Open-access COVID-19 e Doença Falciforme: um desafiador dilema em uma doença antiga

Resumo

Os autores trazem reflexões sobre as pessoas com doença falciforme na era da pandemia. Eles comentam algumas situações clínicas comuns nessas duas doenças que podem retardar ou confundir o diagnóstico de COVID-19 em pacientes com doença falciforme. Consideramos que as pessoas com doença falciforme fazem parte do grupo de risco para complicações da COVID-19 e o tema deve ser abordado na literatura científica.

Palavras-chave COVID-19; Anemia falciforme

Abstract

The authors bring reflections about people with sickle cell disease in the pandemic era. They comment on some common clinical situations in these two diseases which may delay or confuse the diagnosis of COVID-19 in patients with sickle cell disease. We consider that people with sickle cell disease are part of the risk group for the complications of COVID-19 and the topic should be addressed in the scientific literature.

Key words COVID-19; Sickle cell disease

Introdução

Há mais de 110 anos, a Doença Falciforme (DF) foi descrita cientificamente e desde então a variabilidade das manifestações clínicas, seus desfechos desfavoráveis e fisiopatologia ainda são um desafio para profissionais de saúde e pacientes.1 Atualmente, a pandemia do novo coronavírus (Sars-Cov-2) afetou pessoas com maior vulnerabilidade clínica, resultando em altas taxas de mortalidade entre os indivíduos.2 Os pacientes com DF apresentam um risco maior de resultados adversos do COVID-19? E as manifestações clínicas semelhantes ao coronavírus serão mais facilmente identificadas em pacientes com DF? Essas são questões ainda sem respostas enfrentadas na pandemia em relação à população com DF.

Anemia hemolítica crônica, sinais de oclusão de vasos com reações inflamatorias nos tecidos, liberação de citocinas e quimiocinas inflamatórias, fatores teciduais e de coagulação fazem parte da fisipatologia da DF.1 No contexto da COVID-19, ainda há muito a ser conhecido, mas sinais de atividade exacerbada de citocinas e reações inflamatórias em tecidos com sinais de pró-coagulação são relatados em publicações recentes.3 Essas condições inflamatórias ocorrem tanto na DF quanto na infecção por COVID-19.

As publicações mais recentes na COVID-19 referem infecção e disfunção do endotélio vascular como eventos maiores que ocorrem principalmente no trato pulmonar, mas também podem estar presentes em outros órgãos. Esse dano ao endotélio também aparece em pacientes com DF e esse é outro motivo para tentar explicar e compreender os pacientes com DF como uma população vulnerável às complicações do COVID-19.4-6

Haveria uma sobreposição de inflamação de ambas as doenças? Ou a própria inflamação seria um fator de maior gravidade para pacientes com DF? Além disso, seria a inflamação uma situação clínica em que os sinais e sintomas secundários à DF seriam difíceis de distinguir em pacientes com DF infectados com COVID-19?

Nesse contexto, serão aqui feitas comparações teóricas para que novas propostas de estudos possam ser apresentadas para pacientes com DF com COVID-19. Sabe-se que pacientes com DF também apresentam risco aumentado para infecções associadas a maior morbimortalidade, sendo a causa mais frequente de morte por infecção, quando não diagnosticada e tratada precocemente.1

A síndrome torácica aguda (STA) é outra urgência temida na DF e, como outras infecções virais, a SARS-CoV-2 também pode causar STA em pacientes com DF. Em um cenário de pandemia, a STA pode ser mais frequente e indistinguível da pneumonia (PN) porque os pacientes geralmente apresentam início súbito de sintomas do trato respiratório inferior, incluindo tosse, dispneia e dor torácica, e um novo infiltrado pulmonar na radiografia de tórax, com aspectos clínicos muito semelhantes daqueles com COVID-19. A identificação precoce dessas manifestações clínicas beneficiará os pacientes afetados, uma vez que STA sobreposta ao COVID-19 piora a taxa de mortalidade entre a população infectada.7,8 A infecção por COVID-19 na população com DF pode causar complicações graves (pulmonares), seja por causar diretamente graves pneumonia ou desencadeando um CVO e / ou STA.9

As manifestações neurológicas em pacientes com DF são bem descritas e apresentadas principalmente como acidente vascular cerebral e cefaleia.10 Durante o período pandêmico de COVID-19, os sintomas variam de dores de cabeça inespecíficas ou tonturas a mais específicos, como convulsões e doenças cerebrovasculares.11 Mesmo que esses aspectos clínicos não sejam tão frequentes, é importante saber que provavelmente podem agravar os sinais neurológicos em pacientes com DF.

Manifestações cardiovasculares em pacientes com DF também são bem descritas (pressão sistólica da artéria pulmonar elevada, hipertensão pulmonar, doença cardíaca diastólica do ventrículo esquerdo, arritmia, morte súbita).12 Lesão miocárdica foi relatada em pacientes afetados por COVID 19 e esse dano pode piorar um quadro cardíaco anterior em paciente com DF.13

Em pacientes com DF, outra complicação é a nefropatia (glomerulopatia, proteinúria, hematúria, defeitos tubulares e doença renal em estágio terminal) e há diferentes mecanismos fisiopa-tológicos, como hemólise e oclusão vascular.14 Na infecção por COVID-19, lesão renal aguda, proteinúria e raramente hematúria podem ocorrer também e há alguns relatos na histologia renal mostrando necrose tubular aguda.15

Outro aspecto importante da infecção por SCD e COVID-19 é durante a gravidez. Mulheres e conceptos representam uma população de alto risco durante a pandemia de COVID 19. Mulheres grávidas com DF estão associadas a maiores taxas de complicações obstétricas, perinatais e clínicas (perda gestacional precoce, embolia pulmonar, aborto espontâneo, partos prematuros, maiores taxas de eventos dolorosos e transfusões) com maiores taxas de mortalidade e morbidade,16 conforme publicamos.17 Os resultados maternos e fetais das infecções por SARS-CoV-2 na gravidez também são adversos e partos prematuros, aborto espontâneo, eventos tromboembólicos ou restrição de crescimento intrauterino também foram relatados.18 Em um relato de caso recente, houve um resultado favorável em a gestante com DF e infecção por COVID-19,19 por outro lado, também há relatos de casos piores em gestantes com COVID-19, para corroborar a ideia de que mais estudos são necessários para melhor estabelecer e definir as características clínicas dessas doenças em conjunto.20

Encorajamos o desenvolvimento de um guia prático baseado no que foi publicado sobre o COVID-19 e no que já se sabe sobre a fisiologia da DF. Essa estratégia poderia diminuir os desfechos desfavoráveis que supomos afetar os pacientes com DF, visto que os classificamos como uma população vulnerável, frente ao COVID-19.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Fev 2021

Histórico

  • Recebido
    23 Set 2020
  • Aceito
    30 Out 2020
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