RESUMO
Objetivo: Descrever as práticas clínicas atuais relacionadas à utilização de cânula nasal de alto fluxo por intensivistas pediátricos brasileiros e compará-las com as de outros países.
Métodos: Para o estudo principal, foi administrado um questionário a intensivistas pediátricos em países das Américas do Norte e do Sul, Ásia, Europa e Austrália/Nova Zelândia. Comparou-se a coorte brasileira com coortes dos Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e Índia.
Resultados: Responderam ao questionário 501 médicos, dos quais 127 eram do Brasil. Apenas 63,8% dos participantes brasileiros tinham disponibilidade de cânula nasal de alto fluxo, em contraste com 100% dos participantes no Reino Unido, no Canadá e nos Estados Unidos. Coube ao médico responsável a decisão de iniciar a utilização de uma cânula nasal de alto fluxo segundo responderam 61,2% dos brasileiros, 95,5% dos localizados no Reino Unido, 96,6% dos participantes dos Estados Unidos, 96,8% dos médicos canadenses e 84,7% dos participantes da Índia; 62% dos participantes do Brasil, 96,3% do Reino Unido, 96,6% dos Estados Unidos, 96,8% do Canadá e 84,7% da Índia relataram que o médico responsável era quem definia o desmame ou modificava as regulagens da cânula nasal de alto fluxo. Quando ocorreu falha da cânula nasal de alto fluxo por desconforto respiratório ou insuficiência respiratória, 82% dos participantes do Brasil considerariam uma tentativa com ventilação não invasiva antes da intubação endotraqueal, em comparação com 93% do Reino Unido, 88% dos Estados Unidos, 91,5% do Canadá e 76,8% da Índia. Mais intensivistas brasileiros (6,5%) do que do Reino Unido, Estados Unidos e Índia (1,6% para todos) afirmaram utilizar sedativos com frequência concomitantemente à cânula nasal de alto fluxo.
Conclusão: A disponibilidade de cânulas nasais de alto fluxo no Brasil ainda não é difundida. Há algumas divergências nas práticas clínicas entre intensivistas brasileiros e seus colegas estrangeiros, principalmente nos processos e nas tomadas de decisão relacionados a iniciar e desmamar o tratamento com cânula nasal de alto fluxo.
Descritores: Cânula; Oxigenoterapia; Cuidados críticos; Ventilação não invasiva; Insuficiência respiratória; Unidades de terapia intensiva pediátrica; Inquéritos e questionários; Brasil; Estados Unidos; Canadá; Reino Unido; Índia
ABSTRACT
Objective: To describe current clinical practices related to the use of high-flow nasal cannula therapy by Brazilian pediatric intensivists and compare them with those in other countries.
Methods: A questionnaire was administered to pediatric intensivists in North and South America, Asia, Europe, and Australia/New Zealand for the main study. We compared the Brazilian cohort with cohorts in the United States of America, Canada, the United Kingdom, and India
Results: Overall, 501 physicians responded, 127 of which were in Brazil. Only 63.8% of respondents in Brazil had a high-flow nasal cannula available, in contrast to 100% of respondents in the United Kingdom, Canada, and the United States. The attending physician was responsible for the decision to start a high-flow nasal cannula according to 61.2% respondents in Brazil, 95.5% in the United Kingdom, 96.6% in the United States, 96.8% in Canada, and 84.7% in India. A total of 62% of respondents in Brazil, 96.3% in the United Kingdom, 96.6% in the United States, 96.8% in Canada, and 84.7% in India reported that the attending physician was responsible for the decision to wean or modify the high-flow nasal cannula settings. When high-flow nasal cannula therapy failed due to respiratory distress/failure, 82% of respondents in Brazil would consider a trial of noninvasive ventilation before endotracheal intubation, compared to 93% in the United Kingdom, 88% in the United States, 91.5% in Canada, and 76.8% in India. More Brazilian intensivists (6.5%) than intensivists in the United Kingdom, United States, and India (1.6% for all) affirmed using sedatives frequently with high-flow nasal cannulas.
Conclusion: The availability of high-flow nasal cannulas in Brazil is still not widespread. There are some divergences in clinical practices between Brazilian intensivists and their colleagues abroad, mainly in processes and decision-making about starting and weaning high-flow nasal cannula therapy.
Keywords: Cannula; Oxygen inhalation therapy; Intensive care; Noninvasive ventilation; Respiratory insufficiency; Intensive care units, pediatric; Surveys and questionnaires; Brazil; United States; Canada; United Kingdom; India
INTRODUÇÃO
O tratamento com a cânula nasal de alto fluxo (CNAF) é uma terapia relativamente recente para ventilação não invasiva (VNI), que parece ser bem tolerada em crianças.(1,2) A CNAF tem sido utilizada para muitas finalidades distintas, variando de tratamento de primeira linha para crianças com bronquiolite viral, síndrome do desconforto respiratório agudo leve e pneumonia, até prevenção de falência após extubação.(1,3) Embora ainda existam muitos mecanismos fisiológicos desconhecidos relacionados à função da CNAF, acredita-se que ela suporte a respiração ao reduzir o trabalho respiratório,(4-6) diminuindo o dispêndio energético do paciente ao fornecer gás inalado umidificado e aquecido, melhorando a complacência pulmonar, reduzindo o espaço morto e aumentando a depuração mucociliar pulmonar.(7,8)
Não existem diretrizes amplamente aceitas com relação às melhores práticas clínicas na utilização da CNAF. A falta de evidência pode também ter levado a uma significante variabilidade na prática relacionada aos critérios clínicos para iniciar, desmamar e cessar o uso desse tipo de suporte respiratório, o que levanta questões relativas ao retardo no escalonamento necessário com morbidade associada, assim como ao maior tempo de permanência no hospital de pacientes tratados com CNAF. Um inquérito recentemente publicado, que envolveu intensivistas pediátricos, revelou diferenças importantes nas práticas diárias no mundo.(9) Não há dados relativos à disponibilidade e nem às práticas clínicas relativas aos intensivistas pediátricos brasileiros no que se refere à CNAF.
Este estudo teve o objetivo de descrever as práticas atuais relacionadas à utilização da CNAF por intensivistas pediátricos brasileiros e compará-las com as de seus colegas de outros países, em uma análise de subgrupo de um inquérito mundial.(9
MÉTODOS
Este estudo é uma análise post hoc dos dados colhidos em um inquérito realizado em colaboração com diversas sociedades regionais de terapia intensiva pediátrica.(9) Aplicou-se um questionário transversal a médicos atuantes em unidade de terapia intensiva (UTI) pediátrica nas Américas do Norte e do Sul, Ásia, Europa e Austrália/Nova Zelândia. A construção do inquérito e suas características foram descritas em outra publicação.(9) O inquérito foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Alberta, Canadá, e do Hospital Santa Catarina, em São Paulo (SP). O inquérito também foi aprovado pela AMIBnet, que é a área de pesquisa da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB). O inquérito foi distribuído por e-mail a intensivistas pediátricos registrados na AMIB em outubro de 2018. Um segundo e-mail foi enviado 2 meses mais tarde para incrementar o número de participantes.
A partir dos dados consolidados, conduziu-se uma análise secundária para comparar as práticas no Brasil, no Reino Unido, na Índia, nos Estados Unidos e no Canadá. Esses países foram selecionados por terem no inquérito tamanhos de amostra comparáveis. Decidiu-se comparar a coorte brasileira com as da América do Norte (Estados Unidos e Canadá) e com o Reino Unido, como representantes de países de alta renda, e com a coorte da Índia, como país com fundamentos econômicos semelhantes aos do Brasil. Esses países também tiveram no inquérito amostras de tamanho comparável.
O conteúdo do questionário compreendeu as características dos intensivistas e dos hospitais, a prática relacionada com a CNAF, o tratamento de suporte e a pesquisa de CNAF, assim como se criaram questões específicas em cada um desses domínios. A versão final do inquérito foi desenvolvida utilizando REDCap com salvaguardas apropriadas para manter a confidencialidade. Incluíram-se todos os médicos atuantes em UTI pediátrica ativos por ocasião do inquérito.
Os dados descritivos são expressos como a proporção (%) de participantes. Para comparar as proporções entre os pares de respostas, utilizamos o teste do qui-quadrado de Pearson com o procedimento de Marascuilo, para testar simultaneamente as diferenças entre todos os pares de proporções. Todos os testes estatísticos foram realizados com utilização do programa R, versão 3.6.1 (The R Foundation for Statistical Computing, 2019).
RESULTADOS
Analisamos as respostas de 501 participantes de cinco países (Brasil: 127; Reino Unido: 81; Estados Unidos: 146; Canadá: 62 e Índia: 85 participantes). A taxa de respostas para os intensivistas brasileiros foi de 44,8%.
Em comparação aos demais países, os participantes do Brasil tinham menos anos de prática clínica, e as UTIs pediátricas eram predominantemente unidades mistas (clínico-cirúrgicas e clínico-cirúrgicas e cardíacas, 90,5%) em proporções similares às dos Estados Unidos e do Reino Unido, porém diferentes das do Canadá e da Índia (Figura 1). O número de leitos de UTI pediátrica por unidade diferiu significantemente entre o Brasil e o Reino Unido e entre o Brasil e os Estados Unidos: tanto no Reino Unido quanto nos Estados Unidos, a maior proporção das UTIs tinham mais de 16 leitos. Dentre os participantes brasileiros, 28% não sabiam o número de admissões anuais nas UTIs pediátricas, enquanto 53,6% dos participantes informaram admissões entre 200 e 1.000 pacientes ao ano (Figura 2).
O perfil acadêmico também foi distinto no Brasil, onde 52,8% dos participantes disseram que seus hospitais eram ligados à universidade, em comparação com 96% no Reino Unido, 92,5% nos Estados Unidos, 98,4% no Canadá (p < 0,001) e 65,9% na Índia (p = 0,002).
Quanto aos tipos de suporte respiratório disponíveis, apenas 63,8% dos participantes no Brasil tinham disponibilidade de CNAF em suas instituições, em contraste com os demais países (100% no Reino Unido, no Canadá e nos Estados Unidos e 97,6% na Índia (p < 0,001)). As proporções foram similares para disponibilidade de VNI (94,5% no Brasil, 98,8% no Reino Unido, 98,6% nos Estados Unidos, 98,4% no Canadá e 95,3% na Índia (p ≥ 0,1). Ventilação oscilatória de alta frequência (VOAF) estava disponível para 53,3% dos participantes no Brasil, 95% no Reino Unido, 97,3% nos Estados Unidos, 96,8% no Canadá e 80% na Índia (p < 0,001). Oxigenação por membrana extracorpórea estava disponível para 24,4% dos participantes do Brasil, 66,7% do Reino Unido, 56,3% dos Estados Unidos, 75,8% do Canadá e 48,2% da Índia (p < 0,001).
Decisões e aplicações na prática com cânula nasal de alto fluxo
Os intensivistas participantes eram responsáveis pela decisão de iniciar o uso de CNAF em 61,2% das respostas do Brasil, em comparação com 95% do Reino Unido, 96,6% dos Estados Unidos, 96,8% do Canadá e 84,7% da Índia (p < 0,001). O fisioterapeuta foi apontado como responsável por 25% no Brasil, 4% no Reino Unido (p < 0,001), 21% nos Estados Unidos (p = 0,5), 37% no Canadá (p = 0,06) e 1% na Índia (p < 0,001).
Para a decisão de desmamar ou modificar as regulagens da CNAF, 62% dos participantes disseram que os intensivistas encarregados eram os responsáveis pela decisão no Brasil (Tabela 1). A decisão era muito menos frequentemente tomada por pessoas em treinamento, como estagiários no Brasil (8,7%), ao contrário do observado com 86,4% no Reino Unido, 82,2% nos Estados Unidos, 75,8% no Canadá e 52,9% na Índia (p < 0,001 para todos).
Marcadores clínicos utilizados para avaliar a eficácia da cânula nasal de alto fluxo e orientar o desmame
Apenas 3,1% dos participantes brasileiros responderam que a CNAF era utilizada nas enfermarias gerais, enquanto era utilizado em 56,8% no Reino Unido, 59,6% nos Estados Unidos, 46,8% no Canadá e 17,6% na Índia (p < 0,001 para todos). Nas unidades de alta dependência ou unidades semi-intensivas pediátricas, 5,5% utilizavam no Brasil, 70,4% no Reino Unido, 26% nos Estados Unidos, 19,4% no Canadá e 24,7% na Índia (p < 0,001 para todos). No pronto-socorro, as proporções foram de 22% no Brasil, 38,3% no Reino Unido (p = 0,01), 56,8% nos Estados Unidos (p < 0,001), 42% no Canadá (p = 0,002) e 9,4% na Índia (p = 0,01). Na UTI neonatal, 11,8% relataram o uso no Brasil, 37% no Reino Unido, 48,6% nos Estados Unidos, 40,3% no Canadá e 30,6% na Índia (p < 0,001 para todos).
As respostas relativas a indicações clínicas, diagnósticos, tamanho das cânulas e existência de uma política escrita ou protocolo são resumidas na tabela 2.
Respostas relativas a indicações clínicas, diagnósticos, tamanho da cânula e existência de um protocolo escrito
Cenários clínicos
Caso 1
Uma criança com 4 meses de idade (8kg de peso) foi admitida à UTI pediátrica com desconforto respiratório moderado por bronquiolite/pneumonia. Com o plano para iniciar CNAF como tratamento primário do desconforto respiratório, foram feitas perguntas relacionadas às taxas de fluxo inicial e máxima. A maioria dos participantes concordou em iniciar o uso da CNAF com 1 - 2L/kg/minuto em todos os grupos, porém as proporções foram diferentes entre o Brasil e o Reino Unido (p = 0,009), Índia (p = 0,02), Canadá (p = 0,03) e Estados Unidos (p = 0,00). A maioria dos participantes também considerou aumentar a taxa máxima de fluxo entre 2 e 3L/kg/minuto, embora as proporções tenham diferido entre Brasil e Reino Unido (p = 0,000) e Estados Unidos (p = 0,03). Fluxos iniciais fixos variaram entre 2L/minuto e 12L/minuto. As respostas relativas às taxas de fluxo inicial e máxima se encontram na figura 3.
Quando não houve melhora do desconforto respiratório apesar do uso de CANF com a taxa de fluxo máxima, 82% dos participantes brasileiros considerariam uma tentativa com VNI (por exemplo, pressão contínua positiva em vias aéreas - CPAP, VNI de duplo nível) para seus pacientes antes de prosseguir para intubação endotraqueal, semelhantemente à Índia, com 76,8% (p = 0,2), enquanto 93% tomariam essa atitude no Reino Unido (p = 0,03), 88% nos Estados Unidos (p = 0,42) e 92,5% no Canadá (p = 0,14).
Caso 2
Uma criança de 10 anos (30kg de peso) até então saudável foi admitida à UTI pediátrica com desconforto respiratório moderado por pneumonia. Com um plano de iniciar o uso de CNAF como tratamento primário para o desconforto respiratório, as respostas relativas às taxas de fluxo inicial e máxima podem ser observadas na figura 4. A proporção de respostas para fluxo inicial para uma criança com 30kg foi similar para Brasil e Índia (p = 0,06), porém foram distintas entre o Brasil e cada um dos demais países. Uma proporção significante de participantes preferiu 1L/kg/minuto para início em todos os grupos. Os fluxos iniciais fixos variaram entre 8L/minuto e 50L/minuto. Outras respostas incluíram valores intermediários, como 1,5L/kg/minuto. Para aumento do fluxo, as proporções foram similares entre o Brasil e os Estados Unidos, porém diferiram entre o Brasil e cada um dos demais países. Os fluxos fixos de aumento variaram entre 20L/minuto e 50L/minuto.
Quando não houve melhora do desconforto respiratório apesar da CNAF em taxa máxima de fluxo para essa criança, 81,3% dos participantes do Brasil considerariam uma tentativa de VNI para esse paciente, antes da intubação endotraqueal, em comparação com 90,8% do Reino Unido (p = 0,05), 96,2% dos Estados Unidos (p < 0,001), 96,6% do Canadá (p < 0,001) e 76,8% da Índia (p = 0,56).
A estratégia preferida para desmame da CNAF para pacientes com doença respiratória primária foi desmame da fração inspirada de oxigênio (FiO2) para um valor específico (mais frequentemente 0,4) e, subsequentemente, desmamar a taxa de fluxo.
Para administrar broncodilatadores inalados ao paciente com CNAF, a maioria dos médicos no Brasil preferiu inaladores dosimetrados com espaçador, com ou sem remoção da CNAF (68,3%). Nos demais países, a preferência foi por nebulização por meio do sistema da CNAF com nebulizador especial em linha, como nebulizador de malha vibratória, ou nebulizador comum em linha com ou sem a remoção da CNAF, com 88,5% no Reino Unido, 90,2% na Índia e 79% nos Estados Unidos.
O uso de uma sonda nasogástrica para descompressão gástrica não foi consensual. Foi relatado como frequente por apenas 7,4% dos participantes do Brasil e 42% dos do Reino Unido (p < 0,001), 15% dos Estados Unidos (p = 0,07), 30,6% do Canadá (p < 0,001) e 22,4% da Índia (p = 0,002).
A maioria dos entrevistados alimentaria o paciente com CNAF por meio de sondas enterais, ao invés de alimentar por via oral, no Reino Unido (91,9% versus 9,1%, p < 0,001) e Canadá (75,4% versus 24,6% p = 0,002). No Brasil, 55% prefeririam sondas enterais versus 45% a via oral (p = 0,07); nos Estados Unidos, 49,6% escolhem sondas enterais versus 45,6% a via oral (p = 0,7), e 4,8% não dariam alimentação enteral ou oral. Na Índia, 67,2% optam por sondas enterais versus 32,8% que optam pela via oral (p = 0,07).
Apenas 6,5% dos participantes brasileiros responderam que utilizam frequentemente sedativos para pacientes com CNAF, 1,6% no Reino Unido, Índia e Estados Unidos e 1,8% no Canadá. O uso foi relatado como ocasional ou infrequente por 74% no Brasil, 84% no Reino Unido, 81,7% nos Estados Unidos, 82,5% no Canadá e 65,6% na Índia. As proporções de “nuca utilizo sedação” foram similares para Brasil (19,4%), Reino Unido (14,5%; p = 0,36), Estados Unidos (16,7%; p = 0,62) e Canadá (15,8%; p = 0,5), porém diferente para a Índia (32,8%; p = 0,03).
A tabela 3 mostra as respostas relativas à percepção dos participantes sobre a efetividade clínica e de custos e ocorrência de complicações na comparação entre CNAF e CPAP. Foi pedido aos participantes que classificassem os três desfechos mais importantes a serem estudados em futuros ensaios randomizados para comparar os efeitos de CNAF com CPAP em pacientes pediátricos com desconforto respiratório, com escore de três pontos para a primeira escolha, dois pontos para a segunda escolha e um ponto para a terceira escolha. O escore atribuído para intubação endotraqueal mostrou que este foi o desfecho mais importante em todos os países, seguido pelo escore para falha (necessidade de outras formas de VNI ou ventilação invasiva) em todos os demais países, porém não no Brasil, onde o tempo de permanência na UTI foi considerado o segundo desfecho mais importante. Como terceiro desfecho mais importante, todos os participantes escolheram duração do suporte ventilatório, inclusive CNAF, exceto os da Índia, que escolheram conforto do paciente.
Percepção de eficácia e segurança da cânula nasal de alto fluxo em comparação com pressão positiva contínua nas vias aéreas
DISCUSSÃO
O achado mais contrastante neste estudo foi que só 63,8% dos participantes brasileiros têm acesso à CNAF, diferente dos 95% no Reino Unido, 96,6% nos Estados Unidos, 96,8% no Canadá e 84,7% na Índia (p < 0,001). Isso pode ser por causa da aprovação tardia desse dispositivo no Brasil (fins de 2015) ou pela limitação de recursos. Também, o uso de CNAF na enfermaria geral foi incomum no Brasil (3%) e na Índia (17,6%), porém frequente nos países de alta renda. Isso também se dá com relação ao pronto-socorro e às unidades de alta dependência e semi-intensivas. A CNAF é um suporte ventilatório promissor para doenças que são causas frequentes de admissão à UTI pediátrica, como bronquiolite. Para essa condição, esse dispositivo se mostrou custo-efetivo, sendo menos dispendioso que outras modalidades terapêuticas, porém a maior parte dos dados disponíveis vêm de países com alta renda.(10) Sua implantação em condições de recursos limitados é viável, porém enfrenta desafios técnicos não apenas pelo custo, mas também pelo aumento da carga de trabalho.(11) Há dados limitados que sugerem que a utilização da CNAF na enfermaria pediátrica geral pode reduzir a pressão por leitos de UTI pediátrica em condições de limitação de recursos.(12)
Brasil e Índia são países de renda média, enquanto os demais países nesse estudo eram de alta renda.(13) Nosso inquérito demonstra disparidade no acesso a novas tecnologias, já que apenas 24,4% dos médicos brasileiros participantes tinham acesso ao uso de oxigenação extracorpórea por membrana (ECMO), 53,3% tinham acesso à VOAF, e 63,8% tinham acesso à CNAF. Embora não seja universal, nossos achados sugerem que o tratamento com CNAF é hoje amplamente utilizado nas UTIs pediátricas dos países de renda média para diversas situações clínicas, sendo bronquiolite a mais frequente, porém que o seu uso é ainda mais infrequente nos países de renda média do que nos de alta renda. Em sua maioria, os médicos concordaram que desconforto respiratório e aumento do trabalho respiratório são as condições mais comuns para aplicar CNAF, seguidas por hipóxia. É digna de nota a proporção de participantes que relatam não haver um protocolo para CNAF - 30,7% no Brasil e ainda menos na Índia (16,5%).
No Brasil, os médicos são responsáveis pela indicação ou desmame da CNAF, juntamente de fisioterapeutas, na maioria dos casos, porém apenas 5,5% dos participantes também indicaram pessoas em treinamento na UTI pediátrica. Essa é uma observação interessante, que diz respeito à falta de autonomia dos treinandos no Brasil para decidir sobre o início de utilização de CNAF, uma medida que não equivale a, por exemplo, extubar um paciente. Nos países de alta renda, há uma maior liberdade para os treinandos, talvez em razão do fato de que apenas metade da unidades era de hospitais universitários, nos quais o treinamento deve preparar os estagiários para futura prática sem supervisão.(14) Igualmente, 30% dos participantes brasileiros desconheciam o número de admissões à sua UTI pediátrica. Isso pode estar relacionado ao fato de que, nesse país, muitos médicos precisam atuar em duas ou três instituições para obter seu sustento.(15)
Nos dois cenários clínicos com crianças em idades diferentes, o objetivo foi avaliar as práticas relacionadas aos fluxos inicial e máximo, assim como estratégias para desmame da CNAF. Uma das questões que permanece sem ser respondida quando se aplica esse suporte é como devemos “dosá-lo”. Os pediatras são treinados para utilizar uma posologia com base no peso corpóreo ao prescrever fármacos ou estabelecer o volume corrente de um ventilador mecânico.(16) Para a criança menor (8kg de peso), a maioria dos participantes concordou em iniciar o uso de CNAF dentro de 1 - 2L/kg/minuto até uma taxa de fluxo máxima entre 2 - 3L/kg/minuto em todos os grupos de participantes. Essa parece ser a melhor prática em concordância com a evidência disponível. Wiler et al. utilizaram manometria esofágica para calcular o produto pressão-frequência, assim como para estabelecer uma medida substituta para o esforço respiratório.(6) Esses autores identificaram que o esforço era sequencialmente reduzido à medida que as taxas de fluxo de CNAF aumentavam de 0,5L/kg/minuto para 1,0L/kg/minuto e para 1,5L/kg/minuto, mas que o efeito alcançava um platô geral entre 1,5L/kg/minuto e 2,0L/kg/minuto. A maior parte dos benefícios foi observada em crianças com 8kg de peso ou menos. Para a criança com 30kg, iniciar CNAF com 1 - 2L/kg/minuto foi a escolha de pouco mais de metade dos participantes dos países de alta renda, porém apenas 40% dos de média renda. É uma prática comum iniciar empiricamente com um volume estabelecido em 25 - 40L/minuto para crianças entre 6 e 12 anos, porém há recomendação dos fabricantes para modificar para uma cânula para adultos a partir de 25kg de peso, o que favorece uma abordagem como para adultos - uma taxa fixa de 20, 40 ou 50L/minuto.(17) Taxas de fluxo inicial de 50L/minuto foram relatadas em estudos prospectivos de pacientes críticos adultos e podem ser razoáveis para crianças com tamanho de adulto e adolescentes.(18)
Faltam evidências para o uso de sondas gástricas ou enterais para descompressão gástrica. A pressão positiva da CPAP pode distender e afrouxar a pressão esfincteriana esofágica, levando a aumento do refluxo, porém não é claro se a CNAF provoca efeito similar.(19) Sochet et al. observaram apenas um episódio de insuficiência respiratória relacionada à aspiração, dentre 132 crianças com bronquiolite e suporte com CNAF, e a nutrição oral foi tolerada em uma variedade de fluxos e frequências respiratórias com CNAF.(20) Esse estudo sugere que não há evidência para deixar de administrar nutrição oral para essas crianças, o que concorda com o pensamento da maior parte dos médicos nesse inquérito.
A maioria dos médicos brasileiros crê que a CNAF é clinicamente superior ou tão eficiente quanto à CPAP, em proporções comparáveis com os participantes da Índia. A maioria dos participantes dos países de alta renda considera que é inferior ou como CPAP. A CNAF foi também considerada pelos participantes brasileiros superior ou igual à CPAP quanto à custo-efetividade e à ocorrência de complicações. Essas respostas podem refletir uma falta de familiaridade ou disponibilidade de CNAF e de equipamentos de pressão positiva em vias aéreas de dois níveis (BIPAP). Enquanto o uso da CNAF vem aumentando no mundo, sua eficácia e superioridade a outras formas de suporte respiratório ainda não foram completamente estabelecidas.(21) Esses dados sugerem que há uma oportunidade para crescimento da CNAF, pesquisa sobre CNAF e melhoria da qualidade nas UTIs pediátricas brasileiras, no que se refere à CNAF.
Nosso estudo tem várias limitações. O tamanho relativamente pequeno da amostra e as diferenças demográficas entre os participantes brasileiros podem ter causado viés nos resultados. Apenas membros da AMIB responderam ao inquérito, e eles podem não ser representativos de todos os intensivistas brasileiros. O estudo é uma análise post hoc de um inquérito já publicado, no qual a intenção inicial não era avaliar se as diferenças relacionadas à CNAF na prática eram associadas a indicadores econômicos e sociais do país.
CONCLUSÃO
A disponibilidade de cânulas nasais de alto fluxo no Brasil ainda não é difundida, segundo os participantes deste inquérito. Há algumas divergências nas práticas entre intensivistas brasileiros e seus colegas em outros países, principalmente no que se refere ao processo decisório relacionado a iniciar e a desmamar o suporte com cânula nasal de alto fluxo. Futuros estudos deverão avaliar as melhores práticas a respeito da melhor utilização da cânula nasal de alto fluxo.
AGRADECIMENTOS
Aos Drs. Ari Joffe, Allan DeCaen, Neal J. Thomas, Andreas Schibler, Marti Pons-Odena, Soonu Udanie Muneyuki Takeuchi e Padmanabhan Ramnarayan, como investigadores do estudo, e aos Drs. Janice Chow, Rujipat Samransam, Mohammed Bakhsh, Osama Hosheh, Jon Feldman (CA, United States) e Kamalatheepan Sellapillai. O sítio REDCap (https://projectredcap.org/) foi desenvolvido em colaboração com o Women and Children Health Research Institute (Edmonton, Canadá).
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Editado por
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Editor responsável: Arnaldo Prata-Barbosa
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Out 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
16 Set 2020 -
Aceito
29 Nov 2020