Resumo
Objetivo: analisar a associação entre estresse no trabalho e hipertensão arterial (HA).
Método: estudo transversal com amostra probabilística de 273 profissionais de enfermagem da rede municipal de saúde de Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, desenvolvido entre setembro de 2008 e janeiro de 2009. O estresse no trabalho foi mensurado com o modelo de demanda-controle e a hipertensão arterial por meio do autorrelato de diagnóstico médico da doença ou uso de medicação anti-hipertensiva. Razões de prevalência (RP) de HA e seus respectivos intervalos de confiança de 95% (IC 95%) foram ajustados pela técnica de regressão multivariada de Poisson.
Resultados: dos profissionais estudados, 42,1% eram enfermeiros e 57,8%, técnicos ou auxiliares de enfermagem. A HA foi diagnosticada em 16,9%. Sexo feminino (RP = 0,56), avançar da idade (p de tendência linear < 0,001), renda familiar de 4 ou mais salários mínimos (RP = 0,39) e o estresse no trabalho (RP = 2,53) permaneceram independentemente associadas à HA após o ajuste multivariado dos dados.
Conclusões: o estresse no trabalho está associado à HA em profissionais de enfermagem da rede municipal de saúde de Belo Horizonte. Este achado deve ser levado em consideração na formulação de políticas públicas que envolvem a promoção da saúde desses trabalhadores.
Palavras-chave: estresse no trabalho; hipertensão; enfermagem
Abstract
Objective: to assess the association between job strain and arterial hypertension (AH).
Method: cross-sectional study with random sample of 273 nursing professionals from the municipal healthcare network in Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil, conducted between September 2008 and January 2009. Job strain was measured using the demand-control model and hypertension by self-report medical diagnosis of the disease or use of antihypertensive medication. Prevalence ratios (PR) of AH and their respective 95% confidence intervals (95% CI) were adjusted by Poisson multivariate regression.
Results: among the professionals studied, 42.1% were nurses and 57.8% were nursing technicians or assistants. The AH was diagnosed in 16.9%. Female sex (PR = 0.56), increasing age (p of linear trend < 0.001), household income of 4 or more minimum wages (PR = 0.39) and job strain (PR = 2.53) were independently associated to AH after the multivariate adjustment.
Conclusions: job strain is associated with AH among nursing professionals from the municipal healthcare network in Belo Horizonte. This finding must be considered in the formulation of public policies involving the health promotion of these workers.
Keywords: job strain; hypertension; nursing
Introdução
A hipertensão arterial (HA) é um grave problema de saúde pública que afeta, aproximadamente, 20% da população adulta no Brasil1. A pressão arterial aumentada é considerada um fator de risco linear, contínuo e independente para as doenças cardiovasculares (DCV). Tais enfermidades são responsáveis por mais de um terço do total de óbitos no país, com destaque para as doenças isquêmicas do coração (DIC) e os acidentes vasculares encefálicos (AVE).
A HA explica 47% e 54% das DIC e dos AVE, respectivamente2, o que justifica investigações para elucidar fatores de risco passíveis de prevenção. Entre eles, cita-se o estresse no trabalho (combinação entre alta demanda de atividades laborais e baixo controle sobre as mesmas) que aumenta em 30% a ocorrência de HA em diferentes grupos ocupacionais3.
Estima-se que o estresse no trabalho desencadeie hiperatividade do sistema nervoso simpático e disfunção do eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal, ocasionando, em longo prazo, elevação persistente da pressão arterial4)-(5. Contudo, apesar da plausibilidade da associação entre estresse no trabalho e HA, no tocante à população brasileira, que seja do nosso conhecimento, publicou-se uma única pesquisa, que foi conduzida com um grupo de funcionários técnico-administrativos de uma universidade no estado do Rio de Janeiro na qual não houve associação entre estresse no trabalho e HA6. Quando o desfecho analisado não foi especificamente a HA, mas as médias das pressões arteriais sistólicas e diastólicas monitorizadas 24 horas (no trabalho, em casa acordado e em casa durante o sono), há um estudo desenvolvido com 175 enfermeiras de hospital público do município do Rio de Janeiro que trabalhavam no período diurno. O estresse no trabalho foi positivamente associado à maior média de pressão arterial sistólica em casa acordado apenas no grupo de participantes com sobrecarga de trabalho doméstico7.
Portanto, são necessários mais estudos no país para esclarecer a relação entre estresse no trabalho e HA, particularmente com profissionais de enfermagem, uma vez que este grupo ocupacional desempenha papel fundamental em todos os níveis da rede de atenção do Sistema Único de Saúde (SUS), com a prestação de assistência direta ao usuário de maneira ininterrupta 24 horas por dia.
Apesar de ser a maior força de trabalho entre as categorias profissionais do setor da saúde, com aproximadamente 1.900.000 trabalhadores8, ainda há escassez de enfermeiros no Brasil ao se considerar que a Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza a relação de 2 enfermeiros para cada 1.000 habitantes e que, no país, essa meta ainda não foi atingida (1,42 enfermeiros/1.000 habitantes)9.
A falta de trabalhadores de enfermagem tem levado à sobrecarga (alta demanda) dos profissionais, ao mesmo tempo que a divisão técnica do trabalho (enfermeiros e técnicos/auxiliares de enfermagem) e a relação hierárquica e conflitante com outras categorias do setor saúde têm diminuído a autonomia e o poder decisório sobre o seu fazer (baixo controle). Dessa forma, os profissionais de enfermagem são muito vulneráveis ao estresse no trabalho, o que tem sido demonstrado em pesquisas com esse grupo ocupacional10.
Diante do exposto, este estudo objetivou analisar a associação entre estresse no trabalho e hipertensão arterial (HA) em profissionais de enfermagem de rede municipal de saúde.
Método
Trata-se de um estudo transversal, conduzido, entre 2008 e 2009, com profissionais da equipe de enfermagem em efetivo exercício profissional na rede municipal de saúde de Belo Horizonte, Minas Gerais. À época da coleta de dados, foram considerados elegíveis todos os profissionais que declararam formação em enfermagem (nível superior e médio), independentemente do vínculo empregatício. Respeitando tal critério, o universo populacional englobou 3.770 profissionais. Os sujeitos sorteados para participar que não se encontravam no serviço por motivo de férias, transferência, aposentadoria ou morte foram substituídos, respeitando-se o território geográfico e o nível de complexidade assistencial.
A amostra foi dimensionada em 268 sujeitos, com base nos seguintes parâmetros: 30% de prevalência da HA11)-(12)-(13, poder estatístico de 80%, nível de confiança de 95%, razão de prevalência de 2,00. Ao final, foram incluídos 273 participantes no estudo, sendo 115 (42,1%) enfermeiros e 158 (57,9%) auxiliares ou técnicos de enfermagem.
Para a seleção dos trabalhadores estudados, inicialmente foi realizada uma consulta à lista de funcionários disponível no departamento de recursos humanos da Secretaria Municipal de Saúde de Belo Horizonte para a identificação da distribuição dos profissionais de enfermagem de acordo com o território geográfico (a rede municipal de saúde de Belo Horizonte estava estruturada em nove distritos sanitários) e o nível de complexidade assistencial (primário e secundário, sem a participação dos profissionais do nível terciário). Em seguida, procedeu-se a amostragem estratificada proporcional, considerando-se os dois estratos citados. Por fim, foi realizado um sorteio dos trabalhadores a serem recrutados com base em uma lista de números aleatórios gerada pelo software estatístico Epi Info (versão 3.5.1).
A coleta de dados foi realizada entre setembro de 2008 e janeiro de 2009 com o auxílio de um questionário autoaplicável, previamente testado em um estudo piloto, contando com perguntas relativas a características demográficas, socioeconômicas, informações gerais sobre o trabalho, características do ambiente de trabalho, fatores psicossociais do trabalho, atividades domésticas e hábitos de vida, qualidade de vida, aspectos relacionados à saúde e atos de violência-vitimização.
A variável de exposição, estresse no trabalho, foi mensurada com a versão adaptada por Theorell em 1988 da escala de demanda-controle, validada em português para o Brasil14 e amplamente utilizada em estudos de associação com a HA3. Para caracterizar a demanda de trabalho, o questionário incorporou cinco perguntas sobre os seguintes aspectos: a) rapidez para realizar as tarefas de trabalho; b) trabalho intenso; c) trabalho excessivo; d) tempo insuficiente para realizar as atividades; e) demandas conflituosas. As perguntas têm as seguintes opções de resposta: "frequentemente", "às vezes", "raramente" e "nunca ou quase nunca", sendo que cada uma delas recebeu pontuação de 1 a 4 (1 indica pouca demanda, e 4, muita). O escore total para demanda de trabalho foi calculado a partir do somatório da pontuação de cada questão, podendo variar entre 5 e 20. Para caracterizar o controle do trabalho, o questionário possui seis perguntas sobre os seguintes aspectos: a) oportunidade de aprender coisas novas no trabalho; b) habilidades/conhecimentos especializados requeridos pelo trabalho; c) poder de decisão no processo de trabalho; d) trabalho repetitivo; e) poder de escolha das atividades a serem realizadas; f) poder de escolha de como realizar as atividades do trabalho. As opções de resposta e a pontuação para cada uma delas são idênticas às da escala de demanda no trabalho (1 indica baixo controle, e 4, alto). O escore total para o controle do trabalho foi calculado pela soma da pontuação de cada pergunta, podendo variar entre 6 e 24. A variável demanda-controle foi construída com a estratificação das escalas de demanda e de controle em duas metades, com base nas medianas dos escores totais (demanda = 15 pontos, controle = 10 pontos). Posteriormente, realizou-se a combinação dessas frações gerando quatro quadrantes: a) baixa exigência = baixa demanda e alto controle; b) ativo = alta demanda e alto controle; c) passivo = baixa demanda e baixo controle; d) alta exigência (estresse no trabalho) = alta demanda e baixo controle.
As seguintes covariáveis foram incluídas no estudo: sexo (masculino, feminino); idade (20-39 anos, 40-49 anos, 50 e mais anos); cor da pele (branca e não branca, que compreende parda, preta, amarela e indígena); situação conjugal (solteiro, casado/ união estável, divorciado/viúvo), renda familiar (até 2 salários mínimos, 2 a 4 salários mínimos, 4 e mais salários mínimos - o salário mínimo à época era de R$ 415,00); categoria profissional (enfermeiros, técnicos/auxiliares de enfermagem); trabalho noturno (nunca, raramente/às vezes, sempre); carga horária semanal (até 40 horas, mais de 40 horas); tempo no trabalho atual em meses (< 24, 24 a 47, 48 e mais); nível de atenção da rede municipal de saúde (primário, secundário). Para a variável atividade física, perguntou-se com que frequência o participante realizava atividades físicas, tendo como respostas possíveis: Nunca, 1 a 2 vezes por semana, 3 ou mais vezes por semana. Diagnóstico médico de obesidade (não, sim); tabagismo (considerando como fumante quem já fumou pelo menos 100 cigarros ou 5 maços, você se classifica como? Não fumante, ex-fumante, fumante atual). Para dependência alcoólica, baseou-se no questionário Cut down, annoyed by criticism, guilty and eye-opener (CAGE), que é composto por quatro perguntas com opções de resposta sim e não: 1) Alguma vez sentiu que deveria diminuir a quantidade de bebida alcoólica ou parar de beber? 2) As pessoas o(a) aborrecem porque criticam o seu modo de beber? 3) Sente-se aborrecido consigo mesmo(a) pela maneira como costuma beber? 4) Costuma beber pela manhã para diminuir o nervosismo ou ressaca? O participante que obteve duas ou mais respostas positivas ao instrumento foi incluído na categoria sim para autopercepção sobre problemas com bebida alcoólica15. Para a variável apoio social no trabalho utilizou-se o questionário de demanda-controle, que inclui seis perguntas sobre os seguintes aspectos: a) ambiente de trabalho; b) relacionamento com outros trabalhadores; c) apoio dos colegas de trabalho; d) compreensão dos colegas de trabalho, caso não esteja em um bom dia; e) relacionamento com os chefes; f) prazer em trabalhar com os colegas. As perguntas têm como opções de resposta: "concordo totalmente"; "concordo mais que discordo"; "discordo mais que concordo" e "discordo totalmente", sendo que cada uma delas recebe uma pontuação de 1 a 4 (1 indica pouco suporte, e 4, muito). O escore total para apoio social no trabalho foi obtido com o somatório da pontuação de cada pergunta, podendo variar entre 6 e 24. Essa variável também foi dividida em duas metades a partir da mediana (14 pontos), sendo a parte inferior da escala indicativa de pouco apoio e a parte superior, de muito apoio14.
A variável de desfecho, HA, foi elaborada com base nas respostas a duas perguntas do questionário: a) Você possui diagnóstico médico de pressão alta (hipertensão arterial)? b) Atualmente, você está fazendo uso de medicamento prescrito por médico para pressão alta (hipertensão arterial)? Para ambas as perguntas, as opções de resposta foram: não, sim. Foi considerado hipertenso o trabalhador que disse "sim" a pelo menos uma das duas questões. Quando o participante respondeu negativamente às duas questões, foi classificado como normotenso.
As análises estatísticas foram conduzidas com o programa Stata (versão 13.1). Inicialmente, a amostra foi caracterizada por meio da distribuição das frequências absolutas e relativas das variáveis demográficas (sexo, idade, cor da pele, situação conjugal), socioeconômica (renda familiar), estilo de vida (tabagismo, dependência alcoólica, atividade física), antropométrica (diagnóstico de obesidade) e de condições de trabalho (demanda-controle, categoria profissional, trabalho noturno, carga horária semanal, tempo no trabalho atual, apoio social, nível de atenção).
Em seguida, uma análise bivariada foi conduzida para avaliar a associação não ajustada da demanda-controle e de cada covariável com a HA. Diferenças estatísticas foram avaliadas por meio do teste de qui-quadrado de Pearson, e, para as variáveis qualitativas ordinais, foi calculado o teste de qui-quadrado de tendência linear. Razões de prevalência (RP) e seus intervalos de confiança de 95% (IC 95%) foram estimados por meio da regressão de Poisson com variâncias robustas.
Por fim, as associações independentes da demanda-controle e das demais covariáveis com a HA foram avaliadas por meio da regressão de Poisson com variâncias robustas, com base em um modelo conceitual hierarquizado adaptado de Da Costa et al16. Em tal modelo (Figura 1) são dispostos três blocos de variáveis: 1) demográficas, socioeconômica (distal); 2) estilo de vida, condições de trabalho (intermediário); 3) antropométrica (proximal). As RP e seus respectivos IC de 95% foram ajustados pelas variáveis do mesmo bloco ou por aquelas de blocos superiores quando os valores de significância estatística na análise bivariada foram inferiores a 20% (p < 0,20). Nessa etapa também foram calculados os valores de p de tendência linear para variáveis qualitativas ordinais. Ao final, o nível de significância estatística fixado foi de alfa = 5%.
Modelo teórico hierarquizado para associação de variáveis demográficas, socioeconômicas, do estilo de vida, das condições de trabalho e antropométricas com a hipertensão arterial
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de Minas Gerais (Parecer nº 542/07). Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados
No presente estudo, a prevalência da HA entre os trabalhadores da equipe de enfermagem da rede municipal de saúde de Belo Horizonte (MG) foi de 16,9%.
No que diz respeito às características demográficas e socioeconômica dos profissionais da equipe de enfermagem, verificou-se que a maioria era do sexo feminino (90,5%), tinha entre 20 e 49 anos de idade (80,6%), cor de pele não branca (64,5%), era casada/ união estável (51,7%) e ganhava até 4 salários mínimos (70%). Ademais, as seguintes frequências de hábitos de vida estavam presentes entre eles: 11% de tabagismo; 5,4% de dependência alcoólica; e 55,7% de sedentarismo. Idade, cor de pele e renda se associaram à HA em nível bivariado (p < 0,05), enquanto sexo e tabagismo foram variáveis selecionadas para o ajuste multivariado dos dados (p < 0,20) (Tabela 1).
Em relação às características laborais e antropométricas, observou-se que a maioria dos profissionais da equipe de enfermagem não trabalhava à noite (72,5%), tinha carga horária semanal de até 40 horas (54,6%), estava no trabalho atual há mais de 48 meses (55,3%), com baixo apoio social (50,2%), eram técnicos/auxiliares de enfermagem (57,9%) e trabalhavam no nível primário da rede de atenção à saúde (68,9%). No que diz respeito à demanda-controle, 19,4% dos participantes relataram estresse no trabalho (alta exigência). O diagnóstico de obesidade esteve presente em 15% dos trabalhadores. Tempo no trabalho atual, categoria profissional e demanda-controle se associaram à HA em nível bivariado (p < 0,05), enquanto o nível de atenção foi a variável selecionada para o ajuste multivariado dos dados (p < 0,20) (Tabela 2).
Na Tabela 3, é apresentada a análise multivariada para a associação independente da demanda-controle, e as outras covariáveis, com a HA, seguindo o modelo teórico hierarquizado para o ajuste (Figura 1). Nesta tabela, foram incluídas somente variáveis cujo nível de significância estatística com a HA foi inferior a 20% (p < 0,20) na etapa bivariada. Optou-se pela não inserção da variável tempo de trabalho atual na análise multivariada em decorrência da sua forte correlação com a variável idade (coeficiente de correlação de Pearson = 0,73). Sexo, idade, renda familiar e demanda-controle permaneceram independentemente associadas à HA após o ajuste multivariado dos dados, enquanto cor de pele e categoria profissional perderam o efeito. O sexo passou a se associar significativamente com a HA. Assim, a prevalência da HA foi: 44% menor no sexo feminino em comparação ao sexo masculino; 61% menor no grupo de participantes com alta renda familiar (4 ou mais salários mínimos) em comparação ao de baixa renda familiar (até 2 salários mínimos); 153% maior no grupo de respondentes que relatou executar tarefas sob alta exigência psicossocial em relação àquele exposto à baixa exigência; aumentou com o avançar da idade.
Em decorrência do número reduzido de participantes do sexo masculino, as análises de dados foram reproduzidas apenas para o sexo feminino. Em nível bivariado, idade, demanda-controle, tempo no trabalho atual e categoria profissional se associaram à HA (p < 0,05), enquanto cor de pele, renda familiar, tabagismo e diagnóstico de obesidade foram selecionadas para o ajuste multivariado (p < 0,20) (dados não apresentados). Assim, o ajuste multivariado é apresentado na Tabela 4. Da mesma forma que para a amostra como um todo, idade, renda familiar e demanda-controle permaneceram independentemente associadas à HA.
Discussão
A prevalência de HA evidenciada neste estudo, 16,9%, foi inferior àquelas estimadas em outras pesquisas de delineamento transversal que focalizaram profissionais da equipe de enfermagem no Brasil cuja média de idade era similar à identificada em nossa amostra (aproximadamente, 40 anos). Três estudos sobre HA na categoria da enfermagem observaram 23%, 23% e 36,4% de prevalência. O primeiro foi realizado em um hospital universitário da cidade de São Paulo (SP) em um grupo de 279 profissionais de enfermagem12; o segundo, em 606 trabalhadores da equipe de enfermagem de um hospital de emergência de Porto Alegre (RS)13, e o terceiro abordou 494 sujeitos de um hospital de emergência de Salvador (BA)11.
A diferença na magnitude da HA entre os resultados pode ser atribuída, ao menos em parte, às discrepâncias metodológicas na definição, mensuração, estratégia de coleta de dados e definição da amostra. Neste estudo, conforme já explicado, o desfecho de interesse foi obtido por autorrelato. Dessa forma, não estariam contemplados os indivíduos sem confirmação do diagnóstico de HA por um médico. Por outro lado, nos estudos citados, a HA foi confirmada por aferição direta da pressão arterial obtida por leituras circunscritas. Ainda que esse procedimento metodológico seja aceitável em inquéritos populacionais, não está descartada a possibilidade de superestimação das taxas obtidas17. Além disso, neste estudo, os participantes foram recrutados nos níveis primário e secundário da rede de atenção à saúde, enquanto os estudos anteriores se restringiram ao nível terciário, em especial a setores de emergência. Em tal lócus, os trabalhadores estão expostos a maiores níveis de estresse na execução de suas tarefas em virtude da característica assistencial, sendo plausível a maior frequência de casos de HA.
As relações independentes dos fatores sociodemográficos com a HA (avançar da idade, sexo feminino, alta renda familiar) evidenciadas neste estudo também foram encontradas em investigações a respeito da temática com a categoria profissional de enfermagem12),(13.
O aumento da pressão arterial em indivíduos com mais idade é normalmente associado ao desenvolvimento de arteriosclerose, o que resulta em HA sistólica isolada18. No nosso estudo, a prevalência de HA foi quase 6 vezes maior nos indivíduos com 50 ou mais anos em comparação àqueles com 20 a 39 anos.
A presença da HA é mais frequente nos homens até os 50 anos, invertendo-se a partir dessa idade. Entre as mulheres, um efeito de caráter biológico pode explicar, ao menos em parte, tal resultado: em geral, até a menopausa, as mulheres apresentam o efeito protetor do hormônio estrogênio19. Vale ressaltar que, na nossa amostra, a maioria das mulheres (80%) tinha menos de 50 anos de idade.
A influência do nível socioeconômico na ocorrência da HA é complexa e difícil de ser estabelecida, mas acredita-se que pessoas com alta renda tenham mais facilidade de acesso aos serviços de saúde e maior adesão a modos de vida saudáveis, tais como menor proporção de tabagismo, maior frequência de atividade física e melhores hábitos alimentares20.
No que diz respeito à associação do estresse no trabalho com HA, tal achado é consistente e sustentado pelos resultados de uma recente meta-análise sobre o tema. Nesse trabalho, os autores consideraram exclusivamente estudos de coorte e caso-controle cujas populações-alvo foram compostas por adultos e o desfecho definido diante da confirmação de pressão arterial > 140/90 mmHg ou quando o participante relatou diagnóstico médico de HA. Além disso, na maioria das investigações incluídas nessa meta-análise, o estresse no trabalho também foi avaliado pelo questionário de demanda-controle de Karasek. Assim, a Odds Ratio (OR) conjunta de todos os estudos incluídos na meta-análise foi de 1,30 (IC 95%: 1,14-1,148; p < 0,001); para os estudos de caso-controle, de 3,17 (IC 95%: 1,79-5,60; p < 0,001); e para os estudos de coorte, de 1,24 (IC 95%: 1,09-1,14; p < 0,001)3.
No Brasil, conforme citado anteriormente, encontrou-se um único estudo publicado sobre a relação entre estresse no trabalho e HA, cujo delineamento era transversal e no qual foram abordados 1.716 funcionários técnico-administrativos de uma universidade. Os autores não encontraram associação entre alta exigência e HA6.
No tocante à categoria de profissionais de enfermagem, nosso estudo parece ser pioneiro, pois não identificamos outros trabalhos que exploraram especificamente a relação entre estresse no trabalho e a HA, tanto em nível nacional quanto internacional. Duas investigações abordaram a associação do estresse no trabalho na categoria de enfermagem, mas os desfechos avaliados foram os níveis das pressões arteriais sistólica e diastólica, e não a HA especificamente.
Na primeira delas, estudo que abordou amostra homogênea de 56 profissionais (enfermeiras ou auxiliares de enfermagem de um hospital de Estocolmo, Suécia), o estresse no trabalho se associou ao aumento das pressões arteriais sistólica e diastólica durante a jornada de trabalho, e com a pressão arterial diastólica durante as horas de folga21.
Na outra pesquisa, um estudo com 175 enfermeiras de hospital público no município do Rio de Janeiro, o estresse no trabalho também esteve relacionado à maior média de pressão arterial sistólica em casa acordado em participantes com sobrecarga de trabalho doméstico7.
Ressalta-se que as médias aumentadas das pressões arteriais sistólica e diastólica em momentos distintos do monitoramento não garantem o diagnóstico de HA, sendo que, para tanto, se fazem necessárias médias de pressões arteriais sistólica e diastólica superiores, respectivamente, a 130 mmHg e/ou 85 mmHg, no período de vigília, durante a avaliação hemodinâmica22.
A plausibilidade da relação entre alta exigência no trabalho e HA é explicada pelos efeitos do estresse psicoemocional na dinâmica neuroendócrina. A exposição constante ao estresse psicoemocional acarreta hiperatividade do sistema nervoso simpático e a disfunção do eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal, com liberação de noradrenalina e adrenalina em altas concentrações na fenda sináptica e na corrente sanguínea, respectivamente, o que provoca, em longo prazo, elevação persistente da pressão arterial4)-(5. Não seria excessivo supor que o indivíduo exposto a tarefas fortemente exigentes no âmbito psicossocial mobilize emoções e pensamentos, cuja carga psíquica ultrapasse as possibilidades de recuperação que o ambiente abriga, haja vista as curtas margens de controle que caracterizam, de acordo com o modelo demanda-controle, tais situações de estresse no trabalho. Maior reatividade e menor margem para a recuperação do estresse psicossocial resultante são dois fatores que, em longo prazo, influenciam no aumento da pressão arterial e o risco de instalação tanto da doença hipertensiva quanto das demais doenças cardiovasculares23)-(24.
Ainda que consistentes, os resultados encontrados neste estudo devem ser interpretados com cautela devido a pelo menos duas limitações do estudo: a) o dado sobre o diagnóstico da HA não foi obtido por meio de aferição da pressão arterial, mas por autorrelato. Entretanto, esse tem sido um padrão de mensuração da HA já validado em outros estudos, inclusive na coorte das enfermeiras americanas25; b) por se tratar de um estudo transversal, diminui-se a segurança na temporalidade e causalidade das associações encontradas, porém tal efeito é de caráter intrínseco ao próprio delineamento.
Apesar dessas limitações, vale destacar as seguintes potencialidades deste estudo: a) o caráter probabilístico da amostra garante a representatividade dos profissionais de enfermagem da rede municipal de saúde de Belo Horizonte (Minas Gerais). Tanto os estudos que estimaram a prevalência da HA quanto aquele que abordou a associação entre esse desfecho e demanda-controle no trabalho em trabalhadores da equipe de enfermagem focalizaram sujeitos que exerciam suas atividades laborais apenas em hospitais (nível terciário), o que não se repetiu no presente estudo, cujos participantes estavam distribuídos nos níveis primário e secundário da rede de atenção à saúde, reforçando o seu caráter inovador; b) o ajuste de potenciais fatores de confusão por meio de técnica de análise multivariada, que é a mais adequada para o tipo de delineamento do estudo, evitando-se o sobreajuste, uma vez descartadas dos modelos aquelas variáveis excessivamente correlacionadas à exposição.
Conclusão
A relação entre o estresse no trabalho e a HA em profissionais de enfermagem demonstra que as condições psicossociais aumentam a vulnerabilidade desses trabalhadores à ocorrência de uma doença de grande importância para a Saúde Pública brasileira: a hipertensão arterial. Sabe-se também que tal enfermidade é o principal fator de risco para as doenças cardiovasculares, que são responsáveis pela maioria dos óbitos no país, gerando grande ônus social e econômico, especialmente pelo impacto na previdência em decorrência de aposentadorias precoces por invalidez e pagamento de pensões. Portanto, modificações no processo de trabalho da enfermagem são essenciais para diminuir a exposição desses profissionais ao estresse psicossocial e para a prevenção primordial da HA e das DCV. Para tanto, se faz necessária a ampliação na formação de enfermeiros no Brasil para se alcançar a meta de dois profissionais para cada mil habitantes propostas pela OMS. Além disso, cabe aos gestores dos serviços de saúde promoverem adequado dimensionamento de pessoal de enfermagem para evitar a sobrecarga de tarefas, paralelamente à implantação de modelo administrativo mais democrático e participativo, a fim de aumentar a autonomia da equipe sobre as suas atividades laborais.
Por fim, os resultados deste estudo e de outros que correlacionam as condições de trabalho da enfermagem com desfechos de saúde podem contribuir como subsídios para a justificativa das demandas políticas da categoria.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
2016
Histórico
-
Recebido
27 Mar 2015 -
Revisado
12 Nov 2015 -
Aceito
16 Nov 2015