Resumo
Introdução este ensaio trata das alterações no âmbito subjetivo de uma parcela da classe operária em sua experiência de autogestão na Flaskô, fábrica mais longeva sob controle dos trabalhadores no Brasil.
Objetivo analisar a perspectiva da subjetividade dos trabalhadores como protagonistas e arranjadores de uma utopia real de transformação do trabalho.
Métodos ensaio circunstanciado tendo como metodologia a história oral, voltada para a construção social da memória de seus atores, baseada nos testemunhos e nas histórias de vida de quatro trabalhadores.
Resultados a partir de um novo modo de produzir, possibilitado pela democratização das relações sociais de produção, houve um incremento do gênero profissional e aumento do poder de agir dos trabalhadores, como principal fator de autorrealização humana, preservação da qualidade do trabalho e da saúde dos trabalhadores.
Conclusão a experiência da Flaskô foi uma poderosa articulação de estratégias anticapitalistas, por dentro da ordem, que, ao visar a manutenção dos empregos pela estatização da fábrica sob gestão operária, transformou os elementos destrutivos dos modos de gestão capitalista que matam e adoecem os trabalhadores, possibilitando uma nova forma de existência social aos seus trabalhadores, por meio da democratização das relações sociais de produção.
Empresas Recuperadas por Trabalhadores; Clínica da Atividade; Autogestão; Mudança Organizacional; Indústria; Saúde do Trabalhador
Abstract
Introduction this essay deals with the changes in the subjective sphere of a segment of the working class, in their experience of self-management at Flaskô, the longest-running factory under workers’ control in Brazil.
Objective to analyze the perspective of workers’ subjectivity as protagonists and arrangers of a real utopia of work transformation.
Methods the essay approach is based in oral history methodology, focused on the social construction of the memory of its actors, based on the testimonies and life stories of four workers.
Results a new way of producing, made possible by the democratization of the social relations of production, has led to an increment in the professional genre and an increase in workers’ power to act, as the main factor in human self-realization, preservation of the quality of work, and workers’ health.
Conclusion the Flaskô experience was a powerful articulation of anti-capitalist strategies, within the order, which, by aiming to maintain jobs through the nationalization of the factory under workers’ management, transformed the destructive elements of capitalist management modes that kill and sicken workers, enabling a new form of social existence for its workers, through the democratization of the social relations of production.
Introdução
Diante dos fechamentos das fábricas, demissões em massa e outros ataques neoliberais contra a classe trabalhadora1, em defesa dos postos de trabalho e da atividade industrial, o Movimento das Fábricas Ocupadas (MFO) reivindica a administração pelos trabalhadores, através da estatização sob controle operário. Leva-se para a prática o lema dos movimentos sociais “ocupar, produzir, resistir”, com profundos impactos na dinâmica das relações de trabalho no âmbito fabril e igualmente profundas alterações na subjetividade dos trabalhadores, a partir das novas condições objetivas e materiais de autogestão. Assim, a luta dos trabalhadores nas fábricas ocupadas é reconhecida como uma luta anticapital contemporânea, com possibilidades efetivas de novas e emancipadas relações sociais de trabalho2-5.
No Brasil, o MFO surge em 2002, com as experiências das fábricas Cipla e Interfibra, em Joinville–SC, e com a Flaskô, em 2003, em Sumaré–SP, pertencentes ao grupo HB (Corporação Holding Brasil), cisão do grupo Tigre, o qual chegou a ter 47 empresas no país. Devido à má gestão e sonegação, houve liquidação de patrimônios, demissões em massa, fechamento de plantas, e somente essas três fábricas resistiram, graças à ação dos trabalhadores.
Com salários atrasados, direitos e impostos sonegados, liquidação de maquinário, cortes de energia e fechamento de linhas de produção, os 1.100 trabalhadores da Cipla, Interfibra e Flaskô se organizaram e não aceitaram a punição do desemprego, questionando o discurso simplista de que “fábricas fecham” e que a única saída é “brigar na justiça por seus direitos”.
Os trabalhadores, em greve, conquistaram o apoio da comunidade, de sindicatos, movimentos sociais e parlamentares, pressão que resultou em acordo coletivo de trabalho e outorga de procuração judicial para a comissão de fábrica, eleita pelos trabalhadores, para avaliação da real situação econômica destas empresas.
Apesar do grande passivo de dívidas, foi constatada a viabilidade da manutenção da atividade industrial. Com a procuração judicial prorrogada por prazo indeterminado, a comissão de fábrica propôs a estatização das empresas como compensação tributária, tornando o patrimônio público.
No entanto, em 15 anos de funcionamento, a Flaskô sofreu várias investidas judiciais dos proprietários para a penhora das máquinas e leilões, barradas pela luta organizada dos trabalhadores que impediu o arremate dos bens e a falência judicial, mantendo os empregos e os direitos trabalhistas, em uma experiência de gestão democrática, com conquistas significativas para o ambiente de trabalho.
Henriques5 (p. 287-99) sistematizou os elementos de ruptura com o padrão hegemônico de organização capitalista do trabalho, que se concretizaram em novas relações sociais de produção na Flaskô durante a gestão operária:
-
Adaptações do layout: aproximação do setor administrativo (antes isolado no 2º andar) com a área de produção, com livre circulação dos trabalhadores pela fábrica rompendo a separação tradicional entre os operários e a administração.
-
Relações entre os trabalhadores: presença de cooperação entre os trabalhadores, mesmo em situações de tomada de decisões coletivas com acirramento dos ânimos. Na organização patronal, os encarregados estimulavam a competição gerando problemas de relacionamento. Na gestão operária, sem a ameaça de perda dos empregos, foram identificados vínculos duradouros de amizade entre os trabalhadores.
-
Democratização das relações sociais: os representantes dos trabalhadores no Conselho de Fábrica decidiam sobre as estratégias da empresa, demissões, aquisição de equipamentos e salários. O Conselho de Fábrica era composto pelos 13 trabalhadores mais votados, eleitos anualmente numa eleição simples. As decisões mais complexas eram votadas em assembleias mensais.
-
Mudanças na divisão do trabalho: o acesso às informações e a livre circulação trouxeram mais conhecimento do processo produtivo para todos, significando desalienação do trabalho, maior capacidade de intervenção nas atividades de planejamento e maior capacidade de contestar uma ordem de trabalho. Os encarregados assumiram funções de coordenação técnica e não de controle.
-
Hierarquização das remunerações: aumento de salário para os trabalhadores que ganhavam menos com diminuição de salários para os que ganhavam mais. O critério salarial foi a complexidade do trabalho: melhor remuneração para os cargos de maior qualificação, porém com salários acima do mercado. O teto salarial foi estabelecido pelo maior salário da produção – o do ferramenteiro – e representa três vezes mais que o menor salário.
-
Mudanças na organização do trabalho: redução da carga horária de trabalho, inicialmente de 44 para 40 e, depois, para 30 horas semanais. Cada trabalhador operava uma máquina, resultando em aumento de pausas, menor cadência nas atividades e aumento dos tempos mortos.
Balizado por essa sistematização, o presente ensaio objetiva mostrar que os resultados práticos da nova forma de produzir, possibilitada pela democratização das relações sociais de produção, repercutiram positivamente na subjetividade e no aumento do poder de agir dos trabalhadores, consagrado como principal fator de autorrealização humana, preservação da qualidade do trabalho6 e preservação da saúde dos trabalhadores7.
A subjetividade é aqui entendida como uma indissociabilidade entre o indivíduo e o coletivo na qual ele se insere, onde emoção e cognição estão intrinsecamente envolvidas, uma vez que o trabalhador não é um mero executor de tarefas. A depender do sentido que o trabalhador infere ao seu trabalho, de como ele compreende a pressão emocional das exigências de sua atividade, este círculo psicológico pode ser virtuoso ou doentio7.
Desse modo, o sentido do trabalho é o verdadeiro regulador das emoções e cognições dos trabalhadores, às vezes a favor, às vezes contra. Quando a atividade é “engessada” pelos controles da gestão, o sujeito/trabalhador pode se tornar incapaz de utilizar seus recursos emocionais e cognitivos no desempenho do seu trabalho porque eles estão sob a dominação de outro.
A experiência mais longeva de fábrica ocupada da realidade brasileira teve os trabalhadores como protagonistas e arranjadores de uma utopia real de transformação do trabalho, constituindo-se em uma construção compartilhada de um grupo de operários e apoiadores, que, por meio de alguns elementos socialistas de produção do trabalho, produziram fissuras nos princípios de dominação capitalista que resultaram em autonomia e bem-estar no trabalho.
A mesma experiência foi relatada como contraponto à relação de causalidade entre os modos de produção e organização do trabalho no capitalismo e a alta incidência dos acidentes e doenças relacionadas ao trabalho. A partir do desenvolvimento de novas relações sociais de produção, de modos alternativos anticapitalistas de viver e produzir, houve impactos positivos na saúde e segurança dos trabalhadores, de modo que a produção permaneceu durante quinze anos sem a ocorrência de acidentes e doenças do trabalho, fenômeno que não se tem notícia em empresas capitalistas no Brasil8.
A ênfase deste ensaio, contudo, está no fenômeno social latino-americano da “descolonidade”9,10 presente no MFO, na ruptura ao poder hegemônico capitalista, por dentro da própria ordem capitalista, e, por isso, entremeado de obstáculos, disputas políticas, mas também ganhos na subjetividade dos trabalhadores.
Métodos
O material origina-se das memórias subjetivas de quatro trabalhadores da fábrica ocupada, dois operadores de produção e dois da administração – coordenador da área jurídica e coordenador do Conselho de Fábrica. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, não amostral, tendo como metodologia a história oral, voltada para a construção social da memória de seus atores, cuja centralidade está nos testemunhos, nas histórias de vida, inscritos na dimensão histórica de relatos passados11.
Os depoimentos foram colhidos in loco em janeiro de 2020, entre trabalhadores que permaneciam na fábrica já paralisada, revezando-se dia e noite, para evitar a invasão e o vandalismo no patrimônio, uma vez que o leilão dos bens representaria a única possibilidade de recebimento dos seus direitos trabalhistas advindos do período da “fábrica com patrão”c.
No entanto, a pesquisa foi interrompida, devido ao isolamento social imposto pela pandemia de covid-19, e os demais trabalhadores previstos para as entrevistas não dispunham dos meios digitais para sua realização de forma virtual. Com a melhoria do cenário, não foi possível a continuidade das entrevistas devido ao aumento da vulnerabilidade social dos trabalhadores que continuam em revezamento na portaria da fábrica para preservação do patrimônio, diante da morosidade do Poder Judiciário na solução do litígio, o que traria um viés de análise, na comparação com o contexto das primeiras entrevistas.
Mesmo se tratando de testemunhos que não alcançaram a saturação dos achados, como convém às pesquisas qualitativas, a percepção de que havia uma riqueza sociopolítica nos relatos de alguns atores que foram protagonistas da experiência reconhecidamente inovadora, levou ao entendimento da necessidade de divulgá-los na forma de um ensaio circunstanciado. Defende-se a ideia de que uma fábrica de autogestão dos trabalhadores pode desenvolver modos alternativos de produzir e organizar o trabalho, com virtuosas repercussões na subjetividade de seus participantes.
Para a análise dos depoimentos, utilizou-se o aporte teórico da Clínica da Atividade, uma vez que seus princípios e ferramentas conceituais atendem às explicações do porquê da presença de uma nova subjetividade operária, percebida naquele pequeno grupo de trabalhadores a que se conseguiu dar voz nesta pesquisa.
O primeiro princípio é a existência de uma “verdade histórica do meio profissional”, cujo desmantelamento do molde interpretativo do trabalho que confina os trabalhadores (fábrica com patrão) possibilita outras interpretações possíveis, trazendo uma nova e diferenciada história às atividades de trabalho (fábrica sem patrão). O segundo é a constatação de que em todo trabalho institucionalizado existe uma “contradição entre o real e o realizado”, antagonismo de forças que é motriz para realizar um novo real reorganizado e modificado, no qual o trabalho pode vir a ser fonte de satisfação e adequação à natureza humana7(p. 10).
Outras duas ferramentas conceituais foram apropriadas: o conceito de gênero profissional, um instrumento coletivo de ação individual, construído a partir de referenciais operativos comuns, que permite que cada trabalhador se “sintonize” na sua situação de trabalho; o conceito de poder de agir, que pode se desenvolver ou se atrofiar na “caixa preta” da atividade de trabalho, aumentando ou diminuindo, dependendo da alternância entre o sentido da atividade para o sujeito e sua eficiência na ação – o trabalho bem-feito – aquele em que o trabalhador se reconhece individual e coletivamente, em uma história profissional na qual cada um se sente responsável6,7.
A fábrica foi fundada em 1977, filial integrante da Companhia Hansen Industrial S.A, proprietária da Tubos e Conexões Tigre. Em 1988, com a cisão do Grupo Hansen, foi criada a Companhia Holding Brasil (CHB), agora desvinculada do Grupo Tigre, da qual passaram a fazer parte cinco empresas do ramo plástico: Cipla, Interfibra, Profiplast, Brakofix, situadas em Joinville, e a Flaskô, em Sumaré.
A Flaskô produz embalagens industriais para grandes volumes, as chamadas “bombonas” – tambores grandes, de 20, 30 e 200 litros, geralmente de cor azul – destinadas principalmente às indústrias petroquímicas – petróleo, defensivos agrícolas e adubos. Na década de 1980, chegou a ter 600 funcionários.
A partir de 1997, ocorreram na empresa inúmeras demissões e saídas espontâneas, de modo que, em 2003, o efetivo era de 65 trabalhadores. De janeiro a maio desse ano, com a evasão dos gerentes administrativo e de produção, a empresa foi abandonada e paralisada pela interrupção de energia elétrica, por falta de pagamento. Em junho de 2003, os trabalhadores em assembleia decidiram retomar a produção por meio da formação de um Conselho de Fábrica e da entrega de um documento aos proprietários, comunicando que assumiriam o controle da empresa para defender seus empregos.
Resultados e discussão
A gestão operária da fábrica ocupada Flaskô precisava equilibrar-se entre as necessidades cotidianas da produção – comprar matéria-prima, garantir pagamentos de energia elétrica e salários – e as dificuldades impostas por suas condições objetivas - maquinário sucateado, histórico de dívidas, falta de capital de giro e investimentos. O desafio era gerir esse cotidiano experimental em condições estruturalmente adversas e, ao mesmo tempo, defender que somente uma mudança ampliada de políticas públicas poderia preservar experiências como as impulsionadas pelo MFO, envolvendo créditos e melhores condições financeiras, com resoluções jurídicas e políticas em relação ao passivo estrutural deixado pela antiga gestão patronal. A fala do coordenador jurídico da Flaskô é emblemática deste enfrentamento:
Se você me perguntar se a fábrica foi eficiente, eu diria, poderia ser, se tivesse as mesmas condições de mercado das outras empresas: se pagássemos factoring de 1% aos bancos e não 10% a um agiota, se tivesse financiamento do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] e um acordo de compra dos nossos produtos pela Petrobras. A fábrica era viável, tinha demanda devido à tendência de substituição do metal por plástico. Não teríamos capacidade para produzir para o Brasil inteiro, mas teríamos nichos de mercado. Os produtos da Flaskô sempre foram de qualidade e o zelo dos trabalhadores que a ocuparam permitiu que continuassem sendo. Até hoje, com a fábrica parada, os trabalhadores que estão na portaria, protegendo o que restou do maquinário e das instalações, recebem ligações de encomendas.
As mudanças que ocorreram na fábrica estudada não foram na dimensão das forças produtivasd, agora de posse dos trabalhadores, mas nas formas de gerenciamento da força de trabalho, cuja participação igualitária na tomada de decisões trouxe a percepção reinante de uma lógica de cooperação entre os trabalhadores, já que a competição deixou de ser estimulada, as premiações por produção foram eliminadas e o medo perene da demissão, presente nas empresas patronais, já não mais os ameaçava. Havia um entendimento de que as questões estratégicas para a fábrica, ao serem decididas coletivamente, trariam benefícios que seriam usufruídos de forma compartilhada.
A narrativa de um caso, discutido em assembleia, foi apresentada pelo operador como exemplo de respeito às diferenças humanas:
Teve um caso de um trabalhador, operador de máquina, e o encarregado queria que ele trabalhasse nas sopradoras menores onde são vários tipos de peças e tinha que retirar rebarbas quando o ferramental apresentava problemas. Ele ficava nervoso, não tinha habilidade para fazer a rebarba e disse ao encarregado que não ia fazer mais. O caso foi levado para os conselheiros que levaram para a assembleia. Lá foi decidido que ele não seria demitido, ou se colocaria uma outra pessoa para ajudar na rebarba ou ele iria para outra máquina. Ele foi colocado em outra máquina. É uma grande diferença, a demissão deixou de ser uma ameaça de todo dia.
Esse relato, quando tomado em profundidade, evidencia uma contraposição à cultura do desempenho como modelo de eficiência produtiva, hegemônica no mundo corporativo, uma imposição do capitalismo financeirizado, no qual o espaço de trabalho se transforma em uma competição sem limites, provocando sentimentos de assédio generalizado12.
As principais mudanças foram imateriais, de natureza organizacional, na divisão do trabalho, nas relações de gestão e entre os trabalhadores:
Não fizemos grandes alterações nas máquinas, mas sim do uso delas. Aliviamos o ritmo de trabalho por meio de solução encontrada conjuntamente: treinar mais trabalhadores para operar as máquinas e possibilitar que operadores e ajudantes pudessem se organizar e dar cobertura uns aos outros para promover mais saídas e descansos, sem interferir nas necessidades de produção. Foi decidido que cada operador se tornaria responsável por uma máquina e não por mais máquinas, como era na empresa patronal. Como o objetivo não era lucro, aumentamos os tempos mortos e desaceleramos o trabalho (Coordenador da área jurídica e integrante do Conselho de Fábrica).
Com o aumento do raio de ação e volição e alívio da sobrecarga de trabalho, os trabalhadores puderam viver suas emoções e cognições como recursos de desenvolvimento, cultivando o gênero profissional, vivendo em plenitude a mesma história de pertencimento, o que é beneficamente estruturante em um meio profissional7(p. 9).
Para o autor, o poder de agir dos trabalhadores pode aumentar ou diminuir em função da alternância entre o sentido do trabalho e a eficiência. No testemunho do operador a seguir a autonomia aparece como uma possibilidade de se fazer um trabalho bem-feito, o que fortalece o gênero profissional, e tem na colaboração sua principal ancoragem6:
Eu colocava no misturador onde o material era moído e misturado para conseguir a homogeneização de cores. O importante era garantir que o lote de cada cliente tivesse a mesma cor. Nós podíamos trabalhar em dupla e a gente conversava muito e decidia junto. O meu colega dizia: coloquei mais do esverdeado do que do roxo “escurão” [polietileno granulado, reciclado, com muitas divergências de cores]. Eu fazia assim, então. Quando eu falava, ele também fazia. A gente procurava trabalhar em conjunto. Trabalhava mais com a cabeça do que com o procedimento. Na preparação às vezes a gente errava, na fábrica sem patrão a gente tinha liberdade até para errar, reprovar o material que voltava para o moinho.
A liberdade de errar e refazer seu trabalho para obter a padronização da cor desejada, ressaltada pelo trabalhador, sugere a presença de uma dinâmica do trabalho bem-feito, diferentemente de uma condição degradada, que leva o trabalhador a ter uma avaliação intersubjetiva do que desejaria ter feito, daquilo que lhe foi interditado e do que afinal de contas acabou fazendo e concluir que a sua atividade não valeu a pena6.
Na mesma direção, o próximo depoimento demonstra ruptura com os antigos padrões de organização do trabalho da “fábrica com patrão”, estruturados em sistemas hierárquicos rígidos, expressados em relações de poder que estabelecem uma separação abissal entre os que planejam as atividades e os que as executam:
O desgaste das máquinas e o esforço das pessoas eram o mesmo de uma fábrica com patrão, só que antes a gente sempre tinha que fazer, querendo ou não, do jeito que a liderança queria. Por exemplo, para tirar uma mancha da bombona, porque a temperatura ficou muito elevada, você falava, mas o encarregado não ouvia, tinha que ser do modo dele. Agora não, tudo era mais dialogado, se a gente sabia como tirar a mancha, a gente podia falar, todos podiam falar, eram ouvidos e a gente tinha a liberdade e a confiança para fazer.
A formação dos trabalhadores foi uma das principais estratégias para (des)intensificar o trabalho e torná-lo mais adequado às necessidades humanas dos trabalhadores. O coordenador do Conselho de Fábrica explica como foi esse processo, que não aconteceu da noite para o dia:
Uma questão muito discutida na assembleia foi a mudança de ritmo de trabalho. A proposta inicial da coordenação do Conselho de Fábrica era: se a máquina produz uma peça por minuto, a gente pode mudar para uma peça a cada três minutos porque acreditávamos que o trabalho poderia ser mais aliviado. Os trabalhadores disseram que não, se eles tivessem que ficar parados esperando a máquina, eles diziam que iriam se sentir mais cansados e que não iam conseguir cumprir o objetivo de trabalho. A solução de alívio foi encontrada conjuntamente: treinar mais trabalhadores para operar as máquinas e assim possibilitar que todos os operadores pudessem se organizar e dar cobertura uns aos outros e promover mais saídas e descansos sem interferir nas necessidades de produção.
Os investimentos em formação técnica como estratégia para adequação do trabalho aos trabalhadores foram exitosos, não apenas para a prevenção dos agravos do trabalho8, mas também para o reconhecimento subjetivo do trabalhador, como demonstra o depoimento do trabalhador do setor de logística:
Trabalhei em muitos trabalhos temporários, várias fábricas com patrão. No meu último emprego, trabalhava na plataforma de lixo reciclável. Pense numa pessoa invisível, era eu no meu trabalho. A produção é igual, com patrão ou sem patrão, você não tem como ganhar seu salário se não trabalhar. Mas, na fábrica ocupada é outra coisa! Você pode realizar sua vontade de aprender. Eu passei a operador de logística, cuidava da entrada da matéria-prima na fábrica e na distribuição das bombonas acabadas.
Na abordagem da Clínica da Atividade13 a questão do reconhecimento no trabalho, comumente focada na hierarquia ou nos pares, foi deslocada para a impossibilidade em que muitos trabalhadores se encontram hoje de se reconhecerem naquilo que fazem, isto é, sentindo seu ofício maltratado7.
Considerando que, no trabalho atual, o risco de degradação dos gêneros aumentou e as empresas comprometem a história profissional do coletivo de trabalho através de formas de gestão competitivas, tais como pressão por metas, prêmios de produção, atitudes de assédio moral, demissões em massa, programas de demissão voluntária (PDV) e terceirização de atividades meios e fins14, um processo que Clot7 (p. 9) denomina de “amputação da história coletiva”, a experiência da Fábrica Flaskô se realizou em modos anticapitalistas de gerenciamento da força de trabalho, um processo gradual de aprendizagem de uma genuína participação coletiva em todos os processos decisórios da fábrica:
Os assistentes, antes chamados de “cachimbos” porque só levavam “fumo” dos líderes, se tornaram operadores, dentro da proposta de aumentar o quantitativo para trazer mais alívio ao cansaço diário. Foram investimentos em formação, em cursos de elétrica e mecânica para todos. Todos aprenderam, a fábrica os formou. Isto trouxe benefícios em relação ao zelo dos trabalhadores, que já era muito, pela qualidade dos produtos que fabricavam (Coordenador do Conselho de Fábrica).
O coletivo de trabalho auxilia os sujeitos em suas tomadas de decisão, criando um ambiente protetor, uma vez que o trabalho é sempre um local com inúmeras contradições e incertezas que são estabelecidas entre o real e o realizado. Quando ocorre o contrário, o coletivo se degenera, os incidentes e acidentes tornam-se mais frequentes, pois, é no conjunto dos trabalhadores que reside a confiabilidade dos sistemas de atividade13.
Na Flaskô, a estabilidade dos empregos, a horizontalização das relações de trabalho e a supressão das formas gerenciais de intensificação e precarização do trabalho potencializaram o desenvolvimento do gênero profissional e o aumento do poder de agir dos trabalhadores, ambos indissociáveis. Isso resultou em uma responsabilidade coletiva e técnica de ação que garantiu a todos a capacidade de escolha e de inovação, o reconhecimento de um trabalho bem-feito e novos sentidos para sua realização, ao mesmo tempo que exerceu um fator protetor contra as variabilidades e a permanência dos riscos e perigos do trabalho no ramo plástico.
Para finalizar, segue-se o depoimento do coordenador da área jurídica, sobre a experiência vivenciada por ele durante quase duas décadas, em toda a sua plenitude, desde a decisão coletiva pela ocupação da fábrica até a defesa jurídica atual dos direitos trabalhistas dos trabalhadores extremamente vulnerabilizados, testemunho também eivado de autorreconhecimento profissional e pessoal:
Diversas foram as conquistas sociais implementadas pela gestão dos trabalhadores, a começar pela democracia operária, que se concretizava nas assembleias mensais e no Conselho de fábrica. Um novo ritmo de trabalho foi construído. A solidariedade foi o sentimento que prevaleceu na produção, o que resultou na inexistência de acidentes laborais. Os trabalhadores têm ciência de todo o processo produtivo, evitando-se a alienação do trabalho. Tudo isto só foi possível por não existir apropriação privada da riqueza. A gestão operária permitiu que a prioridade não fosse o lucro, mas sim a produção com destinação social, priorizando a condição de bem-estar dos trabalhadores e um ambiente fraterno na produção. Mesmo com todos os obstáculos, o exemplo da Flaskô arrasta e está incluído na história do movimento operário brasileiro.
Conclusão
De acordo com Wright15, a erosão dos preceitos capitalistas pode ocorrer por quatro diferentes estratégias, isoladas ou combinadas: resistir ao capitalismo, fugir do capitalismo, domesticar o capitalismo ou desmontar o capitalismo. Resistir ao capitalismo e a seus ataques sempre foi a tônica do movimento operário sindicalizado ou no cotidiano do chão das fábricas, bem como fugir do capitalismo está no centro dos movimentos ativistas comunitários, em arranjos de economia solidária e numa concepção cooperativista da economia de mercado. Em ambas as estratégias, não há envolvimento de ações contra o Estado.
Por outro lado, tanto a domesticação quanto o desmonte buscam mudar as regras do jogo, o que exige ações políticas para ganhar espaços de poder dentro das estruturas estatais vigentes e desenvolver políticas públicas igualitárias. Esta tem sido a prática de partidos políticos que querem mudar as regras do jogo em prol de mudanças sociais para uma sociedade mais justa. Nessa dinâmica estão inseridos também os movimentos identitários de raça, etnia, gênero e sexualidade, os quais compartilham os mesmos valores igualitários fundamentais de um anticapitalismo emancipatório15(p. 174).
Santos16 também oferece uma coletânea de artigos de autores cuja temática central são relatos de experiências de produção não capitalista em países como África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal, áreas onde a contra-hegemonia ao capitalismo é mais evidente, porque são regiões de conflitos particularmente intensos e onde as iniciativas e os movimentos sociais adquiriram nível mais elevado de consolidação e organização.
É a partir desse paradigma conceitual que se pode compreender as dificuldades materiais objetivas da Flaskô, ao longo do tempo, derivadas da crise econômica instalada no Brasil, resultando no aumento do custo da matéria-prima e da energia elétrica. Diante da falta de políticas públicas para as empresas em situação pré-falencial, torna-se evidente que a gestão da Flaskô seria esmagada no quadro capitalista convencional, concentrador de capitais e cuja concorrência é medida pelos custos de produção.
A opção foi compensar tais dificuldades com um novo padrão de sociabilidade nas relações de produção, em que a subjetividade dos trabalhadores se dava em outro patamar de respeito e protagonismo, que pode ser considerada vitoriosa por conseguir manter a resistência por mais de 15 anos.
Assim, a experiência da Flaskô foi uma poderosa articulação destas estratégias anticapitalistas entrecruzadas, por dentro da ordem, que, ao visar a manutenção dos empregos pela estatização da fábrica sob gestão operária, transformou os elementos destrutivos dos modos de gestão capitalista que matam e adoecem os trabalhadores.
Os seus resultados se inserem na vivência de uma nova existência social daquele conjunto de trabalhadores que aceitou os desafios de fazer produzir uma fábrica sem patrões e alcançou, apesar das dificuldades objetivas e materiais, em decorrência da liberdade subjetiva, e protagonismo diretamente impulsionado pela participação democrática da gestão operária, relações sociais de solidariedade e cooperação que desenvolveram o gênero profissional e aumentaram seu poder de agir.
Agradecimentos
Os autores agradecem à Dra. Amanda Aparecida Silva pela valiosa colaboração nas entrevistas.
Referências
- 1 Antunes R. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo; 2007.
- 2 Raslan FO. Resistindo com classe: o caso da ocupação da Flaskô [dissertação]. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas; 2007.
- 3 Verago JL. Fábricas ocupadas e controle operário. Sumaré: Cemop; 2011.
- 4 Tadokoro RT. Flaskô na contramão: a experiência de controle operário de uma fábrica ocupada no Brasil. [dissertação]. Uberlândia: Instituto de Ciências Sociais, Universidade Federal de Uberlândia; 2013.
- 5 Henriques FC. Autogestão em empresas recuperadas pelos trabalhadores. Florianópolis: Insular; 2014.
-
6 Clot Y. Le travail «ni fait ni à faire»: un risque pour la santé publique en France. Horizontes. 2021;39(1):e21027. https://doi.org/10.24933/horizontes.v39i1.1281
» https://doi.org/10.24933/horizontes.v39i1.1281 - 7 Clot, Y. Trabalho e poder de agir. Belo Horizonte: Fabrefactum; 2010.
- 8 Takahashi MABC. Estudo de caso em fábrica ocupada por trabalhadores: autogestão operária em um outro modo de produzir. In: Iguti AM, organizador. Passado, presente e futuro: múltiplas abordagens em saúde e trabalho. Campinas: Unicamp; 2021. p. 140-69.
- 9 Germaná C. Una epistemología outra: la contribución de Aníbal Quijano a la reestructuración de las ciências sociales de la América Latina. In: Quijano A, organizator. Des/colonidad y bien vivir: um nuevo debate em América Latina. Lima: Editorial Universitária; 2014. p. 73-99.
- 10 Quijano A. "Bien vivir": entre el desarrollo y la des/colonidad del poder. In: Quijano A, organizator. Des/colonidad y bien vivir: um nuevo debate em América Latina. Lima, Editorial Universitária; 2010. p. 19-33.
- 11 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 7a ed. São Paulo/ Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco; 2000.
- 12 Gaulejac V. Gestão como doença social: ideologia, poder gerencialista e fragmentação social. 3a ed. Aparecida: Ideias e Letras; 2007.
-
13 Lima MEA. Contribuições da Clínica da Atividade para o campo da segurança no trabalho. Rev. Bras. Saúde Ocup. 2007 jun;32 (115): 99-107. https://doi.org/10.1590/S0303-76572007000100009
» https://doi.org/10.1590/S0303-76572007000100009 -
14 Pina JA, Stotz EM. Intensificação do trabalho e saúde do trabalhador: uma abordagem teórica. Rev. Bras. Saúde Ocup. 2014 jul-dez;39(130):150-60. https://doi.org/10.1590/0303-7657000074913
» https://doi.org/10.1590/0303-7657000074913 - 15 Wright EO. Como ser anti-capitalista no século XXI? São Paulo: Boitempo; 2019.
- 16 Santos BS. organizador. Produzir para viver: os caminhos da produção não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2002.
-
Disponibilidade de dados:
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível mediante solicitação à autora de contato.
-
Apresentação em evento científico:
Os autores informam que o estudo não foi apresentado em evento científico.
-
c
Forma comum entre os entrevistados de se referir ao período anterior à ocupação da fábrica pelos trabalhadores.
-
d
A fábrica e sua estrutura física, o maquinário e instrumentos de trabalho, a energia que movimenta a produção e a matéria-prima que vai ser transformada em mercadorias.
-
Financiamento:
Os autores declaram que o estudo não foi subvencionado.
Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível mediante solicitação à autora de contato.