Acessibilidade / Reportar erro

A interrelação dos princípios metodológicos e dos princípios éticos na investigação e na publicação científica

EDITORIAL EDITORIAL

A interrelação dos princípios metodológicos e dos princípios éticos na investigação e na publicação científica

Há mais de um século o grande fisiologista Claude Bernard estendia, para a investigação científica, o preceito hipocrático de não só buscar o benefício ao paciente, mas também não lhe causar dano. Para isto, portanto, a integridade moral e o domínio dos métodos de pesquisa pelo investigador são dois fatores imprescindíveis.

Não é sem razão que a Associação Médica Mundial estabelece normas para a conduta científica e para a conduta ética dos pesquisadores, entre as quais, as seguintes:

"A pesquisa médica que envolve seres humanos deve estar em conformidade com um conhecimento completo da literatura científica, demais fontes relevantes de informação e em laboratório adequado e, quando apropriado, em experimentação animal"; Ou: " ... qualquer projeto de pesquisa médica que envolva seres humanos deve ser precedido por uma avaliação cuidadosa dos riscos e ônus previsíveis, em comparação com os benefícios previstos ao sujeito ou a outros".

A segunda norma supracitada, conhecida pela resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil), como princípio de não maleficência, exige do pesquisador uma boa dose de sensibilidade para perceber as conseqüências dos procedimentos na pesquisa que eventualmente venham a causar danos ao participante. Requer a capacidade de avaliar danos previsíveis e, naturalmente reconhecer nela o que caracteriza um dano.

Isto estabelecido permitirá a avaliação de, até que ponto, os benefícios justificam os possíveis malefícios. Evidentemente a sensibilidade do pesquisador provém não só da sua postura como ser humano, mas também do grau de conhecimento e experiência na sua área de trabalho. Quanto ao conhecimento, é fundamental saber otimizar os procedimentos de investigação para obter os resultados mais confiáveis com a menor agressão ou riscos à integridade do participante. Entretanto, pela complexidade de uma investigação, preservar o mínimo de invasividade e o máximo de respeito físico e psicológico ao indivíduo objeto da pesquisa nem sempre é fácil. De fato é na fronteira entre a conduta científica, a aplicação dos métodos e técnicas adequadas e os requisitos éticos que aparecem as dificuldades. Por outro lado, encontrar estes limites tem grande importância, dada a possibilidade de ser ultrapassada a tênue linha de demarcação entre o que pode e o que não pode ser feito. Assim, ainda que difícil, não é lícito deixar de buscá-la a todo custo. O problema é então: Qual o critério de demarcação que podemos tomar como base para a conduta metodológica e técnica na pesquisa, garantindo ademais a não maleficência? De que instrumento básico dispõe o pesquisador para guiar os seus procedimentos? Aqui entra a outra norma, a qual também merece comentários, porque está ligada a um elemento basilar da metodologia científica. Este é o chamado Princípio da Parcimonia que, quando empregado criteriosamente, contribui, e muito, não só para a qualidade da pesquisa mais também para a preservação do sujeito nela incluído. Proposto no século XIV por Guilherme de Occam (1285-1347), é um dos fundamentos da epistemologia científica, e tem como enunciado: "... não multiplique as coisas desnecessariamente (entia non multiplicanda praeter necessitatem"). Tomando-o como base, dele resultam diretrizes operacionais que não só simplificam o trabalho, como permitem obter conclusões pertinentes, além de reduzir os riscos para os participantes. Em outras palavras - e pedindo licença para usar um termo informal - tornam a pesquisa mais enxuta. Daí ser este princípio também conhecido como "navalha de Occam".

Onde o encontramos no nosso dia a dia como pesquisadores?

Na prática o que melhor define o Princípio da Parcimonia refere-se ao estabelecimento de hipóteses. Segundo ele, entre duas afirmações alternativas para o mesmo fenômeno, e não havendo diferença entre elas, a mais simples tem mais chance de estar correta. Aliás, Einstein disse-o de outra maneira, talvez até mais pertinente do que Occam: "Tudo deve ser tornado o mais simples possível, mas não mais simples do que isso". É relativamente comum observarmos, em monografias e mesmo em artigos científicos, proposição de hipóteses ou interpretação de dados em formas repetitivas ou rebuscadas, que não trazem maiores esclarecimentos ao problema estudado.

Para alcançar os critérios de parcimônia, aspectos como fundamentação científica com dados que justifiquem a pesquisa, hipóteses adequadas, descrição detalhada do projeto levando em conta os materiais, os métodos, a casuística e os resultados esperados - itens que figuram nas resoluções normatizadoras das entidades de ética em pesquisa, - devem ser bem dimensionados, de tal modo que não pequem pelo excesso ou pela falta. São consequentemente problemas graves em um trabalho a pobreza ou o exagero nas informações (inclusive redundantes) sobre antecedentes científicos dos assuntos pesquisados, a insuficiência nos procedimentos técnicos (de coleta e de análise dos dados) ou a inadequação na determinação do tamanho e seleção da amostra. Este último é um ponto crucial nas pesquisas quantitativas, pois uma amostra subdimensionada ou mal selecionada limitará ou mesmo anulará as suas conclusões (e neste caso os participantes terão sido expostos desnecessariamente a riscos). Por outro lado uma amostra superdimensionada exporá a riscos, desnecessariamente, pessoas que poderiam ficar fora da pesquisa. Não devemos esquecer ainda que a própria determinação do tamanho amostral é um aspecto difícil e delicado até mesmo para o profissional estatístico, devido a sutilezas dos métodos empregados, a pressupostos admitidos etc.

Resulta portanto, que o investigador necessita, para a proteção do ser humano em uma pesquisa, não só do conhecimento das normas éticas, mas também da aplicação da metodologia científica com o máximo rigor. Este rigor está intimamente associado às exigências do Princípio da Parcimônia.

Não é preciso ressaltar que para a publicação de um artigo científico, cujo pressuposto é exatamente uma pesquisa qualificada, os princípios metodológicos, bem como os princípios éticos (e não só o da não maleficência), devem também ser observados. Daí a exigência, nas normas de publicação dos periódicos, de que seja informado se a pesquisa atendeu aos requisitos éticos recomendados. Por isso mesmo faz parte da função dos editores e dos revisores a identificação de todos aqueles elementos em um manuscrito submetido. E é de todo procedente que os autores reconheçam este fato, pois tal reconhecimento facilitará a análise e aceitação do trabalho.

Enfim é importante lembrar que para a boa redação de um texto científico a obediência ao Princípio da Parcimônia faz-se extremamente necessária. Realmente, desde a secção introdutória às conclusões, ele deve permear o artigo. Razões como espaço disponível na revista, clareza na exposição, simplicidade (e se possível elegância) do estilo, eliminação de hipóteses e interpretações ad hoc são determinantes na redação. Mas são precisamente estes critérios que proporcionam uma boa estrutura ao artigo, permitindo uma leitura agradável e a transmissão adequada dos achados da pesquisa.

José Eulálio Cabral Filho

Editor Associado

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Nov 2004
  • Data do Fascículo
    Set 2004
Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira Rua dos Coelhos, 300. Boa Vista, 50070-550 Recife PE Brasil, Tel./Fax: +55 81 2122-4141 - Recife - PR - Brazil
E-mail: revista@imip.org.br