RESUMO
A pandemia por COVID-19 tem deixado os gestores, os profissionais de saúde e a população preocupados com a potencial escassez de ventiladores pulmonares para suporte de pacientes graves. No Brasil, há diversas iniciativas com o intuito de produzir ventiladores alternativos para ajudar a suprir essa demanda. Para auxiliar as equipes que atuam nessas iniciativas, são expostos alguns conceitos básicos sobre fisiologia e mecânica respiratória, os termos comumente utilizados no contexto da ventilação mecânica, as fases do ciclo ventilatório, as diferenças entre disparo e ciclagem, os modos ventilatórios básicos e outros aspectos relevantes, como mecanismos de lesão pulmonar induzida pela ventilação mecânica, pacientes com drive respiratório, necessidade de umidificação de vias aéreas, risco de contaminação cruzada e disseminação de aerossóis. Após a fase de desenvolvimento de protótipo, são necessários testes pré-clínicos de bancada e em modelos animais, a fim de determinar a segurança e o desempenho dos equipamentos, seguindo requisitos técnicos mínimos exigidos. Então, é imprescindível passar pelo processo regulatório exigido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). A empresa responsável pela fabricação do equipamento deve estar regularizada junto à ANVISA, que também deve ser notificada da condução dos testes clínicos em humanos, seguindo protocolo de pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa. O registro do ventilador junto à ANVISA deve ser acompanhado de um dossiê, composto por documentos e informações detalhadas neste artigo, que não tem o propósito de esgotar o assunto, mas de nortear os procedimentos necessários.
Descritores: Ventiladores mecânicos; Respiração artificial; Respiração com pressão positiva; COVID-19; Síndrome respiratória aguda grave; Engenharia biomédica; Brasil
ABSTRACT
The COVID-19 pandemic has brought concerns to managers, healthcare professionals, and the general population related to the potential mechanical ventilators’ shortage for severely ill patients. In Brazil, there are several initiatives aimed at producing alternative ventilators to cover this gap. To assist the teams that work in these initiatives, we provide a discussion of some basic concepts on physiology and respiratory mechanics, commonly used mechanical ventilation terms, the differences between triggering and cycling, the basic ventilation modes and other relevant aspects, such as mechanisms of ventilator-induced lung injury, respiratory drive, airway heating and humidification, cross-contamination risks, and aerosol dissemination. After the prototype development phase, preclinical bench-tests and animal model trials are needed to determine the safety and performance of the ventilator, following the minimum technical requirements. Next, it is mandatory going through the regulatory procedures as required by the Brazilian Health Regulatory Agency (Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA). The manufacturing company should be appropriately registered by ANVISA, which also must be notified about the conduction of clinical trials, following the research protocol approval by the Research Ethics Committee. The registration requisition of the ventilator with ANVISA should include a dossier containing the information described in this paper, which is not intended to cover all related matters but to provide guidance on the required procedures.
Keywords: Ventilators, mechanical; Respiration, artificial; Positive-pressure respiration; COVID-19; Severe acute respiratory syndrome; Biomedical engineering; Brazil
INTRODUÇÃO
Em dezembro de 2019, foram relatados vários casos de síndromes respiratórias causadas por um novo coronavírus.(1) Posteriormente, o vírus denominado coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2 (SARS-CoV-2) e a doença a ele associada, a COVID-19, espalharam-se pelo mundo. O primeiro caso no Brasil foi confirmado em 26 de fevereiro de 2020 e, desde então, o número de novos casos e de óbitos por COVID-19 estão em ampla ascensão no país.
Em torno de 20% dos pacientes com COVID-19 requerem assistência médica hospitalar, principalmente devido ao quadro de desconforto respiratório.(2) Destes, cerca de 15% necessitam de cuidados em unidades de terapia intensiva (UTI). A UTI é o local onde há recursos de suporte às disfunções orgânicas, em especial à insuficiência respiratória, com o uso de ventiladores mecânicos, também conhecidos como ventiladores pulmonares.(2)
Devido à rápida progressão do número de pacientes graves com COVID-19 requerendo internação em UTI e uso de ventilação mecânica, além de outros pacientes que necessitam desse tipo de cuidado, há uma preocupação crescente quanto à disponibilidade de ventiladores mecânicos. Diante disso, médicos e profissionais de saúde podem enfrentar uma difícil decisão: quem será colocado nos ventiladores mecânicos, necessários para a manutenção da vida daqueles que apresentam a forma grave da doença, se não houver o suficiente para todos?(3-5)
Desde que fora decretada a pandemia pela Organizacao Mundial da Saúde, em 11 de março de 2020, empresas nacionais e estrangeiras alegam que o número de encomendas desses equipamentos disparou. A alta demanda de ventiladores mecânicos no mundo todo, associada à limitada capacidade produtiva da indústria e à alta complexidade na fabricação, tem dificultado e atrasado a produção, impactando na entrega dos equipamentos.
Ventiladores pulmonares são dispositivos médicos que possuem complexa tecnologia com controle volumétrico e pressométrico. Apresentam, em tempo real, curvas de pressão e volume com manômetro digital e gráficos de pressão, volume e fluxo por tempo. Os controles e funcionalidades disponíveis permitem operação em diferentes modos ventilatórios. Esses aparelhos possuem alarmes gerais (queda de energia, ciclo interrompido, queda de oxigênio, baixa carga de bateria, relação entre tempo de inspiração e expiração - I:E - invertida e desconexão do paciente) e alarmes programáveis (pressão máxima, volume máximo, frequência respiratória - FR - máxima, pressão positiva expiratória final - PEEP - e apneia), de acordo com as necessidades individuais de cada paciente. Além disso, os ventiladores apresentam ações auxiliares, como compensação de tubo, de vazamento, da complacência do circuito, ou ventilação não invasiva. Também são necessárias válvulas de sobrepressão no sistema de fornecimento de gases e no sistema do ventilador. Seu desenvolvimento requer inúmeras etapas e testes, que podem levar até 2 anos para serem executados por fabricantes comerciais.
No intuito de evitar que pacientes com COVID-19 morram sem acesso a um ventilador pulmonar, milhares de especialistas, empresários e voluntários em todo o mundo estão trabalhando para a criação de ventiladores alternativos. No Brasil, há diversas iniciativas focadas em produzir rapidamente ventiladores alternativos de baixo custo, em escala, para serem utilizados nesses pacientes.
Estão em desenvolvimento protótipos baseados em automação do respirador manual do tipo AMBU (artificial manual breathing unit), em válvula de Boussignac e em fole, reproduções do ventilador pneumático “mini-Takaoka”, e até ventiladores com válvulas e componentes eletrônicos para controles de pressões e volumes.(6) Esses protótipos têm o potencial de salvar pacientes. Porém, um equipamento criado com o intuito de salvar vidas, se não for desenvolvido de forma a atender as funcionalidades requeridas, também pode causar danos irreversíveis e fatais.
DESAFIO PARA DESENVOLVEDORES
Um dos desafios para o desenvolvimento de ventiladores alternativos é a falta de conhecimento sobre fisiologia, mecânica respiratória e mecanismos de lesão pulmonar induzida pela ventilação mecânica pelos profissionais sem formação na área da saúde.
Os cursos de engenharia biomédica enfatizam a necessidade de obter conhecimento sobre conceitos médicos, por isso muitas aulas são ministradas por profissionais da área da saúde.(7) O conhecimento dos modos e das ciclagens disponíveis nos ventiladores é o melhor caminho para uma ventilação mecânica segura e eficiente(8) e para desenvolver equipamentos funcionais que atendam às necessidades individualizadas dos pacientes. De outra forma, os possíveis ventiladores tornam-se meras máquinas bombeadoras de ar, com potencial letal. Nesse sentido, são apresentados alguns conceitos básicos, sendo ainda indispensável que as equipes que se propõem a desenvolver ventiladores alternativos envolvam profissionais com domínio desse conhecimento.
Fisiologia respiratória básica
A respiração tem como objetivos o fornecimento de oxigênio e a remoção de dióxido de carbono produzido pelos tecidos do organismo.(9) Em condições normais, a inspiração é realizada pela expansão do tórax, que ocorre pela contração dos músculos inspiratórios (diafragma e intercostais externos). Esse aumento da caixa torácica diminui a pressão dentro do sistema respiratório. O ar entra nos pulmões quando a pressão nos alvéolos é menor que a pressão na abertura das vias aéreas superiores.(9)
A expiração normal é passiva e não requer trabalho algum. Os músculos relaxam, o diafragma eleva-se, retornando à posição de repouso, o volume da caixa torácica diminui, e o ar flui para fora dos alvéolos, saindo pelas vias aéreas superiores.(9,10)
As trocas gasosas entre o ar alveolar e o sangue presente nos capilares pulmonares que circundam esses alvéolos ocorrem por meio da difusão.(9,11) O oxigênio, presente em maior concentração no alvéolo, difunde-se para o capilar pulmonar, e o dióxido carbônico, presente em maior concentração no sangue do capilar, difunde-se para o interior do alvéolo.(9,11) A membrana alvéolo-capilar, na qual ocorre essa troca, é extremamente fina e delicada. Após as trocas gasosas, o sangue circula pelo organismo, transportando o oxigênio e entregando-o para as células e captando dióxido carbônico produzido por elas (Figura 1).(9)
Durante a ventilação mecânica, os gradientes de pressões que levam à entrada e à saída de ar dos pulmões são obtidos por meio de pressão positiva aplicada na abertura das vias aéreas, literalmente empurrando o ar para dentro do sistema respiratório. Esse mecanismo é o oposto do mecanismo fisiológico em ventilação espontânea. Assim, a ventilação deve ser minuciosamente ajustada para evitar efeitos deletérios.
Ventilação mecânica básica
Terminologia na ventilação mecânica
Na ventilação mecânica, há conceitos e terminologias específicos. As descrições dos termos comumente utilizados nesse contexto são:(12,13)
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- Volume corrente (VC): quantidade de ar fornecido para o paciente na fase inspiratória. Os volumes envolvidos na ventilação são geralmente expressos em litros (L) ou mililitros (mL).
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- FR: número de ciclos ventilatórios por minuto, podendo ser determinado pelo ventilador, pelo paciente ou ambos.
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- Volume-minuto (VE): volume total de ar mobilizado durante 1 minuto. Assim, VE é o produto do VC pela FR (VE = VC x FR). Pode ser calculado para a expiração e para a inspiração.
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- Pressão de pico (Ppico): pressão no sistema respiratório gerada com o VC, medida diretamente e exibida no monitor do ventilador. As pressões envolvidas na ventilação são geralmente expressas em centímetros de água (cmH2O).
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- Pressão de platô (Pplatô): pressão de distensão do parênquima pulmonar. Para sua avaliação, é necessária a utilização de pausa inspiratória (oclusão no sistema respiratório ao final da inspiração) de pelo menos 2 segundos.
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- Pico de fluxo inspiratório: mais alto fluxo de ar alcançado para insuflar o VC determinado. O fluxo pode ser fixo durante a inspiração (por exemplo, onda de fluxo constante ou “quadrada” no modo volume controlado) ou variável (por exemplo, onda de fluxo decrescente no modo volume controlado, ou nos modos pressão controlada e pressão de suporte).
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- PEEP: pressão positiva mantida no final da expiração, no intuito de prevenir o fechamento dos alvéolos ao fim da expiração.
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- Fração inspirada de oxigênio (FiO2): concentração total do oxigênio no ar inspirado. Varia de 0,21 a 1,0 (21% a 100%).
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- Sensibilidade: interpreta o esforço realizado pelo paciente para iniciar uma inspiração. A detecção pode ocorrer monitorando-se a pressão, ou o fluxo, ou um sinal relacionado à atividade neuronal.
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- Relação inspiração-expiração (I:E): relação entre o tempo da fase inspiratória pelo tempo da fase expiratória. Varia de acordo com a demanda e o objetivo da ventilação mecânica, geralmente entre 1:1 e 1:3.
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- Circuito respiratório: conjunto de tubos e conectores que saem do ventilador e levam o ar em direção ao paciente e desde o paciente, a partir da peça em “Y”, até a válvula exalatória.
Ciclo ventilatório
O ciclo ventilatório durante a ventilação mecânica com pressão positiva pode ser dividido em quatro fases (Figura 2):(14,15)
Fases do ciclo ventilatório por curva de fluxo em ventilação mecânica (modo controlado ou mandatório por volume controlado).
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Fase inspiratória: a válvula de fluxo é aberta e certo volume de ar é fornecido, vencendo as cargas elásticas e resistivas do sistema respiratório, e os pulmões são insuflados.
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Ciclagem: é a mudança da fase inspiratória para a expiratória (fim da inspiração).
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Fase expiratória: a válvula exalatória é aberta, e os pulmões esvaziam-se passivamente.
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Disparo: é a passagem da fase expiratória para a fase inspiratória (início da inspiração).
Ciclagem
É a mudança da fase inspiratória para a expiratória (e não um modo de controle dos ciclos ventilatórios). Basicamente, existem cinco tipos de ciclagem:(8,12,16)
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Ciclagem a pressão: o ciclo inspiratório é interrompido quando a pressão predeterminada é atingida. Esse é o mecanismo utilizado no ventilador Bird Mark 7. O intervalo de tempo inspiratório e o VC são variáveis e dependem da complacência e da resistência pulmonar.
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Ciclagem a tempo: o ciclo inspiratório é interrompido quando o tempo predeterminado é atingido. É o mecanismo utilizado nos modos ventilação por pressão controlada (PCV - pressure control ventilation) e volume controlado (VCV - volume control ventilation) com pausa inspiratória. O intervalo de tempo inspiratório é predeterminado e não permite interação do paciente. No modo PCV, a pressão é programada, e o VC depende da complacência e da resistência pulmonar. No modo VCV, o VC é programado, e as pressões dependem da complacência e da resistência.
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Ciclagem a volume: o ciclo inspiratório é interrompido quando o VC predeterminado é atingido. É utilizado no modo de VCV sem pausa inspiratória. O volume é assegurado, independente da complacência e da resistência pulmonar, porém as pressões podem ser variáveis.
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Ciclagem a fluxo: o ciclo inspiratório é interrompido quando o fluxo cai a níveis predeterminados (por exemplo: 25% do pico de fluxo). É o mecanismo utilizado no modo de ventilação por pressão de suporte (PSV - pressure support ventilation). O VC é variável e depende da complacência e da resistência pulmonar.
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Ciclagem neural: ocorre quando o centro respiratório no tronco encefálico interrompe a inspiração. Esse mecanismo é baseado na utilização do sinal obtido da atividade elétrica do diafragma (EAdi - electric activity of diaphragm) para o controle da ventilação, sendo exclusivo do modo ventilatório de assistência ventilatória ajustada neuralmente (NAVA - neurally adjusted ventilatory assist). A EAdi representa diretamente o impulso ventilatório central e reflete a duração e a intensidade com que o paciente deseja ventilar. Para o registro da EAdi, o sistema utiliza eletrodos incorporados em série na parte distal de um cateter esofágico.
Disparo
Na ventilação mecânica convencional, o disparo do ventilador pode ser definido pelo equipamento ou pelo esforço inspiratório apresentado pelo paciente. Os quatro tipos de disparo mais comumente encontrados são:(12,15,16)
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Disparo a tempo: ocorre quando o paciente não apresenta esforço inspiratório para deflagrar o ventilador; por exemplo: quando em sedação profunda ou bloqueio neuromuscular, ou ainda quando não há esforço inspiratório deflagrado pelo sistema nervoso central. O disparo do ventilador é baseado na FR programada no equipamento.
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Disparo a pressão: quando houver negativação da pressão no sistema indicando esforço inspiratório por parte do paciente, a válvula de fluxo se abre, permitindo o disparo e o início da fase inspiratória.
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Disparo a fluxo: tem seu funcionamento análogo ao disparo a pressão, porém o equipamento é capaz de detectar esforço inspiratório por parte do paciente, por meio da variação de fluxo no sistema.
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Disparo neural: ocorre quando o centro respiratório no tronco encefálico demanda a inspiração. Esse mecanismo de disparo é baseado na utilização do sinal obtido da EAdi durante a NAVA. Por ser um modo que trabalha em sincronia com a excitação do diafragma, há diminuição no tempo de resposta do equipamento, favorecendo o acoplamento neuroventilatório.
Modos ventilatório
Os modos ventilatórios são as maneiras pelas quais são disponibilizados e controlados os ciclos ventilatórios. Há vários modos disponíveis, incluindo a ventilação mandatória intermitente sincronizada (SIMV), mas os modos ventilatórios mais básicos no contexto de ventiladores alternativos são:(14,15,17)
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1. Modo controlado ou mandatório (CMV - continuous mandatory ventilation): o ventilador disponibiliza apenas ciclos controlados, podendo ser a volume (VCV) ou a pressão (PCV), baseados na FR programada. Ajustam-se os parâmetros de acordo com o modo escolhido. Não se realizam ajustes de sensibilidade, pois, nessa modalidade, não é permitido o disparo pelo próprio paciente. Sua principal desvantagem é que, ainda que o paciente exiba esforço inspiratório, o aparelho, nessa modalidade, não permite que o disparo ocorra em sincronia com o esforço do paciente. Pacientes sob essa condição podem evoluir com fadiga muscular respiratória e eventos adversos graves, como barotrauma. Na prática clínica, não se utiliza ventilação em modo controlado.
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1.1. VCV: o VC é fixo e determinado pelo operador. Os demais parâmetros ajustados são PEEP, pausa inspiratória, fluxo inspiratório ou tempo inspiratório (que determina o fluxo), FR e FiO2.
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1.2. PCV: a pressão inspiratória é fixa e determinada pelo operador. Os demais parâmetros ajustados são PEEP, tempo inspiratório, tempo de subida ou ascensão da pressão (rise time), FR e FiO2 (Figura 3).
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2. Modo assistido/controlado (A/C): o ventilador disponibiliza ciclos controlados e assistidos, podendo ser a pressão (PCV) ou a volume (VCV). Ou seja, se o paciente exibir esforço inspiratório, a válvula de fluxo será aberta permitindo que este receba um ciclo assistido, conforme os parâmetros estabelecidos no ventilador. Caso o paciente deixe de exibir esforços, o ventilador toma como parâmetro a FR ajustada e dispara ventilações mandatórias.
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2.1. VCV: como na ventilação controlada, o VC é fixo e determinado pelo operador. Além das demais parametrizações, ajusta-se a sensibilidade para deflagrar a ventilação assistida (Figura 4).
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2.2. PCV: como na ventilação controlada, a pressão inspiratória é fixa e determinada pelo operador. Além das demais parametrizações, ajusta-se a sensibilidade para deflagrar a ventilação assistida (Figura 5).
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3. PSV: é considerado um modo espontâneo de ventilação, em que cada respiração é iniciada e mantida pelo paciente, e os ciclos são reforçados por meio da pressão de suporte (diferença de pressão sobre a PEEP) constante durante a fase inspiratória. A ciclagem ocorre quando o fluxo diminui até um predeterminado percentual do pico de fluxo inspiratório, que pode ser automático (geralmente 25%) ou programável em ventiladores mais modernos (entre 5% e 80%). Quando essa queda no fluxo é detectada, o ventilador interrompe a pressão de suporte e permite a ciclagem. Os parâmetros ajustados são: pressão de suporte, tempo de subida ou ascensão da pressão (rise time), PEEP, sensibilidade, critério de término (percentual de queda do pico de fluxo inspiratório para ciclagem, quando disponível) e FiO2.
Pacientes com drive respiratório
Alguns dos projetos de ventiladores alternativos não levam em consideração pacientes que apresentam esforço inspiratório.Salvo condições excepcionais, a maioria dos pacientes na prática clínica apresenta esse esforço, e os ventiladores mecânicos comerciais fornecem um “reforço” sincronizado às respirações espontâneas. Os intervalos de tempo de resposta ao esforço de respiração espontânea detectado apresentam influência significativa e são intrinsicamente dependentes do tipo de sensor empregado.(18,19)
Quando o ventilador mecânico somente fornecer ventilações em modo controlado, os pacientes que apresentam esforço (drive respiratório), com sedação leve ou sem sedação, ou aqueles em desmame da ventilação mecânica, além de estarem desconfortáveis e em assincronia com o equipamento, correm grande risco de eventos adversos graves, como lesão pulmonar induzida pela ventilação mecânica, barotrauma e piora das trocas gasosas, dificultando o processo para voltarem a respirar de forma autônoma, sem uso de equipamentos. Diante dessas condições clínicas, ventiladores alternativos, que não permitem sincronia com o paciente, não devem ser utilizados para suporte de pacientes críticos por tempo prolongado.
Umidificação
Em condições normais de ventilação espontânea, o ar inalado é umidificado e aquecido durante sua passagem pelas vias aéreas, atingindo os alvéolos, saturado com água e à temperatura corporal (100% de umidade relativa e 37°C). Pacientes submetidos à ventilação mecânica perdem as funções naturais de aquecimento e umidificação dos gases inalados, o que aumenta o risco de complicações, incluindo alterações no transporte mucociliar, espessamento de secreções e entupimento das vias aéreas com muco. Essas complicações podem levar à hipotermia, hipoxemia, atelectasia e inflamação.(20-22) Desse modo, os gases inalados devem ser umidificados e aquecidos durante a ventilação mecânica com intubação traqueal.(23,24) Os ventiladores em desenvolvimento devem levar em consideração os tipos de umidificação e aquecimento a serem empregados. Sistema de umidificação ativo, por meio de aquecedor de água destilada com conexão ao circuito respiratório, não é recomendado em pacientes com COVID-19, pois, devido à condensação do vapor de água no circuito, são necessárias desconexões frequentes para retirada do líquido acumulado, levando à disseminação de aerossóis e à contaminação do ambiente. É necessário que os ventiladores permitam a conexão de sistema de umidificação passivo, por meio de filtro trocador de calor e umidade ou Heat and Moisture Exchanger (HME).
Contaminação cruzada
Para evitar a contaminação cruzada, deve-se prever que alguns componentes dos ventiladores alternativos, como válvula expiratória, válvula inspiratória e sensor de fluxo, possam passar por processo de esterilização. Isso é fundamental tanto na escolha dos materiais utilizados na fabricação desses componentes, quanto do mecanismo de fixação das peças, de modo a permitir retirada para adequada limpeza.
Também é imprescindível que os ventiladores permitam a conexão de filtro de ar com alta eficiência na separação de partículas (HEPA - high efficiency particulate arrestance) na saída exalatória do circuito respiratório, a fim de evitar a disseminação de aerossóis e a contaminação do ambiente.
Lesão pulmonar induzida pela ventilação mecânica
A ventilação mecânica é parte essencial no tratamento de pacientes com insuficiência respiratória grave. Contudo, a própria ventilação mecânica pode produzir lesão alveolar e agravar uma doença já estabelecida.(25) Os mecanismos que podem gerar lesão são barotrauma, volutrauma, biotrauma e atelectrauma.(26)
Barotrauma indica lesão pulmonar atribuída à aplicação de altas pressões, sendo suas apresentações grosseiras o pneumotórax, o pneumomediastino, o enfisema subcutâneo e a embolia gasosa.(27) Volutrauma significa lesão pulmonar induzida por altos volumes correntes.(28) O biotrauma ocorre quando há pressões e volumes demasiados, mesmo que insuficientes para causar barotrauma e volutrauma, levando à liberação de citocinas pró-inflamatórias, recrutamento de leucócitos e inflamação.(29) O biotrauma exacerbado e prolongado pode levar à disfunção de múltiplos órgãos aumentando o risco de óbito.(29)
O atelectrauma é a lesão pulmonar causada pela abertura e pelo fechamento cíclicos dos alvéolos.(30) Um modelo matemático sugere que as pressões agindo na interface entre alvéolos abertos e unidades fechadas podem chegar a 140cmH2O, mesmo com pressão de vias aéreas de 30cmH2O.(31)
A estratégia de ventilação mecânica protetora fundamenta-se em evitar esses fenômenos.(32,33) Barotrauma, volutrauma e biotrauma podem ser evitados por meio da ventilação com baixos volumes e pressões, individualizados para cada paciente. Já o atelectrauma pode ser evitado com o uso de PEEP, visando à manutenção dos alvéolos abertos, também de forma individualizada, para impedir hiperdistenção alveolar indesejada.
Desse modo, não é aconselhável que ventiladores experimentais, particularmente os baseados em AMBU, utilizem apenas válvula padrão mecânica de segurança (também conhecida como válvula pop-off), limitando a Ppico em 60cmH2O. Algumas dessas válvulas podem ser travadas manualmente de forma acidental, sem emitir sinal de alerta à equipe assistencial, o que permite que a pressão no sistema respiratório aumente consideravelmente, podendo causar lesões pulmonares graves.
REQUISITOS TÉCNICOS MÍNIMOS
Em 20 de março de 2020, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) publicou a Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) Nº 349, que definiu os critérios e os procedimentos extraordinários e temporários para tratamento de petições de regularização como equipamentos do tipo ventilador pulmonar identificados como estratégicos, em virtude da emergência de saúde pública internacional decorrente do SARS-CoV-2. Essa RDC tem validade de 180 dias a partir de sua publicação. A resolução informa que os ventiladores, para fins de registro ou cadastro, poderão excepcionalmente apresentar certificados do Programa de Auditoria Única em Produtos para a Saúde (MDSAP - Medical Device Single Audit Program) ou da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) NBR ISO 13485:2016,(34) em substituição ao Certificado de Boas Práticas de Fabricação, e serem dispensados da certificação no âmbito do Sistema Brasileiro de Avaliação da Conformidade (SBAC). Isso não significa que os fabricantes e/ou desenvolvedores de ventiladores estão isentos da comprovação de atendimento aos regulamentos aplicáveis. Por isso, o desenvolvimento de ventiladores requer que testes específicos sejam realizados de acordo com os critérios descritos pela ABNT. Recomenda-se fortemente leitura cuidadosa da ABNT NBR 60601-1, da ABNT NBR ISO 80601-2-12 e da Nota Técnica Orientativa 001/2020 da ANVISA durante o processo de desenvolvimento desses equipamentos (Tabela 1).(35-37) Além dessas normas técnicas, recomenda-se também a leitura adicional da Prática Recomendada ABNT PR 1003:2020 sobre ventiladores pulmonares para cuidados críticos, contendo requisitos e orientações aplicáveis à segurança e ao desempenho para projeto e fabricação, que possui prazo de vigência atrelado à RDC 349/2020.(38) Esse documento descreve os diversos tipos de ventiladores pulmonares (para cuidados críticos, de transporte/emergência, para uso domiciliar, para apneia do sono, etc.) e deixa clara a distinção deles com o respirador manual, também conhecido como AMBU, que não possui controles, sistemas de proteção e alarmes, além de suas válvulas terem sido projetadas para uso manual em curtos intervalos de tempo, não estando indicados para terapias de longo prazo.
Requisitos mínimos necessários para atendimento dos ensaios de segurança elétrica e desempenho
Vale ressaltar que, apesar de a RDC 349/2020 informar que, excepcionalmente, os produtos estão dispensados da apresentação de certificação no âmbito do SBAC, essa RDC não isenta os fabricantes, importadores e desenvolvedores desses produtos de atenderem aos requisitos de segurança e eficácia, conforme a RDC 56/2001, para fins de registro ou cadastro, além de outros regulamentos aplicáveis.
Além das normativas técnicas já descritas e dos requisitos de cunho regulatório detalhados adiante, em abril de 2020, a Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) tornou pública uma nota técnica médica sobre características de ventiladores mecânicos no suporte ao paciente com COVID-19.(39) Nessa nota, a associação enfatiza que os requisitos foram definidos diante de uma situação de exceção decorrente do grande número de pacientes com necessidade de ventilação mecânica e devem estar presentes, independentemente do tipo de ventilador.(39) Os requisitos mínimos exigidos encontram-se na Tabela 1.
PESQUISA E DESENVOLVIMENTO DE VENTILADORES
Outro desafio para desenvolvedores é o desconhecimento dos requisitos mínimos dos testes durante as fases iniciais do projeto de pesquisa e desenvolvimento desses equipamentos. Atualmente, o uso de processos criativos e de metodologias ágeis é bastante difundido no contexto de desenvolvimento de produtos e tem o intuito de agilizar a validação inicial do protótipo. Importante ressaltar que os resultados de testes realizados nessa etapa devem compor a documentação requerida pela autoridade regulatória, quando iniciado o processo para obtenção do registro do produto junto à ANVISA, sendo fundamental que os testes sejam cumpridos de acordo com as normativas vigentes.
Estudos pré-clínicos de bancada
O ventilador alternativo em desenvolvimento precisa ser submetido a uma série de testes que visam determinar requisitos de segurança básica e desempenho. Além dos testes técnicos relacionados à operacionalidade com segurança, faz-se necessário avaliar seu desempenho em pulmão simulador, que possa ser ajustado com diferentes cargas, permitindo a simulação de características próximas às pulmonares, com diferentes capacidades, resistências e complacências.
O “pulmão teste” que é disponibilizado junto aos ventiladores mecânicos comerciais é utilizado apenas como recurso para testar a atividade do equipamento à beira do leito, antes de ser conectado ao paciente. Ele não possibilita a avaliação do desempenho que o equipamento poderia apresentar em termos de volume, fluxo, pressões, tempo inspiratório e expiratório. Este é um dos problemas encontrados no desenvolvimento de ventiladores alternativos, pois o algoritmo de controle do pulmão simulador deve ser adaptativo, para conseguir realizar a ventilação de modo correto em pulmões reais que, além de variarem dinamicamente suas características de complacência e resistência durante os mais diversos ciclos respiratórios, também podem apresentar comportamento não linear.
É fundamental documentar o desempenho do equipamento registrando todas as variáveis testadas (VC, fluxo, pressão inspiratória, Pplatô, PEEP, tempo inspiratório e expiratório) sob os diversos cenários avaliados. Além disso, é necessário mensurar a FiO2 fornecida por meio de misturador de gases.
Estudos pré-clínicos em modelo animal
Após a validação dos requisitos mínimos, conforme as normas técnicas de segurança e de desempenho, o próximo passo envolve a realização de testes em modelo animal. Autópsias de pacientes que faleceram por COVID-19 evidenciaram dano alveolar difuso, caracterizado pela formação de membrana hialina nos alvéolos, acúmulo de células inflamatórias, congestão intersticial por edema e proliferação de fibroblastos na fase de organização.(40,41) Testes pré-clínicos envolvendo animais com pulmões hígidos provavelmente não refletirão o comportamento que pacientes com infecção por SARS-CoV-2 apresentariam caso fossem ventilados com os ventiladores experimentais. Nesse sentido, é fundamental que os testes sejam realizados em animais preparados com modelos validados de lesão pulmonar aguda.
Há diversos modelos animais descritos na literatura.(42,43) A maioria é baseada em distúrbios clínicos que estão associados à síndrome do desconforto respiratório agudo (SDRA) em humanos.(43) Infelizmente, nenhum modelo animal de SDRA é capaz de replicar as complexas alterações fisiopatológicas observadas nos pacientes.(44) Os modelos que apresentam boa reprodutibilidade são baseados em suínos ou ovinos(43,45) após a administração intravenosa de lipopolissacarídeos (LPS),(45) lavagem total do surfactante seguida de ventilação mecânica lesiva (com altos volumes e pressões),(46) injeção intravenosa de ácido oleico(45) ou administração intratraqueal de ácido clorídrico.(47)
Espera-se que os ventiladores alternativos em desenvolvimento disponibilizem níveis de PEEP adequados para recrutar alvéolos colapsados, controles de volumes correntes e pressões inspiratórias adequadas para proteger os pulmões de agravamento da lesão já estabelecida e que sejam capazes de manter trocas gasosa satisfatórias por períodos prolongados de ventilação mecânica. É fundamental documentar todos os procedimentos realizados nos testes pré-clínicos com animais, parâmetros ventilatórios ajustados, sinais vitais e resultados de gasometria arterial, a fim de compor o dossiê para notificação e registro de produto junto à ANVISA. Além disso, vale ressaltar de que a pesquisa com animais deve ser conduzida em conformidade com as disposições regulamentares que abrangem cuidado de animais e a autorização obrigatória mediante avaliação por um Comitê de Ética em Pesquisa Animal.
Estudos clínicos
Um estudo clínico é uma investigação sistemática para testar uma hipótese, envolvendo participantes humanos. Diferentes metodologias são usadas nos estudos clínicos. Estudos observacionais avaliam pacientes enquanto recebem cuidados médicos de rotina, enquanto os ensaios clínicos contêm uma intervenção a ser testada e determinam dados de segurança e/ou eficácia da intervenção sob avaliação. Cada estudo clínico possui um Plano de Investigação Clínica (mais detalhes na seção ‘Submissão do dossiê de investigação clínica’). O início de qualquer pesquisa envolvendo seres humanos deve ser autorizado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e, em casos de estudos multicêntricos, pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), cuja submissão é realizada via Plataforma Brasil.(48)
Todo participante do estudo deve assinar um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido no início de um estudo, antes de quaisquer procedimentos relacionados à pesquisa. Toda a condução do estudo clínico deve seguir rigorosamente as Boas Práticas Clínicas em pesquisa clínica.(49)
ETAPAS NO PROCESSO REGULATÓRIO
O processo regulatório de dispositivos médicos no escopo sanitário visa à aplicação de requisitos técnico-normativos durante todo o ciclo de vida dos produtos, seja antes de sua comercialização (pré-mercado) ou após (pós-mercado). Assim, a regulação inicia-se pela verificação dos requisitos de boas práticas de fabricação; da concepção, etapas de verificação e validação de projeto; do gerenciamento de riscos do produto; da validação clínica; das condições de rastreabilidade; da assistência técnica preventiva e corretiva; da tecnovigilância dos dispositivos no mercado; da desativação e do descarte.
Todos os processos são orgânicos e constantemente retroalimentados pelos responsáveis pela cadeia de desenvolvimento, fabricação e disponibilização do equipamento ao usuário final. Juridicamente, a responsabilização pela manutenção dos requisitos técnico-legais é do Responsável Legal e do Responsável Técnico da pessoa jurídica que submete o pedido de regularização.
A cronologia das etapas pré-mercado que envolvem peticionamento junto à ANVISA encontra-se identificada na figura 6. Observam-se, em destaque, atos administrativos extraordinários e temporários implementados para atendimento à necessidade de acesso aos dispositivos para atendimento à pandemia de COVID-19.
Etapas para a obtenção da regularização pré-mercado de dispositivos médicos.
ANVISA - Agência nacional de Vigilância Sanitária; AFE - Autorização de Funcionamento de Empresa; CBPF - Certificação de Boas Práticas de Fabricação; RDC - Resolução de Diretoria Colegiada. * Disposições extraordinárias e temporárias para atendimento à emergência de saúde pública relacionada ao coronavírus da síndrome respiratória aguda grave 2.
Regularização da empresa junto à ANVISA
Antes de regularizar qualquer dispositivo médico na ANVISA, é imperativo que a empresa responsável esteja regularizada junto à Vigilância Sanitária local, que pode realizar inspeção no estabelecimento avaliando as condições técnicas e operacionais para realizar da atividade produtiva, emitindo a licença ou o alvará de funcionamento, e junto à ANVISA, por meio da obtenção da Autorização de Funcionamento de Empresa (AFE) para a fabricação de produtos para a saúde, conforme preconizado pela RDC 16/2014.
Ademais, para empresas que produzem produtos para a saúde de alto e máximo riscos (classes III e IV), a RDC 15/2014 preconiza a obtenção do Certificado de Boas Práticas de Fabricação (CBPF) emitido pela ANVISA.
Registro de produto médico
A RDC 185/2001 é destinada ao registro de dispositivos médicos, incluindo os de classe de risco III, como são classificados os ventiladores para cuidados críticos e os ventiladores para transporte e emergência. O registro desses equipamentos deve ser requisitado por meio de apresentação à ANVISA, por meio de uma petição de solicitação conforme documentos e informações indicadas na RDC 185/2001. O corpo técnico da ANVISA analisa o processo e delibera sobre o deferimento do pleito, sendo que (e quando necessário) pode solicitar informações e documentos complementares. É fundamental, para o andamento ágil desse processo, que as resoluções que versam sobre o registro sejam interpretadas corretamente. Para facilitar o processo, a ANVISA disponibiliza um manual completo para auxiliar os fabricantes e os importadores de equipamentos médicos.(50) Nesse manual, estão informações gerais sobre o processo de submissão e a descrição detalhada do fluxograma para solicitação do registro, descritas brevemente a seguir:(50)
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Passo 1 - regularização da empresa fabricante junto à Vigilância Sanitária: compreende a obtenção da AFE junto à ANVISA e a Licença de Funcionamento (LF) junto à Vigilância Sanitária do município ou do estado, também conhecida por Alvará de Funcionamento (AF). Além disso, a empresa fabricante precisa atender aos requisitos de Boas Práticas de Fabricação.
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Passo 2 - identificação sanitária do equipamento: corresponde à sua identificação e sua classificação (conforme risco e finalidade). Também é verificado se o equipamento necessita de certificações e relatórios complementares para obtenção do registro, cadastro ou notificação, como, por exemplo, identificação sanitária do equipamento ou relatório de informações econômicas.
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Passo 3 - identificação da petição: se o dispositivo em questão é sujeito a registro, cadastro ou notificação na ANVISA.
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Passo 4 - peticionamento eletrônico: é a ação que dá início, efetivamente, à solicitação de registro do dispositivo médico na ANVISA.
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Passo 5 - protocolo da petição.
Resoluções publicadas no contexto da pandemia
O manual disponibilizado pela ANVISA(50) não inclui as mais recentes RDCs relacionadas à regularização dos dispositivos médicos diante da pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2. A seguir, apresenta-se breve descrição de cada alteração normativa publicada desde o início da pandemia, em março de 2020:
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- RDC 346/2020 da ANVISA: define os critérios e os procedimentos extraordinários e temporários para a certificação de boas práticas de fabricação para fins de registro e alterações pós-registro de insumo farmacêutico ativo, medicamento e produtos para saúde, em virtude da emergência de saúde pública internacional do novo coronavírus.
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- RDC 349/2020 da ANVISA: define os critérios e os procedimentos extraordinários e temporários para tratamento de petições de regularização de equipamentos de proteção individual, de equipamentos médicos do tipo ventilador pulmonar e de outros dispositivos médicos identificados como estratégicos pela ANVISA, em virtude da emergência de saúde pública internacional decorrente do novo coronavírus. Publicada no Diário Oficial da União (DOU) número 55, de 20 de março de 2020.
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- RDC 356/2020 da ANVISA: dispõe, de forma extraordinária e temporária, sobre os requisitos para fabricação, importação e aquisição de dispositivos médicos identificados como prioritários para uso em serviços de saúde, em virtude da emergência de saúde pública internacional relacionada ao SARS-CoV-2. Publicada no DOU extra número 56-C, de 23 de março de 2020. Republicada no DOU extra número 57-C, de 24 de março de 2020 e no DOU número 62, de 31 de março de 2020.
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- RDC 386/2020 da ANVISA: define os critérios e os procedimentos extraordinários e temporários para obtenção da Anuência Excepcional para Fabricação, Comercialização e Doação de Equipamentos de Suporte Respiratório Emergencial e Transitório do tipo “Ambu Automatizado”. Publicada no DOU número 92-B, de 15 de maio de 2020.
Submissão do dossiê de investigação clínica
Importante ressaltar que, além do processo de regularização do dispositivo médico junto à ANVISA, é necessária a avaliação clínica, por meio da realização de ensaios clínicos, nos casos em que a tecnologia aplicada ou a indicação e finalidade de uso sejam inovadoras. Entende-se como inovadoras, por exemplo, a adaptação de um dispositivo para acumular nova finalidade de uso de forma que não exista, no mercado, tecnologia semelhante, ou a inclusão de uma indicação de uso não consagrada para um dispositivo médico já existente no mercado.
Em abril de 2020, foi emitida a RDC 375/2020 que dispõe, de forma extraordinária e temporária, sobre o regime para a submissão de ensaios clínicos utilizados para a validação de dispositivos médicos de classes III e IV identificados como prioritários para uso em serviços de saúde, em virtude da emergência de saúde pública internacional relacionada ao SARS-CoV-2. Os ensaios clínicos que se enquadrarem nessas características podem ser submetidos na forma de notificação em pesquisa clínica. Esta notificação de ensaio clínico deve ser composta pelos seguintes documentos:(51)
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a) Formulário de apresentação de ensaio clínico devidamente preenchido, disponível no sítio eletrônico da ANVISA.(51)
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b) Comprovante de pagamento, ou de isenção, da Taxa de Fiscalização de Vigilância Sanitária (TFVS), mediante Guia de Recolhimento da União (GRU).
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c) Protocolo de ensaio clínico, de acordo com as Boas Práticas Clínicas em pesquisa.(49)
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d) Comprovante de que o ensaio clínico está registrado na base de dados de registro de pesquisas clínicas International Clinical Trials Registration Plataform (ICTRP) ou outras reconhecidas pelo International Commite of Medical Journals Editors (ICMJE).
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e) Parecer consubstanciado do CEP emitido para o primeiro centro de ensaio clínico a encaminhar o protocolo para análise.
A ANVISA deve conceder a anuência prévia acerca do ensaio clínico, considerando que este será destinado ao futuro registro de um dispositivo médico ou à alteração das indicações clínicas originalmente previstas no registro. Assim, a ANVISA precisa avaliar os aspectos metodológicos do ensaio, no que tange à capacidade de subsidiar as evidências de segurança e eficácia nos casos listados, bem como elementos de Boas Práticas Clínicas associadas ao ensaio clínico. O rito de submissão de ensaios clínicos deve seguir o trâmite apresentado na figura 7.(52)
Rito de submissão de ensaios clínicos para Comitê de Ética em Pesquisa, Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e Agência Nacional de Vigilância Sanitária.
CEP - Comitê de Ética em Pesquisa; ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária; RDC - Resolução de Diretoria Colegiada; CONEP - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa.
Importante ressaltar que, diante da pandemia de COVID-19, mudanças neste cenário regulatório podem ocorrer, e as mais recentes atualizações estarão disponíveis no website da ANVISA.
CONCLUSÃO
A ventilação mecânica envolve mais do que bombear ar para os pulmões dos pacientes. São necessários vários ajustes precisos e simultâneos de pressões nas vias aéreas, volume corrente, fração inspirada de oxigênio, frequência respiratória, relação I:E, dentre outros. Desenvolver um ventilador de baixo custo e rápida fabricação que atenda a esses requisitos não é uma tarefa simples. É necessário seguir métodos cientificamente validados durante o desenvolvimento e a pesquisa de dispositivos médicos.
Os desafios são potencializados com as exigências regulatórias. Existe um esforço genuíno das autoridades regulatórias em reduzir os requisitos necessários e dar celeridade ao processo de avaliação, porém não é possível abrir mão de requisitos necessários para a segurança, do ponto de vista sanitário da população.
No entanto, gestores, profissionais da saúde que atuam na linha de frente e, principalmente, a população estão confiantes que algum (ou vários) dos projetos em andamento atenderá as especificações técnicas requeridas e poderá, em breve, preencher essa lacuna e contribuir para evitar que mais vidas sejam perdidas nessa pandemia.
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Editor responsável: Felipe Dal-Pizzol
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
12 Out 2020 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2020
Histórico
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Recebido
27 Maio 2019 -
Aceito
12 Jun 2020