dos engenhos, o açúcar mascavo dos modelos precursores das usinas. Depois, o açúcar embranquecido no pioneirismo dos senhores de engenhos e de usinas, se fez a agroindústria latifundiária e escravocrata.10,11 E haja crise política e de saúde.
A partir da crise do petróleo, o álcool combustível passa também a substituir a gasolina importada, ou seja, industrializada a partir do ouro negro fóssil de nosso rico e profundo pré-sal. Mas o que queremos pontuar é que grande parte da agricultura brasileira, muda radicalmente de função econômica, sai da panela e dos pratos de remediados e de pobres para a fornalha biológica de novos consumidores.12-15
E agora para onde vamos? Só os 20 anos seguintes apontarão o destino, metabolismo biológico (desvios fisiopatológicos/metabológicos), ou os motores de explosão internos, já propostos e até expostos, como combustíveis de fontes renováveis pela magia da fotossíntese.
Referências bibliográficas
- 1 Caminha PV. A Carta de Pero Vaz de Caminha. Rio de Janeiro: Editora Vozes; 2019.
- 2 Gurgel CBFM, Lewinsohn R. A medicina nas caravelas-Século XVI. Cad História Ciênc. 2010; 6 (2): 105-20.
- 3 De Castro J, Branco JC. Geografia da Fome. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil; 1952.
- 4 Ferreira RL. Doenças, germes e curas. Cad História; 2013. 8 (1): 236-48.
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5 FAO, IFAD, UNICEF, WFP, WHO. 2021. The State of Food Security and Nutrition in the World 2021. Transforming food systems for foodsecurity, improved nutrition and affordable healthy diets for all. Rome: FAO; 2021. [acesso em 2022 out 15]. Disponível em: https://www.fao.org/documents/card/en/c/cb4474en
» https://www.fao.org/documents/card/en/c/cb4474en -
6 FAO, IFAD, UNICEF, WFP, WHO. The State of Food Security and Nutrition in the World 2022. Repurposing food and agricultural policies to make healthy diets more affordable. Rome: FAO; 2022. [acesso em 2022 out 15]. Disponível em: https://www.fao.org/documents/card/en/c/cc0639en/
» https://www.fao.org/documents/card/en/c/cc0639en/ - 7 De Castro J. Geopolítica da Fome: ensaio sobre os problemas de alimentação e de população do mundo. São Paulo: Editora Brasiliense; 1961.
- 8 De Castro J. O livro negro da fome. São Paulo: Editora Brasiliense; 1960.
- 9 Huxley A. Admirável mundo novo. 2aed. Porto Alegre: Editora Globo; 2001.
- 10 Godoy MM. Civilizações da cana-de-açúcar: dois paradigmas de atividades agroaçucareiras no Novo Mundo, séculos XVI a XIX. História Econômica & História de Empresas. 2007; 10 (2): 7-62.
- 11 Miller JC. O Atlântico escravista: açúcar, escravos e engenhos. Afro-Ásia, n. 19-20, 1997
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12 Leite RC, Cortez LAB. O etanol combustível no Brasil.[Internet]. Rev Biocombustíveis no Brasil: Realidades e Perspectivas. 2008. [acesso em 2022 out 15]. Disponível em: https://sistemas.mre.gov.br/kitweb/datafiles/NovaDelhi/pt-br/file/Biocombustiveis_04-etanolcombustivelnobrasil.pdf
» https://sistemas.mre.gov.br/kitweb/datafiles/NovaDelhi/pt-br/file/Biocombustiveis_04-etanolcombustivelnobrasil.pdf -
13 Bastos VD. Etanol, alcoolquímica e biorrefinarias. [Internet]. BNDES Setorial. 2007; 25: 5-38. [acesso em 2022 out 15]. Disponível em: https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/bitstream/1408/2527/1/BS%2025%20Etanol%2c%20Alcoolqu%c3%admica%20e%20Biorrefinarias_P.pdf
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- 15 Masiero G, Lopes H. Etanol e biodiesel como recursos energéticos alternativos: perspectivas da América Latina e da Ásia. Rev Bras Política Int; 2008. 51: 60-79.
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Editor Associado: Lygia Vanderlei
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
27 Mar 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
15 Out 2022 -
Revisado
16 Out 2022 -
Aceito
18 Out 2022