Resumo
Introdução:
a incidência do câncer tem aumentado continuamente no mundo, especialmente em países de baixa e média renda.
Objetivo:
identificar e sintetizar o conhecimento sobre exposição ocupacional e câncer, com ênfase na produção científica brasileira.
Métodos:
ensaio elaborado com base em revisões realizadas nas bases SciELO e PubMed.
Resultados:
um estudo recente identificou 47 agentes ocupacionais entre os 120 agentes classificados como definitivamente cancerígenos para humanos pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer. Estudos realizados nas duas últimas décadas indicaram frações de câncer atribuíveis à ocupação, variando de 1,3% no Brasil a 8% na Finlândia, embora os critérios para aferir a exposição nesses estudos possam ser questionados. No Brasil, a produção científica sobre ocupação e câncer é limitada. A Revista Brasileira de Saúde Ocupacional publicou, entre janeiro de 2003 e julho de 2022, seis artigos sobre o tema. Na base PubMed, de 2012 a 2022, foram identificados 14 estudos realizados no Brasil.
Conclusão:
ampliar pesquisas nesta área realizadas no país é imperativo para obtenção de estimativas mais precisas de trabalhadores expostos a cancerígenos e tumores malignos relacionados, essencial para subsidiar ações de saúde pública e normas sobre limites de exposição ou banimento de agentes, reduzindo o fardo do câncer na sociedade brasileira.
Palavras-chave:
câncer; trabalho; exposição ocupacional; saúde do trabalhador; Brasil
Abtract
Introduction:
cancer incidence is increasing worldwide, especially in low- and middle-income countries.
Objective:
to identify and synthesize knowledge about occupational exposure and cancer, with emphasis on Brazilian scientific publications.
Method:
essay based on reviews carried out in the SciELO and PubMed databases.
Results:
a recent study identified 47 occupational agents among the 120 classified as definitively carcinogenic to humans by the International Agency for Research on Cancer. Studies carried out in the last two decades suggested fractions of cancer attributable to occupation, ranging from 1.3% in Brazil to 8% in Finland, although the criteria for measuring exposure in these studies can be questioned. In Brazil, scientific production on occupation and cancer is limited. The Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (RBSO) published, between January 2003 to July 2022, six articles on the subject. In the PubMed database, from 2012 to 2022, 14 studies carried out in Brazil were identified.
Conclusion:
expanding research in this subject in Brazil is imperative to obtain more accurate estimates of workers exposed to carcinogens and related malignant tumors, essential to support public health actions and to establish norms on exposure limits or agents banning, reducing the burden of cancer in the Brazilian society.
Keywords:
cancer; work; occupational exposure; occupational health; Brazil
Introdução
O câncer é uma doença de dimensão global com variações de incidência, mortalidade e sobrevida entre regiões, países e também entre áreas geográficas de um mesmo país. A incidência é crescente em todo o mundo, especialmente nas nações de baixa e média renda11. Sung H, Ferlay J, Siegel RL, Laversanne M, Soerjomataram I, Jemal A, et al. Global Cancer Statistics 2020: GLOBOCAN estimates of incidence and mortality worldwide for 36 cancers in 185 countries. CA Cancer J Clin. 2021;71(3):209-49.. Na América do Sul, até 2040, as projeções indicam aumento nesta taxa acima de 65% em relação a 202022. Piñeros M, Laversanne M, Barrios E, Cancela M de C, de Vries E, Pardo C, et al. An updated profile of the cancer burden, patterns and trends in Latin America and the Caribbean. Lancet Reg Health Am. 2022;13:100294.. No Brasil, as estimativas para 2040 projetam aumentos de mais de 60% nos casos novos e mais de 70% nas mortes33. International Agency for Research on Cancer. Global Cancer Observatory. Cancer Tomorrow [Internet]. Lyon; 2002. [citado em 13 set 2022]. Disponível em: https://gco.iarc.fr/tomorrow/en/.
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O termo câncer inclui centenas de doenças, para as quais há inúmeros fatores de risco que requerem ações de prevenção pertinentes. A característica multifatorial da doença torna difícil a tarefa de investigar o papel de fatores causais específicos, pois múltiplos agentes estão simultaneamente envolvidos e agem de forma interativa no processo da carcinogênese. Portanto, relacionar a exposição a agentes cancerígenos no local de trabalho à ocorrência de câncer em trabalhadores requer perspectivas de ampla gama de disciplinas em um processo gradual e cumulativo de conhecimento. É o que aprendemos ao rever os exemplos clássicos da associação entre fuligem e câncer de pele escrotal e do amianto com mesotelioma e neoplasias malignas de pulmão44. Toporcov T, Wünsch Filho V. Epidemiological science and cancer control. Clinics. 2018;73(Suppl 1):e627s..
Em 1975, Doll realizou relevante revisão dos fatores de risco ocupacionais para câncer, dividindo os achados em dois períodos: antes de 1915 e desde 1915. No primeiro período, muito do conhecimento foi decorrente de relatos de casos por clínicos e patologistas, bem como de observações epidemiológicas. No segundo, a detecção de cancerígenos ocupacionais foi influenciada pelos avanços nos experimentos laboratoriais55. Doll R. Part III: 7th Walter Hubert lecture. Pott and the prospects for prevention. Br J Cancer. 1975;32(2):263-74.. Ainda na década de 1970, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer da Organização Mundial da Saúde (International Agency for Research on Cancer of World Health Organization - IARC/WHO) iniciou seu programa de Monografias, no qual agentes, misturas complexas e ocupações foram sistematicamente avaliados quanto ao seu potencial cancerígeno. O primeiro volume das Monografias foi publicado em 197166. Saracci R, Wild C. International Agency for Research on Cancer: the first 50 years, 1965-2015. Lyon: IARC; 2015.. Atualmente, existe vasta quantidade de informações sobre os riscos presentes em diferentes ambientes de trabalho e ocupações cujo exercício promove risco excessivo de câncer.
Neste ensaio não incluímos análises aprofundadas de situações particulares. Não é também uma tentativa de listar agentes cancerígenos ocupacionais e relacioná-los com diferentes tipos de câncer, pois isso já foi feito com muita competência por outros autores77. Siemiatycki J, Richardson L, Straif K, Latreille B, Lakhani R, Campbell S, et al. Listing Occupational Carcinogens. Environ Health Perspec. 2004;112(15):1447-59.), (88. Loomis D, Guha N, Hall AL, Straif K. Identifying occupational carcinogens: an update from the IARC Monographs. Occup Environ Med. 2018;75(8):593-603.. O nosso objetivo é identificar e sintetizar, em linhas gerais, o conhecimento sobre o impacto das exposições a cancerígenos ocupacionais, com ênfase na produção científica brasileira.
Cancerígenos ocupacionais: caracterização e magnitude
Exposições a cancerígenos são encontradas com frequência nos ambientes de trabalho, porém, vários desses agentes estão presentes também no ambiente geral. A IARC, no seu programa de Monografias, tem avaliado agentes químicos e físicos quanto ao seu potencial cancerígeno, considerando os resultados de estudos epidemiológicos, experimentos em modelos animais e estudos de análise da estrutura-atividade. De 1971 a 2022, mais de 1000 agentes foram examinados99. International Agency for Research on Cancer. Agents classified by the IARC Monographs volumes 1-132 [Internet]. Lyon; 2022. [citado em 8 set 2022]. Disponível em: http://monographs.iarc.fr/ENG/Classification/index.php
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e classificados em uma das seguintes categorias: cancerígeno para os humanos (Grupo 1), provavelmente cancerígeno (Grupo 2A), possivelmente cancerígeno (Grupo 2B) e não classificável quanto ao potencial cancerígeno (Grupo 3). Todavia, a IARC não fornece indicações sobre a relevância do agente como exposição ocupacional1010. International Agency for Research on Cancer. IARC Monographs on the evaluation of carcinogenic risks to humans [Internet]. Lyon; 2019. [citado em 8 set 2022]. Disponível em: https://monographs.iarc.who.int/
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Em 2004, Siemiatykci et al. (77. Siemiatycki J, Richardson L, Straif K, Latreille B, Lakhani R, Campbell S, et al. Listing Occupational Carcinogens. Environ Health Perspec. 2004;112(15):1447-59. conduziram investigação para reconhecer, no conjunto dos agentes avaliados pela IARC até 2003 (cerca de 880), quais estavam presentes principalmente em ambientes ocupacionais. Para aferir exposição ocupacional, os autores utilizaram o critério: número significativo de trabalhadores expostos em níveis relevantes ao agente. Os resultados mostraram 28 agentes ocupacionais no Grupo 1, 27 no Grupo 2, 113 no Grupo 3 e 18 ocupações ou indústrias que implicavam riscos excessivos de câncer.
Loomis et al. (88. Loomis D, Guha N, Hall AL, Straif K. Identifying occupational carcinogens: an update from the IARC Monographs. Occup Environ Med. 2018;75(8):593-603. atualizaram os dados, mas se restringiram a examinar somente os agentes do Grupo 1 da IARC. Dos 120 agentes classificados no Grupo 1 até 2017, os autores reconheceram como cancerígenos ocupacionais aqueles com evidências suficientes de carcinogenicidade obtidas no todo ou em parte, por estudos epidemiológicos em trabalhadores expostos e, ainda, a ocorrência de exposição em trabalhadores ter sido documentada na monografia pertinente ao agente. Alicerçados nesses critérios, classificaram 47 agentes como ocupacionais. Número bem mais expressivo que o registrado por Siemiatycki et al. (77. Siemiatycki J, Richardson L, Straif K, Latreille B, Lakhani R, Campbell S, et al. Listing Occupational Carcinogens. Environ Health Perspec. 2004;112(15):1447-59. no Grupo 1.
Muitos países produzem suas próprias listas de agentes cancerígenos ocupacionais. Nos Estados Unidos da América (EUA) há duas listas principais: a do NIOSH (National Institute for Occupational Safety and Health), que relaciona 131 carcinógenos ocupacionais potenciais e é continuamente revisada1111. National Institute for Occupational Safety and Health (USA). NIOSH Carcinogen List [Internet]. Atlanta; [2001] [citado em 9 set 2022]. Disponível em: https://www.cdc.gov/niosh/topics/cancer/npotocca.html
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; e a do NTP (National Toxicology Program) que no 15º relatório sobre cancerígenos ocupacionais, publicado em dezembro de 2021, enumera 256 substâncias conhecidas ou com potencial para causar câncer em humanos1212. National Toxicology Program (USA). 15th Report on Carcinogens. National Toxicology Program [Internet] Durham; 2021 [citado em 9 set 2022]. Disponível em: https://ntp.niehs.nih.gov/whatwestudy/assessments/cancer/roc/index.html
https://ntp.niehs.nih.gov/whatwestudy/as...
. Entretanto, os critérios e métodos usados para classificar os agentes cancerígenos ocupacionais nestas duas listas não são esclarecidos.
No Brasil, por meio da Portaria MS/GM 1339, de 19991313. Ministério da Saúde. Lista de doenças relacionadas ao trabalho. Portaria n. 1679/GM, de 19 de setembro de 2002. .2a. ed. Brasília, DF; 1999., o Ministério da Saúde divulgou uma lista de doenças relacionadas ao trabalho, com seus respectivos fatores de risco. As neoplasias malignas foram elencadas e relacionadas com agentes etiológicos ou fatores de risco ocupacionais. A proposta na Portaria seria de revisão anual da lista, mas isso não ocorreu. Em 2012, o Instituto Nacional do Câncer (INCA) publicou a obra “Diretrizes para a vigilância do câncer relacionado ao trabalho”, que seguiu igualmente a lógica de relacionar as neoplasias malignas com fatores de risco ocupacionais1414. Instituto Nacional de Câncer José de Alencar Gomes da Silva. Diretrizes para a vigilância do câncer relacionado ao trabalho [Internet]. Rio de Janeiro; 2012 [citado em 9 set 2022]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/inca/diretrizes_vigilancia_cancer_trabalho.pdf
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. Para a classificação dos agentes, foram aceitos nas Diretrizes os critérios estabelecidos pela IARC. A publicação mais recente do INCA “Ambiente, trabalho e câncer: aspectos epidemiológicos, toxicológicos e reguladores” (1515. Instituto Nacional de Câncer José de Alencar Gomes da Silva. Ambiente, trabalho e câncer: aspectos epidemiológicos, toxicológicos e regulatórios [Internet]. Rio de Janeiro; 2021[citado em 9 set 2022]. Disponível em: https://www.inca.gov.br/sites/ufu.sti.inca.local/files/media/document/ambiente_trabalho_e_cancer_-_aspectos_epidemiologicos_toxicologicos_e_regulatorios.pdf
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, com base também nos critérios da IARC, assinala a vinculação entre determinados agentes, não absolutamente limitados aos cancerígenos ocupacionais, e neoplasias malignas.
Câncer atribuível a exposições ocupacionais
Para demarcar as prioridades em vigilância, é preciso estabelecer a fração atribuível de câncer como decorrência de exposições ocupacionais. O estudo de referência a respeito foi publicado em 1981 - The causes of cancer1616. Doll R, Peto R. The causes of cancer: quantitative estimates of avoidable risks of cancer in the United States today. J Natl Cancer Inst.1981;66(6):1192-308.. A proporção de mortes por câncer em geral devido à ocupação, na população norte-americana, foi 4%, porém, com variações nas diferentes localizações anatômicas. 12,5% das mortes por câncer de pulmão, por exemplo, foram atribuídas à ocupação.
No decorrer deste século, novos estudos foram realizados, buscando reexaminar a fração da mortalidade por câncer atribuível à ocupação em distintas populações, com resultados divergentes (Quadro 1). Há diferenças metodológicas importantes com relação aos dados de exposição, critérios de consenso para agentes cancerígenos e de incidência e mortalidade por tipos de neoplasia. O estudo brasileiro1717. Azevedo e Silva G, de Moura L, Curado MP, Gomes FS, Otero U, Rezende LFM et al. The fraction of cancer attributable to ways of life, infections, occupation, and environmental agents in Brazil in 2020. PloS One. 2016;11(2):e0148761. foi mais restritivo, considerando apenas uma seleção de agentes e ocupações classificados no Grupo 1 da IARC (definitivamente cancerígenos). As demais pesquisas incluíram também os agentes classificados no Grupo 2A (provavelmente cancerígenos para os humanos). Naturalmente, as distintas abordagens têm reflexos nos resultados18. Há proximidade entre as frações atribuíveis estimadas nos estudos dos EUA e do Reino Unido1919. Steenland K, Burnett C, Lalich N, Ward E, Hurrell J. Dying for work: The magnitude of US mortality from selected causes of death associated with occupation. Am J Ind Med. 2003;43(5):461-82.), (2020. Rushton L, Bagga S, Bevan R, Brown TP, Cherrie JW, Holmes P, et al. Occupation and cancer in Britain. Br J Cancer. 2010;102(9):1428-37., similares às obtidas por Doll e Peto1616. Doll R, Peto R. The causes of cancer: quantitative estimates of avoidable risks of cancer in the United States today. J Natl Cancer Inst.1981;66(6):1192-308.. O estudo finlandês observou fração atribuível de 8%, a maior entre as estimativas2121. Nurminen M, Karjalainen A. Epidemiologic estimate of the proportion of fatalities related to occupational factors in Finland. Scand J Work Environ Health. 2001;27(3):161-213.. Por outro lado, o estudo brasileiro apresentou a menor fração - 1,3% (2,1% em homens e 0,3% em mulheres) (1717. Azevedo e Silva G, de Moura L, Curado MP, Gomes FS, Otero U, Rezende LFM et al. The fraction of cancer attributable to ways of life, infections, occupation, and environmental agents in Brazil in 2020. PloS One. 2016;11(2):e0148761.. Em todos os levantamentos, as proporções foram mais altas nos homens. Nos estudos da Finlândia, EUA e Reino Unido, foi destacada a proeminência do câncer de pulmão e da exposição ao amianto.
O Institute of Health Metrics and Evaluation tem publicado uma série de análises sobre a ocorrência de doenças no mundo, sob o título genérico de Global Burden of Diseases (GBD). Dentro desta sequência de análises, a carga de câncer devido a exposições ocupacionais foi estimada nas regiões do mundo2222. Global Burden of Diseases. Global and regional burden of cancer in 2016 arising from occupational exposure to selected carcinogens: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2016. Occup Environ Med. 2020;77(3):151-9.. Os autores tomaram como base as revisões de agentes pela IARC até 2014 e selecionaram 14 cancerígenos ocupacionais principais, ligados a oito tumores malignos. As estimativas de exposição foram feitas a partir do CAREX (Carcinogen Exposure), uma base de dados criada na década de 1990 na Europa Ocidental para estimar o número de trabalhadores expostos por país, bem como qual o cancerígeno e o ramo de atividade2323. Kauppinen T, Toikkanen J, Pedersen D, Young R, Ahrens W, Boffetta P, et al. Occupational exposure to carcinogens in the European Union. Occup Environ Med. 2000;57(1):10-8.. Os autores do estudo do GBD2222. Global Burden of Diseases. Global and regional burden of cancer in 2016 arising from occupational exposure to selected carcinogens: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2016. Occup Environ Med. 2020;77(3):151-9. admitiram que as prevalências das exposições entre os trabalhadores não se modificaram no tempo e extrapolaram os dados para todas as regiões do mundo com ajustes para países de alta, média e baixa renda. Na América Latina Tropical, classificação que inclui o Brasil, foi constatado que oito mortes por câncer a cada 100 mil habitantes seriam atribuídas à ocupação. Metade dessa carga, ou seja, quatro mortes a cada 100.000 habitantes, seria devido à exposição ao amianto. As limitações desta análise são evidentes. Os autores consideraram as estimativas do CAREX sobre o número de trabalhadores expostos a cancerígenos na década de 1990 na Europa Ocidental como estáveis e aplicáveis ao resto do mundo. Além disso, examinaram uma quantidade restrita de cancerígenos ocupacionais e de neoplasias malignas.
Pesquisas sobre exposição ocupacional e câncer no Brasil
São escassas as informações disponíveis sobre o tema ocupação e câncer no Brasil. Uma investigação sobre teses e dissertações na área da saúde do trabalhador realizadas nos programas de pós-graduação no Brasil e no exterior, entre 1970 e 2004, revelou que, do total de 1.018 teses e dissertações detectadas, não mais que seis (0,6%) tinham como objetivo o câncer - a mais baixa proporção entre todos os temas de saúde do trabalhador relacionados pelo estudo2424. Santana VS. Saúde do trabalhador no Brasil: pesquisa na pós-graduação. Rev Saúde Pública. 2006; 40(spe):101-11.. Este cenário pouco se modificou nas últimas duas décadas.
Entre janeiro 2003 a julho 2022, via base SciELO, foram encontrados apenas seis artigos sobre exposição ocupacional e câncer nas páginas da Revista Brasileira de Saúde Ocupacional (RBSO). Todos a partir de 2012. Considerando-se a posição da RBSO como referência nacional para divulgação de pesquisas na área da saúde do trabalhador, não deixa de ser inquietante o pouco interesse de pesquisa neste tópico. Em 2012, há um editorial sobre as Diretrizes sobre Vigilância de Câncer Relacionado ao Trabalho publicadas pelo INCA2525. Wünsch Filho V. Vigilância do câncer relacionado ao trabalho: sobre as Diretrizes 2012 publicadas pelo INCA. Rev Bras Saúde Ocup. 2012;37(125):6-8.. Em 2013, um ensaio publicado sobre Vigilância em Saúde do Trabalhador2626. Ribeiro FSN. Vigilância em Saúde do Trabalhador: a tentação de engendrar respostas às perguntas caladas. Rev Bras Saúde Ocup. 2013;38(128):268-79., no qual a autora assinala a necessidade de vigilância e da organização de um sistema de informação sobre exposição a agentes cancerígenos. Em 2017, o suplemento do volume 42 da RBSO foi dedicado ao benzeno e, embora, alguns artigos focalizem aspectos da genotoxidade do agente, sua propriedade cancerígena é mencionada tangencialmente. Em 2019, foram publicados três artigos sobre exposições a potenciais agentes cancerígenos: sílica cristalina na indústria da borracha2727. Oliveira A, Pinto TCNO. Avaliação da eficácia de sistema de ventilação local exaustora utilizado no controle de sílica cristalina em indústria de borracha de silicone. Rev Bras Saúde Ocup. 2019;44., agrotóxicos2828. Petarli GB, Cattafesta M, Luz TC, Zandonade E, Bezerra OMPA, Salaroli LB. Exposição ocupacional a agrotóxicos, riscos e práticas de segurança na agricultura familiar em município do estado do Espírito Santo, Brasil. Rev Bras Saúde Ocup. 2019;44. e a chumbo, cádmio, cobre e zinco2929. Rego RF, Machado LOR, Silva GA, Falcão IR. Implantação de protocolo de vigilância e atenção à saúde de ex-trabalhadores e população exposta a chumbo, cádmio, cobre e zinco em Santo Amaro, Bahia. Rev Bras Saúde Ocup. 2019;44.. No entanto, as ligações com câncer são pouco ressaltadas. Finalmente, em 2022 (até julho) constata-se uma revisão guarda-chuva sobre exposição ocupacional e câncer3030. Guimarães RM, Dutra VGP, Ayres ARG, Garbin HBR, Martins TCF, Meira KC. Exposição ocupacional e câncer: uma revisão guarda-chuva. Rev Bras Saúde Ocup. 2022;47..
Na base PubMed, as primeiras referências de artigos sobre o tema ocupação e câncer no Brasil são do final da década de 19603131. Rocha AA, Bueno Z. Câncer ocupacional. Hospital (Rio de Janeiro, Brazil) 1968;74(6):1885-96.), (3232. Pereira MF. Cancerologia ocupacional. Hospital (Rio de Janeiro, Brazil) 1969;75(3):885-95.. Na década de 1980 emergem os primeiros estudos caso-controle investigando fatores de risco para diferentes tumores malignos, mas sem referência a condições ocupacionais3333. Kirchhoff LV, Evans AS, McClelland KE, Carvalho RP, Pannutti CS. A case-control study of Hodgkin's disease in Brazil. I. Epidemiologic aspects. Am J Epidemiol. 1980;112(5):595-608.), (3434. Franco EL, Kowalski LP, Oliveira BV, Curado MP, Pereira RN, Silva ME, et al. Risk factors for oral cancer in Brazil: A case-control study. Int J Cancer. 1989;43(6):992-1000.. Na década seguinte, o tema surge mais claramente, com publicações de estudos com abordagens transversal ou ecológica, três estudos caso-controle3535. Suzuki I, Hamada GS, Zamboni MM, de Biasi Cordeiro P, Watanabe S, Tsugane S. Risk factors for lung cancer in Rio de Janeiro, Brazil: a case-control study. Lung Cancer. 1994;11(3-4):179-90.)- (3737. Santana VS, Silva M, Loomis D. Brain Neoplasms among Naval Military Men. Int J Occup Environ Health. 1999;5(2):88-94.) e uma coorte3838. Fassa AG, Facchini LA, Dall'Agnol MM. The Brazilian cohort of pulp and paper workers: the logistic of a cancer mortality study. Cad Saúde Pública. 1998;14(suppl 3):S117-23.. Na primeira década do século XXI há estudos no país com variados enfoques metodológicos sobre ocupação e câncer: série de casos, análises de mutagenicidade, transversais, ecológicos, estudos caso-controle e coortes3939. Medrado-Faria MD, Almeida JW, Zanetta DM, Gattás GJ. Nervous system cancer mortality in an industrialized area of Brazil, 1980-1993. Arq Neuro-Psiquiatr. 2000;58(2B):412-7.)- (5454. Popim RC, Corrente JE, Marino JAG, Souza CA. Câncer de pele: uso de medidas preventivas e perfil demográfico de um grupo de risco na cidade de Botucatu. Ciênc Saúde Coletiva. 2008;13(4):1331-6. e uma averiguação da prevalência da exposição à sílica5555. Ribeiro FSN, Camargo EA de, Algranti E, Wünsch Filho V. Exposição ocupacional à sílica no Brasil no ano de 2001. Rev Bras Epidemiol. 2008;11(1):89-96..
Neste ponto, para acompanhar a evolução na última década das pesquisas sobre ocupação e câncer no país, conduzimos uma revisão utilizando a base PubMed. Entre 31 de janeiro de 2012 e 31 de dezembro 2022, rastrearam-se artigos empregando-se a combinação de MeSH Terms((Occupational Health) OR (occupation)) AND ((cancer) OR (neoplasms) OR (Hematologic Neoplasms) OR (mesotheliomas) OR (melanoma)) AND (Brazil)). Foi realizada também a busca manual nas referências dos artigos selecionados para inclusão de pesquisas adicionais. Foram aceitos nesta revisão apenas estudos ecológicos, caso-controle e coortes, sem restrição de idioma. Os critérios de exclusão utilizados foram: (1) estudos em células e em animais; e (2) artigos de revisão, descritivos, transversais, cartas ao editor e relatos de casos. Quando os critérios de elegibilidade foram atendidos pela triagem de título e resumo, o texto completo foi recuperado para leitura na íntegra.
No início do processo foram levantados 396 artigos. Após leitura do título excluíram-se 362 trabalhos. Da leitura dos resumos dos 34 artigos remanescentes, 14 foram elegíveis para leitura na íntegra. Desses, 12 foram selecionados e outros dois foram identificados nas referências bibliográficas dos 12 escolhidos5656. Algranti E, Saito CA, Carneiro APS, Moreira B, Mendonça EMC, Bussacos MA. The next mesothelioma wave: mortality trends and forecast to 2030 in Brazil. Cancer Epidemiol. 2015;39(5):687-92.), (5757. Fernandes GA, Algranti E, Conceição GM de S, Wünsch Filho V, Toporcov TN. Lung cancer mortality trends in a Brazilian city with a long history of asbestos consumption. Int J Environ Res Public Health. 2019;16(14):2548.. Ao final, 14 artigos foram incluídos na revisão.
Os artigos selecionados comportam oito estudos ecológicos, cinco estudos caso-controle e uma coorte e são apresentados no Quadro 2. Agrotóxicos, atividades agrícolas e amianto foram as principais exposições investigadas. Diferentes tipos de câncer foram examinados. A maior parte dos estudos examinou mortes pela doença como desfecho principal.
Entre os estudos ecológicos sobre exposição ao amianto, Algranti et al. (5656. Algranti E, Saito CA, Carneiro APS, Moreira B, Mendonça EMC, Bussacos MA. The next mesothelioma wave: mortality trends and forecast to 2030 in Brazil. Cancer Epidemiol. 2015;39(5):687-92. evidenciaram tendência crescente no número de mortes por mesotelioma no Brasil, especialmente em São Paulo, estado que apresentou elevação nas taxas de mortalidade padronizadas por essa neoplasia. A partir dos dados, os autores inferiram a projeção do pico de mortalidade por mesotelioma entre os anos de 2021 e 2026, com retardo de 15 a 20 anos em relação aos países desenvolvidos, fato relacionado ao histórico do consumo da fibra no Brasil. Em outro estudo, foi evidenciado excesso de óbitos por neoplasias malignas de pulmão em homens com idade igual ou superior a 60 anos em Osasco - cidade que abrigou uma grande indústria de cimento-amianto no século passado -, em relação às populações masculinas do estado de São Paulo e da cidade de Sorocaba5757. Fernandes GA, Algranti E, Conceição GM de S, Wünsch Filho V, Toporcov TN. Lung cancer mortality trends in a Brazilian city with a long history of asbestos consumption. Int J Environ Res Public Health. 2019;16(14):2548.. Saito et al. (5858. Saito CA, Bussacos MA, Salvi L, Mensi C, Consonni D, Fernandes FT, et al. Sex-specific mortality from asbestos-related diseases, lung and ovarian cancer in municipalities with high asbestos consumption, Brazil, 2000-2017. Int J Environ Res Public Health, 2022;19(6):3656. observaram que nos municípios com histórico de mineração de amianto e produção de cimento-amianto as taxas de mortalidade por mesotelioma, asbestose, placas pleurais, câncer de pulmão e ovário excederam as taxas de todo Brasil.
Estudo ecológico realizado na região agrícola serrana do Rio de Janeiro assinalou tendência crescente nas taxas de mortalidade por câncer de cérebro, com risco mais elevado de mortes com o aumento da idade, em comparação à população da Região Metropolitana do Rio de Janeiro5959. Miranda Filho AL, Koifman RJ, Koifman S, Monteiro GTR. Brain cancer mortality in an agricultural and a metropolitan region of Rio de Janeiro, Brazil: a population-based, age-period-cohort study, 1996-2010. BMC Cancer. 2014;14(1):320.. Em investigação adicional, ainda com trabalhadores agrícolas da Região Serrana do Rio de Janeiro, foi identificada elevada probabilidade de morte por câncer de estômago e esôfago nessa população, em comparação a trabalhadores não agrícolas da Região Serrana do Rio de Janeiro, da cidade do Rio de Janeiro e de Porto Alegre6060. Krawczyk N, Espíndola Santos AS, Lima J, Meyer A. Revisiting cancer 15 years later: exploring mortality among agricultural and non-agricultural workers in the Serrana Region of Rio de Janeiro. Am J Ind Med. 2016;60(1):77-86..
Por meio de dois outros estudos ecológicos, foi investigada a associação entre o exercício profissional em determinadas ocupações e o risco de óbitos por câncer. Koifman et al. (6161. Koifman S, Malhão TA, Pinto de Oliveira G, de Magalhães Câmara V, Koifman RJ, Meyer A. Cancer mortality among Brazilian dentists. Am J Ind Med. 2014;57(11):1255-64. constataram probabilidade mais alta de óbitos por linfoma não Hodgkin, câncer de mama, cólon reto, pulmão, cérebro e por todas as neoplasias malignas entre cirurgiões-dentistas de ambos os sexos, na faixa etária de 20 a 79 anos, em relação à população geral. Santos et al. (6262. Santos ASE, Martins AAF, Simões Gonçalves E, Meyer A. Mortality from selected cancers among Brazilian mechanics. Asian Pac J Cancer Prev, 2020;21(6):1779-86. verificaram maior mortalidade por câncer de orofaringe, hipofaringe, laringe, pulmão e bexiga, porém menor mortalidade por todas as leucemias entre mecânicos homens. Azevedo e Silva et al. (1717. Azevedo e Silva G, de Moura L, Curado MP, Gomes FS, Otero U, Rezende LFM et al. The fraction of cancer attributable to ways of life, infections, occupation, and environmental agents in Brazil in 2020. PloS One. 2016;11(2):e0148761. estimaram a fração de mortes por câncer atribuível a exposições ocupacionais. Os autores detectaram um baixo impacto na população geral, embora seja claro que para parcelas específicas de trabalhadores os riscos podem ser bem mais relevantes.
Dois estudos caso-controle de base hospitalar tiveram por objetivo investigar os fatores de risco para melanoma. No primeiro, foi examinada a exposição a agrotóxicos6363. Segatto MM, Bonamigo RR, Hohmann CB, Müller KR, Bakos L, Mastroeni S, et al. Residential and occupational exposure to pesticides may increase risk for cutaneous melanoma: a case-control study conducted in the south of Brazil. Int J Dermatol. 2015;54(12):e527-538. e, no segundo, incluindo dados de 95 pacientes brasileiros e 304 casos da Itália, os autores averiguaram a exposição a agrotóxicos e à radiação solar6464. Fortes C, Mastroeni S, Segatto MM, Hohmann C, Miligi L, Bakos L, et al. Occupational exposure to pesticides with occupational sun exposure increases the risk for cutaneous melanoma. J Occup Environ Med. 2016;58(4):370-5.. Em ambos foi encontrado aumento do risco de melanoma entre os expostos. Outro estudo caso-controle com base em atestados de óbito foi realizado na região sul do Brasil, indicando maior risco de mortes por linfoma não Hodgkin em trabalhadores agrícolas jovens (20-39 anos) comparados a trabalhadores não agrícolas6565. Boccolini P de MM, Boccolini CS, Chrisman J de R, Koifman RJ, Meyer A. Non-Hodgkin lymphoma among Brazilian agricultural workers: A death certificate case-control study. Arch Environ Occup Health. 2016;72(3):139-44.. Em 2022, foram publicados dois estudos caso-controles de base hospitalar. Áfio et al. (6666. Áfio NS, Forte ACFMS, Sanzana CES, Aguiar IWO. Trabalho rural associado a cânceres linfohematopoiéticos em hospital público de referência: estudo caso-controle, Ceará, Brasil, 2019-2021. Cad Saúde Pública. 2022;38(7):e00286121. verificaram que trabalhadores rurais possuíam maior probabilidade de apresentar tumores linfohematopoiéticos, mieloma múltiplo, leucemias ou linfoma não Hodgkin. Brey et al. (6767. Brey C, Consonni D, Sarquis LMM, Miranda FMDA. Câncer de pulmão e exposição ocupacional: estudo caso-controle de base hospitalar. Rev Gaúcha Enferm. 2022;43:e20210043. encontraram risco mais elevado de desenvolver câncer de pulmão entre indivíduos com a ocupação de pintor .
No único estudo de coorte publicado no período, em 2021, foi avaliada a mortalidade em ex-trabalhadores de uma indústria de cimento-amianto na cidade de Osasco6868. Fernandes GA, Algranti E, Wünsch-Filho V, Silva LF, Toporcov TN. Causes of death in former asbestos-cement workers in the state of São Paulo, Brazil. Am J Ind Med. 2021;64(11):952-9.. Foi observado um excesso de mortes nesta população por neoplasias malignas pleurais e peritoniais, câncer de pulmão e, também, por asbestose.
Considerações finais
Embora na população geral a exposição a cancerígenos ocupacionais seja discreta, alguns ambientes de trabalho comportam número significativo de trabalhadores expostos a elevados níveis de agentes cancerígenos. Assim, conhecer e rastrear as substâncias, misturas complexas ou radiações com potencial cancerígeno presentes nos locais de trabalho, bem como os processos laborais e ocupações com risco excessivo de câncer, é a base para o planejamento das atividades de vigilância e controle.
No Brasil, tradicionalmente, a experiência profissional é pouco explorada na anamnese médica e, frequentemente, está ausente nas bases de dados de doenças. Tais condicionantes levam à perda de fontes valiosas de informações para examinar correlações potenciais do câncer com a ocupação.
É provável, aliás quase certo, que no âmbito das revisões realizadas para a elaboração deste ensaio alguns estudos deixaram de ser incluídos. Assumimos esta limitação, mas os autores eventualmente não citados decerto concordam que as falhas não modificam o quadro geral aqui apresentado. A realização de pesquisas é essencial para melhor visibilidade da extensão de trabalhadores expostos e dos tumores malignos mais frequentes. Tendo em vista a crescente incidência, desenvolver o conhecimento sobre riscos ocupacionais é uma prioridade para instituir regulações sobre os limites de exposição ou banimento de agentes cancerígenos, reduzindo, assim, o fardo do câncer na sociedade brasileira.
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Disponibilidade de Dados:
os autores declaram que todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo. -
Financiamento:
os autores declaram que este estudo não foi subvencionado. -
Apresentação do estudo em evento científico:
os autores informam que este estudo não foi apresentado em evento científico
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Editor-Chefe:
Disponibilidade de dados
os autores declaram que todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Set 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
27 Set 2022 -
Revisado
03 Mar 2023 -
Aceito
13 Mar 2023