Resumo
Introdução:
poucos estudos buscam evidenciar as diferenças raciais e o impacto social das mortes precoces decorrentes do trabalho, o que contribui para a inexistência de políticas públicas que objetivem superar essas desigualdades.
Objetivo:
analisar a tendência temporal das Taxas de Anos Potenciais de Vida Perdidos (TAPVP) decorrentes de acidentes de trabalho, segundo raça/cor da pele no estado da Bahia, de 2000 a 2019.
Métodos:
estudo de série temporal, com base em dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM); consideraram-se os óbitos por acidentes de trabalho. Empregou-se o modelo de regressão linear pelo método Joinpoint para análise da série temporal e o cálculo da Variação Percentual Anual (VPA) das TAPVP.
Resultados:
foram notificados 2.137 óbitos por acidentes de trabalho no período estudado, correspondentes a 64.791,5 APVP, dos quais 74,2% envolveram trabalhadores da raça/cor da pele parda. Destaca-se que a VPA das TAPVP entre trabalhadores pardos e negros foi, respectivamente, 2,3 e 3,0 vezes a VPA dos trabalhadores brancos. Os trabalhadores pardos morreram mais precocemente e tiveram maior perda de anos potenciais de vida em quantidade e maior velocidade de crescimento da TAPVP, comparados com os trabalhadores brancos.
Conclusão:
a mortalidade precoce por acidentes de trabalho representa um relevante problema de saúde pública, destacando-se entre trabalhadores não-brancos.
Palavras-chave:
anos potenciais de vida perdidos; distribuição por etnia; desigualdades em saúde; saúde do trabalhador; estudos de séries temporais
Abstract
Introduction:
few studies seek to highlight racial differences and the social impact of early deaths resulting from work, which contributes to the lack of public policies that aim to overcome these inequalities.
Objective:
to analyze the time trend of Potential Years of Life Lost (PYLL) rates resulting from occupational accidents, according to race/skin color in Bahia, Brazil, from 2000 to 2019.
Methods:
a time series study was conducted using data collected from the Brazilian Mortality Information System (SIM). Only deaths from work-related accidents were included. Joinpoint linear regression was used to analyze the times series; the PYLL rates were estimated by annual percentage change.
Results:
the state of Bahia notified 2,137 deaths due to work-related accidents in the studied period, corresponding to a 64,791.5 PYLL, of which 74.2% involved black/brown skin workers. PYLL rates among brown and black workers was, respectively, 2.3 and 3.0 times that of white workers. Brown workers died earlier and had greater loss of PYLL, in quantity, and higher growth speed of the PYLL rates, when compared with white workers.
Conclusion:
early mortality due to occupational accidents constitute a relevant public health issue, especially among non-white workers.
Keywords:
potential years of life lost; ethnic distribution; health status disparity; occupational health; time series studies
Introdução
As taxas de mortalidade desempenham papel importante na descrição da magnitude das mortes da população. Contudo, não possibilitam mensurar o valor social dos óbitos precoces11. Peixoto HCG, Souza ML. O indicador anos potenciais de vida perdidos e a ordenação das causas de morte em Santa Catarina, 1995. Inf Epidemiol SUS. 1999;8(1):17-25.. Para compreender o prejuízo econômico, social e intelectual dos óbitos prematuros, é indicado o uso do indicador Anos Potenciais de Vida Perdidos (APVP), que considera o tempo de vida perdido resultante do óbito11. Peixoto HCG, Souza ML. O indicador anos potenciais de vida perdidos e a ordenação das causas de morte em Santa Catarina, 1995. Inf Epidemiol SUS. 1999;8(1):17-25.. Trata-se de uma combinação de magnitude, representada pela quantidade, e de transcendência, caracterizada pelo valor social imputado ao prejuízo decorrente do óbito11. Peixoto HCG, Souza ML. O indicador anos potenciais de vida perdidos e a ordenação das causas de morte em Santa Catarina, 1995. Inf Epidemiol SUS. 1999;8(1):17-25..
No Brasil, os estudos que utilizam o indicador APVP, em sua maioria, focalizam causas específicas que acometem populações mais jovens, por exemplo, causas externas22. Mata MS, Costa ÍCC. Composição do Índice de Iniquidade em Saúde a partir das desigualdades na mortalidade e nas condições socioeconômicas em uma capital brasileira. Cien Saude Colet. 2020;25:1629-40.), (33. Matos CCSA, Tourinho FSV. Saúde da População Negra: como nascem, vivem e morrem os indivíduos pretos e pardos em Florianópolis (SC). Rev Bras Med Fam Comunidade. 2018;13(40):1-13.. Entretanto, poucos estudos destinam-se a estudar as diferenças raciais ao analisar os APVP.
Os APVP por acidentes de trabalho podem produzir estimativas mais precisas sobre a perda dos anos produtivos decorrentes de morte prematura. Também permitem revelar iniquidades sociais, raciais e de gênero, além de subsidiar o planejamento e a definição de prioridades voltadas a grupos populacionais específicos22. Mata MS, Costa ÍCC. Composição do Índice de Iniquidade em Saúde a partir das desigualdades na mortalidade e nas condições socioeconômicas em uma capital brasileira. Cien Saude Colet. 2020;25:1629-40..
Acidentes de trabalho são impactantes e representam um grande problema de saúde pública44. Galdino A, Santana VS, Ferrite S. Fatores associados à qualidade de registros de acidentes de trabalho no Sistema de Informações sobre Mortalidade no Brasil. Cad Saude Publica. 2019;36(1):e00218318.. Estima-se que, anualmente, ocorram cerca de 2,3 milhões de mortes no mundo relacionadas ao trabalho, das quais, aproximadamente, 318 mil decorrem de acidentes, enquanto 2 milhões derivam de doenças atreladas à labuta55. Takala J, Hämäläinen P, Saarela KL, Yun LY, Manickam K, Jin TW, et al. Global estimates of the burden of injury and illness at work in 2012. J Occup Environ Hyg. 2014;11(5):326-37.. No período de 1998 a 2008, entretanto, observou-se declínio das taxas de mortalidade por acidentes de trabalho66. Almeida FSS, Morrone LC, Ribeiro KB. Trends in incidence and mortality due to occupational accidents in Brazil, 1998-2008. Cad Saude Publica. 2014;30(9):1957-64.. No estado da Bahia, entre 1997 e 2009, foram registrados 1.912 óbitos por acidentes de trabalho, o que representou 4,9% dos óbitos dessa categoria no Brasil para esse período77. Arnold MW, Silva MA, Falbo Neto GH, Haimenis RP. Years of potential life lost among female homicide victims of child-bearing age in the city of Recife, Pernambuco, (Brazil) in 2001 and 2002. Rev Bras Saude Mater Infant. 2007;7:s23-7..
As mortes relacionadas aos acidentes de trabalho podem causar danos em vários níveis, tais como: pessoais/familiares, sociais e econômicos88. Miranda FMA, Scussiato LA, Kirchhof ALC, Cruz EDA, Sarquis LMM. Characteristics of victims and fatal accidents at the workplace. Rev Gaucha Enferm. 2012;33(2):45-51.. A mortalidade por esta causa tem expressiva relevância no cenário nacional, porém, recebe pouca ênfase em pesquisas, que raramente investigam desigualdades raciais. Importa destacar que a raça ocupa centralidade na configuração histórica do mundo do trabalho. Nessa direção, compreende-se o racismo como estruturante nas relações de produção, tendo em vista que a população negra sempre esteve à margem dos setores mais dinâmicos da economia brasileira e vinculada às atividades mais degradantes99. Martins TCS. Oposição entre as lutas anticapitalista e antirracista: realidade ou erro de análise? SER Soc. 2017;19(41):275-95..
Diante disso, este estudo buscou analisar a tendência temporal das taxas de APVP (TAPVP) decorrentes de acidentes de trabalho fatais, segundo a raça/cor da pele, no estado da Bahia, no período de 2000 a 2019.
Métodos
Trata-se de um estudo de série temporal com dados secundários do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), referentes aos óbitos por acidente de trabalho de residentes no estado da Bahia ocorridos no período entre 2000 e 2019.
Os dados foram obtidos do portal do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (Datasus) (1010. Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. Tabnet, Mortalidade-Brasil. [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2017 [citado em 17 jan 2019]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/obt10uf.def
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftoht...
, extraídos no período de 17 de janeiro de 2019 a 3 de dezembro de 2020 e complementados em 30 de março de 2022, com finalidade de atualização.
Foram incluídas todas as mortes registradas nas declarações de óbitos (DO), pertencentes ao capítulo XX, codificados entre V01 e X59, de acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID-10), cuja circunstância declarada foi o acidente de trabalho fatal.
Foram consideradas as variáveis: idade (imprescindível para o cálculo dos APVP) e raça/cor da pele/etnia (preta, parda, branca, amarela e indígena, conforme a classificação utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]).
Os registros de raça/cor da pele/etnia amarela e indígena foram excluídos das análises estatísticas devido ao baixo número de ocorrências de óbitos por acidentes de trabalho nessas categorias - houve apenas dois registros na categoria indígenas e nenhum registro na categoria amarela.
Apesar do amplo consenso entre estudiosos de que o conceito de raças humanas não tem base científica1111. Berbel VV. Raça e Racismo: os Desafios dos Direitos Humanos na Sociedade Moderna. RDD. 2017;26(48):326-41., o uso da expressão raça/cor da pele adotado neste estudo justifica-se não por atribuição genética, mas como realidade sociocultural, por sua função histórica ao identificar categorias humanas socialmente definidas, uma vez que no Brasil a cor da pele representa a marca mais importante das características distintivas da raça1212. Araújo EM, Costa MCN, Hogan VK, Mota ELA, Araújo TM, Oliveira NF. Race/skin color differentials in potential years of life lost due to external causes. Rev Saude Publica. 2009;43(3):405-12..
Salienta-se que a classificação racial brasileira é única e que a junção das categorias pretos e pardos - sob a denominação negros - é aceitável tanto estatística, quanto teoricamente. Estatisticamente, dada a similaridade de características socioeconômicas entre esses dois grupos que, por sua vez, se distinguem vertiginosamente dos brancos; e, teoricamente, pelo fato de pretos e pardos serem alvo de discriminações, potenciais ou reais, no âmbito das relações raciais1313. Osorio RG. O Sistema Classificatório de Cor ou Raça do IBGE [Internet]. DF: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; 2003 [citado em 3 dez. 2017] . Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_0996.pdf.
http://www.ipea.gov.br/portal/images/sto...
.
As recomendações internacionais preconizam a autoatribuição para estabelecer a identidade racial dos indivíduos. Nos registros de estatísticas vitais - nascimentos e óbitos -, adota-se a heteroatribuição de pertencimento identitário. Da autoatribuição e heteroatribuição, entre outros aspectos, evidencia-se o grau de concordância entre o sujeito e o observador. O método de classificação racial tem implicações sociológicas e, no Brasil, exprime questões como a tendência ao branqueamento, a cultura do silenciamento sobre a cor dos indivíduos e a necessidade de enquadramento fenotípico, que perfazem as etiquetas das relações raciais. No contexto brasileiro, os pardos apresentam um componente preto e comungam a origem e produtos históricos das desigualdades em relação aos brancos, de modo que, em todas as análises e medidas reparadoras, são legitimamente compreendidos como agregados1313. Osorio RG. O Sistema Classificatório de Cor ou Raça do IBGE [Internet]. DF: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; 2003 [citado em 3 dez. 2017] . Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_0996.pdf.
http://www.ipea.gov.br/portal/images/sto...
.
Foram estimados os números absolutos e médios de APVP; a idade na qual, em média, os óbitos ocorreram (IMO); e a TAPVP, para cada 100.000 habitantes com idade entre 16 e 70 anos, segundo raça/cor da pele. Os tamanhos da população, segundo cada categoria de raça/cor da pele na faixa etária estudada, empregados como denominadores no cálculo das taxas, foram obtidos dos censos demográficos realizados pelo IBGE em 2000 e 2010 e, para o período intercensitário, por meio de progressão geométrica (Tabela 2093 - População residente por cor ou raça, sexo, situação do domicílio e grupos de idade - Características Gerais da População - SIDRA/IBGE) (1414. Instituto Brasileiro de Geografia e Estátistica. Censo Demográfico. Características Gerais da População: Tabela 2093 - População residente por cor ou raça, sexo, situação do domicílio e grupos de idade [Internet]. Brasília, DF: IBGE, 2010 [citado 30 mar 2020]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/2093
https://sidra.ibge.gov.br/tabela/2093...
.
Assim como em outros estudos11. Peixoto HCG, Souza ML. O indicador anos potenciais de vida perdidos e a ordenação das causas de morte em Santa Catarina, 1995. Inf Epidemiol SUS. 1999;8(1):17-25.), (1111. Berbel VV. Raça e Racismo: os Desafios dos Direitos Humanos na Sociedade Moderna. RDD. 2017;26(48):326-41., para o cálculo do valor total de APVP foi utilizada a seguinte fórmula:
A variável ai representa a diferença entre a idade limite e o ponto médio de cada grupo etário, e di o número de óbitos ocorridos no mesmo grupo etário. O ponto médio foi obtido pela mediana da faixa etária somado com 0,5. Por fim, Σ representa o somatório dos valores absolutos de APVP obtidos em cada faixa etária.
Em alguns estudos11. Peixoto HCG, Souza ML. O indicador anos potenciais de vida perdidos e a ordenação das causas de morte em Santa Catarina, 1995. Inf Epidemiol SUS. 1999;8(1):17-25.), (77. Arnold MW, Silva MA, Falbo Neto GH, Haimenis RP. Years of potential life lost among female homicide victims of child-bearing age in the city of Recife, Pernambuco, (Brazil) in 2001 and 2002. Rev Bras Saude Mater Infant. 2007;7:s23-7.), (1111. Berbel VV. Raça e Racismo: os Desafios dos Direitos Humanos na Sociedade Moderna. RDD. 2017;26(48):326-41., para o cálculo dos APVP foi adotado 0 e 70 anos como limites inferior e superior de idade, respectivamente. Entretanto, neste estudo, para os acidentes de trabalho fatais, foi adotado, como limite inferior, 16 anos - dado que o artigo 403 da Lei 10.097 proíbe qualquer trabalho a menores de 16 anos1515. Brasil. Lei nº 10.097, de 19 de dezembro de 2000. Altera dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Diário Oficial da União. 20 dez 2000. -, e como limite superior, 70 anos.
O número médio de APVP foi obtido pela divisão de todos os APVP, segundo causa e raça/cor da pele, pelo total de óbitos. Ao subtrair esse número do limite superior adotado (70 anos), obteve-se a IMO.
Para análise temporal, foi empregada regressão linear segmentada pelo método Joinpoint, que calcula a Variação Percentual Anual (VPA) das TAPVP e os respectivos intervalos de confiança. Esse método permite avaliar alterações no padrão de tendência temporal observado1616. Almeida FSS, Morrone LC, Ribeiro KB. Tendências na incidência e mortalidade por acidentes de trabalho no Brasil, 1998 a 2008. Cad Saude Publica. 2014;30:1957-64.. Foi utilizado o software Joinpoint Regression Program 4.9.0.0 (National Cancer Institute, Bethesda, Estados Unidos, https://surveillance.cancer.gov/joinpoint/)1717. National Institutes of Health (USA). National Cancer Institute. Joinpoint Trend Analysis Software - version 4.9.0.0 [Internet]. Bethesda: NIH, 2021[citado em 30 mar 2022]. Disponível em: https://surveillance.cancer.gov/joinpoint/
https://surveillance.cancer.gov/joinpoin...
.
A sistematização dos dados e demais análises descritivas foram realizadas com auxílio do STATA versão 12.0, licenciado pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos Sobre Desigualdades em Saúde da Universidade Estadual de Feira de Santana (NUDES/UEFS).
Resultados
No estado da Bahia, entre os anos de 2000 e 2019, foram notificados 70.341 óbitos por acidentes, em geral. Contudo, 25% dos registros apresentaram a informação sobre circunstância do óbito - acidente de trabalho: “sim” ou “não”, conforme preconizado no preenchimento da DO.
Dos 2.137 registros referentes a óbitos por acidentes de trabalho na faixa etária de 16 a 70 anos, observou-se que 1.208 (56,5%) foram ocasionados por acidentes de transporte (CID V01-V99), seguidos de 929 óbitos decorrentes de outras causas externas de traumatismo acidental (CID W00-X59).
Os acidentes envolvendo automóvel, caminhonete, ônibus ou veículo de transporte pesado corresponderam a 53,2% do total de óbitos em trabalhadores por acidentes de transporte. Dentre as outras causas externas de traumatismo acidental (n = 929), tanto a exposição à corrente elétrica/radiação/temperaturas e pressões do ambiente quanto as quedas tiveram importância expressiva nas causas de óbito, correspondendo às proporções de 26,5% e 24,4%, respectivamente (Tabela 1).
Notou-se também que não houve registro de óbito por acidentes de trabalho relacionados a agressões e eventos cuja intenção é indeterminada. Além disso, houve predominância dos óbitos nas faixas etárias intermediárias em todas as categorias de raça/cor da pele (Tabela 2). Do total dos óbitos, 27,3% ocorreram na faixa etária de 30 a 39 anos, e 23,6% na faixa etária de 40 a 49 anos.
No período de 2000 a 2019, verificou-se que, no estado da Bahia, foram perdidos 64.791,5 anos potenciais de vida em decorrência de acidentes de trabalho, dos quais 74,2% (48.068 anos) foram representados por trabalhadores pardos. Ao se considerar a junção de pardos e pretos (negros), houve uma perda de 55.322,5 anos potenciais de vida, 85,4% do total (Tabela 3).
Os trabalhadores pretos tiveram a menor perda média anual de anos potenciais de vida (362,7 anos). Os trabalhadores brancos tiveram uma perda média anual de 473,5 anos, quantitativo um pouco maior que a população preta e bem menor se comparado aos trabalhadores pardos, que apresentaram uma perda média anual de 2.403,4 anos. A perda média anual de APVP para a categoria negros foi de 2.766,1 anos (Tabela 3).
Em relação à média das TAPVP, foram observadas diferenças entre brancos e pardos e entre pretos e pardos. De 2000 a 2019, os trabalhadores brancos apresentaram, em média, TAPVP de 22,6 anos potenciais de vida perdidos para cada 100.000 habitantes, enquanto os trabalhadores pardos apresentaram 40,7, e pretos apresentaram 19,7 (Tabela 3).
Apesar dos trabalhadores pretos apresentarem menor perda de anos potenciais de vida quando comparados aos brancos, eles morreram mais precocemente (idade média do óbito para pretos de 39,4 anos), assim como os trabalhadores pardos (38,9 anos) em relação aos brancos (40,6 anos) (Tabela 3).
Entre 2000 e 2019, apenas as categorias parda e negra apresentaram tendência de aumento com significância estatística, com VPA de 7,5% (IC95% 0,9% - 14,6%) e 9,5% (IC95% 5,5% - 13,7%) (Tabela 4).
Entre os trabalhadores brancos, observou-se tendência crescente e estatisticamente significativa entre os anos de 2000 e 2006 (VPA 30,5%; IC95% 3,2% - 64,9%), com estabilidade no período subsequente (VPA - 4,5%; IC95% - 11,2% - 2,7%) (Figura 1A). Entre os trabalhadores de raça/cor preta, houve tendência crescente até o ano de 2011 (VPA 15,0%; IC95% 8,9% - 21,4%) seguida de estabilidade entre 2011 e 2019 (VPA - 12,2%; IC95% - 19,5% - 4,1%) (Figura 1B).
Análise de Joinpoint das Taxas de Anos Potenciais de Vida Perdidos (TAPVP) expressos para 100.000 habitantes para os acidentes de trabalho, segundo a raça/cor da pele, Bahia, no período de 2000 a 2019.
As séries temporais das TAPVP entre trabalhadores pardos e negros foram as que apresentaram maior flutuação. No início da série, entre 2000 e 2002, ambas apresentaram estabilidade das taxas (VPA - 39,4%; IC95% - 69,0% - 20,4% e VPA - 32,7; IC95% - 57,5% - 6,7%, respectivamente).
As TAPVP para os trabalhadores pardos cresceram acentuadamente entre os anos de 2002 e 2006 (VPA 68,8%; IC95% 19,8% - 137,9%) e foram estáveis entre os anos de 2006 e 2017 (VPA 4,1%; IC95% - 1,3% - 9,8%). E, entre 2017 e 2019, notou-se brusca redução percentual das TAPVP (VPA - 65,2%; IC95% - 82,5% - 2,1%) (Figura 1C). Em relação aos trabalhadores classificados na categoria negros, se observou crescimento acentuado entre os anos 2002 e 2005 (VPA 67,0%; IC95% 5,4% - 164,7%), seguido de crescimento mais lento entre 2005 e 2011 (VPA 12,7%; IC95% 1,7% - 25,0%) e tendência decrescente entre 2011 e 2019 (VPA - 4,3%; IC95% - 9,0% - 0,6%) (Figura 1D).
Considerando toda a série, destaca-se que a VPA das TAPVP entre trabalhadores pardos e negros foi 2,3 e 3,0 vezes a VPA dos trabalhadores brancos, respectivamente.
Discussão
A análise dos APVP decorrentes de acidentes de trabalho segundo raça/cor da pele, no estado da Bahia, de 2000 a 2019, mostrou que os trabalhadores pardos morreram mais precocemente e tiveram maior perda de anos potenciais de vida em quantidade e maior velocidade de crescimento da TAPVP. A mortalidade prematura revela o valor social da morte e expõe as vulnerabilidades, as relações de produção e a privação do potencial econômico e intelectual.
A diferença quantitativa absoluta e relativa de APVP entre trabalhadores pardos e brancos pode estar relacionada às iniquidades que integram o regime produtivo e a organização do trabalho, que produzem vulnerabilidade para negros. Pretos e pardos apresentam características socioeconômicas similares entre si e diferentes daquelas apresentadas pela população de raça/cor da pele branca. Essa histórica e sistemática clivagem racial, que reserva o desemprego, o subemprego, a informalidade e as piores ocupações na economia para a população negra, pode contribuir de forma importante para a sobremortalidade precoce e, consequentemente, maior perda de anos potenciais de vida por acidentes para esta população1818. Theodoro ML. Exclusão ou inclusão precária? O negro na sociedade brasileira. Inclusao Soc. 2009;3(1):79-82..
No Brasil, as oportunidades ocupacionais são restritas, de modo que a inserção no mercado de trabalho mostra-se desigual, com piores indicadores para mulheres e homens jovens e negros1919. Ribeiro R, Araújo GS. Segregação ocupacional no mercado de trabalho segundo cor e nível de escolaridade no Brasil contemporâneo. Nova Econ. 2016;26(1):147-77.. Barbosa2020. Barbosa MIS. Racismo e saúde [tese na Internet]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da USP; 1998. [citado em 3 ago 2017]. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6136/tde-08042020-101524/pt-br.php.
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/6...
), (2121. Barbosa MIS. É mulher, mas é negra: perfil da mortalidade do 'quarto de despejo'. J Rede Feminista Saúde. 2001;(23):34-6., ao avaliar os APVP por diversas causas, observou maior mortalidade precoce em homens e mulheres negros. Negros morrem mais cedo e, consequentemente, apresentam maiores perdas por anos potenciais de vida, principalmente nas mortes por causas externas e mal definidas, além de doenças infecciosas2222. Paixão M. Saúde da População Negra no Brasil: contribuições para a promoção da equidade [Internet]. Brasília, DF: FUNASA; 2017 [citado em 1 out 2017]. Disponível em: https://repositorio.funasa.gov.br/bitstream/handle/123456789/638/Saude%20da%20popula%c3%a7%c3%a3o%20negra%20no%20Brasil%20-%20contribui%c3%a7%c3%b5es%20para%20a%20promo%c3%a7ao%20a%20equidade%202005.pdf?sequence=1&isAllowed=y
https://repositorio.funasa.gov.br/bitstr...
.
A organização socioeconômica e política do Brasil revela diferenciais expressos na distribuição de renda e na reprodução das desigualdades, apresentando um mercado de trabalho negativamente seletivo para os negros, os quais concentram-se em ocupações informais e precárias e recebem remunerações sistematicamente inferiores. Tanto a exclusão do mercado de trabalho quanto a inclusão precária têm bases históricas profundas, uma engenharia social da organização do trabalho e relações sociais que produzem desemprego, subemprego, informalidade e exclusão do negro das ocupações dinâmicas da economia1818. Theodoro ML. Exclusão ou inclusão precária? O negro na sociedade brasileira. Inclusao Soc. 2009;3(1):79-82.. As iniquidades raciais de rendimentos são mais acentuadas do que as de gênero. Entre 2009 e 2013, observou-se no ordenamento ocupacional uma tendência à ampliação da desigualdade racial e da hierarquização racial de rendimentos2323. Proni MW, Gomes DC. Precariedade ocupacional: uma questão de gênero e raça. Estud Av. 2015;29(85):137-51..
A iniquidade racial na estrutura ocupacional do mercado de trabalho, conceitualmente representa, para alguns, o caráter meritocrático do mercado, determinante da ascensão social dos negros e, para outros, demonstra a existência de barreiras sociais e raciais. Essa última hipótese é defendida, como elucida Hasenbalg, por Florestan Fernandes2424. Hasenbalg, CA. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal; 1979., cientista social que, em seus estudos, desenvolveu o primeiro esboço de indicador de iniquidade racial para o Brasil.
Estudos contemporâneos sinalizam para a existência de um ciclo de desvantagens cumulativas que repercute na trajetória e nos resultados alcançados pelos negros2525. Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc. 2016;25(3):535-49.. O racismo institucional constitui barreira ampla para produção e reprodução desse ciclo na medida em que sedimenta as ações do Estado, as normas, as instituições e as políticas públicas, fomentando privilégios e subalternidades com plasticidade e, portanto, eficiência2525. Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc. 2016;25(3):535-49..
No contexto epidemiológico, os dados desagregados por raça/cor contribuem para revelar as cargas de doenças e as taxas de mortalidade dos distintos grupos e, assim, evidenciar o impacto social do racismo, bem como a insuficiência ou ineficiência das ações com vistas ao enfrentamento das vulnerabilidades e à promoção de melhorias nas condições de saúde da população negra2525. Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc. 2016;25(3):535-49..
Este estudo revelou expressiva perda de anos potenciais de vida por acidentes de trabalho na Bahia. Um estudo prévio, realizado no mesmo estado, revelou que as mortes causadas por acidentes de trabalho representaram a perda de 23.152 anos potenciais de vida apenas no ano de 20002626. Santana VS, Araújo-Filho JB, Silva M, Albuquerque-Oliveira PR, Barbosa-Branco A, Nobre LCC. Mortalidade, anos potenciais de vida perdidos e incidência de acidentes de trabalho na Bahia, Brasil. Cad Saude Publica. 2007;23(11):2643-52., dado comparativamente divergente aos 33.997 APVP apontados nesta pesquisa para toda a série histórica (2000-2019). Essa divergência pode ser explicada pela adoção, no primeiro estudo, de um fator de correção para a subnotificação dos dados e a utilização de outras fontes além do SIM, como os dados da previdência social. Contudo, ambas as pesquisas dialogam na perspectiva de que, na Bahia, os óbitos por acidentes de trabalho ocorrem majoritariamente entre homens adultos e jovens, de raça/cor da pele negra.
Em uma análise sobre acidentes de trabalho em Salvador (BA), em 2004, observou-se maior mortalidade entre homens jovens e negros que atuavam em contexto de precarização do trabalho2626. Santana VS, Araújo-Filho JB, Silva M, Albuquerque-Oliveira PR, Barbosa-Branco A, Nobre LCC. Mortalidade, anos potenciais de vida perdidos e incidência de acidentes de trabalho na Bahia, Brasil. Cad Saude Publica. 2007;23(11):2643-52.. Esse mesmo estudo apontou que, em 2005, os acidentes de trabalho graves ocorridos na capital baiana acometeram principalmente trabalhadores do sexo masculino e de raça/cor da pele negra. Esses dados apontam para uma conjuntura histórica socioeconômica, cuja programação social está embasada em desigualdades sociais, como o fenômeno ideológico do racismo, que estrutura a inserção no mercado de trabalho e a segmentação ocupacional, além de demarcar espaços sociais, disparidades de renda, condições de vida e de desenvolvimento humano2727. Santana VS, Xavier C, Moura MCP, Oliveira R, Espírito-Santo JS, Araújo G. Gravidade dos acidentes de trabalho atendidos em serviços de emergência. Rev Saude Publica. 2009;43(5):750-60..
Em Belo Horizonte (MG), entre 2008 e 2010, assim como no estado do Paraná, entre 2007 e 2010, pesquisadores também observaram que quase a totalidade dos registros relacionados a acidentes de trabalho (94,3% e 88,4%, respectivamente) ocorreram na população masculina. Contudo, nessa cidade quase dois terços dos óbitos ocorreram entre trabalhadores de raça/cor da pele negra, enquanto no Paraná aproximadamente 70% dos acidentes graves de trabalho ocorreram em trabalhadores de raça/cor da pele branca2828. Scussiato LA, Sarquis LMM, Kirchhof ALC, Kalinke LP. Perfil epidemiológico dos acidentes de trabalho graves no Estado do Paraná, Brasil, 2007 a 2010. Epidemiol Serv Saude. 2013;22(4):621-30.), (2929. Drumond EF, Silva JM. Evaluation of the strategy for identification and measurement of the fatal accidents at work. Cien Saude Colet. 2013;18(5):1361-5.. Esse último achado diverge dos resultados observados nesta pesquisa; entretanto, deve-se levar em consideração o fato de que a distribuição da população segundo categorias de raça/cor da pele é distinta nas regiões observadas.
Observou-se que, em média, os trabalhadores brancos morreram com idade maior quando comparados àqueles de raça/cor da pele negra (pretos e pardos). Os óbitos ocorridos entre trabalhadores pretos e pardos se concentraram em idades mais jovens e, consequentemente, tiveram maior impacto nos APVP.
Em 2017, foram registrados 1.277.579 óbitos decorrentes de acidentes de trabalho fatais no Brasil. Em 2018, os óbitos por acidentes de trabalho diminuíram 1,59% em relação a 20173030. Brasil. Ministério da Fazenda. Anuário Estatístico da Previdência Social: AEPS 2018 [Internet]. Brasília, DF: MF/DATAPREV; 2019 [acesso em 10 set 2021]. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/dados-abertos-previdencia/previdencia-social-regime-geral-inss/arquivos/aeps-2018.pdf.
https://www.gov.br/trabalho-e-previdenci...
. Vale ressaltar que esses dados levaram em consideração apenas os acidentes de trabalho fatais que geraram Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT), o que resulta em subnotificação.
Em relação ao tipo de acidente, assim como em outros estudos, a principal causa de óbito estava relacionada a acidentes de trânsito2828. Scussiato LA, Sarquis LMM, Kirchhof ALC, Kalinke LP. Perfil epidemiológico dos acidentes de trabalho graves no Estado do Paraná, Brasil, 2007 a 2010. Epidemiol Serv Saude. 2013;22(4):621-30., seja típico (por exemplo, envolvendo motoristas, mototaxistas) ou de trajeto (referente ao deslocamento do trabalhador ao seu ambiente habitual de trabalho). As quedas também tiveram papel importante na mortalidade por essa causa2626. Santana VS, Araújo-Filho JB, Silva M, Albuquerque-Oliveira PR, Barbosa-Branco A, Nobre LCC. Mortalidade, anos potenciais de vida perdidos e incidência de acidentes de trabalho na Bahia, Brasil. Cad Saude Publica. 2007;23(11):2643-52.), (2929. Drumond EF, Silva JM. Evaluation of the strategy for identification and measurement of the fatal accidents at work. Cien Saude Colet. 2013;18(5):1361-5.. Em todo o Brasil, as maiores taxas de mortalidade por acidentes de trabalho, de acordo com os dados da Previdência Social referentes a 2003, também estão relacionadas ao setor de transporte2929. Drumond EF, Silva JM. Evaluation of the strategy for identification and measurement of the fatal accidents at work. Cien Saude Colet. 2013;18(5):1361-5..
Na análise das internações em hospitais selecionados na capital da Bahia, entre junho e agosto de 2005, as quedas e a exposição às forças mecânicas superaram os acidentes de trajeto em relação ao número de casos, embora com gravidade menor2727. Santana VS, Xavier C, Moura MCP, Oliveira R, Espírito-Santo JS, Araújo G. Gravidade dos acidentes de trabalho atendidos em serviços de emergência. Rev Saude Publica. 2009;43(5):750-60.. Salienta-se que nessa última pesquisa não foram considerados os acidentes de trabalho fatais. Já as agressões, que se mostraram preocupantes em outro estudo2929. Drumond EF, Silva JM. Evaluation of the strategy for identification and measurement of the fatal accidents at work. Cien Saude Colet. 2013;18(5):1361-5., não foram registradas no estado da Bahia entre os anos 2000 e 2019. Entretanto, reitera-se que a subnotificação dos dados pode ter influenciado esse resultado.
É importante frisar, ainda, que os acidentes de trabalho fatais, pelo fato de acometerem com mais frequência os jovens, podem afetar a capacidade produtiva e econômica do país, devido à perda dos anos potenciais de vida3131. Iwamoto HH, Camargo FC, Tavares LC, Miranzi SSC. Acidentes de trabalhos fatais e a qualidade das informações de seus registros em Uberaba, em Minas Gerais e no Brasil, 1997 a 2006. Rev Bras Saude Ocup. 2011;36(124):208-15..
A magnitude dos óbitos decorrentes de acidentes de trabalho está atrelada à precariedade, à informalidade, ao desamparo jurídico assistencial, às condições socioeconômicas e ao menor acesso aos serviços de saúde. Dessa forma, compreende-se a necessidade de efetivação de políticas públicas, a fim de assegurar proteção social, regulação, monitoramento e vigilância das condições de trabalho3232. Lacerda KM, Fernandes RCP, Nobre LCC, Pena PGL. A (in)visibilidade do acidente de trabalho fatal entre as causas externas: estudo qualitativo. Rev Bras Saude Ocup. 2014;39(130):127-35..
De acordo com alguns estudiosos2626. Santana VS, Araújo-Filho JB, Silva M, Albuquerque-Oliveira PR, Barbosa-Branco A, Nobre LCC. Mortalidade, anos potenciais de vida perdidos e incidência de acidentes de trabalho na Bahia, Brasil. Cad Saude Publica. 2007;23(11):2643-52.), (3232. Lacerda KM, Fernandes RCP, Nobre LCC, Pena PGL. A (in)visibilidade do acidente de trabalho fatal entre as causas externas: estudo qualitativo. Rev Bras Saude Ocup. 2014;39(130):127-35.), (3333. Batista AG, Santana VS, Ferrite S. Registro de dados sobre acidentes de trabalho fatais em sistemas de informação no Brasil. Cien Saude Colet. 2019;24:693-704., as políticas públicas voltadas a essa questão poderão refletir de forma positiva na redução dos acidentes de trabalho fatais, tanto na sua prevenção quanto na melhoria das informações sobre esse agravo no Sistema Único de Saúde (SUS), visto que as notificações dos acidentes de trabalho fatais constituem fonte primária para as ações de vigilância ocupacional.
Cabe ressaltar que os acidentes de trabalho são socialmente determinados, previsíveis e preveníveis. Dessa forma, o óbito decorrente do acidente de trabalho é expressão das violências estruturais, tanto aquela explícita e determinada pelas desigualdades sociais, pelo racismo institucional e pela pobreza; quanto pela subliminar, que se materializa a partir das relações de poder desigual e autoritário entre empregadores e trabalhadores, que acaba por produzir sujeição, acidentes e exposição a riscos sob o propósito de aumentar a produtividade e lucratividade3030. Brasil. Ministério da Fazenda. Anuário Estatístico da Previdência Social: AEPS 2018 [Internet]. Brasília, DF: MF/DATAPREV; 2019 [acesso em 10 set 2021]. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/dados-abertos-previdencia/previdencia-social-regime-geral-inss/arquivos/aeps-2018.pdf.
https://www.gov.br/trabalho-e-previdenci...
), (3434. Nobre LCC. Trabalho precário e morte por acidente de trabalho: a outra face da violência e a invisibilidade do trabalho [tese na Internet]. Salvador: Instituto de Saúde Coletiva da UFBA; 2007 [citado em 3 ago 2017]. Disponível em: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/10395.
http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/...
.
A principal limitação deste estudo refere-se à subnotificação dos óbitos por acidentes de trabalho no SIM. Apesar de acidentes de trabalho constituírem importante causa de óbito, há graves problemas no que se refere à produção e à qualidade desses dados nos sistemas de informação33. Matos CCSA, Tourinho FSV. Saúde da População Negra: como nascem, vivem e morrem os indivíduos pretos e pardos em Florianópolis (SC). Rev Bras Med Fam Comunidade. 2018;13(40):1-13.. É necessário destacar a expressiva falta de registro no campo sobre acidente de trabalho nas declarações de óbito, observada em aproximadamente – das mortes por causas externas no contexto deste estudo. Ainda, é possível que um percentual maior de DO não notificadas quanto às circunstâncias do óbito se refira exatamente aos trabalhadores pretos, o que poderia representar uma subnotificação dos acidentes de trabalho fatais ainda maior para essa categoria. Essa suposição é reforçada pela reconhecida dificuldade de acesso de trabalhadores pretos ao mercado formal de trabalho, discutida anteriormente.
O sub-registro limita a validade do estudo, e a incompletude desses dados pode dificultar a detecção de elementos importantes em grupos desproporcionalmente afetados. Estimativas inadequadas dificultam o planejamento e a implementação de ações e políticas de enfrentamento ao problema. O preenchimento qualificado, contínuo e sistemático dos dados têm relevância incontestável para a saúde pública.
Além disso, podem ter constituído fontes de vieses as possíveis diferenças na classificação da raça/cor da pele, por heteroatribuição no SIM, enquanto a população sob risco foi classificada por autoatribuição. Com efeito, a autoatribuição é preconizada nos processos classificatórios raciais, todavia, em caso de impossibilidade da autodeclaração (como na DO), o declarante é o responsável por fornecer as informações do falecido. No Brasil, observa-se um incômodo e uma inconsistência classificatória do pertencimento étnico-racial, de modo que a coleta de dados, o preenchimento do campo raça/cor e a heteroclassificação são assimiladas como práticas discriminatórias. De todo modo, a heteroclassificação e a autoclassificação têm fundamento histórico, haja vista os aspectos políticos e ideológicos com inclinação ao branqueamento que atravessam o processo de formação da identidade racial no Brasil.
Espera-se que este estudo contribua para a discussão da problemática envolvida na mortalidade de trabalhadores por acidentes de trabalho e, consequentemente, na perda de anos potenciais de vida perdidos por esse tipo de óbito, assim como para a reflexão sobre os processos de produção e reprodução de condicionantes históricos e sociais, que levam os trabalhadores negros a serem mais expostos a agravos preveníveis e evitáveis.
Conclusão
Constatou-se que os acidentes de trabalho fatais no estado da Bahia, de 2000 a 2019, ocorreram predominantemente entre os homens, adultos e jovens, de raça/cor da pele parda, decorrentes majoritariamente de acidentes de transporte, seguida de outras causas externas de traumatismo acidentais.
No período do estudo, entre os trabalhadores de raça/cor da pele parda foram registradas as maiores TAPVP para todos os anos analisados, seguidos dos trabalhadores brancos e pretos. Destaca-se também que os pardos tiveram os maiores valores de VPA, com tendência crescente particularmente entre 2002 e 2006 e decrescente entre os anos de 2017 e 2019. Os trabalhadores pretos e pardos morreram, em média, em idades mais precoces.
Sugere-se que novas pesquisas sejam conduzidas na perspectiva de avaliar a qualidade das notificações e de propor outras metodologias que também contribuam para aumentar a visibilidade aos acidentes de trabalho fatais e às iniquidades sociais, assim como fortalecer as políticas voltadas para a redução desses tipos de acidentes, especialmente entre as populações mais vulnerabilizadas.
Referências
-
1Peixoto HCG, Souza ML. O indicador anos potenciais de vida perdidos e a ordenação das causas de morte em Santa Catarina, 1995. Inf Epidemiol SUS. 1999;8(1):17-25.
-
2Mata MS, Costa ÍCC. Composição do Índice de Iniquidade em Saúde a partir das desigualdades na mortalidade e nas condições socioeconômicas em uma capital brasileira. Cien Saude Colet. 2020;25:1629-40.
-
3Matos CCSA, Tourinho FSV. Saúde da População Negra: como nascem, vivem e morrem os indivíduos pretos e pardos em Florianópolis (SC). Rev Bras Med Fam Comunidade. 2018;13(40):1-13.
-
4Galdino A, Santana VS, Ferrite S. Fatores associados à qualidade de registros de acidentes de trabalho no Sistema de Informações sobre Mortalidade no Brasil. Cad Saude Publica. 2019;36(1):e00218318.
-
5Takala J, Hämäläinen P, Saarela KL, Yun LY, Manickam K, Jin TW, et al. Global estimates of the burden of injury and illness at work in 2012. J Occup Environ Hyg. 2014;11(5):326-37.
-
6Almeida FSS, Morrone LC, Ribeiro KB. Trends in incidence and mortality due to occupational accidents in Brazil, 1998-2008. Cad Saude Publica. 2014;30(9):1957-64.
-
7Arnold MW, Silva MA, Falbo Neto GH, Haimenis RP. Years of potential life lost among female homicide victims of child-bearing age in the city of Recife, Pernambuco, (Brazil) in 2001 and 2002. Rev Bras Saude Mater Infant. 2007;7:s23-7.
-
8Miranda FMA, Scussiato LA, Kirchhof ALC, Cruz EDA, Sarquis LMM. Characteristics of victims and fatal accidents at the workplace. Rev Gaucha Enferm. 2012;33(2):45-51.
-
9Martins TCS. Oposição entre as lutas anticapitalista e antirracista: realidade ou erro de análise? SER Soc. 2017;19(41):275-95.
-
10Brasil. Ministério da Saúde. Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde. Tabnet, Mortalidade-Brasil. [Internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2017 [citado em 17 jan 2019]. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/obt10uf.def
» http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sim/cnv/obt10uf.def -
11Berbel VV. Raça e Racismo: os Desafios dos Direitos Humanos na Sociedade Moderna. RDD. 2017;26(48):326-41.
-
12Araújo EM, Costa MCN, Hogan VK, Mota ELA, Araújo TM, Oliveira NF. Race/skin color differentials in potential years of life lost due to external causes. Rev Saude Publica. 2009;43(3):405-12.
-
13Osorio RG. O Sistema Classificatório de Cor ou Raça do IBGE [Internet]. DF: Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão; 2003 [citado em 3 dez. 2017] . Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_0996.pdf
» http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_0996.pdf -
14Instituto Brasileiro de Geografia e Estátistica. Censo Demográfico. Características Gerais da População: Tabela 2093 - População residente por cor ou raça, sexo, situação do domicílio e grupos de idade [Internet]. Brasília, DF: IBGE, 2010 [citado 30 mar 2020]. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/2093
» https://sidra.ibge.gov.br/tabela/2093 -
15Brasil. Lei nº 10.097, de 19 de dezembro de 2000. Altera dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Diário Oficial da União. 20 dez 2000.
-
16Almeida FSS, Morrone LC, Ribeiro KB. Tendências na incidência e mortalidade por acidentes de trabalho no Brasil, 1998 a 2008. Cad Saude Publica. 2014;30:1957-64.
-
17National Institutes of Health (USA). National Cancer Institute. Joinpoint Trend Analysis Software - version 4.9.0.0 [Internet]. Bethesda: NIH, 2021[citado em 30 mar 2022]. Disponível em: https://surveillance.cancer.gov/joinpoint/
» https://surveillance.cancer.gov/joinpoint/ -
18Theodoro ML. Exclusão ou inclusão precária? O negro na sociedade brasileira. Inclusao Soc. 2009;3(1):79-82.
-
19Ribeiro R, Araújo GS. Segregação ocupacional no mercado de trabalho segundo cor e nível de escolaridade no Brasil contemporâneo. Nova Econ. 2016;26(1):147-77.
-
20Barbosa MIS. Racismo e saúde [tese na Internet]. São Paulo: Faculdade de Saúde Pública da USP; 1998. [citado em 3 ago 2017]. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6136/tde-08042020-101524/pt-br.php
» https://teses.usp.br/teses/disponiveis/6/6136/tde-08042020-101524/pt-br.php -
21Barbosa MIS. É mulher, mas é negra: perfil da mortalidade do 'quarto de despejo'. J Rede Feminista Saúde. 2001;(23):34-6.
-
22Paixão M. Saúde da População Negra no Brasil: contribuições para a promoção da equidade [Internet]. Brasília, DF: FUNASA; 2017 [citado em 1 out 2017]. Disponível em: https://repositorio.funasa.gov.br/bitstream/handle/123456789/638/Saude%20da%20popula%c3%a7%c3%a3o%20negra%20no%20Brasil%20-%20contribui%c3%a7%c3%b5es%20para%20a%20promo%c3%a7ao%20a%20equidade%202005.pdf?sequence=1&isAllowed=y
» https://repositorio.funasa.gov.br/bitstream/handle/123456789/638/Saude%20da%20popula%c3%a7%c3%a3o%20negra%20no%20Brasil%20-%20contribui%c3%a7%c3%b5es%20para%20a%20promo%c3%a7ao%20a%20equidade%202005.pdf?sequence=1&isAllowed=y -
23Proni MW, Gomes DC. Precariedade ocupacional: uma questão de gênero e raça. Estud Av. 2015;29(85):137-51.
-
24Hasenbalg, CA. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal; 1979.
-
25Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saude Soc. 2016;25(3):535-49.
-
26Santana VS, Araújo-Filho JB, Silva M, Albuquerque-Oliveira PR, Barbosa-Branco A, Nobre LCC. Mortalidade, anos potenciais de vida perdidos e incidência de acidentes de trabalho na Bahia, Brasil. Cad Saude Publica. 2007;23(11):2643-52.
-
27Santana VS, Xavier C, Moura MCP, Oliveira R, Espírito-Santo JS, Araújo G. Gravidade dos acidentes de trabalho atendidos em serviços de emergência. Rev Saude Publica. 2009;43(5):750-60.
-
28Scussiato LA, Sarquis LMM, Kirchhof ALC, Kalinke LP. Perfil epidemiológico dos acidentes de trabalho graves no Estado do Paraná, Brasil, 2007 a 2010. Epidemiol Serv Saude. 2013;22(4):621-30.
-
29Drumond EF, Silva JM. Evaluation of the strategy for identification and measurement of the fatal accidents at work. Cien Saude Colet. 2013;18(5):1361-5.
-
30Brasil. Ministério da Fazenda. Anuário Estatístico da Previdência Social: AEPS 2018 [Internet]. Brasília, DF: MF/DATAPREV; 2019 [acesso em 10 set 2021]. Disponível em: https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/dados-abertos-previdencia/previdencia-social-regime-geral-inss/arquivos/aeps-2018.pdf
» https://www.gov.br/trabalho-e-previdencia/pt-br/acesso-a-informacao/dados-abertos/dados-abertos-previdencia/previdencia-social-regime-geral-inss/arquivos/aeps-2018.pdf -
31Iwamoto HH, Camargo FC, Tavares LC, Miranzi SSC. Acidentes de trabalhos fatais e a qualidade das informações de seus registros em Uberaba, em Minas Gerais e no Brasil, 1997 a 2006. Rev Bras Saude Ocup. 2011;36(124):208-15.
-
32Lacerda KM, Fernandes RCP, Nobre LCC, Pena PGL. A (in)visibilidade do acidente de trabalho fatal entre as causas externas: estudo qualitativo. Rev Bras Saude Ocup. 2014;39(130):127-35.
-
33Batista AG, Santana VS, Ferrite S. Registro de dados sobre acidentes de trabalho fatais em sistemas de informação no Brasil. Cien Saude Colet. 2019;24:693-704.
-
34Nobre LCC. Trabalho precário e morte por acidente de trabalho: a outra face da violência e a invisibilidade do trabalho [tese na Internet]. Salvador: Instituto de Saúde Coletiva da UFBA; 2007 [citado em 3 ago 2017]. Disponível em: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/10395
» http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/10395
-
Os autores informam que um resumo deste trabalho foi apresentado no 11º Congresso Brasileiro de Epidemiologia, em novembro de 2021.
-
3
Trabalho desenvolvido a partir da dissertação de mestrado de Felipe Souza Dreger Nery, intitulada “Mortalidade no estado da Bahia: análise dos diferenciais segundo a raça/cor entre 2000 e 2010”, defendida em 2014 no Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Feira de Santana.
-
Errata
No Artigo de Pesquisa “Tendência temporal dos anos potenciais de vida perdidos por acidentes de trabalho fatais segundo raça/cor da pele na Bahia, 2000-2019”, com número de DOI: 10.1590/2317-6369/18719pt20 22v47e1, publicado no periódico Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 47:e1, na página 7/10, corrige-se:Onde se lia:“dado comparativamente divergente aos 33.997 APVP apontados nesta pesquisa para toda a série histórica (2000-2019)”Leia-se:“dado comparativamente divergente aos 64.791,5 APVP apontados nesta pesquisa para toda a série histórica (2000-2019)”
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Jul 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
06 Ago 2019 -
Revisado
05 Abr 2020 -
Aceito
13 Abr 2020