Yascha Mounk é um cientista político nascido na Alemanha Ocidental e radicado nos Estados Unidos da América (EUA). No espectro político, ele se coloca na esquerda, e assume uma perspectiva filosófica liberal na análise da política identitária desenvolvida em The Identity Trap. Embora tenham em comum a defesa do universalismo como princípio e meio, o liberalismo de Mounk torna sua perspectiva crítica da política identitária diferente da adotada por autores socialistas e marxistas como Finkelstein11. Finkelstein, NX. I'll burn that bridge when i get to it! heretical thoughts on identity politics, cancel culture, and academic freedom. Portland: Sublation; 2023. e Haider22. Haider, A. Armadilha da identidade. São Paulo: Veneta; 2019..
Já na Introdução do livro, Mounk menciona exemplos de políticas públicas implementadas nos EUA baseadas na política identitária. A princípio, os exemplos tendem a chocar parte dos leitores brasileiros. Um deles é de uma política de saúde pública. Nas suas recomendações iniciais para distribuição das vacinas de covid-19, o Centers for Disease Control (CDC) foi aconselhado pelo seu comitê consultivo a não distribuir as vacinas disponíveis para os mais idosos, como faziam os demais países, mas para “trabalhadores essenciais” (o que incluía, por exemplo, bancários e equipes de filmagem). Uma vez que os idosos (maiores de 65 anos) eram um grupo em que minorias étnicas e raciais estavam sub-representadas, diferentemente dos “trabalhadores essenciais”, que acabaram sendo escolhidos para receber as vacinas. O resultado previsível dessa política foi um número maior de mortes por covid-19 – inclusive nos grupos de minorias cujo bem-estar ela estaria preocupada em priorizar – do que se as vacinas tivessem sido distribuídas pelo critério de idade. Ainda na Introdução, Mounk explica que usa a expressão síntese identitária, em substituição à política identitária, devido a esta última ter ganho um sentido pejorativo nos EUA. Para não prejudicar o debate, ele preferiu assim cunhar uma nova denominação.
The Identity Trap é dividido em quatro partes. Na primeira parte do livro o autor apresenta o que seriam as origens dessa “síntese identitária”. Com o fim do bloco soviético, a esquerda teria passado a focar mais em questões culturais e de identidade do que nas questões de classe. Essa nova ênfase teria transformado a vida intelectual na academia, dando foco maior a grupos marginalizados. A influência tripla do pós-modernismo, do pós-colonialismo e da teoria racial crítica teriam então dado origem à síntese identitária, uma nova ideologia que seria caracterizada por sete temas principais. Entre esses temas estariam: uma preferência por políticas públicas que distinguem explicitamente as pessoas com base em grupos a que pertenceriam; e a interseccionalidade como estratégia de organização política. Ideologia é utilizada por Mounk como um conjunto de ideias, e não, como no conceito marxiano, um conjunto de ideias que encobre os antagonismos de classe. Essa nova ideologia da síntese identitária nasceria, segundo o autor, de uma mudança de perspectiva na esquerda, ao deixar de lado a aspiração de um futuro mais harmônico em que o comum entre grupos e indivíduos prevaleceria sobre as diferenças, a substituindo por uma visão de futuro na qual a sociedade seria inevitavelmente definida pela sua divisão em grupos de distintas identidades. Nessa perspectiva, para garantir que cada comunidade étnica, religiosa ou sexual receba uma parte proporcional de renda e riqueza, tanto os agentes privados quanto as instituições públicas deveriam tratar as pessoas de acordo com o grupo a que pertencem.
Na segunda parte de The Identity Trap, o autor procura traçar o caminho que levou a síntese identitária a se tornar hegemônica nas corporações privadas e instituições públicas estadunidenses. Caminho que vai se formando através das mídias sociais usadas pela juventude, passando pelas universidades e pelos grandes veículos de imprensa. Na terceira parte, Mounk aponta as falhas da síntese identitária. Basicamente ele argumenta que a aplicação da síntese identitária nas políticas públicas e na ação política é contraprodutiva àquilo que formalmente se propõe. A política de distribuição das vacinas de covid-19 é um exemplo. Na quarta e última parte do livro, o autor argumenta em favor do universalismo e das políticas universalistas a partir da perspectiva filosófica liberal, por vezes utilizando aportes da psicologia social.
No Brasil, a síntese ou política identitária também tende a ganhar espaço nas políticas públicas no campo do trabalho e saúdeb. Nesse sentido, ao sugerir três critérios para se adotar uma política pública baseada em marcadores de identidade, The Identity Trap também pode ser útil a esse campo. Com base em um desses critérios só se deveria adotar uma política baseada em marcadores de identidade se for impossível adotar uma política não baseada nesses marcadores. Como Mounk procura mostrar, seria um erro moral e prático políticas públicas baseadas na identidade se tornarem padrão.
No campo acadêmico brasileiro relacionado aos estudos do trabalho e à saúde do trabalhador, a introdução do paradigma da política identitária pode ser percebida de forma mais nítida através do uso do conceito de interseccionalidade33. Vieira CEC. Violência no trabalho: dimensões estruturais e interseccionais. Rev. Bras. Saúde Ocup. 2023;48: edcinq2. https://doi.org/10.1590/2317-6369/24922pt2023v48edcinq2
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,44. Silva JG, Jard S. Gênero e raça no contexto da escravidão contemporânea: debates insurgentes durante a pandemia de Covid-19. Laborare. 2023;6(11):277-94. https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-209
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, utilizado nesses casos para analisar, explicar e tratar as vulnerabilidades e as múltiplas discriminações de grupos específicos. A análise crítica do conceito de interseccionalidade realizada por Mounk difere substancialmente da realizada por outro cientista político estadunidense, Norman Finkelstein11. Finkelstein, NX. I'll burn that bridge when i get to it! heretical thoughts on identity politics, cancel culture, and academic freedom. Portland: Sublation; 2023.. Para Mounk, o conceito de interseccionalidade, na versão supostamente original criada por Kimberlé Crenshaw, seria um conceito intuitivamente plausível. Porém, o conceito teria sido expandido para além do que Crenshaw havia sugerido em seus artigos, passando a se tornar um conceito amorfo, utilizado, por exemplo, para afirmar que grupos de identidades diferentes não poderiam compreender totalmente a experiência um do outro. Ao tratar o conceito de interseccionalidade como algo inventado por Crenshaw, Mounk cai precisamente no escopo da crítica já realizada por Collins e Bilge55. Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021.. Essas autoras apontam que a origem do conceito deveria ser reportada a práticas e elaborações anteriores, de movimentos sociais e ativistas, e não a uma criação ex nihilo de Crenshaw. Finkelstein11. Finkelstein, NX. I'll burn that bridge when i get to it! heretical thoughts on identity politics, cancel culture, and academic freedom. Portland: Sublation; 2023. percebe isso ao analisar o conceito de interseccionalidade de Crenshaw, mencionando que uma das três proposições inerentes ao conceito seria muito anterior à elaboração da autora. Diferentemente do livro de Mounk, o estudo de Finkelstein11. Finkelstein, NX. I'll burn that bridge when i get to it! heretical thoughts on identity politics, cancel culture, and academic freedom. Portland: Sublation; 2023. sobre as obras e práticas de Crenshaw expõe explicitamente ao leitor que esse conceito de interseccionalidade seria em si uma ideologia no sentido marxiano, que serviria para mascarar as divisões de classe e a exploração econômica.
Embora traga uma valiosa contribuição à crítica da política identitária, evidentemente The Identity Trap possui suas limitações próprias, como todo livro. Algumas delas inerentes à perspectiva liberal adotada, que se fixa mais na história das ideias (idealismo) do que nas condições de existência (materialismo), além de não focar nos interesses de classe envolvidos. Embora apareçam elementos que possam sugerir e reforçar esse entendimento, o fato é que passa ao largo da obra de Mounk que a política identitária constitua também uma estratégia de classe (das classes capitalistas). Uma forma de recuperação, por exemplo, de movimentos antirracistas e feministas, para: i) uma ressignificação da igualdade que oculte as questões de classe e econômicas66. Propmark. Flow Podcast perde parceria com iFood após posts de Monark. Propmark. 29 out 2021 [citado 11 jan 2024]. Disponível em: https://propmark.com.br/flow-podcast-perde-parceria-com-ifood-apos-posts-de-monark/
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,77. Polese, P. A política identitária do iFood. Passa Palavra. 2021 [citado 11 Jan 2024]. Disponível em: https://passapalavra.info/2021/11/140796/
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, perpetuando e aprofundando as segregações baseadas nas relações de produção88. Liberato LV. iFood: a herança do apartheid no Brasil. Le Monde Diplomatique Brasil. 2 nov 2021 [citado 11 jan 2024]. Disponível em: https://diplomatique.org.br/ifood-a-heranca-do-apartheid-no-brasil/
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; ii) uma canalização da insatisfação que obstrui as lutas de classe99. Fang L. Breaking unions with the language of diversity and social justice. The Intercept. 7 june 2022 [citado 11 Jan 2024]. Disponível em: https://theintercept.com/2022/06/07/union-busting-tactics-diversity/
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Com suas limitações e méritos, análises críticas da política identitária, como a realizada por Mounk, são relevantes a quem atua no campo da segurança e saúde do trabalhador. No Brasil, essa perspectiva tem estado cada vez mais presente nesse campo. Para além de influir nas políticas públicas, a política identitária pode influir nas ações coletivas de classe nos locais de trabalho99. Fang L. Breaking unions with the language of diversity and social justice. The Intercept. 7 june 2022 [citado 11 Jan 2024]. Disponível em: https://theintercept.com/2022/06/07/union-busting-tactics-diversity/
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. Ações essas que, intuitiva e empiricamente, são fatores determinantes da organização e das condições de trabalho1010. Grunberg L. The effects of the social relations of production on productivity and workers' safety: an ignored set of relationships. Int J Health Serv. 1983;13(4):621-34. https://doi.org/10.2190/F31H-9V3H-CNM1-9GT0
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,1111. Wallace M. Dying for coal: the struggle for health and safety conditions in American coal mining, 1930-82. Social Forces. 1987 Dec;66(2):336-64. https://doi.org/10.2307/2578744
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Referências
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1Finkelstein, NX. I'll burn that bridge when i get to it! heretical thoughts on identity politics, cancel culture, and academic freedom. Portland: Sublation; 2023.
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2Haider, A. Armadilha da identidade. São Paulo: Veneta; 2019.
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3Vieira CEC. Violência no trabalho: dimensões estruturais e interseccionais. Rev. Bras. Saúde Ocup. 2023;48: edcinq2. https://doi.org/10.1590/2317-6369/24922pt2023v48edcinq2
» https://doi.org/10.1590/2317-6369/24922pt2023v48edcinq2 -
4Silva JG, Jard S. Gênero e raça no contexto da escravidão contemporânea: debates insurgentes durante a pandemia de Covid-19. Laborare. 2023;6(11):277-94. https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-209
» https://doi.org/10.33637/2595-847x.2023-209 -
5Collins PH, Bilge S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021.
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6Propmark. Flow Podcast perde parceria com iFood após posts de Monark. Propmark. 29 out 2021 [citado 11 jan 2024]. Disponível em: https://propmark.com.br/flow-podcast-perde-parceria-com-ifood-apos-posts-de-monark/
» https://propmark.com.br/flow-podcast-perde-parceria-com-ifood-apos-posts-de-monark/ -
7Polese, P. A política identitária do iFood. Passa Palavra. 2021 [citado 11 Jan 2024]. Disponível em: https://passapalavra.info/2021/11/140796/
» https://passapalavra.info/2021/11/140796/ -
8Liberato LV. iFood: a herança do apartheid no Brasil. Le Monde Diplomatique Brasil. 2 nov 2021 [citado 11 jan 2024]. Disponível em: https://diplomatique.org.br/ifood-a-heranca-do-apartheid-no-brasil/
» https://diplomatique.org.br/ifood-a-heranca-do-apartheid-no-brasil/ -
9Fang L. Breaking unions with the language of diversity and social justice. The Intercept. 7 june 2022 [citado 11 Jan 2024]. Disponível em: https://theintercept.com/2022/06/07/union-busting-tactics-diversity/
» https://theintercept.com/2022/06/07/union-busting-tactics-diversity/ -
10Grunberg L. The effects of the social relations of production on productivity and workers' safety: an ignored set of relationships. Int J Health Serv. 1983;13(4):621-34. https://doi.org/10.2190/F31H-9V3H-CNM1-9GT0
» https://doi.org/10.2190/F31H-9V3H-CNM1-9GT0 -
11Wallace M. Dying for coal: the struggle for health and safety conditions in American coal mining, 1930-82. Social Forces. 1987 Dec;66(2):336-64. https://doi.org/10.2307/2578744
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A participação da Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro) no Programa Empodera+, da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+, pode ser vista como um exemplo dessa tendência.
Editado por
Editora-Chefe:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Nov 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
16 Jan 2024 -
Revisado
16 Abr 2024 -
Aceito
23 Abr 2024