Resumo
O rápido desenrolar da pandemia de COVID-19 no ano de 2020 estimulou pesquisadores a rapidamente tentar entender o comportamento do vírus e da doença e a propor soluções de modo a tentar contê-la o quanto antes. Uma das questões fundamentais a serem respondidas é se o vírus também pode ser transmitido por aerossóis, posto que a forma de transmissão determina a velocidade e as condições em que a doença consegue se espalhar pela população. A busca por essa resposta reacendeu uma discussão de décadas sobre a relevância dessa via de transmissão, bem como sobre os diferentes conceitos e medidas de controle e prevenção atualmente usados para bloquear a transmissão de doenças infecciosas no âmbito da atenção à saúde humana. Este ensaio tem o objetivo de contribuir para esse debate e, mais especificamente, subsidiar programas para a proteção de trabalhadores e pacientes em serviços de saúde referentes à COVID-19 e a outras doenças infecciosas.
Palavras-chave: doenças infecciosas; transmissão de doença infecciosa; controle de infecções; COVID-19; saúde do trabalhador
Abstract
The rapid advance of the COVID-19 pandemic in the year 2020 has spurred researchers to try to understand quickly the behavior of the virus and the disease, and to propose solutions in order to attempt containing it as soon as possible. One of the core questions to be answered is whether the virus can also be transmitted by aerosols, since the mode of transmission determines the speed and conditions under which the disease can spread through the population. The search for this answer has rekindled a decades-long discussion about the relevance of this transmission route, as well as the different concepts and control and prevention measures currently used to block the transmission of infectious diseases in human healthcare. This essay aims to contribute to this debate and, more specifically, to support programs for the protection of workers and patients in healthcare services regarding COVID-19 and other infectious diseases.
Keywords: infectious diseases; infectious disease transmission; infection control; COVID-19; occupational health
Introdução
Apesar de a exposição a microrganismos presentes no ar ser fato corriqueiro da vida humana1, considera-se que a maioria das doenças infecciosas seja transmitida por contato direto ou por fômites, atribuindo-se papel menor ou secundário à transmissão aérea ou por aerossóis, exceto em alguns casos, como no da tuberculose ou do sarampo2), (3. Há anos, entretanto, as comunidades médica e científica vêm acumulando evidências da relevância dessa via de transmissão em surtos de infecções hospitalares e na disseminação de diferentes doenças infecciosas na população1), (2.
Tais pesquisas ganharam fôlego a partir de 2003, com a ocorrência dos surtos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) causada pelo coronavírus SARS-CoV, e sofreram novo impulso em 2009, a partir do surgimento da gripe A, causada pelo vírus influenza H1N1 e, em 2014, com o aparecimento da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS, na sigla em inglês), causada pelo coronavírus MERS-CoV4), (5. Agora, com a pandemia da COVID-19, 241 cientistas de diferentes nacionalidades subscreveram uma publicação dirigida à comunidade médica e às instituições nacionais e internacionais para que fosse reconhecido o potencial para a disseminação dessa doença pela via aérea, isto é, de transmissão aérea ou por aerossóis6. Isso fez com que a Organização Mundial da Saúde (OMS) revisse parcialmente seu julgamento inicial quanto às vias de transmissão da COVID-19, admitindo que a transmissão aérea não poderia ser descartada, especialmente em ambientes fechados7.
Identificar a origem da relutância em reconhecer a importância da transmissão aérea nos leva a recuar no tempo, até 1910, quando o paradigma da transmissão por miasmas, até então muito presente, foi substituído pelo atual, de que a maioria das doenças respiratórias é transmitida diretamente por gotículas a pequenas distâncias ou após o contato com fômites ou superfícies contaminadas3), (8, denominadas respectivamente de transmissão por contato direto com gotículas e transmissão por contato indireto8.
Há outros fatores que também contribuem para a minimização da via aérea como via significativa para a transmissão de doenças infecciosas. Em primeiro lugar, as duas doenças com transmissão aérea epidemiologicamente mais relevantes, a tuberculose e o sarampo, têm sido controladas com sucesso razoável por meio de vacinação ou tratamento medicamentoso, diminuindo o interesse pela compreensão da aerobiologia envolvida3. Segundo, é relativamente fácil identificar a contaminação da água, de superfícies e de fômites e a transmissão que se origina na formação de gotículas; mas comprovar a contaminação do ar é mais difícil, porque os aerossóis infectantes estão usualmente muito diluídos, além de ser trabalhoso coletar e cultivar microrganismos a partir desse material3. Para serviços de saúde há também implicações significativas em termos de aumento nos gastos com a implementação de medidas de proteção e controle específicas e de mudanças na organização do trabalho relacionadas ao atendimento adequado de pacientes infectados, associadas ao reconhecimento de uma doença como potencialmente transmissível pela via aérea9.
Independentemente das dificuldades e dos custos envolvidos, contudo, atualmente há evidências robustas de que doenças infecciosas são transmitidas por múltiplas vias, incluindo a transmissão aérea2), (3), (10), (11. Além disso, considerando-se que os contaminantes de fômites e superfícies podem originar-se no ar, então é necessário admitir que o ar também exerce um papel na transmissão por contato indireto com fômites e superfícies2. Portanto, a classificação relativamente rígida e quase exclusiva da transmissão das doenças infecciosas pelas vias de contato direto, contato indireto, por gotículas e aérea deveria ser revisitada, de modo a permitir uma abordagem com mais nuances e que contemple múltiplas vias de transmissão, isto é, que ocorra por mais de uma via simultaneamente, sem que uma sobrepuje ou exclua a outra.
Este ensaio foi desenvolvido a partir de uma revisão narrativa da literatura com ênfase em artigos e publicações científicos questionando e discutindo a transmissão aérea de doenças infecciosas - especialmente após o surgimento do vírus SARS-CoV, em 2003 -, e recomendações e diretrizes nacionais e internacionais sobre o assunto publicados pelo Ministério da Saúde, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pela Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), pela agência americana Centros para Controle e Prevenção de Doenças (Centers for Disease Control and Prevention - CDC) e pela OMS, particularmente as diretrizes relacionadas ao enfrentamento da COVID-19. Este texto tem por objetivos sintetizar evidências e conceitos relacionados à transmissão aérea, antes e depois do início da pandemia, e contribuir para a discussão de medidas de proteção associadas que poderiam ser adotadas nos mais variados serviços de saúde para a proteção tanto dos trabalhadores quanto dos pacientes atendidos.
Gotículas e aerossóis: conceitos e características
A aerobiologia é o estudo dos processos envolvidos no movimento de microrganismos na atmosfera, abrangendo também a transmissão de doenças por aerossóis1. Avanços nessa ciência e no conhecimento das doenças infecciosas e das formas de exposição, assim como no campo da higiene do trabalho, ampliaram significativamente a compreensão das vias de transmissão e a capacidade de planejar e implementar controles efetivos12.
Por definição, um aerossol é uma suspensão de particulados em um gás, compreendendo partículas sólidas, líquidas ou misturas que, a depender da conjugação de suas características físicas com as condições ambientais, permanecem no ar por tempo suficiente para serem transportadas por correntes de ar1), (12. O tempo de permanência em suspensão é variável, mas estudos iniciais da década de 1930 sobre a física dos aerossóis demonstraram que esse período é de no mínimo uma semana, sendo sugerido posteriormente que poderia ser ainda maior1. Quanto à distância percorrida, é possível localizar aerossóis, com facilidade, a 20 metros de sua origem, dependendo de vários fatores ambientais, como condições meteorológicas, efeitos da dinâmica de fluidos e diferenciais de pressão em ambientes fechados1.
O termo “bioaerossol”, por sua vez, abrange todas as partículas de origem biológica que se distribuem na atmosfera13. Um bioaerossol pode ter origem vegetal ou animal ou pode ser constituído por ou conter grandes quantidades de microrganismos, incluindo: bactérias, como as dos gêneros Legionella ou Actinomycetes; fungos, como os dos gêneros Histoplasma, Alternaria, Penicillium e Aspergillus; protozoários, como os pertencentes aos gêneros Naegleria e Acanthamoeba; e, por fim, os vírus, a exemplo do vírus da gripe13.
Os bioaerossóis variam muito em tamanho. Vírus comumente são menores que 0,2 µm, enquanto bactérias, esporos e células fúngicas têm entre 0,25 e 60 µm13. Normalmente, o bioaerossol não é constituído apenas pelo microrganismo isoladamente ou por um único microrganismo, geralmente contendo grandes quantidades de microrganismos. O diâmetro de vários tipos de pólens varia de 5 a 300 µm13. Artrópodes minúsculos, como os ácaros, que são transportados pela atmosfera e formam o chamado “aeroplâncton”, podem chegar a 1 mm13. Grandes variações no tamanho também são observadas em fragmentos ou colônias celulares suspensas no ar, dentro de uma escala de nanometros a centenas de micrometros13.
Partículas líquidas de até 100 µm de diâmetro podem permanecer suspensas por longos períodos em determinadas condições de movimentação do ar1, sendo que, na meteorologia, gotículas são partículas líquidas de até 200 µm em suspensão em nuvens ou que evaporam antes de atingirem o solo12. Gotículas de neblina podem alcançar mais de 20 µm de diâmetro, apesar de a maioria não ultrapassar os 10 µm12. Isso significa que, para a meteorologia, as gotículas que formam as nuvens ou a neblina correspondem a aerossóis, pois ficam suspensas no ar.
Todo esse conjunto de evidências, provenientes de ciências e áreas distintas, indicam que há inconsistências nos conceitos de “gotículas respiratórias” e “aerossóis” empregados na área da saúde e demonstram que tais conceitos não correspondem aos usados na meteorologia, na aerobiologia e na higiene do trabalho12. Então, um dos primeiros passos para o controle efetivo da transmissão aérea é homogeneizar esse entendimento mútuo.
Ao respirar, falar, tossir e espirrar, seres humanos produzem gotículas entre 0,1 e 1.000 µm14 que são compostas por uma mistura de sólidos e líquidos. Seu tamanho e inércia, influenciados pela gravidade e evaporação, contribuem para determinar a distância que percorrerão a partir da fonte14. Gotículas respiratórias maiores caem antes de evaporar por ação da gravidade, contaminando o chão e outras superfícies e levando à transmissão por contato indireto; as gotículas menores evaporam antes de cair e os sólidos nelas presentes constituem os chamados núcleos de gotículas (droplet nuclei), que ficam em suspensão e são transportados por correntes de ar por distâncias superiores a dois metros7), (10), (14, caracterizando a transmissão aérea.
Na área da saúde, a OMS e o CDC estabeleceram “transmissão por gotículas” como a propagação de uma infecção ou de uma doença infecciosa que envolve partículas maiores que 5 µm e “transmissão aérea” como aquela que ocorre com partículas de diâmetro igual ou inferior a esse valor7), (8), (14. Além disso, também foi definido que gotículas respiratórias com diâmetro superior a 5 µm correspondem às “gotículas”, enquanto o termo “aerossol” aplica-se apenas aos núcleos de gotículas com diâmetro igual ou inferior a esse7.
Segundo o proposto pela OMS, portanto, a transmissão por gotículas se dá quando uma pessoa infectada emite gotículas respiratórias contaminadas maiores que 5 µm que atingem as mucosas da boca, do nariz ou dos olhos de uma outra pessoa a até um metro de distância, iniciando uma infecção nesta7; em outras palavras, quando essas gotículas são arremessadas na forma de spray, atuando como pequenos projéteis que atingem diretamente as mucosas da pessoa exposta, que depois desenvolve uma infecção12. Essas gotículas também podem levar à infecção de uma pessoa exposta após o contato com objetos ou superfícies sobre as quais tenham sido lançadas ou projetadas, caracterizando a transmissão por contato indireto7.
Já a transmissão por aerossóis ocorre quando uma pessoa exposta é infectada ao inalar os núcleos de gotículas com 5 µm ou menos e que contêm doses infectantes viáveis do agente mesmo após terem sido transportados pelo ar por distâncias e tempos maiores7.
Assim, a visão dominante é a de que o diâmetro de 5 µm da partícula é o que diferencia gotículas de aerossóis e separa a transmissão por gotículas da transmissão aérea11, apesar de o CDC relatar que partículas com 30 µm ou mais possam permanecer suspensas no ar15. Esse entendimento também implica, na prática, que o agente transmitido por contato direto ou indireto com gotículas não é transmitido por aerossóis e vice-versa, configurando uma falsa dicotomia entre essas duas vias de transmissão.
Assim, tal forma de diferenciar gotículas de aerossóis e de caracterizar as vias de transmissão ignora as evidências acumuladas, contradiz os conceitos adotados em outras ciências e tem impedido a compreensão mais ampla da transmissão de doenças respiratórias8), (11), (12), (13), (16. Em face da pandemia de COVID-19, diversos pesquisadores têm se mobilizado para debater e jogar luz sobre essa questão, a fim de dar uma resposta satisfatória a esse desafio.
Uma das iniciativas foi a realização de um workshop virtual sobre o assunto - Airborne Transmission of SARS-CoV-2, ou Transmissão Aérea do SARS-CoV-2 - organizado pelas Academias Nacionais de Ciências, Engenharia e Medicina americanas (National Academies of Sciences, Engineering, and Medicine) em agosto de 202016. Os anais do evento, publicados em outubro, propõem uma terminologia unificada para uma melhor diferenciação entre gotículas e aerossóis e as vias de transmissão associadas a cada uma delas16. Sugeriu-se ainda que o termo aerossol fosse usado para descrever uma suspensão estável no ar de partículas sólidas, líquidas ou mistas de até 100 µm de diâmetro, restringindo o termo gotícula às partículas predominantemente líquidas e maiores que 100 µm16. Essas e outras informações foram resumidas no Quadro 1.
Além de essas definições atualizadas de gotículas e aerossóis corresponderem de forma mais consistente àquelas usadas em outras áreas para se referir a aerossóis e bioaerossóis13, elas também são mais compatíveis com a caracterização e a classificação desenvolvidas pela higiene do trabalho, baseadas no tamanho dos aerossóis, capacidade de penetração potencial e locais de deposição em diferentes regiões do trato respiratório12), (17. O “particulado respirável” é composto pelos aerossóis ou particulados com diâmetro de até 5 µm que normalmente penetram além dos bronquíolos terminais e se depositam nos alvéolos; o “particulado torácico” corresponde aos aerossóis ou particulados de até 15 μm que passam pela laringe e penetram na traqueia e nos brônquios; e o “particulado inalável” compreende os aerossóis ou particulados com diâmetros entre 100 e 200 μm que entram pelas narinas e pela boca e penetram no trato respiratório12), (18. A grande variabilidade relacionada à condição de saúde e à capacidade de respiração, aos padrões de respiração (taxa e via respiratória), às diferenças anatômicas nas vias respiratórias e ao nível de atividade em cada momento acarreta incertezas significativas nas doses e nos locais de deposição dessas frações para cada indivíduo18. Por isso, os higienistas ocupacionais estabeleceram critérios de amostragem mais conservadores de forma a superestimar a exposição do pulmão, assim conferindo uma maior proteção para os trabalhadores expostos18. Assim, para compor o particulado respirável são coletados aerossóis ou particulados de até 10 μm, sendo que 50% da amostra terá até 4 μm; para o particulado torácico coleta-se o material de até 25 μm, com 50% da amostra tendo até 10 μm; e para o particulado inalável coletam-se aerossóis ou particulados de até 100 μm17), (18.
Determinar a fração dos aerossóis envolvida na transmissão é importante pois a infecção e o adoecimento também dependem do tecido em que ocorre a deposição. Por exemplo, no caso do Mycobacterium tuberculosis, agente da tuberculose, como o tecido-alvo são quase exclusivamente os alvéolos, o particulado respirável é muito mais relevante que qualquer outra fração12. Para o SARS-CoV-2 provavelmente são importantes todas as frações de particulados, respirável, torácica e inalável, pois seus tecidos-alvo compreendem desde as mucosas do trato respiratório superior até os alvéolos12.
Observe-se que, em todos esses casos, a exposição ocorre mediante a inalação dos particulados suspensos no ar, isto é, trata-se da transmissão aérea ou por aerossóis. A transmissão por gotículas, por sua vez, seria aplicável apenas quando as gotículas respiratórias tivessem tamanho superior a 100 µm.
Tais mudanças afetam as medidas de proteção recomendadas contra os agentes de doenças respiratórias, sempre visando torná-las mais efetivas e abrangentes, tópico que será abordado a seguir.
Medidas recomendadas em serviços de saúde
Tradicionalmente as medidas de proteção em serviços de saúde são agrupadas em precauções padrão e precauções específicas ou baseadas na transmissão, constituindo-se na estratégia primária de controle e proteção contra agentes biológicos infecciosos em serviços de saúde15. Compreendem controles de engenharia, controles administrativos e relativos à organização do trabalho, medidas ergonômicas, vacinação, práticas corretas e estudadas para a rotina cotidiana e uso de equipamentos de proteção individual (EPIs)19. As precauções padrão são aplicáveis no atendimento de todos os pacientes e objetivam evitar a transmissão a partir de sangue ou outros fluidos pelas vias de contato direto ou indireto15), (19. As precauções específicas são empregadas adicionalmente às precauções padrão e visam bloquear vias de transmissão não abrangidas por estas, aplicando-se no atendimento a pacientes com suspeita de doença infecciosa transmitida por outras vias15.
As precauções específicas para o atendimento de pacientes com suspeita de doenças respiratórias transmissíveis são as precauções tomadas para evitar o contato direto ou indireto com gotículas e a inalação de aerossóis15), (20, devendo ser aplicadas para os casos suspeitos antes mesmo de serem confirmados. Nos dois casos serão exigidos isolamento do paciente, identificação rápida da patologia, uso de máscara cirúrgica pelo paciente, transporte limitado e visitas restritas15), (20. Elas diferem, entretanto, em relação ao grau de isolamento dos pacientes, à proteção respiratória individual do profissional de saúde e aos requisitos para a ventilação das instalações.
Pacientes em isolamento para gotículas e infectados com o mesmo agente podem ser internados no mesmo quarto desde que seja assegurada a distância de um metro entre leitos e sua separação com cortinas15), (20. Por outro lado, pacientes com doenças de transmissão aérea devem ser isolados em quartos privativos, mantidos sempre com as portas fechadas15), (20.
Nas precauções para gotículas o profissional deve utilizar máscara cirúrgica sempre que tiver contato com o paciente, devendo ser colocada antes de entrar no quarto; enquanto nas precauções para aerossóis, deve utilizar, no mínimo, EPI do tipo peça semifacial com filtro P2 (PFF2), equivalente à máscara N95 da classificação americana, durante todo o atendimento15), (20.
Como aerossóis podem ser transportados por distâncias maiores, é necessário haver controles de engenharia especiais, como sistemas de ventilação específicos que previnam sua disseminação no interior de uma instalação. No caso de gotículas a probabilidade de disseminação pelo ar é pequena, fazendo com que esses sistemas de ventilação ou um controle mais rígido da qualidade do ar não sejam necessários15.
Assim, enquanto não há qualquer exigência relativa à ventilação ou ao controle do ar nas precauções contra gotículas, as precauções para aerossóis exigem que o quarto do paciente tenha pressão negativa, de seis a doze trocas de ar por hora e filtragem do ar com filtros de alta eficiência se houver recirculação15), (20. Caso a instituição não tenha quartos com essas características, o quarto privativo deve ser mantido com as portas fechadas e as janelas abertas para permitir boa ventilação20.
Conforme o Ministério da Saúde, a COVID-19 seria transmitida por gotículas e, por isso, seriam aplicáveis as medidas de precaução correspondentes21), (22. Em suas recomendações informava que a transmissão por aerossóis ainda estava sendo estudada e que, até aquele momento, não havia evidências robustas a corroborá-la21), (22. Mas esclarecia que a transmissão aérea da COVID-19 era plausível em procedimentos médicos capazes de gerar aerossóis e, então, nessas situações as precauções para gotículas deveriam ser substituídas pelas precauções para aerossóis21), (22. Os procedimentos médicos exemplificados pelo Ministério da Saúde incluíram intubação traqueal, aspiração traqueal aberta, traqueostomia, ventilação mecânica não invasiva, desconectar o paciente do ventilador, ressuscitação cardiopulmonar, ventilação manual antes da intubação, coletas de amostras nasotraqueais, broncoscopias e administração de tratamento por nebulização21), (22.
A OMS adotou o mesmo posicionamento e publicou orientações muito semelhantes em julho de 20207. Contudo, a organização reconheceu que não podia descartar a transmissão aérea da COVID-19, particularmente em espaços fechados com aglomeração de pessoas e inadequadamente ventilados7, relatando que esse tipo de transmissão não havia sido constatado em serviços de saúde até então7.
Mas, se as condições estiverem presentes nesses serviços, é razoável supor que a transmissão por aerossóis também pode ocorrer nesses locais.
Após tal argumentação, a OMS finalizou suas recomendações contra a COVID-19 sugerindo as seguintes medidas adicionais: manter a distância física de outras pessoas sempre que possível; evitar lugares lotados ou a proximidade com outras pessoas; evitar espaços fechados ou confinados com ventilação ruim; e assegurar uma boa ventilação dos espaços fechados, além da limpeza e desinfecção apropriadas7.
O Ministério da Saúde também enfatizou a importância de os serviços de saúde disporem de ambientes com ventilação abundante e janelas abertas nas salas de espera e áreas de isolamento21), (22.
Assim, observa-se que tanto a OMS quanto o Ministério da Saúde recomendaram medidas relacionadas à ventilação e controle do ar em espaços fechados, o que extrapola as precauções para gotículas.
Mais tarde, em outubro de 2020, o CDC publicou um informe científico23 abordando diretamente a questão da transmissão aérea do SARS-CoV-2. Nele há dois pontos-chave sobre a transmissão aérea aplicados para a COVID-19 que talvez possam ser estendidos a outras doenças. A atualização mais recente desse informe data de maio de 2021.
O primeiro ponto se refere à inclusão do termo “partícula” na descrição de aerossol e a não delimitação da transmissão aérea a aerossóis de diâmetros específicos, mas reconhecendo que ela pode ocorrer em casos envolvendo gotículas ou partículas contaminadas de qualquer tamanho23.
O segundo ponto é a caracterização da transmissão aérea da COVID-19 como primeira via de transmissão23 e em circunstâncias diferentes das relacionadas aos procedimentos geradores de aerossóis descritos anteriormente e semelhante à transmissão aérea detalhada pela OMS7. Essas circunstâncias envolvem uma pessoa produzindo aerossóis contaminados por pelo menos 15 minutos em um espaço fechado e mal ventilado, especialmente se ela estiver realizando esforço expiratório, como ao gritar, cantar ou se exercitar23. Isso permite então o acúmulo de vírus no ar em quantidade suficiente para infectar outras pessoas que se encontram a mais de dois metros de distância do indivíduo infectado ou que entraram nesse espaço pouco depois de ele ter saído23.
A evidência disponível para a COVID-19 até o momento permite, assim, estabelecer de forma preliminar uma transmissão aérea especial, em contraste à observada em doenças de transmissão aérea já conhecidas e que pode ocorrer fora de espaços fechados e mal ventilados, mesmo que o indivíduo suscetível tenha entrado no ambiente horas depois de o infectado ter saído e sem que este tenha apresentado qualquer esforço expiratório. É muito difícil provar a transmissão aérea de uma doença infecciosa, razão pela qual apenas as que são muito eficientes em serem transmitidas por essa via, após inalação de doses muito pequenas dos respectivos patógenos, são reconhecidas como tais3, como é o caso da tuberculose, do sarampo e da varicela. Diante disso, embora a prevenção da transmissão aérea especial prescinda da implantação de alguns controles de engenharia exigidos pelas precauções para aerossóis, são necessárias medidas extras para melhorar a ventilação e impedir aglomerações em espaços fechados23, exatamente como preconizado pela OMS7 e previsto pelo Ministério da Saúde21), (22.
Medidas recomendadas em serviços de saúde: alterações motivadas pela COVID-19
O que as evidências sugerem até o momento, ao menos preliminarmente, é que a transmissão aérea poderia ser dividida em dois tipos distintos: a já conhecida, de médio a longo alcance e com baixas concentrações dos patógenos no ar, característica de doenças como a tuberculose, o sarampo e a varicela; e uma transmissão aérea especial, de curto a médio alcance (dimensão de uma sala ou quarto) em espaços fechados e com altas concentrações de patógenos no ar. No caso da COVID-19, verifica-se que a transmissão da doença se dá tanto pelo contato direto ou por gotículas quanto pela transmissão aérea especial.
Portanto, para evitar ou minimizar a transmissão da COVID-19 em serviços de saúde sugere-se que, além de adotar as precauções para gotículas e demais recomendações do Ministério da Saúde21), (22, as seguintes medidas adicionais, baseadas nas recomendações do CDC24, também sejam consideradas:
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implementar ou manter procedimentos de telemedicina sempre que possível;
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encorajar o distanciamento físico de pelo menos 2 metros de distância entre as pessoas, definir áreas ao ar livre sempre que possível, limitar o número de visitantes ao estritamente necessário, organizar os processos visando diminuir o número de pacientes em salas de espera, rearranjar essas salas para manter uma distância de 2 metros entre as pessoas, implantar salas de espera ou áreas de triagem ao ar livre ou permitir que as pessoas aguardem nos seus próprios carros para serem atendidas;
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enquanto houver transmissão comunitária, todos os profissionais de saúde devem utilizar máscara cirúrgica ajustada ao rosto, no mínimo, e proteção ocular durante o atendimento a todos os pacientes; e, para os atendimentos a casos suspeitos ou confirmados de COVID-19, protetores respiratórios PFF2 ou N95 em conjunto com a proteção ocular, mesmo em procedimentos que não geram aerossóis;
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explorar meios para melhorar a qualidade do ar interior, em conjunto com a engenharia, incluindo otimizar sistemas de ventilação (direção do fluxo de ar, filtração, taxas de trocas de ar, adequação e manutenção das instalações) e adquirir equipamentos portáteis de filtração do ar em locais em que a utilização de sistemas de ventilação não for possível.
Tendo em vista que outros patógenos, incluindo Aspergillus spp., Bordetella pertussis, Clostridium difficile, o SARS-CoV (agente da SRAG), o vírus sincicial respiratório, o vírus da rubéola, Histoplasma capsulatum, o vírus da influenza A, Legionella pneumophila, o vírus da caxumba, norovírus, Pseudomonas aeruginosa, Staphylococcus aureus, Streptococcus pyogenes, também poderiam ser transmitidos por aerossóis2, ao menos em determinadas circunstâncias, então as medidas adicionais mencionadas no parágrafo anterior também poderiam ajudar na prevenção das doenças causadas por esses outros agentes.
Os dados e as evidências sobre a possibilidade de diferentes agentes biológicos infecciosos serem transmitidos por aerossóis vêm se acumulando, sobretudo a partir dos primeiros surtos envolvendo um coronavírus, ainda em 2003. Desde aquele ano a comunidade científica vem aprofundando as pesquisas sobre o tópico e alertando as autoridades sanitárias e os governos, cujas recomendações técnicas também vêm sendo alteradas gradualmente nesse sentido. Prova disso encontra-se nas diretrizes sobre medidas de precaução em serviços de saúde do CDC de 2007, em que há uma sugestão de ampliação da transmissão aérea para outros agentes além daqueles da tuberculose e do sarampo e classificando-a como obrigatória, preferencial ou oportunística15. Verifica-se essa alteração também na cartilha de proteção respiratória publicada pelo Ministério da Saúde em 2009, que inclui na lista de agentes transmitidos por aerossóis: diversas espécies de hantavírus, o coronavírus agente da SRAG, Bacillus anthracis, o vírus influenza cepa H5N1 (gripe aviária), além dos já conhecidos agentes da tuberculose, do sarampo e da varicela20.
Considerações finais
Uma pandemia sempre traz enormes prejuízos à sociedade. Mas, como toda crise, também representa uma oportunidade de revisão das ideias e práticas utilizadas para a prevenção e o controle destas doenças, com potencial para correções e avanços imediatos e futuros. Dessa forma, a atual pandemia da COVID-19 também representa um estímulo para a reformulação das diretrizes e recomendações relacionadas às medidas para prevenção e controle da transmissão de doenças infecciosas em serviços de saúde.
De caráter introdutório e fruto de uma revisão não exaustiva da literatura, este ensaio necessariamente sofre de limitações quanto a seu alcance, ainda mais tendo em vista que o conhecimento sobre este assunto, no momento, está sendo atualizado e modificado muito rapidamente. Mesmo assim, espera-se que este trabalho tenha conseguido simplificar e resumir informações e evidências atualmente em debate sobre os conceitos de gotículas e aerossóis, a transmissão por gotículas e aérea e as medidas de precaução associadas, contribuindo assim para ambientes de trabalho mais seguros e saudáveis para os trabalhadores da saúde e para os pacientes.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Abr 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
04 Jan 2021 -
Revisado
20 Ago 2021 -
Aceito
25 Nov 2021