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As fronteiras científicas da pesquisa em Turismo: dicotomias e dualidades

Na atualidade, a produção científica tem sido frequentemente analisada em uma perspectiva quantitativa. Esta e outras formas de pesquisa são válidas para compreender o estado da arte, os caminhos e os descaminhos da ciência contemporânea a fim de aprimorar dado campo de conhecimento. No caso do Turismo1 1 No texto, a palavra “Turismo” com letra maiúscula refere-se ao campo de conhecimento e “turismo” com letra minúscula a atividade turística em si. , as pesquisas bibliométricas vem retratando a produção científica na área como forma de ciência da ciência. Afinal, muitos softwares têm auxiliado neste processo e vem contribuindo para espelhar os rumos científicos. É evidente, também, que uma geração de pesquisadoras(es) vem se aprimorando em inteligência artificial e isso garante o conceito de inovação recém incorporado pelas universidades.

No entanto, é importante refletir que a compulsão pelo quantitativo e pela inovação na forma acelerada da modernidade não é garantia da boa vida. Os esforços de hoje não representam o alívio para o amanhã, pois aceleramos para fugir do abismo que está nas nossas costas, nos diz Harmut Rosa (2019)Rosa, H. (2019). Aceleração: as transformações das estruturas temporais na modernidade.São Paulo: Editora Unesp.. As diversas crises que assolam o planeta, tais como as crises sanitária, migratória, ambiental e humanitária são demonstrações dos problemas da vida moderna mesmo diante dos avanços científicos e tecnológicos. Essas crises são geradas pelas formas de relação entre os seres humanos e, também, pelos usos e abusos da Terra, nossa casa comum, configurando-se em crises de hospitalidade. Por isso, nos perguntamos: como os(as) pesquisadores(as) lidam com este cenário que envolve múltiplas facetas? Como as mais diversas disciplinas que compõe o campo do Turismo vem trabalhando em suas formas de investigação para lidar com um mundo em crise e marcado pelo obscurantismo? A nossa ocupação em gerar pesquisas dentro dos paradigmas científicos contemporâneos inclui a preocupação de integrar os estudos frente aos diferentes prismas da atividade turística na sociedade?

A crítica à ciência e suas formas de investigação é um passo importante para compreender o real estado da arte de uma área, mas, por vezes, é omitida pelo próprio crescimento da produção científica. Refletir algumas fronteiras intelectuais de um campo científico como o Turismo nos parece ser importante se quisermos prosperar para além de onde chegamos, ainda que tenha sido mais longe do que havíamos pensado.

Determinadas fronteiras da ciência criam barreiras que impedem a transversalidade das pesquisas. No campo do Turismo destacamos neste editorial algumas dicotomias postuladas entre humano ou mercado, qualitativo ou quantitativo, objetivismo ou subjetivismo, cultura ou natureza, material ou imaterial, estudo fragmentado ou de um conjunto de elementos. Tais dicotomias criam fronteiras científicas que inibem o desenvolvimento de um pensamento integral e transversal da atividade turística.

Algumas fronteiras científicas e intelectuais foram analisadas por Bourdieu (1989)Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. diante das falsas sínteses frutos de teorias sem práticas que canonizam as oposições fictícias entre autores, tais como Weber e Marx, Durkheim e Marx, por exemplo. No caso do campo do Turismo, e não somente nele, ainda é notória uma oposição teórica postulada entre o humano ou mercado. Nos parece que nem sempre o que é dito humano é digno de qualidade, haja vista as próprias atrocidades humanas, ainda que os direitos humanos fundamentais prezem por relações de hospitalidade. O mercado não pode ser postulado apenas contra o humano, afinal foram os seres humanos que geraram o mesmo. As formas de poder econômico, ainda que demasiadamente excludentes na sociedade capitalista, são anteriores à sociedade de mercado. Então, uma síntese de oposição do humano contra o mercado, ou vice-versa, parece ser mais uma forma de defesa do pesquisador diante do seu objeto de estudo. Essa dicotomia fez com que muitos turismólogas(os) e os próprios pesquisadores da área do Turismo fossem estigmatizados de alguma forma, especialmente por serem minoria diante de quadros acadêmicos mais antigos e mais numerosos.

Neste sentido, é importante notar que muitos estudos críticos no Turismo surgiram, tais como a opressão dos(as) trabalhadores(as) do setor, a gentrificação em cidades turísticas, e o consumo desenfreado e depreciativo de turistas em atrativos turísticos. Apesar de uma parcela mais ampla da sociedade ainda desconhecer o campo acadêmico do Turismo, cada vez mais, turismólogas(os) e pesquisadoras(es) vêm buscando propor outras formas de planejamento e gestão do turismo que visam uma atividade turística consciente e com ciência. Eis um papel importante que os cursos e as pesquisas de Turismo desempenharam no Brasil nos últimos 50 anos.

Ainda assim, o caráter humano e o mercado turístico ainda são postos de forma totalmente dissociada em muitos estudos. Como ultrapassar as fronteiras do pensamento para constituir um pensamento transversal e integral no Turismo? As linhas de pesquisa dos programas de pós-graduação na área já nos levam a tal fragmentação científica quando se separa uma dada linha da sociedade de outra de mercado. Isso aprisiona pesquisadores e estudantes em suas próprias convivências acadêmicas e pode criar um ambiente de disputa diante de uma suposta importância do meu ou do seu objeto de estudo. O objeto de estudo não deveria supor propriedade e, em muitos casos, nem objetos de estudo deveriam ser chamados, mas sim, sujeitos pesquisados.

Outro ponto importante das fronteiras científicas são os métodos empregados nas pesquisas no Turismo. Bourdieu (1989)Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. situa a disputa entre os métodos qualitativo ou quantitativo. O autor diz que este conflito é proveniente de uma metodologia sem conceitos, como um sistema de defesa contra os progressos verdadeiros da ciência, em que as primeiras vítimas são os estudantes. Como compreender os adventos do turismo sem vincular os estudos qualitativos aos quantitativos ou vice-versa? Como podem os números de demanda turística, por exemplo, não representar as vozes das comunidades receptoras? Como calcular o crescimento econômico (PIB) de um território sem dimensionar o bem-estar de uma população?

Isso nos leva a outra fronteira intelectual que devemos suprimir: objetivismo ou subjetivismo. A retórica da objetividade pode aniquilar a conversa com disciplinas vizinhas e necessárias para o desenvolvimento científico e anula a percepção, algo fundamental para o pesquisador no campo do turismo. As opções científicas ditas mais objetivas são carregadas de subjetividade, desde a escolha da temática da pesquisa às das fontes do estudo. As pesquisas, inclusive no Turismo, são formadas por uma dada sociologia dos gostos científicos e da proximidade do investigador com o estudo.

Não se pode admitir a pesquisa em Turismo com um discurso defensivo e fechado, pois os processos de investigação partem de um elemento em comum: o risco. É preciso conceber que os resultados podem não ser os previstos no início do estudo e que o desejo ou a necessidade de acabar a pesquisa não anule os fatores desconhecidos que levaram a sua realização. Bourdieu (1989)Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. diz que o homo academicus gosta do acabado e que, como os pintores, os acadêmicos fazem desaparecer dos seus trabalhos os vestígios da pincelada, os toques e retoques.

Apesar da necessária autocrítica acadêmica, é imprescindível salientar que as pesquisas em Turismo avançaram e se encontram altamente capacitadas em diferentes áreas de estudo. Entretanto, por vezes, uma área de estudo está dissociada da outra, ainda que o foco seja o turismo. O estudo sobre a cultura que envolve o patrimônio não deveria estar associado às formas econômicas da gestão de um bem? O levantamento da renda gerada pela visitação em bens naturais não deve estar vinculado à preservação do mesmo e do bem-estar da comunidade local? A investigação da demanda turística não deve estar atrelada ao estudo do desenvolvimento humano da localidade e dos próprios turistas? Tais questões, aparentemente óbvias, são de difíceis soluções porque muitos pesquisadores do Turismo, inclusive o que aqui escreve, tornaram-se altamente especializados em um campo, dissociado do outro.

Importante ressalvar que algumas fronteiras científicas surgiram de determinadas correntes de pensamentos que impediram a tentativa de compreensão integrada e relacional. Temos o exemplo da divisão situada entre a natureza ou cultura fruto de uma visão antropocêntrica cujas consequências recaem em nossos dias com o aquecimento global. Muito antes disso, porém, os povos tradicionais já compreendiam a natureza como uma extensão do corpo humano. A fronteira criada do patrimônio material ou imaterial também fez aludir que a preservação das materialidades tinha mais importância para a sociedade. Por outro lado, não se corrige este processo situando a imaterialidade da cultura sem os objetos que consagram as formas afetivas e espirituais da memória. As identidades não podem ser pesquisadas sem a observância das alteridades, pois são formas de união e ao mesmo tempo de diferenças, relacionadas entre si. Tais nomenclaturas não se justificam nem didaticamente, pois ainda que diante da premissa de transmitir o conhecimento pelo ensino, fragmenta ele próprio.

As fronteiras científicas da pesquisa em Turismo iniciam-se na graduação quando as disciplinas são postas de forma fragmentada e as lutas dos intelectuais são pelos seus campos de estudo em si enquanto proprietários deste saber. Os estudantes seguem os mestres na elaboração de suas monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado.

Outra dicotomia postulada é entre o estudo fragmentado ou estudo de um conjunto de elementos, a qual estabelece mais uma barreira para o desenvolvimento científico, e não somente no Turismo. Nestes termos, Bourdieu (1989, p. 31)Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. se questiona: “será que vale mais estudar extensivamente o conjunto dos elementos pertinentes do objecto construído, ou antes, estudar intensivamente um fragmento limitado deste conjunto teórico que está desprovido de justificação científica?” Ele mesmo responde dizendo que a opção socialmente mais aprovada, em nome de uma ideia ingenuamente positivista de precisão e da seriedade é a segunda: a de estudar a fundo um objeto muito preciso, bem circunscrito. A segunda opção também é a escolha da maioria das pesquisas em Turismo. Muitas pesquisas em forma de estudo de caso no Turismo alcançam uma profundidade tamanha em que os investigadores já não se sentem confortáveis, ou mesmo orientados, a relacioná-las com uma realidade mais ampla. O saber compartimentado é insuficiente para lidar com o contexto da atividade turística no cenário contemporâneo.

No caso do Turismo incorporou-se teorias e métodos de países colonizadores e imperialistas as quais condizem com àquelas realidades. Decolonizar o pensamento turístico para incorporar as vozes dos países periféricos, sem desconsiderar o aprendizado com os intelectuais de outros continentes, é um desafio importante para os construtos teóricos e metodológicos latino-americanos. A internacionalização da pesquisa em Turismo deve ser posta de forma relacional, de dentro para fora e de fora para dentro.

Para além das questões territoriais, umas das mais notórias fronteiras científicas existentes na construção das pesquisas é a fragmentação entre teoria e metodologia. É preciso conceber que há inseparabilidade entre teoria e metodologia, mesmo que a ciência (e a universidade) ainda insista(m) em empregar tais itens de forma segregada em artigos, relatórios e trabalhos acadêmicos. Os métodos são frutos de teorias e deveriam confluir entre si de forma articulada durante todo o estudo. Ao propor uma contrariedade a este habitus científico, Bourdieu (1989, p. 26)Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. ironiza: “livrai-vos dos cães de guarda metodológicos (...) são as faltas triviais que fazem a felicidade dos professores. Os sacerdócios, como lembra Nietzsche, vivem do pecado”.

Neste sentido, sem dizer como, pois não existe fórmula única para a pesquisa, Bourdieu (1989)Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. propõe uma ruptura epistemológica. Para o autor, é preciso suspender construções vulgares e os princípios geralmente empregados, implicando uma ruptura com modos de pensamento, conceitos, métodos que têm a favor todas as aparências do senso comum. Importante, porém, é não transformar tal proposta em algo que desprestigie os movimentos objetivos, pois estes também coabitam a ciência. O limite deste tipo de predisposição científica transversal é o otimismo que carrega consigo ao acreditar que acadêmicos de variadas ordens podem trabalhar de forma integrada, especialmente no Turismo cuja formações dos pesquisadores em nível de pós-graduação são aparentemente distintas e os interesses nem sempre são comuns.

Uma parcela considerável da atual geração de pesquisadoras(es) e professoras(es) turismólogas(os) foi formada em programas de pós-graduação de outras áreas: Geografia, Administração, Economia, Ciências Sociais, Comunicação, História e outras mais. Nos parece que o desafio desta geração foi, e ainda é, trazer as metodologias destes campos para o aprimoramento científico do Turismo. Foi isso que possibilitou o avanço do ensino na graduação e, especialmente, no desenvolvimento da pesquisa com a criação de cursos de mestrado e doutorado em Turismo e Hospitalidade no Brasil. Os bacharelados em Turismo pelos país e o programas de pós-graduação na área nos fazem ser o que somos hoje com uma série de instituições e representações científicas importantes para a própria atividade turística.

No entanto, é importante admitir que a formação desta geração de professoras(es) em outras áreas de conhecimento fragmentou os estudos em Turismo. E, muitos de nós, emprestamos de outros campos as nossas vozes e criamos outras em quem orientamos. Nos tornamos pesquisadores da área de economia do turismo, da geografia do turismo, da administração do turismo, da sociologia do turismo, da comunicação do turismo, da história do turismo, da antropologia do turismo, da tecnologia do turismo, etc. Embora isso tenha desenvolvido cientificamente o campo no sentido das especializações, precisamos refletir em como integrar de fato tais campos de conhecimento no Turismo propriamente dito. Isso vai ser uma tarefa científica importante para as gerações futuras dos pesquisadores da área. As dificuldades aumentam quando se verifica uma crise de ingressantes nos cursos de graduação e pós-graduação no país, especialmente no campo do Turismo.

Se as especialidades desenvolveram o Turismo com o aprofundamento em dadas teorias e métodos específicos, as dicotomias postuladas pela fragmentação da pesquisa e suas formas de poder criaram fronteiras. Essas deveriam ser suprimidas pelo associativismo científico, pelas teorias relacionais e por conexões metodológicas para a compreensão integrada da atividade turística. O reconhecimento de dadas especialidades do Turismo se vigoram cientificamente por meio do relacionamento dentre tais. Ainda assim, estudos turísticos totalmente integrados e transversais dificilmente devem ocorrer dadas as fragmentações e particularidades das pesquisas. Este desafio aumenta quando se observa o tempo acelerado e multifacetado dos pesquisadores brasileiros atuais com a obrigatoriedade de ocupação de cargos de gestão e a realização de ensino, pesquisa e extensão. O tempo da ciência de ontem não é o mesmo tempo da ciência de hoje, especialmente frente ao advento da internet e das redes sociais que, ao invés de otimizar o tempo do trabalho acadêmico com a velocidade da comunicação, trouxeram outras tarefas. No entanto, não devemos deixar de aspirar pesquisas transversais no Turismo em prol de um produtivismo científico acelerado. Na sociedade de indivíduos, especialmente a dos pesquisadores, aspirar pesquisas científicas integradas e coletivas é um ideal de resistência para coexistência acadêmica do Turismo com o seu intuito de pensar soluções para os sérios problemas da atividade turística.

De toda forma, almejar o rompimento das fronteiras científicas da pesquisa em Turismo nos expõem às incertezas e aos riscos. Ainda assim, seguimos com Bourdieu (1989, p. 106)Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. quando disse que “só podemos produzir a verdade do interesse se aceitarmos questionar o interesse pela verdade e se estivermos dispostos a pôr em risco a ciência e a respeitabilidade científica fazendo da ciência o instrumento do seu próprio pôr-se-em-causa”.

As distinções sociais, econômicas, culturais e ambientais inventadas pelos seres humanos devem ser compreendidas de forma relacional. Compreendemos o Turismo com a dualidade indicada por Boff (2006)Boff, L. (2006). A águia e a galinha. Petrópolis: Vozes. na ideia de substituir o “ou” pelo “e”, como partes do mesmo corpo e dimensões da mesma complexidade, com a ciência de que os pares têm relação entre si, mas não são justapostos. As dicotomias transformam-se, desta maneira, em dualidades.

Apesar de não encontrarmos soluções instantâneas para os problemas da pesquisa em Turismo, devemos refletir possíveis mediações com o intuito de integrar campos de análise. Ainda que aparentemente distintos em suas formas teóricas e metodológicas, os temas são comuns entre si e expressam um coletivo de pesquisadoras e pesquisadores comprometidos com a valorização da pesquisa em Turismo e com o desenvolvimento da atividade turística.

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    No texto, a palavra “Turismo” com letra maiúscula refere-se ao campo de conhecimento e “turismo” com letra minúscula a atividade turística em si.
  • Como Citar: Brusadin, L. B. B (2024). As fronteiras científicas da pesquisa em Turismo: dicotomias e dualidades. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, São Paulo, 18, e-2949, 2024. https://doi.org/10.7784/rbtur.v18.2949

REFERÊNCIAS

  • Boff, L. (2006). A águia e a galinha Petrópolis: Vozes.
  • Bourdieu, P. (1989). O poder simbólico Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
  • Rosa, H. (2019). Aceleração: as transformações das estruturas temporais na modernidade.São Paulo: Editora Unesp.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024
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