Resumo
Introdução:
o campo da Saúde do Trabalhador (ST) constituiu-se nas décadas de 1970/80, tendo forte relação com sindicatos. Hoje, o capitalismo neoliberal engendra o aprofundamento da precarização social e do trabalho, sustentado por um discurso ideológico que afeta os processos de subjetivação dos trabalhadores, levando-os a naturalizar uma lógica contrária aos seus interesses e que pode afetar sua saúde.
Objetivos:
discutir os desafios para o campo da ST no Brasil, considerando tal con-texto.
Métodos:
partindo da perspectiva da Psicologia Social do Trabalho, reflete-se sobre aspectos a considerar para uma atuação comprometida com as demandas atuais.
Resultados:
a realidade atual exige um reposicionamento das políticas públicas de ST, para que as ações sejam mais efetivas, resgatando sua essência política de promoção de saúde. Três aspectos foram propostos: conhecer e atuar sobre as diversas realidades laborais do trabalho informal; compreender os processos de subjetivação dos trabalhadores no atual contexto; e atuar em conjunto com movimentos sociais e outras formas de organizações coletivas.
Conclusão:
ressalta-se a necessidade de desenhar ações que promovam a subjetivação coletiva, o protagonismo dos trabalhadores, o fortalecimento e reinvenção de formas de resistências aos desmontes dos seus direitos e às situações que atentem contra a sua saúde.
Palavras-chave:
psicologia social do trabalho; saúde do trabalhador; neoliberalismo; subjetividade; políticas de saúde
Abstract
Introduction:
the field of Worker's Health (WH) was established in the
1970s and 1980s, strongly connected to labor unions. Today, neoliberal capitalism deepens social and labor precarization, supported by an ideological discourse that affects the worker's subjectivity, leading them to normalize a logic contrary to their interests and potentially detrimental to their health.
Objectives:
to discuss the challenges within the field of WH in Brazil, considering this context.
Method:
starting from the perspective of Social Psychology of Work, we reflected on aspects to consider for an engagement aligned with current demands.
Results:
the current reality calls for repositioning WH public policies, so that actions are more effective, rescuing their political essence of health promotion. We proposed three aspects: understanding and acting on the diverse labor realities of informal work; comprehending the worker's subjectivity processes in the current context; and collaborating with social movements and other forms of collective organizations.
Conclusion:
we emphasize the need to design actions that promote collective subjectivation, the protagonism of workers, the strengthening and reinvention of forms of resistance to the dismantling of their rights and situations that threaten their health.
Keywords:
social psychology of work; occupational health; neoliberalism; subjectivity; health policies
Introdução
O intenso processo de desregulamentação dos direitos trabalhistas, o aumento da informalidade, a hiper flexibilização e a precarização do trabalho geram insegurança, perda do sentido da atividade, dificuldades para a organização coletiva e prejuízos para a saúde dos trabalhadores. Apesar disso, é cada vez mais comum ver as pessoas que estão submetidas a tais condições reproduzindo um discurso neoliberal contrário aos seus próprios interesses, naturalizando, assim, relações de trabalho que afetam negativamente sua vida e sua saúde11. Antunes, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo; 2018.. Essa realidade se configura como um grande desafio para as políticas públicas de Saúde do Trabalhador (ST) na atualidade.
Frente a tal contexto, este ensaio tem o objetivo de discutir os desafios para o campo da Saúde do Trabalhador no Brasil e, a partir da perspectiva da Psicologia Social do Trabalho (PST), refletir sobre alguns aspectos que devem ser considerados para uma atuação comprometida com as demandas atuais.
Para tanto, inicia-se apresentando o nosso lugar de fala, a PST, e a concepção de subjetividade, que será utilizada na discussão empreendida adiante. Em seguida, contextualizamos a ST e suas principais influências para a compreensão dos processos de subjetivação e, finalmente, refletimos sobre os desafios do trabalho no contexto atual, que impõem a necessidade de repensar as formas de proteção da saúde e dos direitos dos trabalhadores.
A Psicologia Social do Trabalho e a compreensão de subjetividade
Partimos da perspectiva da PST, que se filia à vertente sociológica da psicologia social, buscando compreender os determinantes sociais presentes nos diversos tipos de relações de trabalho e suas implicações para os trabalhadores22. Coutinho MC, Bernardo MH, Sato L, organizadores. Psicologia social do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2017.. O trabalho é compreendido “em sua materialidade e em sua historicidade, o que exige a consideração das relações de poder presentes na divisão social do trabalho e nos valores e ideologias - entendidas aqui no sentido marxista - bem como das condições e das peculiaridades do capitalismo contemporâneo”33. Sato L, Coutinho MC, Bernardo MH. A perspectiva da psicologia social do trabalho. In: Coutinho MC, Bernardo MH, Sato L, organizadores. Psicologia social do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2017. p. 11-24.. (p. 13)
É importante destacar que a PST se distancia do enfoque gerencialista que costuma estar associado à relação da psicologia com o trabalho. Ela tem como foco as mais variadas configurações laborais, que dificilmente são objetivo de pesquisa e/ou intervenção de outras abordagens psicológicas. Podemos citar como exemplos as diferentes expressões do trabalho no contexto rural, as diversas formas de atividades que se enquadram no chamado trabalho urbano informal, a Economia Solidária e o desemprego44. Sato L. Diferentes faces do trabalho no contexto urbano. In: Coutinho MC, Bernardo MH, Sato L, organizadores. Psicologia social do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2017. p. 151-74..
O trabalho é categoria central de análise nesse enfoque, que tem suas “lentes dirigidas, simultaneamente, ao macro e micro; ao singular e ao geral; ao individual e ao coletivo; ao subjetivo e objetivo; ao mundo material e ao simbólico”33. Sato L, Coutinho MC, Bernardo MH. A perspectiva da psicologia social do trabalho. In: Coutinho MC, Bernardo MH, Sato L, organizadores. Psicologia social do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2017. p. 11-24. (p. 15). A PST se configura, então, como uma abordagem crítica, sendo que suas pesquisas e intervenções podem adotar diferentes bases teóricas. Segundo Coutinho, Oliveira55. Coutinho MC, Oliveira F. Algumas ferramentas teóricas para o estudo psicossocial do trabalho: práticas cotidianas, processos de significação e identidades. In: Coutinho MC, Bernardo MH, Sato L, organizadores. Psicologia social do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2017. p. 81-102., o olhar para as práticas cotidianas de trabalho, os processos de significação e as identidades dos trabalhadores são algumas ferramentas importantes.
Também avaliamos ser importante explicitar a compreensão de ‘subjetividade’ adotada neste artigo, por entender que se trata de um conceito polissêmico, raramente definido e fundamental nos argumentos que buscamos desenvolver. Partimos da abordagem teórica da Psicologia Histórico-Cultural, cujo principal expoente é Vygotski. Zanella6 destaca que seus fundamentos epistemológicos “advém primordialmente do materialismo histórico e dialético” (p. 20), para o qual, “toda pessoa é um ser social, é sujeito histórico, produto do contexto social do qual ativamente participa e, concomitantemente, produtora desse mesmo contexto” (p. 21). Desta forma,
Não há “mente” sem sociedade, não há humanidade sem pessoas que a produzam a partir de e com as condições sociais e históricas que possibilitam sua emergência e configuram seu desenvolvimento. Não há social sem singular, não há eu sem um outro, não há psique humana sem mediações culturais, historicamente produzidas, que a configuram como tal66. Zanella, AV. Psicologia histórico-cultural em foco: aproximações a alguns de seus fundamentos e conceitos. Florianópolis: Edições do Bosque; 2020. (p. 11).
Nesse sentido, consideramos que é mais adequado falar em ‘processos de subjetivação’ existentes na relação entre os sujeitos e a sociedade, tendo em vista que não se trata de algo estanque. Maheirie77. Maheirie K. Identidade: o processo de exclusão/inclusão na ambiguidade dos movimentos sociais. In: Zanella A, Siqueira MJT, Lhullier LA, Molon SI, organizadores. Psicologia e práticas sociais. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2008. p. 49-56. explica como se dão esses processos:
As estruturas sociais se subjetivam e tornam a se objetivar em atos e em significações singulares e coletivas, sendo reproduzidas de diferentes formas, materializando-se numa determinada política. Ao constituir-se num determinado sujeito, o homem interioriza significações (com valores, idéias) e a própria ideologia presente nesta, num movimento denominado de subjetivação. E ainda, exterioriza-se, de uma forma peculiar, num movimento denominado de objetivação. Portanto, ser sujeito é ser, ao mesmo tempo, subjetividade e objetividade, é ser objetividade que se subjetiva, subjetividade que se objetiva, constantemente77. Maheirie K. Identidade: o processo de exclusão/inclusão na ambiguidade dos movimentos sociais. In: Zanella A, Siqueira MJT, Lhullier LA, Molon SI, organizadores. Psicologia e práticas sociais. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2008. p. 49-56. (p. 52-3 - grifo nosso).
Uma vez realizado este breve esclarecimento inicial, retomamos algumas das principais bases históricas da ST para fundamentar a dimensão política sobre a qual nos propomos refletir.
O campo da Saúde do Trabalhador no Brasil, a influência do Modelo Operário Italiano e a participação da Psicologia
A ST é considerada um campo teórico-prático que surgiu no Brasil no período final da Ditadura Civil-Militar88. Sato L, Lacaz FAC, Bernardo MH. Psicologia e saúde do trabalhador: práticas e investigações na saúde pública de São Paulo. Estud Psicol. 2006;11(3):281-8., tendo importante papel na defesa da saúde dos trabalhadores e das trabalhadorasd d Para mais detalhes sobre o histórico e outras características da ST, ver, entre outros, Lacaz9, Muniz et al. 10, Nardi11. . Segundo Lacaz99. Lacaz FAC. O campo Saúde do Trabalhador: resgatando conhecimentos e práticas sobre as relações trabalho-saúde. Cad Saúde Pública. 2007;23(4):757-66., parte da compreensão da saúde-doença como um processo histórico, dinâmico e coletivo, intimamente relacionado às situações de trabalho. Para o autor, trata-se de um campo que surge em contraposição às visões hegemônicas da Saúde Ocupacional e da Medicina do Trabalho sobre a relação entre saúde-doença e trabalho, situando-se no âmbito da saúde coletiva e fundamentando-se nos saberes teóricos e práticos interdisciplinares e dos próprios trabalhadores. A ST se constitui com a participação ativa do movimento sindical organizado, tendo especial influência da Medicina Social Latino-americanae e Constituiu-se como importante campo de conhecimento e prática na América Latina, compreende a relação saúde-doença enquanto processo social, possibilitando uma análise da historicidade dos determinantes sociais, fisiológicos e psíquicos para cada coletivo humano12. e da experiência do Modelo Operário Italiano (MOI), desenvolvido na década de 1960.
Este último teve um importante papel na compreensão dos trabalhadores como sujeitos ativos, que têm um saber sobre o trabalho ao qual se deve somar o saber científico. Muniz et al. 1010. Muniz HP, Brito J, Souza KR, Athayde M, Lacomblez MH. Ivar Oddone e sua contribuição para o campo da saúde do trabalhador no Brasil. Rev Bras Saú Ocup. 2013;38(128):280-91. indicam as bases do MOI: “conhecer e transformar; validação consensual; não delegação; grupo operário homogêneo; valorização da experiência e da ‘subjetividade’ operária; defesa da saúde nos locais de trabalho e socialização do conhecimento” (p. 284). Desse modo, o MOI valorizava os saberes dos trabalhadores e a subjetividade operária, que são desenvolvidos coletivamente na relação cotidiana de trabalho. A identificação dos riscos à saúde presentes nas atividades laborais se fundamentava no diálogo entre o saber operário e o saber científico, buscando, sobretudo, a organização coletiva rumo à transformação do trabalho.
Esse movimento teve grande influência da Psicologia e, de acordo com Pereira1313. Pereira, MS. Movimento operário italiano, Ivar Oddone e a instrução ao sósia. Trab Educ. 2017;26(3):13-27., sua proposta baseava-se:
[...] no Cognitivismo de Miller, Galanter e Pribram (Oddone, 2002/2016), ao pensar as imagens construídas pelos operários sobre seu trabalho e o ambiente em que esse é desenvolvido; na perspectiva soviética, em sua visão de que somente na interação com outro o sujeito pode ampliar sua compreensão sobre si e sobre o mundo; e nas concepções de Gramsci, que visam situar o sujeito na intersecção com a história, individual e coletiva, tendo sempre em consideração sua capacidade como sujeito pensante1313. Pereira, MS. Movimento operário italiano, Ivar Oddone e a instrução ao sósia. Trab Educ. 2017;26(3):13-27.. (p. 14)
Ainda segundo Pereira1313. Pereira, MS. Movimento operário italiano, Ivar Oddone e a instrução ao sósia. Trab Educ. 2017;26(3):13-27., o que Ivar Oddone - o principal expoente do MOI - e seu grupo buscavam era o “desenvolvimento de uma Psicologia do Trabalho enquanto uma ciência que articula a relação entre a experiência operária, a consciência de classe e a própria Psicologia” (p. 22).
Considerando essas constatações, atrevemo-nos a afirmar que a ideia de “subjetividade operária” adotada pelo MOI, embora nunca tenha sido definida pelos seus integrantes (pelo menos, não nos escritos a que tivemos acesso), também se fundamenta no materialismo histórico-dialético, o qual, vale destacar, teve grande influência no campo da ST desenvolvido no Brasil99. Lacaz FAC. O campo Saúde do Trabalhador: resgatando conhecimentos e práticas sobre as relações trabalho-saúde. Cad Saúde Pública. 2007;23(4):757-66..
Se o MOI foi constituído, na década de 1960, com a participação ativa de representantes sindicais e tendo como foco o trabalho regulado no contexto urbano e fabril, no Brasil, foi na década de 1980, com a redemocratização do país, que os movimentos sociais, entre eles o sindical, ganharam força, contribuindo para um amplo e sério debate sobre as situações de trabalho e a saúde dos trabalhadores. As mobilizações populares foram importantes para a inclusão de diversos direitos sociais na Constituição Federal1414. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal; 1988., como as propostas que deram origem ao Sistema Único de Saúde (SUS), que incluiu, entre suas responsabilidades, a saúde de trabalhadores e trabalhadoras. Assim, inspirado no MOI, alicerçado no movimento sindical e com a participação de profissionais de saúde com práticas políticas-ideológicas engajadas com a “superação de relações de poder e conscientização dos trabalhadores” 99. Lacaz FAC. O campo Saúde do Trabalhador: resgatando conhecimentos e práticas sobre as relações trabalho-saúde. Cad Saúde Pública. 2007;23(4):757-66. (p. 762), se desenvolveu o campo da ST no país.
Partindo dessas premissas, as ações realizadas nas políticas públicas de ST se dão com base em um tripé, que inclui a assistência a trabalhadores acidentados ou adoecidos pelo trabalho, a vigilância (inspeção) nos ambientes de trabalho, com vistas à prevenção, e as atividades de promoção de saúde88. Sato L, Lacaz FAC, Bernardo MH. Psicologia e saúde do trabalhador: práticas e investigações na saúde pública de São Paulo. Estud Psicol. 2006;11(3):281-8.). Este último tipo de ação nunca foi definido com a devida clareza, mas, talvez, seja aquele que mais se insere no âmbito político, incluindo atividades de caráter formativo, participação em fóruns diversos e o estímulo à organização dos trabalhadores em defesa da saúde nos ambientes de trabalho.
A criação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST)f
f
Rede nacional de informações e práticas de saúde do SUS, com o objetivo de favorecer a assistência, a vigilância e a promoção da Saúde dos Trabalhador15.
, em 20021616. Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n. 1.679, de 19 de setembro de 2002. Dispõe sobre a rede nacional de atenção integral à saúde do trabalhador no SUS e dá outras providências. Brasília, DF; 2002 [citado em 26 sep 2023]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/ bvs/saudelegis/gm/2017/MatrizesConsolidacao/comum/13614.html
https://bvsms.saude.gov.br/ bvs/saudeleg...
, teve um papel importante na ampliação e na consolidação da ST no SUS. No entanto, a inserção de muitos profissionais que não tinham um vínculo ideológico com essa política e o processo de desmonte do Sistema de Saúde ocorrido nos últimos anos podem ter contribuído para que, em muitos lugares, as ações de ST se tornassem mais burocráticas, ficando restritas à assistência e à inspeção em locais de trabalho realizadas apenas por profissionais, perdendo a dimensão política e participativa que caracterizou sua origem.
Assim como ocorreu no MOI, a psicologia também teve participação no desenvolvimento da ST no Brasil. Muitos dos primeiros programas de saúde do trabalhador no âmbito da saúde pública contavam com profissionais de psicologia em suas equipes, havendo também a inserção de psicólogos em órgãos ligados aos sindicatos88. Sato L, Lacaz FAC, Bernardo MH. Psicologia e saúde do trabalhador: práticas e investigações na saúde pública de São Paulo. Estud Psicol. 2006;11(3):281-8.. Esses profissionais não se identificavam com a psicologia organizacionalg g Para diferenciação entre Psicologia Organizacional e Psicologia Social do Trabalho ver Bernardo et al.17. e tampouco se restringiam à prática clínica tradicional. Sato, Lacaz, Bernardo88. Sato L, Lacaz FAC, Bernardo MH. Psicologia e saúde do trabalhador: práticas e investigações na saúde pública de São Paulo. Estud Psicol. 2006;11(3):281-8. destacam que, para o campo da ST, “também importa desvendar as mediações entre trabalho e subjetividade. E é sob esta ótica que a psicologia vai se apropriar do estudo das relações trabalho e saúde-doença”h h Essa inserção de profissionais da psicologia na ST teve participação importante na própria configuração da perspectiva da PST, conforme afirmam Esteves, Bernardo e Sato18. . (p. 283). Sato e Bernardo1919. Sato L, Bernardo MH. Saúde mental e trabalho: os problemas que persistem. Ciênc Saúde Coletiva. 2005;10(4):869-78. descrevem algumas das atividades de profissionais da psicologia no âmbito dos serviços públicos e da assessoria sindical, que, naquele período inicial, tinham, na sua maioria, foco nos trabalhadores com vínculos de trabalho regulados pela legislação trabalhista.
Em síntese, pode-se dizer que as experiências do MOI, o surgimento da ST no Brasil e a própria atuação da Psicologia nesses campos se deram em contextos históricos e locais que contavam com maior força dos sindicatos classistas, constituindo-se, assim, a partir de uma forte relação com eles e tendo como foco, consequentemente, os trabalhadores com vínculos formais.
Contudo, considerando as profundas metamorfoses no mundo do trabalho nas últimas décadas, Yves Clot2020. Clot Y. De Elton Mayo a Ivar Oddone: redescobrir a instrução ao sósia. Cad Psicol Soc Trab. 2021;24(1):135-51., ao se referir ao MOI, afirma que se tratava de “um contexto de um movimento social que as gerações de hoje, sem dúvida, têm dificuldade de imaginar” (p. 139). Como, então, se caracteriza o trabalho na atualidade? E quais são os desafios que esse contexto coloca para a ST?
Desafios atuais: perdas de direitos trabalhistas e discursos ideológicos
Conforme explica Sato44. Sato L. Diferentes faces do trabalho no contexto urbano. In: Coutinho MC, Bernardo MH, Sato L, organizadores. Psicologia social do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2017. p. 151-74., “o que emerge como realidades de trabalho no Brasil é uma imagem complexa, heterogênea e desigual” (p. 151) e, ainda, “para conceber políticas públicas com vistas a garantir proteção social é imprescindível compreender essa realidade e encontrar meios que dialoguem com a lógica que lhe é própria” (p. 161). Essa heterogeneidade das realidades de trabalho, que se insere naquilo que se convencionou chamar “trabalho informal”, sempre marcou a realidade do Brasil e de toda América Latina, sendo que o emprego regulado por legislação - o trabalho “formal” - raramente ultrapassou os 50% das pessoas em atividade no país2121. Antunes, R, organizador. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo; 2007.. Apesar disso, o trabalho informal era visto como provisório ou como exceção em momentos de crise.
Nos últimos anos, no entanto, os direitos dos trabalhadores e, consequentemente, a proteção à sua saúde, vêm sendo corroídos, tendo como marco importante a “Reforma Trabalhista” de 20172222. Brasil. Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Brasília, DF: Presidência da República; 2017 [citado em 26 sep 2023]. Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/l13467.htm.
http://planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato201...
, que teve como justificativa a afirmação de uma suposta obsolescência da legislação que vigorava até então e a necessidade de flexibilizar as formas de contratação previstas em lei, com o intuito de gerar novos empregos2323. Krein JD, Oliveira RV, Filgueiras VA, organizadores. Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Nimuendajú; 2019..
Em decorrência disso, observa-se um aprofundamento da precarização, com a diminuição da já restrita proteção social, acompanhada de um discurso ideológico com o objetivo de fazer com que os trabalhadores, mesmo frente a grandes perdas de direitos, exaltem a suposta liberdade e autonomia de ser ‘empreendedor’ e ‘seu próprio patrão’. As mudanças, portanto, não se dão apenas nos planos legal e material, mas também nos processos de subjetivação dos trabalhadores.
Em 2010, bem antes da mudança da legislação trabalhista, Franco, Druck e Seligmann-Silva2424. Franco T, Druck G, Seligmann-Silva E. As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado. Rev Bras Saúde Ocup. 2010;35(122):229-48. discutiram a precarização social do trabalho no neoliberalismo, afirmando que ela envolve, entre outros fatores, a deterioração das situações laborais, a fragilização das relações contratuais e a valorização do individualismo e da competitividade. Druck2525. Druck G. A tragédia neoliberal, a pandemia e o lugar do trabalho. O Social em Questão. 2021;XXIV(49):11-33. nomeia esse cenário como “tragédia neoliberal”, que, de acordo com ela, está em curso há décadas nas sociedades capitalistas, ficando mais evidente no Brasil nos últimos anos.
Antunes11. Antunes, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo; 2018. utiliza a expressão “proletariado de serviços” para se referir à vasta população que cimenta sua sobrevivência nas chamadas atividades autônomas, que tiveram grande expansão nos últimos anos. O discurso de empreendedorismo, de acordo com o autor, camufla a precária situação de trabalho e faz com que os trabalhadores percam a referência de classe. Para ele, na atualidade, dentre as várias expressões da precarização do trabalho, observa-se o surgimento de um tipo de relação laboral que tem sido impulsionado pelas tecnologias da informação e da comunicação (TICs), evidenciado especialmente no “novo proletariado da era digital”, entre os quais se incluem os chamados trabalhadores ‘uberizados’.
O trabalho ‘uberizado’, conforme discutido por Abílio2626. Abílio LC. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estud av. 2020;34(98):111-26., não oferece nenhum vínculo empregatício ou proteção social. Há uma suposta relação de ‘parceria’ entre os trabalhadores e as empresas donas dos aplicativos. Todavia, essa parceria é bastante assimétrica, visto que as práticas de controle, gestão e organização do trabalho continuam sendo realizadas pela empresa, enquanto os custos e riscos laborais foram transferidos para o trabalhador2727. Masson LP, Alvarez D, Oliveira S, Teixeira M, Leal S, Salomão GS, et al. "Parceiros" assimétricos: trabalho e saúde de motoristas por aplicativos no Rio de Janeiro, Brasil. Ciênc Saúde Coletiva. 2021;26(12):5915-24..
Os trabalhadores mais conhecidos nessa condição são os entregadores e motoristas de aplicativos, porém, há milhões de profissionais de diversas áreas que passaram a oferecer sua mão de obra por meio de plataformas digitais. Consideramos que as características e o discurso que acompanha esse modelo exemplificam, de forma bastante clara, as configurações do trabalho atual e suas implicações subjetivas.
A ideia de ‘empreendedorismo’ sustenta essa lógica, mesmo que, como argumenta Uchôa-de-Oliveira2828. Uchôa-de-Oliveira FM. Saúde do trabalhador e o aprofundamento da uberização do trabalho em tempos de pandemia. Rev Bras Saúde Ocup. 2020;45(22):1-8., objetivamente, esses trabalhadores não possam ser considerados empreendedores, já que não têm a oportunidade de exercer inovação ou criatividade em seu trabalho, nem possibilidade de decidir como irão realizá-lo e, tampouco, o valor a ser cobrado por seus serviços. Eles têm apenas liberdade para lidar com a intensidade de sua atividade.
Esse tipo de relação de trabalho - que exacerba a competitividade, o individualismo, a dominação, a desregulação e, consequentemente, o desgaste do trabalhador - seria considerado completamente irregular e inadequado há algumas décadas, mas atualmente foi naturalizado por toda a sociedade. Afinal, quem nunca utilizou o serviço da Uber ou pediu uma refeição pela iFood? Ou, ainda, quem nunca viu passivamente uma reportagem enaltecendo a iniciativa de pessoas que trabalham por 15, 16 horas seguidas para obter seu sustento?
Mas como se passou de um cenário em que o vínculo de emprego formal era um ideal a ser buscado por grande parte dos trabalhadores para este, no qual a informalidade é naturalizada? Como o discurso que mina a organização coletiva e enaltece situações que podem atentar contra a saúde dos trabalhadores se tornou tão comum? Segundo Chauí2929. Chauí, M. A ideologia da competência. São Paulo: Autêntica; 2014., isso está relacionado ao neoliberalismo e à ideologia que o acompanha, “que elogia o fragmentado, o efêmero e o contingente, considera as ideias modernas de racionalidade e história como mitos totalitários, substituindo-as pelo elogio do imediato, do aqui e agora, e faz o elogio da intimidade narcísica solitária” (p. 50).
Dardot e Laval3030. Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016., tomando como base a sociologia e a psicanálise lacaniana, afirmam que, para obter sucesso na configuração neoliberal, o capitalismo precisou promover mudanças nas pessoas em todos os âmbitos da vida, criando aquilo que denominam “subjetividade neoliberal”, uma subjetividade que “deve estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ela cumpra” (p. 327). Nesse contexto, continuam eles, nem sempre é fácil reconhecer a “mudança progressiva das relações humanas, a transformação das práticas cotidianas induzidas pela nova economia, os efeitos subjetivos das novas relações sociais no espaço mercantil e das novas relações políticas no espaço da soberania” (p. 322). Dessa forma, o modelo empresarial passaria a ser o modelo geral que rege a sociedade, inclusive desde a educação das crianças, com a valorização de atitudes que favorecem o individualismo e a competição.
Ao dialogar com Foucault, esses autores concordam com a ideia de que, desde o início da industrialização existe uma ação disciplinar do capitalismo, contudo, para eles, a disciplina não se deu no adestramento dos corpos, mas por meio de uma “gestão das mentes”, tipo de gestão intensificada pelo neoliberalismo. O sujeito neoliberal sente-se, então,
Como proprietário de ‘capital humano’, capital que ele precisa acumular por escolhas esclarecidas, amadurecidas por um cálculo responsável de custos e benefícios. Os resultados obtidos na vida são fruto de uma série de decisões e esforços que dependem apenas do indivíduo e não implicam nenhuma compensação em caso de fracasso, exceto as previstas nos contratos de seguro privado facultativo. A distribuição dos recursos econômicos e das posições sociais é vista exclusivamente como consequência de percursos, bem-sucedidos ou não, de realização pessoal3030. Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.. (p. 346)
Em síntese, pode-se considerar que, se o cenário objetivo de desemprego e precarização social e do trabalho tem sérias implicações na saúde dos trabalhadores3131. Seligmann-Silva E. Desemprego e desgaste mental: desafio às políticas públicas e aos sindicatos. Rev Ciênc Trab. 2015;(4):89-109., o discurso ideológico que o acompanha expressa graves problemas sociais e políticos, que isola os trabalhadores, afeta seus processos de subjetivação, ameaçando ainda mais sua saúde, especialmente a saúde mental.
Além disso, a falta de reconhecimento dos trabalhadores que estão fora do mercado formal de trabalho - sejam desempregados, uberizados ou aqueles que exercem outros tipos de atividades informais - tem provocado certa invisibilidade e, consequentemente, a dificuldade para sua inclusão nas políticas públicas de ST que, como vimos anteriormente, se consolidou na atuação junto a trabalhadores inseridos no mercado de trabalho formal.
O reconhecimento dessa legião de trabalhadores e dos processos subjetivos engendrados no capitalismo neoliberal deve ser pauta das políticas públicas no campo da ST, para que tenham algum impacto no atual contexto do trabalho. E, com relação a esse aspecto, acreditamos que o olhar da PST possa colaborar para um reposicionamento das práticas nesse campo, ajudando a repensar as ações que visem à proteção da saúde da classe trabalhadora.
Por políticas públicas em Saúde do Trabalhador comprometidas com o atual cenário de trabalho
Se Dardot e Laval3030. Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016. apresentam um quadro pessimista ao abordarem como a sociedade neoliberal inaugura um novo tipo de racionalidade, que organiza as ações e pensamentos dos sujeitos, os autores também dão uma pista para pensar o enfrentamento de tal cenário, ao afirmarem que “a nova razão do mundo não é um destino necessário que subjuga a humanidade” (p. 401). Nesse sentido, ressaltam que a subjetivação individual está ligada à subjetivação coletiva e, portanto, “a invenção de novas formas de vida somente pode ser uma invenção coletiva” (p. 401) por meio de cooperação.
Nessa perspectiva, no âmbito do trabalho, a resistência às mazelas atuais e ao processo de desgaste da saúde passa pela retomada do fortalecimento da organização coletiva, do incentivo ao protagonismo de trabalhadores inseridos nos mais diversos contextos e do favorecimento da sua consciência críticai i Em consonância com o referencial teórico adotado neste artigo, quando falamos em consciência, não nos referimos apenas a processos racionais. Deve-se também levar em consideração suas incessantes e intensas relações, na dinâmica da vida, com a linguagem, o pensamento, a memória, as emoções etc. Para Clot32, por exemplo, ela deve ser entendida como “uma modalidade particular da experiência” (p.136) sempre dinâmica, na qual “intelecto e afeto se encavalam” (p.136). . Assim, para combater o discurso individualista, faz-se urgente retomar o posicionamento ético-político presente na origem da ST, buscando reconhecer as novas e complexas formas de organização do trabalho e investindo no fortalecimento de ações formativas para além das atividades de caráter assistencialista e tecnicista, que hoje parecem prevalecer.
Sem dúvidas, não é algo simples de ser alcançado. Porém, considerando o que foi discutido nas seções anteriores e a perspectiva da PST, compreendemos que, para que as políticas públicas de ST sejam mais efetivas na atualidade, é necessário repensar as ações propostas, retomando princípios fundadores desse campo, levando em conta a atual configuração do neoliberalismo no Brasil.
Deste modo, sem ter a pretensão de oferecer um receituário de atuação, destacamos três premissas que podem contribuir para essa reflexão: (1) aproximação das diversas realidades que compõem o mundo do trabalho na atualidade; (2) discussão sobre as implicações nos processos de subjetivação dos trabalhadores nos diferentes contextos e os efeitos subjacentes para sua vida e sua saúde; e (3) atuação em conjunto com o caleidoscópio de organizações coletivas que perseveram frente à ideologia que predomina na atualidade, incluindo os tradicionais sindicatos e, também, associações e diversos movimentos sociais existentes ou que possam surgir.
Essas três premissas estão intrinsecamente ligadas entre si, mas, ainda assim, vejamos cada uma delas de forma mais detida:
(1) Acima, procuramos oferecer argumentos para a necessidade de a ST ampliar seu olhar para as variadas formas de trabalho, pensando em ações que incluam o trabalho não protegido, historicamente invisibilizado, hoje naturalizado e desempenhado por grande parcela dos brasileiros.
Em geral, os trabalhadores informais são acolhidos nas atividades assistenciais do SUS e, em alguns locais, incluídos nos dados epidemiológicos, mas não costumam ser considerados no planejamento e na prática cotidiana dos serviços de saúde, como, por exemplo, nas ações de vigilância nos ambientes de trabalho, tendo em vista que a própria legislação sanitária e trabalhista está orientada para o trabalho formal. Avaliamos que, com esse público, é fundamental mudar o foco das ações, com grande potencial para atividades formativas, não no sentido de realização de cursos tecnicistas, mas na acepção de formação política proposta por Paulo Freire3333. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 4a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2014.. Tais atividades devem ser planejadas e realizadas com a participação de trabalhadores, configuram-se como práxis voltada para a autonomia e para o desenvolvimento de consciência crítica sobre os aspectos que caracterizam o processo trabalho-saúde-doença, para que possam questionar e transformar sua realidade. Para tanto, é necessário que os serviços envolvidos na ST conheçam a realidade do trabalho predominante no seu entorno, seus determinantes macro e microssociais e busquem incluir os trabalhadores informais no planejamento e desenvolvimento de suas atividades.
No item (2), estreitamente ligado ao anterior, avaliamos que, por mais complexa e desafiadora que seja a polissemia do trabalho na atualidade, as políticas públicas em ST precisam contemplar as implicações das ideologias neoliberais nos processos de subjetivação dos trabalhadores, tendo em vista que dificultam a organização coletiva e utilizam tecnologias para mascarar o controle do capital sobre o trabalho.
A concepção de processos de subjetivação, apresentada anteriormente, contribui para a compreensão do sujeito como produto e produtor da sociedade. Nesse sentido, qualquer ação em ST deve considerar a investida do capital para manter a “subjetividade neoliberal” 3030. Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016., buscando possibilidades de se contrapor a ela. Dessa forma, as ações formativas discutidas acima, de caráter político, nas quais os trabalhadores têm um papel ativo, devem se ancorar na potência da transformação de contextos e nos processos dialéticos de subjetivação e de desenvolvimento de consciência, possíveis na relação com o outro. Devem também considerar que os sentidos são produzidos e ressignificados na relação do sujeito com sua realidade.
O item (3) diz respeito à atuação em conjunto com os coletivos de trabalhadores. Se, ao longo do século XX, os movimentos sindicais foram essenciais para as conquistas de direitos, incluindo aqueles relacionados à saúde1818. Esteves EG, Bernardo MH, Sato L. Fontes do pensamento e das práticas em psicologia social do trabalho. In: Coutinho MC, Bernardo MH, Sato L, organizadores. Psicologia social do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2017. p. 49-80., na atualidade, apesar de permanecerem ativos, raramente, conseguem abranger os trabalhadores informais e sofrem as consequências dos diversos ataques que visam torná-los menos combativos. Essa realidade, somada à propagação da ideologia meritocrática e individualista, exige o fortalecimento do compromisso ético-político e o estabelecimento de redes e alianças entre os diferentes atores sociais comprometidos com os princípios democráticos e dispostos a lutar pela dignidade e saúde dos trabalhadores.
Dessa forma, além da atuação em conjunto com os sindicatos, é importante que a ST se relacione com diversas outras iniciativas e movimentos sociais que se organizam coletivamente, sejam associações locais, urbanas ou rurais - como, por exemplo, o MST, MTST, organizações de trabalhadores da Economia Solidária e Popular -, associações de trabalhadores de grupos específicos - como movimentos de entregadores e de trabalhadores uberizados -, grupos acadêmicos, etc. Também podem colaborar com a constituição de novos coletivos. Acreditamos que vínculos e ações realizadas com, e não para, os trabalhadores possibilitariam a conquista de espaços institucionais transformadores na ST, nos quais os trabalhadores são protagonistas políticos capazes de, com o apoio de outros agentes, influenciar e modificar as realidades de trabalho.
Nesse sentido, mesmo considerando a complexidade do contexto atual, podemos retomar a origem da ST e os princípios da prática defendidos pelos profissionais que participaram do MOI. Clot2020. Clot Y. De Elton Mayo a Ivar Oddone: redescobrir a instrução ao sósia. Cad Psicol Soc Trab. 2021;24(1):135-51. afirma que a psicologia do trabalho adotada nesse movimento não buscava substituir “o antigo especialista pelo ‘bom’ psicólogo ou o ‘bom’ médico como porta-voz dos trabalhadores” (p. 144), mas, o especialista deve estar apto a subsidiar os trabalhadores, a entender as nocividades presentes no seu trabalho e a dar suporte às novas formas de organização coletiva.
Considerações finais
Longe de oferecer soluções prontas, neste ensaio, partimos da perspectiva da PST para chamar a atenção sobre a importância de compreender o cotidiano do trabalho não protegido, com destaque para as dimensões subjetivas que o caracterizam na atualidade. Apontamos também a necessidade de fortalecer ações formativas e reflexivas que promovam a subjetivação coletiva, o protagonismo da classe trabalhadora, o fortalecimento e a reinvenção de formas de resistências aos desmontes dos direitos dos trabalhadores e às situações que atentam contra a sua saúde.
Acreditamos que as premissas elencadas podem contribuir para buscar resgatar a essência política, participativa e de promoção à saúde intrínseca nas políticas públicas de ST, em sua dimensão real de garantia de direito dos trabalhadores brasileiros à saúde na complexa realidade atual. Por outro lado, também estamos cientes de que não se trata de uma tarefa simples. Por isso, mais do que oferecer receitas de atuação, buscamos apontar aspectos que acreditamos que devem ser objeto de reflexão, tanto na formulação de políticas públicas em saúde como nas ações de profissionais comprometidos com os princípios da ST.
Finalmente, salientamos que não devemos ser ingênuos e desconsiderar que a lógica neoliberal tende a atingir grande parte da nossa sociedade, incluindo muitos dos próprios profissionais inseridos nas políticas de ST, que, além disso, com frequência estão subordinados a governantes que não têm interesse no favorecimento do desenvolvimento de trabalhadores questionadores. Considerando, então, que estamos retomando uma gestão federal que valoriza as políticas sociais, talvez uma importante tarefa do Ministério da Saúde, nessa fase inicial, seja a promoção de atividades reflexivas com os próprios profissionais da área, sobretudo dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador - CEREST, no mesmo sentido proposto acima. Ou seja, é importante oferecer aos trabalhadores da saúde atividades que vão além de cursos e eventos que foquem apenas aspectos técnicos, devendo-se assumir o caráter político da formação, que considere a complexidade que constitui o trabalho no Brasil na atualidade, sem perder de vista os princípios que estão na base do campo da ST. Assim, pode-se fortalecer o compromisso ético-político desses profissionais com a população trabalhadora.
Agradecimentos:
agradecemos a nossos caros amigos, colegas de estudo e companheiros de luta pela Saúde do Trabalhador, Vera Lúcia Salerno e Eduardo Alessandro Kawamura, pela leitura atenta e preciosas sugestões para o aprimoramento deste ensaio.
Referências
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1Antunes, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo; 2018.
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2Coutinho MC, Bernardo MH, Sato L, organizadores. Psicologia social do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2017.
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3Sato L, Coutinho MC, Bernardo MH. A perspectiva da psicologia social do trabalho. In: Coutinho MC, Bernardo MH, Sato L, organizadores. Psicologia social do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2017. p. 11-24.
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4Sato L. Diferentes faces do trabalho no contexto urbano. In: Coutinho MC, Bernardo MH, Sato L, organizadores. Psicologia social do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2017. p. 151-74.
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5Coutinho MC, Oliveira F. Algumas ferramentas teóricas para o estudo psicossocial do trabalho: práticas cotidianas, processos de significação e identidades. In: Coutinho MC, Bernardo MH, Sato L, organizadores. Psicologia social do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2017. p. 81-102.
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6Zanella, AV. Psicologia histórico-cultural em foco: aproximações a alguns de seus fundamentos e conceitos. Florianópolis: Edições do Bosque; 2020.
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7Maheirie K. Identidade: o processo de exclusão/inclusão na ambiguidade dos movimentos sociais. In: Zanella A, Siqueira MJT, Lhullier LA, Molon SI, organizadores. Psicologia e práticas sociais. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais; 2008. p. 49-56.
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8Sato L, Lacaz FAC, Bernardo MH. Psicologia e saúde do trabalhador: práticas e investigações na saúde pública de São Paulo. Estud Psicol. 2006;11(3):281-8.
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9Lacaz FAC. O campo Saúde do Trabalhador: resgatando conhecimentos e práticas sobre as relações trabalho-saúde. Cad Saúde Pública. 2007;23(4):757-66.
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10Muniz HP, Brito J, Souza KR, Athayde M, Lacomblez MH. Ivar Oddone e sua contribuição para o campo da saúde do trabalhador no Brasil. Rev Bras Saú Ocup. 2013;38(128):280-91.
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11Nardi H. Saúde do trabalhador. In: Cattani A, organizador. Trabalho e tecnologia: dicionário crítico. Petrópolis:Vozes;1997. p. 219-24.
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12Laurell AC, Noriega, M. Processo de produção e saúde trabalho e desgaste operário. São Paulo: Hucitec; 1989.
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13Pereira, MS. Movimento operário italiano, Ivar Oddone e a instrução ao sósia. Trab Educ. 2017;26(3):13-27.
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14Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.
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15Brasil. Ministério da Saúde. Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador Online. Brasília, DF; [2022] [citado em 26 sep 2023]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/svsa/saude-do-trabalhador/renast
» https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/svsa/saude-do-trabalhador/renast -
16Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n. 1.679, de 19 de setembro de 2002. Dispõe sobre a rede nacional de atenção integral à saúde do trabalhador no SUS e dá outras providências. Brasília, DF; 2002 [citado em 26 sep 2023]. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/ bvs/saudelegis/gm/2017/MatrizesConsolidacao/comum/13614.html
» https://bvsms.saude.gov.br/ bvs/saudelegis/gm/2017/MatrizesConsolidacao/comum/13614.html -
17Bernardo MH, Oliveira F, Souza HA, Sousa CC. Linhas paralelas: as distintas aproximações da Psicologia em relação ao trabalho. Estud Psicol. 2017;34(1):15-24.
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18Esteves EG, Bernardo MH, Sato L. Fontes do pensamento e das práticas em psicologia social do trabalho. In: Coutinho MC, Bernardo MH, Sato L, organizadores. Psicologia social do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2017. p. 49-80.
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19Sato L, Bernardo MH. Saúde mental e trabalho: os problemas que persistem. Ciênc Saúde Coletiva. 2005;10(4):869-78.
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20Clot Y. De Elton Mayo a Ivar Oddone: redescobrir a instrução ao sósia. Cad Psicol Soc Trab. 2021;24(1):135-51.
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21Antunes, R, organizador. Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo; 2007.
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22Brasil. Lei 13.467, de 13 de julho de 2017. Altera a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943, e as Leis nos 6.019, de 3 de janeiro de 1974, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 8.212, de 24 de julho de 1991, a fim de adequar a legislação às novas relações de trabalho. Brasília, DF: Presidência da República; 2017 [citado em 26 sep 2023]. Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/l13467.htm
» http://planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/l13467.htm -
23Krein JD, Oliveira RV, Filgueiras VA, organizadores. Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Nimuendajú; 2019.
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24Franco T, Druck G, Seligmann-Silva E. As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado. Rev Bras Saúde Ocup. 2010;35(122):229-48.
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25Druck G. A tragédia neoliberal, a pandemia e o lugar do trabalho. O Social em Questão. 2021;XXIV(49):11-33.
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26Abílio LC. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estud av. 2020;34(98):111-26.
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27Masson LP, Alvarez D, Oliveira S, Teixeira M, Leal S, Salomão GS, et al. "Parceiros" assimétricos: trabalho e saúde de motoristas por aplicativos no Rio de Janeiro, Brasil. Ciênc Saúde Coletiva. 2021;26(12):5915-24.
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28Uchôa-de-Oliveira FM. Saúde do trabalhador e o aprofundamento da uberização do trabalho em tempos de pandemia. Rev Bras Saúde Ocup. 2020;45(22):1-8.
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29Chauí, M. A ideologia da competência. São Paulo: Autêntica; 2014.
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30Dardot P, Laval C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo; 2016.
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31Seligmann-Silva E. Desemprego e desgaste mental: desafio às políticas públicas e aos sindicatos. Rev Ciênc Trab. 2015;(4):89-109.
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32Clot Y. Vygotski: a consciência como relação. Psicol Soc. 2014;26(spe2):124-39.
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33Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 4a ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2014.
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Para mais detalhes sobre o histórico e outras características da ST, ver, entre outros, Lacaz99. Lacaz FAC. O campo Saúde do Trabalhador: resgatando conhecimentos e práticas sobre as relações trabalho-saúde. Cad Saúde Pública. 2007;23(4):757-66., Muniz et al. 1010. Muniz HP, Brito J, Souza KR, Athayde M, Lacomblez MH. Ivar Oddone e sua contribuição para o campo da saúde do trabalhador no Brasil. Rev Bras Saú Ocup. 2013;38(128):280-91., Nardi1111. Nardi H. Saúde do trabalhador. In: Cattani A, organizador. Trabalho e tecnologia: dicionário crítico. Petrópolis:Vozes;1997. p. 219-24..
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e
Constituiu-se como importante campo de conhecimento e prática na América Latina, compreende a relação saúde-doença enquanto processo social, possibilitando uma análise da historicidade dos determinantes sociais, fisiológicos e psíquicos para cada coletivo humano1212. Laurell AC, Noriega, M. Processo de produção e saúde trabalho e desgaste operário. São Paulo: Hucitec; 1989..
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Rede nacional de informações e práticas de saúde do SUS, com o objetivo de favorecer a assistência, a vigilância e a promoção da Saúde dos Trabalhador1515. Brasil. Ministério da Saúde. Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador Online. Brasília, DF; [2022] [citado em 26 sep 2023]. Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/composicao/svsa/saude-do-trabalhador/renast
https://www.gov.br/saude/pt-br/composica... . -
g
Para diferenciação entre Psicologia Organizacional e Psicologia Social do Trabalho ver Bernardo et al.1717. Bernardo MH, Oliveira F, Souza HA, Sousa CC. Linhas paralelas: as distintas aproximações da Psicologia em relação ao trabalho. Estud Psicol. 2017;34(1):15-24..
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h
Essa inserção de profissionais da psicologia na ST teve participação importante na própria configuração da perspectiva da PST, conforme afirmam Esteves, Bernardo e Sato1818. Esteves EG, Bernardo MH, Sato L. Fontes do pensamento e das práticas em psicologia social do trabalho. In: Coutinho MC, Bernardo MH, Sato L, organizadores. Psicologia social do trabalho. Petrópolis: Vozes; 2017. p. 49-80..
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i
Em consonância com o referencial teórico adotado neste artigo, quando falamos em consciência, não nos referimos apenas a processos racionais. Deve-se também levar em consideração suas incessantes e intensas relações, na dinâmica da vida, com a linguagem, o pensamento, a memória, as emoções etc. Para Clot3232. Clot Y. Vygotski: a consciência como relação. Psicol Soc. 2014;26(spe2):124-39., por exemplo, ela deve ser entendida como “uma modalidade particular da experiência” (p.136) sempre dinâmica, na qual “intelecto e afeto se encavalam” (p.136).
Disponibilidade de Dados:
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todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
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Financiamento: as autoras declaram que o trabalho não foi subvencionado.
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Apresentação do estudo em evento científico: as autoras informam que o trabalho não foi apresentado em evento científico.
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todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
31 Out 2022 -
Revisado
13 Jan 2023 -
Aceito
08 Fev 2023 -
Corrigido
03 Abr 2024