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O turismo como agente promotor e protagonista de aprendizagens em cidades educadoras (AICE): perspectivando caminhos para a efetivação de seus princípios

Tourism as a promoter and protagonist of learning in educating cities (AICE): looking at ways to implement its principles

El turismo como promotor y protagonista del aprendizaje en las ciudades educadoras (AICE): buscando caminos de implementar sus principios

Resumo

Na busca por avançar teórica e pragmaticamente resultados da dissertação de mestrado, em que se realizou incursões reflexivas sobre o binômio “Turismo pedagógico”, as quais conduziram à construção de um conceito de turismo perspectivado pedagogicamente, ou seja, em que a dimensão pedagógica é constitutiva da essência do turismo, buscou-se associar o conceito de Turismo Essencialmente Pedagógico (TEP) a Cidades Educadoras (CE) – entendidas sob o escopo da Carta das Cidades Educadoras e da Asociación Internacional de Ciudades Educadoras (AICE), a fim de questionar se essa dimensão pedagógica intrínseca ao turismo poderia vir a ampliar a própria concepção de CE na efetivação de seus princípios. O presente artigo tem como objetivo analisar a perspectivação da dimensão pedagógica intrínseca ao turismo no conceito de CE (no escopo delimitado), apresentando caminhos possíveis. A pesquisa se define, em forma e conteúdo, como ensaio no que tange às teorizações e aproximações interpretativas pretendidas. Entre outras razões, no âmbito do escopo da pesquisa e de seus limites teóricos e metodológicos, a essencialidade pedagógica intrínseca ao turismo permite-lhe ser promotor e protagonista de aprendizagens em CEs e, com isso, ampliar a abrangência de público atingindo (não mais restrito ao escolar e ao cidadão) e melhor atender ao princípio de inclusão expresso na Carta. E um caminho possível para a efetivação desses objetivos poderia ser via políticas públicas de turismo com viés pedagógico.

Palavras-chave
Turismo Essencialmente Pedagógico; Cidades Educadoras; Aproximações teóricas; Políticas públicas de turismo com viés pedagógico

Abstract

In the search to theoretically and pragmatically advance beyond the results of the master's thesis, in which reflective inroads were made on the binomial “Pedagogical Tourism”, which led to the construction of a concept of tourism pedagogically perspective, that is, in which the pedagogical dimension is constitutive of the essence of tourism, we sought to associate the concept of Essentially Pedagogical Tourism (TEP) with Educating Cities (CE) – understood under the scope of the Letter of Educating Cities and the Asociación Internacional de Ciudades Educadoras (AICE), in order to question whether this pedagogical dimension intrinsic to tourism could expand the very conception of CE in the achievement of its principles. This article aims at proposing and analyzing the perspective of the pedagogical dimension intrinsic to tourism in the concept of CE (in the delimited scope), presenting possible paths. The research is defined, in form and content, as an essay regarding the intended theorizations and interpretative approximations. Among other reasons, within the scope of the research and its theoretical and methodological limits, the pedagogical essentiality intrinsic to tourism allows it to be a protagonist and promoter of learning in Educating Cities and, with this, expand the scope of the reached audience (no longer restricted to school) and better meet the principle of inclusion expressed in the Letter. And a possible way to achieve these objectives could be through public tourism policies with a pedagogical bias.

Keywords
Essentially Pedagogical Tourism; Educating Cities; Theoretical approaches; Public tourism policies with a pedagogical bias

Resumen

En la búsqueda de avanzar teórica y pragmáticamente en los resultados de la tesis de maestría, en las que se hicieron incursiones reflexivas sobre el binomio “Turismo Pedagógico”, lo que llevó a la construcción de un concepto de turismo con perspectiva pedagógica, es decir, en el que la dimensión pedagógica es constitutiva de la esencia del turismo, se buscó asociar el concepto de Turismo Esencialmente Pedagógico (TEP) con Ciudades Educadoras (CE) – entendidas bajo el ámbito de la Carta de Ciudades Educadoras y la Asociación Internacional de Ciudades Educadoras (AICE), con el fin de cuestionar si esta dimensión pedagógica intrínseca al turismo podría ampliar la concepción misma de la CE en la realización de sus principios. Este artículo tiene como objetivo proponer y analizar la perspectiva de la dimensión pedagógica intrínseca al turismo en el concepto de CE (en el ámbito delimitado), presentando posibles caminos. La investigación se define, en forma y contenido, como un ensayo sobre las teorizaciones y aproximaciones interpretativas pretendidas. Entre otras razones, dentro del ámbito de la investigación y de sus límites teóricos y metodológicos, la esencialidad pedagógica intrínseca al turismo le permite ser promotor y protagonista del aprendizaje en las CE y, con ello, ampliar el alcance del alcance público (ya no restringido a la escuela y al ciudadano) y cumplir mejor con el principio de inclusión expresado en la Carta. Y una posible vía para lograr estos objetivos podría ser a través de políticas públicas de turismo con un sesgo pedagógico.

Palabras clave
Turismo Esencialmente Pedagógico; Ciudades Educadoras; Enfoques teóricos; Políticas públicas de turismo con sesgo pedagógico

1 INTRODUÇÃO

O binômio “turismo pedagógico” suscita, em si, diferentes perspectivas e abordagens, contudo, uma das linhas investigativas mais usual concebe o turismo sob a ótica econômica/mercadológica, segundo a qual o mercado turístico é constituído pelo conjunto de consumidores/clientes turísticos (demanda) que desejam e podem comprar bens e serviços a um dado preço e pela oferta de produtos turísticos (Lima, 2014Lima, F. de. (2014). Incursões reflexivas sobre o conceito de turismo e a qualificação “pedagógico” no binômio “Turismo pedagógico” [Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Turismo da Universidade de Caxias do Sul]. Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. Repositório Institucional da UCS. https://repositorio.ucs.br/xmlui/bitstream/handle/11338/840/Dissertacao%20Francielle%20de%20Lima.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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). Sob esse enfoque, o “turismo pedagógico” é entendido como um segmento de mercado destinado às instituições de ensino (cliente) para o desenvolvimento de suas atividades educativas, no qual o turismo disponibiliza sua infraestrutura, seus serviços e equipamentos para facilitar o alcance dos objetivos propostos (Lima, 2014Lima, F. de. (2014). Incursões reflexivas sobre o conceito de turismo e a qualificação “pedagógico” no binômio “Turismo pedagógico” [Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Turismo da Universidade de Caxias do Sul]. Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. Repositório Institucional da UCS. https://repositorio.ucs.br/xmlui/bitstream/handle/11338/840/Dissertacao%20Francielle%20de%20Lima.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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).

Para além desse entendimento foi desenvolvida uma discussão epistemológica sobre turismo pedagógico − atitude reflexiva feita em dissertação de mestrado1 1 Para maior detalhamento da pesquisa acessar o link: https://repositorio.ucs.br/xmlui/bitstream/handle/11338/840/Dissertacao%20Francielle%20de%20Lima.pdf?sequence=1&isAllowed=y −, a partir da qual se propôs, diversamente do identificado até então na produção bibliográfica, uma outra conceituação de turismo em que o pedagógico é entendido como uma propriedade inerente, essencial, ao próprio turismo, independentemente do segmento a que ele, turismo, estiver se referindo. Assim, nos estudos realizados, apesar de se considerar e de se compreender as nomeações dadas aos diferentes segmentos turísticos, para fins mercadológicos, inclusive, marcou-se o termo “turismo pedagógico” como pleonástico, uma vez que, no caminho de pesquisa percorrido, o pedagógico é defendido como qualidade substancial do turismo.

Para tal construção conceitual, partiu-se de outras linhas teóricas sobre turismo consideradas de referência, particularmente a proposição de Perazzolo et al. (2013)Perazzolo, O. A.; Santos, M. M. C.; Pereira, S. (2013). Dimensión relacional de la acogida. Revista Estudios y perspectivas en turismo, 22(1), 138-153. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=180725735008
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. Nessa abordagem, o turismo assenta-se na motivação intrínseca do sujeito que se desloca (psíquica ou fisicamente) na direção dos seus desejos, sendo que, no cerne do turismo, está o aprender.

Com base nessa perspectiva, elaborou-se o conceito de turismo essencialmente pedagógico, o qual corresponde a:

um fenômeno humano-social que pressupõe um deslocamento realizado por um sujeito motivado/mobilizado para vivenciar/conhecer o novo, o outro, em experiências relacionais no ou fora do local de experiência cotidiana, constituindo-se em espaço de contínua construção, formação e transformação do sujeito, que passa a ter novas percepções do outro e de si mesmo. Em outras palavras, um espaço de aprendizagens em que o pedagógico se configura, substantivamente, como propriedade do turismo

(Lima, 2022Lima, F. de. (2022). A dimensão pedagógica intrínseca ao turismo perspectivada na concepção de cidade educadora e na construção de processo de (re)formulação de políticas públicas de turismo com viés pedagógico. [Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Turismo e Hospitalidade da Universidade de Caxias do Sul]. Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. Repositório Institucional da UCS. https://repositorio.ucs.br/xmlui/bitstream/handle/11338/10447/Tese%20Francielle%20de%20Lima.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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, p. 34).

Dessa feita, tomando como referencial o turismo entendido como essencialmente pedagógico, faz-se, neste artigo, aproximações com as Cidades Educadoras, sob o escopo da AICE e sua Carta norteadora, já que existem pontos de intersecção. Porém, é necessário, antes de adentrar nesse novo universo, registrar que o conceito de Turismo Essencialmente Pedagógico (TEP) não pode ser entendido de forma restritiva, mesmo que as reflexões tenham partido de um segmento (o turismo pedagógico). Para além dessa perspectiva, foi construído um novo/outro conceito de turismo, em que a dimensão pedagógica é ressaltada como essencial e constitutiva do próprio turismo. Nessa linha interpretativa, todo o turismo tem, no seu cerne, uma dimensão pedagógica. O turismo sempre enseja aprendizagens, ou seja, carrega em si o aprender, o conhecer.

O contexto das Cidades Educadoras tem seu marco inicial em 1990, em Barcelona – Espanha, quando ocorreu o primeiro Congresso Internacional das Cidades Educadoras. Na ocasião, os representantes assinalaram, em forma de Carta2 2 A Carta das Cidades Educadoras 2020, versão em português, pode ser acessada via link: https://www.edcities.org/wp-content/uploads/2020/11/PT_Carta.pdf , os princípios fundamentais necessários à constituição do perfil educativo das Cidades Educadoras. A Carta das Cidades Educadoras apresenta 20 princípios. Ela é o documento referencial para as cidades signatárias à Asociación Internacional de Ciudades Educadoras (AICE), que reúne, até janeiro de 2024, 484 cidades de 30 países.

Na Carta (2020, p. 4)Carta das Cidades Educadoras. (2020). https://www.edcities.org/wp-content/uploads/2020/11/PT_Carta.pdf
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, em seu Preâmbulo, as cidades são consideradas como “um sistema complexo e, ao mesmo tempo, um agente educativo permanente, plural e poliédrico, capaz de potencializar os fatores educativos e de transformação social”. Elas têm como objetivo constante: “aprender, inovar e partilhar, e, portanto, enriquecer e tornar mais segura e digna a vida de seus habitantes” (Carta das Cidades Educadoras, 2020Carta das Cidades Educadoras. (2020). https://www.edcities.org/wp-content/uploads/2020/11/PT_Carta.pdf
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, p. 4). Nas Cidades Educadoras, a educação transcende as paredes das escolas para impregnar toda a cidade.

Ante o exposto, tendo como suposto teórico o turismo em sua propriedade essencialmente pedagógica e o entendendo de forma a que se desbordem limites conceituais atrelados ao senso comum (cujo cerne está no deslocamento), faz-se pertinente questionar se essa dimensão pedagógica intrínseca ao turismo, perspectivada na concepção de Cidade Educadora, poderia ampliar a própria concepção de Cidade Educadora na efetivação de seus princípios.

Buscar respostas a essa questão encerra, per se, relevância social, porquanto aí estão implicadas vivências e interações entre os próprios residentes e entre esses e visitantes/turistas, sempre passíveis de aprimoramento. Também do ponto de vista científico, o trabalho de aproximação conceitual entre TEP e Cidades Educadoras proporciona uma releitura crítica do próprio conceito de turismo pedagógico na sua aplicabilidade conceitual e pragmática. Nisso está implícita a compreensão de ciência e de seus resultados como um permanente devir e, aqui, particularmente, no que concerne ao conceito de turismo e de seus desdobramentos, sua compreensão como contínuo tecer de múltiplas dimensões, relações e abordagens científicas.

Nesse sentido, o presente artigo objetiva analisar a perspectivação da dimensão pedagógica intrínseca ao turismo no conceito de Cidade Educadora (no escopo delimitado), compreendendo o turismo como agente promotor e protagonista de aprendizagens em Cidades Educadoras (AICE), na direção da efetivação de seus princípios.

Para a consecução desse objetivo, metodologicamente, o estudo se define, em forma e conteúdo, como ensaio no que tange às teorizações e aproximações interpretativas construídas. E é esse percurso reflexivo que será detalhado aqui.

2 SUPOSTO TEÓRICO DE REFERÊNCIA – TURISMO ESSENCIALMENTE PEDAGÓGICO (TEP)

O suposto teórico de referência deste estudo parte da proposição de que o turismo é um promotor e protagonista de aprendizagens. Sua concepção, como assinalado na introdução, está baseada nos estudos de Perazzolo et al. (2013)Perazzolo, O. A.; Santos, M. M. C.; Pereira, S. (2013). Dimensión relacional de la acogida. Revista Estudios y perspectivas en turismo, 22(1), 138-153. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=180725735008
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, que analisaram o turismo sob uma perspectiva humano-social, utilizando-se de uma abordagem conceitual de turismo, de natureza psicossocioantropológica. No âmbito do turismo, ao correlacionar conceitos de deslocamentos/movimentos e de aprendizagens e processos formativos permanentes, associaram-nos à metáfora do desejo:

A perspectiva da metáfora do desejo dimensiona o entendimento do fazer turismo como motivado pelo impulso por conhecimento/experiências na sua forma mais primária, tal como apresentada no conceito de pulsão epistemofílica proposto por Freud (1992) no texto “Inibição, Sintoma e Angústia”, de 1926. O tema também é abordado à luz das contribuições lacanianas, particularmente na perspectiva da pulsão escópica. A pulsão epistemofílica, ou impulso por conhecer, experimentar, aprender [...] é entendida por Freud como derivação de experiências que integram o processo de formação, na perspectiva da constituição do sujeito como sujeito social. Observado dessa forma, é possível atribuir novos significados para os movimentos das pessoas e grupos ao longo do trânsito humano pela história, determinados ou não por demandas de segurança e provimento

(Perazzolo et al., 2013Perazzolo, O. A.; Santos, M. M. C.; Pereira, S. (2013). Dimensión relacional de la acogida. Revista Estudios y perspectivas en turismo, 22(1), 138-153. https://www.redalyc.org/articulo.oa?id=180725735008
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, p. 141 -142, tradução nossa).

Ainda, de acordo com as autoras (2013), na medida em que se compreende o turismo como a expressão humana do desejo de conhecer, de saber, e que se considera que esse conhecer, esse saber procurado, constrói-se por meio da relação, através de movimentos de interação, o acolhimento institui-se como um elemento fundante do turismo, de tal modo que os sujeitos da experiência turística sairão dela sempre modificados.

Assim, com base nessas reflexões teóricas, construiu-se um outro/novo conceito de turismo, o qual corresponde a:

um fenômeno humano-social que pressupõe um deslocamento realizado por um sujeito motivado/mobilizado para vivenciar/conhecer o novo, o outro, em experiências relacionais no ou fora do local de experiência cotidiana, constituindo-se em espaço de contínua construção, formação e transformação do sujeito, que passa a ter novas percepções do outro e de si mesmo. Em outras palavras, um espaço de aprendizagens em que o pedagógico se configura, substantivamente, como propriedade do turismo

(Lima, 2022Lima, F. de. (2022). A dimensão pedagógica intrínseca ao turismo perspectivada na concepção de cidade educadora e na construção de processo de (re)formulação de políticas públicas de turismo com viés pedagógico. [Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Turismo e Hospitalidade da Universidade de Caxias do Sul]. Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. Repositório Institucional da UCS. https://repositorio.ucs.br/xmlui/bitstream/handle/11338/10447/Tese%20Francielle%20de%20Lima.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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, p. 34).

Por esse percurso, a promoção de aprendizagem, no sentido amplo de transformações educativo-formativas do sujeito, mostra-se como uma propriedade intrínseca ao turismo ou como uma qualidade necessária, que lhe é substancial (De Lima et al., 2020De Lima, F., Cappellano dos Santos, M. M., & Todeschini Ferreira, L. (2020). Ensayos reflexivos cuestionadores sobre la dimensión pedagógica intrínseca al turismo prevista en la concepción de Ciudad Educadora: el contexto brasileño. Gestión Turística, 33, 94–112. https://doi.org/10.4206/gest.tur.2020.n33-05
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). Logo, o turismo, em aproximação aos princípios da Carta das Cidades Educadoras, pode ser um contributivo de sua efetivação já que também objetiva promover aprendizagens e contribuir com o processo formativo dos sujeitos ao longo de suas vidas.

O próximo Item, portanto, apresenta o contexto das Cidades Educadoras, para que, posteriormente, se possam estabelecer aproximações entre o conceito de turismo entendido como essencialmente pedagógico e os princípios norteadores contidos na Carta das Cidades Educadoras.

3 CIDADES EDUCADORAS SOB O ESCOPO DA CARTA DAS CIDADES EDUCADORAS E AICE

O marco inicial do Movimento das Cidades Educadoras ocorreu em novembro de 1990, em Barcelona – Espanha, quando ocorreu o primeiro Congresso Internacional das Cidades Educadoras. Nesse evento, foi sistematizada, em uma Carta3 3 A Carta das Cidades Educadoras, versão em português, pode ser acessada por meio do link: https://www.edcities.org/wp-content/uploads/2020/11/PT_Carta.pdf , primeiramente designada como Declaração de Barcelona, os princípios básicos que deveriam formar o perfil educativo das cidades.

A Carta não é um documento estático, por isso, para adaptar as suas perspectivas aos novos desafios e necessidades sociais, acompanhando as transformações do mundo globalizado, passa periodicamente por revisões, sendo já revista três vezes (Bolonha, 1994; Gênova, 2004 e, a mais recente, em 2020). É ela, portanto, “o elemento unificador da rede de Cidades Educadoras (AICE), em permanente (re)elaboração, promovendo e ampliando temáticas, a fim de enfrentar desafios atuais e constantes nas cidades que compõem a rede” (De Lima et al., 2020De Lima, F., Cappellano dos Santos, M. M., & Todeschini Ferreira, L. (2020). Ensayos reflexivos cuestionadores sobre la dimensión pedagógica intrínseca al turismo prevista en la concepción de Ciudad Educadora: el contexto brasileño. Gestión Turística, 33, 94–112. https://doi.org/10.4206/gest.tur.2020.n33-05
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, p. 97).

Compõem o primeiro bloco de princípios (1 ao 5), afetos ao direito a uma Cidade Educadora, os seguintes assuntos: educação inclusiva ao longo da vida (Princípio 1); política educativa ampla (Princípio 2); diversidade e não discriminação (Princípio 3); acesso à cultura (Princípio 4); diálogo intergeracional (Princípio 5). (Carta das Cidades Educadoras, 2020Carta das Cidades Educadoras. (2020). https://www.edcities.org/wp-content/uploads/2020/11/PT_Carta.pdf
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).

Já, no segundo bloco (6 ao 13), os princípios convergem para o compromisso da cidade e se referem: ao conhecimento do território (Princípio 6); ao acesso à informação (Princípio 7); à governança e participação dos cidadãos (Princípio 8); ao acompanhamento e melhoria contínua (Princípio 9); à identidade da cidade (Princípio 10); ao espaço público habitável (Princípio 11); à adequação dos equipamentos e serviços municipais (Princípio 12); e à sustentabilidade (Princípio 13). (Carta das Cidades Educadoras, 2020Carta das Cidades Educadoras. (2020). https://www.edcities.org/wp-content/uploads/2020/11/PT_Carta.pdf
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).

E, no último e terceiro bloco de princípios (14 a 20), relativo ao serviço integral das pessoas, as cidades deverão oferecer: promoção da saúde (Princípio 14); formação de agentes educativos (Princípio 15); orientação e inserção laboral inclusiva (Princípio 16); inclusão e coesão sociais (Princípio 17); corresponsabilidade contra as desigualdades (Princípio 18); promoção do associativismo e do voluntariado (Princípio 19); e educação para uma cidadania democrática e global (Princípio 20) (Carta das Cidades Educadoras, 2020Carta das Cidades Educadoras. (2020). https://www.edcities.org/wp-content/uploads/2020/11/PT_Carta.pdf
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).

Sob uma análise mais detalhada de seus princípios, é possível perceber que os deveres contidos na Carta das Cidade Educadora são uma extensão do direito à Educação, logo eles, na prática, devem mesclar-se aos projetos políticos municipais, de forma transversal, e ir ao encontro da educação permanente, educação integral e aprendizagem ao longo da vida, sem teor conteudista, mas com foco no comportamento, nas atitudes, nos valores, em cada ação desenvolvida.

De acordo com a página virtual da AICE, a Carta está em consonância com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (1948), com a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965), com o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), com a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989),com a Declaração Mundial da Educação para Todos (1990), com a Convenção nascida da Cimeira Mundial para a Infância (1990), com a 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher celebrada em Pequim (1995) e com a Declaração Universal sobre Diversidade Cultural (2001).

No Brasil, a Carta é condizente com as diretrizes legais da Constituição Federal de 1988 e com a Lei Federal nº. 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade), uma vez que todas almejam à participação integrada entre as ações da comunidade e do poder público, em prol do desenvolvimento sustentável, da participação cidadã, da gestão democrática, da igualdade, da justiça social e da qualidade de vida, entre outros aspectos que aparecem nesses documentos oficiais.

Morigi (2016, p. 40)Morigi, V. (2016). Cidades educadoras: possibilidades de novas políticas públicas para reinventar a democracia. Porto Alegre: Sulina. defende que, para a transformação de uma cidade em educadora, são necessárias políticas que assumam a intencionalidade “[...] formativa ‘dos’ e ‘nos’ projetos, com vistas a apoiar o desenvolvimento integral do(s) cidadão(s)”.

A cidade educa, nomeadamente através de instituições e das propostas culturais que veicula, das políticas ambientais, do tecido produtivo, do associativismo local etc. [...] Isso implica um compromisso por parte do poder local, enquanto representante dos seus habitantes, no sentido de agregar, num projeto político, os princípios de uma Cidade Educadora. Tal compromisso depende da colaboração de todos, num esforço organizado de trabalho em rede em prol de objetivos comuns

(Morigi, 2016Morigi, V. (2016). Cidades educadoras: possibilidades de novas políticas públicas para reinventar a democracia. Porto Alegre: Sulina., p. 40).

Portanto, a responsabilidade pelo direito a uma Cidade Educadora não se limita à Administração Municipal, cabe a todos: habitantes (individual ou associativamente), entidades, entre outros, comprometerem-se com esse desafio.

Nessa direção, ainda conforme o autor (2016, p. 43), a Cidade Educadora constitui-se como um “modelo organizativo, ou seja, assume-se como um modelo político-administrativo descentralizado”, o qual requer “diálogo entre sociedade civil e estruturas administrativas, pressupondo a cooperação público-privado e a participação dos cidadãos, numa tentativa de superar a fragmentação e duplicação de redes de serviços com vistas à racionalização dos recursos existentes” (Morigi, 2016Morigi, V. (2016). Cidades educadoras: possibilidades de novas políticas públicas para reinventar a democracia. Porto Alegre: Sulina., p. 43).

Por fim, para serem consideradas educadoras, as cidades devem oferecer todo seu potencial de forma a que não seja restritivo, deixando-se envolver por todos os seus habitantes e ensinando-os a envolverem-se nela.

3.1 Asociación Internacional de Ciudades Educadoras (AICE)

Segundo a página virtual4 4 Disponível em: http://www.edcities.org/quien-somos. Acesso em: 14 ago. 2023. , a AICE é uma associação sem fins lucrativos, constituída como uma estrutura permanente de colaboração entre governos locais comprometidos com a Carta das Cidades Educadoras, e está organizada em unidades administrativas estruturadas em redes compostas por delegações, redes temáticas e redes territoriais. Alves e Brandenburg (2018, p. 69)Alves, A. R., & Brandenburg, E. J. (2018). Cidades educadoras: um olhar acerca da cidade que educa. Curitiba: InterSaberes. sinalizam que

A criação das delegações e das redes temáticas e territoriais é impulsionada pelo Comitê Executivo com a intenção de reforçar o intercâmbio, a cooperação e a troca de experiências para a elaboração de projetos comuns, tendo em vista os princípios postulados pela Carta das Cidades Educadoras

(Alves & Brandenburg, 2018Alves, A. R., & Brandenburg, E. J. (2018). Cidades educadoras: um olhar acerca da cidade que educa. Curitiba: InterSaberes., p. 69).

No que tange às Redes territoriais, essas são agrupamentos de cidades na mesma área territorial, que pretendem trabalhar em conjunto sobre questões de interesse comum. Cada Rede estabelece sua organização e funcionamento de acordo com os estatutos da AICE e é coordenada por uma de suas cidades.

Em Rosário, na Argentina, está a sede da AICE para a América Latina. Nesse continente, estão ainda a Rede Brasileira de Cidades Educadoras (REBRACE), a Rede Mexicana de Cidades Educadoras (REMCE) e a Rede Argentina de Cidades Educadoras (RACE). Contudo, existem outras redes territoriais no mundo além dessas, como a Espanhola (RECE), Portuguesa, Francesa, Italiana, Ásia-Pacífico.

Quanto às Redes temáticas, essas constituem um grupo de trabalho integrado por representantes das prefeituras de distintas cidades pertencentes à rede, com interesse comum em uma temática concreta de sua gestão municipal e o desejo de trocar experiências a respeito, aprofundar o respectivo estudo e chegar a conclusões práticas que otimizem seu trabalho concreto e se ofereçam às demais cidades pertencentes à Rede. Cada Rede temática é coordenada por uma cidade que já propôs e que arbitra sobre seu funcionamento e gestão. Uma Rede temática deve ser dirigida por, no mínimo, cinco cidades, as quais acordarão sua proposta de funcionamento dentro das estipulações do presente regramento.

Em síntese, cada Rede territorial pode, além das Redes temáticas propostas pela AICE, propor as suas próprias Redes, seguindo os critérios já detalhados anteriormente.

De acordo com De Lima et al. (2020, p. 98)Asociación Internacional de Ciudades Educadoras - AICE. (2020). http://www.edcities.org
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, a AICE, igualmente,

incentiva ações educadoras nas cidades signatárias, organiza Congressos, seminários, exposições e, também busca promover o intercâmbio de experiências entre elas. Essas experiências constam do Banco Internacional de Documentos Ciudades Educadoras (BIDCE), assim como referências de livros, vídeos, artigos de revistas, dossiês, transcrições de conferências, conclusões de jornadas, seminários e congressos etc. (que contribuem para a reflexão teórica sobre o potencial educativo das cidades), ou seja, há documentos que discutem teoria e outros que remetem a relatos de práticas.

Para solicitar o ingresso da experiência no Banco, a cidade deve aceitar os critérios estabelecidos antes de preencher o formulário. O envio de experiências para o BIDCE autoriza a publicação da Secretaria da AICE.

Por meio do link “cidades associadas”, é possível escolher o continente, o país e/ou as cidades cujas experiências se buscam conhecer.

Do número total de cidades-membros à Rede (Janeiro 2024), a Espanha é o país que mais possui cidades associadas (236), seguida por Portugal (94). Na América, há cidades associadas em 10 países, totalizando 93 cidades. Só no Brasil tem-se 34, sendo que o país figura em terceiro lugar dos países com o maior número de cidades signatárias no mundo.

4 METODOLOGIA

O artigo, por ser de caráter ensaístico, reflexo de suas bases epistemológicas, teóricas e metodológicas, não segue a divisão e a lógica estabelecida pelas metodologias científicas tradicionais. Partindo de uma perspectiva de turismo compreendido como essencialmente pedagógico (TEP), objetiva estabelecer aproximações com Cidades Educadoras – essas entendidas sob o escopo da Carta das Cidades Educadoras e da AICE, sem separar análise e síntese interpretativa.

Conforme as palavras de Meneghetti (2011, p. 321)Meneghetti, F. K. (2011). O que é um Ensaio-Teórico? Revista de Administração Contemporânea RAC, Curitiba, v. 15(2), 320-332. https://www.scielo.br/j/rac/a/4mNCY5D6rmRDPWXtrQQMyGN/?format=pdf⟨=pt
https://www.scielo.br/j/rac/a/4mNCY5D6rm...
, “diferente do método tradicional da ciência, em que a forma é considerada mais importante que o conteúdo, o ensaio requer sujeitos, ensaísta e leitor, capazes de avaliarem que a compreensão da realidade também ocorre de outras formas”. E é isso que se propõe nesse texto, perspectivar caminhos para a efetivação dos princípios contidos na Carta via turismo, esse entendido sob um outro/novo olhar.

Para o desenvolvimento do estudo, tomou-se como ponto de partida, uma incursão no universo das Cidades Educadoras, desde sua origem em 1990 até janeiro de 2024, a partir de dados e documentos disponibilizados e acessados na página virtual da AICE e publicações científicas.

Nas primeiras incursões nesse material, mais especificamente na Carta, após leitura inspecional (Adler & Van Doren, 1974Adler, M. J., & Van Doren, C. A arte de ler. Rio de Janeiro: Agir, 1974.), constatou-se que não há menções ao turismo de forma direta e nem é feita referência às pessoas que acorrem às cidades (visitantes/turistas).

Essa constatação, de imediato, provocou reflexões e questionamentos, logo, achou-se pertinente realizar revisões bibliográfica e documental (virtual) na direção de verificar, nos estudos científicos e experiências práticas cadastradas no BIDCE, aproximações entre os dois conceitos (Turismo e Cidades Educadoras/AICE).

Como resultados da revisão bibliográfica5 5 Nas primeiras incursões, realizadas no Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), utilizaram-se como termos de busca avançada, entre aspas, o binômio Cidade Educadora e Turismo, escritos em língua portuguesa, inglesa (educating city e tourism), espanhola (ciudad educadora y turismo) e francesa (ville éducatrice e tourisme), no singular e no plural. Encontraram-se 22 artigos em periódicos revisados por pares. Como não havia explicitação no título dos dois termos pesquisados, optou-se por localizar nos textos os referidos termos e analisá-los para entender seus objetivos e se poderiam ser considerados afetos à pesquisa. , identificou-se que, apesar de alguns artigos responderem às buscas efetivadas e algumas teses e dissertações mencionarem os termos de busca, não foi possível localizar nenhum/a que abordasse o conceito de Cidade Educadora (sob o escopo da Carta das Cidades Educadoras) em relação/aproximação ao/com turismo entendido como essencialmente pedagógico (TEP).

Na continuidade da revisão documental realizada, considerados os relatos de experiência apresentados no BIDCE, pôde-se observar que, em um universo de mais de 500 experiências cadastradas, após leitura e tratamento hermenêutico das informações disponibilizadas, apenas 16 experiências abordam o termo turismo em suas iniciativas, sendo elas de cunho mais pragmático.

Essas aproximações evidenciam, na maioria das experiências identificadas, o foco no turismo, sobretudo na dimensão econômica, sendo perspectivado como decorrência das ações desenvolvidas nas Cidades Educadoras e não como um agente promotor de aprendizagens. Por mais que o turismo seja relacionado principalmente à qualificação e/ou à estruturação de espaços culturais e ambientais, não se identificou, por meio do relato das experiências, nenhuma ação em que o turismo tenha sido planejado intencionalmente com viés pedagógico/educacional.

Posto isso, verifica-se, por meio das experiências cadastradas e analisadas, aproximações entre turismo e Cidades Educadoras. No entanto, o turismo ainda se apresenta de forma coadjuvante. Assim, buscar extrapolar esse desempenho é o que se procura refletir nas aproximações seguintes, construídas teoricamente, em que se destacam a dimensão educacional da Cidade Educadora e a dimensão pedagógica que é constitutiva da essência do turismo. Para a construção das aproximações teóricas entre o conceito de turismo entendido como essencialmente pedagógico (TEP) e os princípios da Carta das Cidades Educadoras, partiu-se de dois macroprismas.

O primeiro, referente à dimensão pedagógica/educacional do turismo no contexto das Cidades Educadoras, sob dois vieses: (a) conceito[s] de educação, quando se abordam as Cidades Educadoras e a participação do turismo e (b) implicações passíveis de serem depreendidas, tendo por foco a dimensão essencialmente pedagógica do turismo nas Cidades Educadoras.

O segundo, desde a concepção do processo de aprendizagem até a promoção de ações/experiências turístico-pedagógicas em Cidades Educadoras, macroprisma esse analisado igualmente sob dois vieses: (a) ação dos sujeitos nos processos de aprendizagem e (b) processos de interação, mediação e promoção de ações/experiências turístico-pedagógicas em Cidades Educadoras.

Segue, na próxima, seção, o aprofundamento reflexivo das aproximações mencionadas.

5 APROXIMAÇÕES TEÓRICAS CONSTRUÍDAS - INCURSÕES TEÓRICAS E REPERCUSSÕES PRAGMÁTICAS (O TURISMO COMO AGENTE PROMOTOR E PROTAGONISTA DE APRENDIZAGENS EM CIDADES EDUCADORAS)

Para a construção das aproximações teóricas, partiu-se do tema educação como foco primeiro de afinidade do “Turismo” e das “Cidades Educadoras”, assim, duas linhas analíticas foram estabelecidas: a primeira, que buscou analisar conceito(s) de educação quando se abordam as Cidades Educadoras (Carta) e a participação do turismo nesse contexto; e a segunda, que procurou depreender possíveis implicações teórico-práticas, tendo por foco a dimensão essencialmente pedagógica do turismo nas Cidades Educadoras.

Considerando a primeira linha, constatou-se, a partir de leitura hermenêutica, não existir na Carta um conceito explícito de educação, sendo possível, no entanto, depreender que versa sobre formação integral dos sujeitos, educação permanente, educação integral e aprendizagens ao longo da vida. Portanto, um conceito amplo, que desborda os limites do âmbito escolar, tendo por foco aspectos relacionados a questões como justiça social, cidadania democrática, inclusão, igualdade, qualidade de vida, sustentabilidade, diversidade, entre outros – aspectos esses que se alinham às aspirações do turismo quando entendido como essencialmente pedagógico, porquanto se alicerçam em uma visão sob a qual os sujeitos são compreendidos como seres inconclusos, sempre em processo de desenvolvimento, em devir, ou seja, passíveis de (re)construção constante, a partir de uma intencionalidade clara que favoreça aprendizagens importantes para o seu desenvolvimento integral e que delas possam resultar transformações pessoais e sociais.

De outra parte, no que diz respeito ao ato de aprender, refletiu-se sobre a necessidade de superação da perspectiva empirista ingênua, segundo a qual o real estaria totalmente franqueado – o que, epistemologicamente, sob a leitura de Köche (1997, p. 2)Köche, J. C. (1997). O acesso ao real: reflexão sobre os caminhos da ciência. In: Bombassaro, L. C., & Paviani, J. (org.). Filosofia, lógica e existência. Caxias do Sul: Educs., significaria que “[...] o mundo está aí, à nossa frente. Basta tomá-lo e apreendê-lo”.

Pedagogicamente, sob o prisma teórico-pragmático, a superação do empirismo ingênuo possibilita considerar espaços educativos, ou considerados como tal, em uma cidade, não como objeto dado, “a ser tomado”, mas como potencializador de aprendizagens em suas mais diversas vertentes. Isso encontra eco na proposição de Popper (2007)Popper, K.R. (2007). A lógica da pesquisa científica. São Paulo, SP: Cultrix., para quem se apreende o mundo a partir de nossas redes teóricas.

De sorte que os espaços (incluídos os culturais) aos quais os sujeitos (escolares ou não) se deslocam podem encerrar possibilidades de dinâmicas contínuas de aprendizagem relacional e de transformações decorrentes no sujeito e no objeto em relação, acarretando às instâncias de gestão, pública ou privada, a necessária superação dos modelos convencionais associados a Turismo pedagógico, circunscritos, via de regra, ao âmbito escolar.

Como um corolário dessa pluralidade de espaços integrados, deriva a ampliação de públicos abrangidos nas atividades de turismo marcadas por sua essencialidade pedagógica: sujeitos aprendentes discentes de diferentes faixas etárias, sujeitos aprendentes autóctones não ligados à educação formal, sujeitos aprendentes alóctones, sujeitos aprendentes visitantes/turistas que acorrem à cidade – todos podendo ser mobilizados para conhecer, aprender, vivenciar o outro, o novo, no ou fora de seu ambiente cotidiano, inseridos em processos de educação integral e permanente. E mais: estariam assim perspectivados processos de inclusão social, cuja importância é sublinhada na Carta das Cidades Educadoras.

Justamente por ser este um momento de repensar o fazer, vale aqui reler o que postulam os próprios princípios da Carta das Cidades Educadoras, seu propósito fundamental, sua finalidade de existência (Princípios 1 e 6):

Formar nos aspectos mais diversos seus habitantes ao longo da vida (P1). Para tanto será necessário planejar e governar, adotando medidas e tomando decisões com consciência de seu impacto educacional e formativo (P6), para a eliminação de obstáculos de todos os tipos que interfiram no direito fundamental de todos os indivíduos à Educação, garantidas as condições de liberdade e igualdade, meios e oportunidades de formação, entretenimento e desenvolvimento pessoal (P1).

O fragmento alerta que não basta tomar ciência de como uma cidade poderia se transformar em educadora; torna-se primordial planejar e governar nessa direção – o que direciona explicitamente à dimensão da gestão.

Portanto, em sendo o desejo de conhecer, aprender mola propulsora da construção de conhecimentos, a sociointeração, em diferentes graus e formas, contribui para fertilizar o terreno em que os sujeitos envolvidos possam desenvolver aprendizagens. Concorrem especialmente para isso processos de mediação e promoção de ações/experiências turísticas intencionalmente pedagógicas, via Cidades Educadoras, associados à superação do prevalecimento do automatismo, como, por exemplo, em práticas de recepção nos processos de prestação de informações no turismo.

É na relação com o outro, com o meio, que se dá o processo de construção do conhecimento. Isso significa dizer que, se o desenvolvimento integral dos sujeitos constitui-se em objetivo intrínseco à dimensão pedagógica do turismo inserida na gestão governamental e alinhada com os princípios da Cidade Educadora, a ação educativa precisa estar vinculada à criação de condições que permitam aos sujeitos aprendentes vivenciarem esses processos, o que requer organização e promoção de aprendizagens (essas, sempre um devir), para além da contemplação; requer ações pedagógicas intencionalmente planejadas. Assim, sujeito e gestão aí passam a configurar-se indissociavelmente como elementos fundantes de aprendizagens.

As Cidades Educadoras apresentam um grande diferencial no que tange a todo esse processo, pois que detêm um sistema governamental, administrativo, orçamentário já organizado e estruturado de forma a amparar e sustentar iniciativas educacionais e pedagógicas a partir de todas as áreas de atuação governamental. Essa organização pode se configurar como uma qualidade distintiva em comparação com outras cidades que não pertencem à Rede Internacional de Cidades Educadoras. Levar esse diferencial à prática demanda ação interacional/relacional dos sujeitos e, por parte da gestão pública do turismo local, intencionalidade planejada e clareza sobre a relevância de processos de mediação (singular ou institucional) passíveis de concretização sob diferentes formas.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por mais que no senso comum os sujeitos relacionem o turismo ao ato de conhecer/aprender, essa aproximação não se mostra tão explícita no universo acadêmico. No caso abordado neste artigo de teor ensaístico, frequentemente o pedagógico, quando associado ao turismo, é contingencialmente relacionado ao âmbito da educação formal, representado pelo segmento denominado de turismo pedagógico. Porém, por justamente ser um texto ensaístico e as reflexões aqui apresentadas estarem intimamente ligadas ao novo/ ao fora do padrão, o foco das reflexões concentrou-se na essencialidade pedagógica intrínseca ao turismo, relacionando-a ao contexto das Cidades Educadoras (AICE).

Por meio da análise detalhada dos princípios que constam na Carta das Cidades Educadoras, documento balizador da AICE, pôde-se depreender que, embora não haja menção explícita ao termo turismo, nem aos visitantes/turistas, ao entender o turismo como essencialmente pedagógico, ou seja, promotor e protagonista de aprendizagens, todos os princípios são passíveis de serem desenvolvidos e proporcionados via ações turísticas, desde que seu planejamento leve em consideração a dimensão pedagógica intrínseca ao turismo e a perspective intencionalmente, pois se os grandes objetivos tanto das Cidades Educadoras quanto do turismo, nesse entendimento, são a transformação pessoal e social, é pelas ações desses sujeitos que isso poderá se tornar realidade.

A confluência das reflexões ensaísticas encaminhou a hipótese de que um percurso possível para a efetivação dessas aproximações e teorizações construídas seria via políticas públicas de turismo, pois ambos os processos pensados e discutidos teriam, na gestão pública, seu ponto de articulação e desenvolvimento preliminar.

Assim, para além de sujeitos motivados/mobilizados para aprender/conhecer e se transformar, é basilar incluir às reflexões a intencionalidade pedagógica, pois somente com propósitos bem definidos poder-se-á acompanhar avanços no processo, tanto dos sujeitos envolvidos, quanto dos destinos que queiram se qualificar como pedagógicos/educacionais.

Portanto, pelo viés da gestão pública do turismo, novas proposições podem ser desenvolvidas nas Cidades Educadoras, tendo o turismo como protagonista de aprendizagens, incluindo aí público local e público que visita à cidade. Com foco na gestão pública do turismo e na inserção da dimensão pedagógica no rol de seus eixos estratégicos, o leque de ações/experiências pode se expandir, favorecendo que destinos ainda sem vocação turística definida venham a integrar esse viés à gestão, uma vez que a cidade já está envolvida e comprometida com a temática educacional. Ainda, aqueles com planejamento mais definido/orientado podem dilatar seus escopos e pensar o turismo e a educação de forma transversal, criando experiências diferenciadas que talvez só possam ser vivenciadas naquele destino.

É importante relembrar que ser Cidade Educadora é considerar a educação em todas as áreas de atuação governamental, e o turismo, em muitas dessas cidades, apresenta órgão oficial dentro da Administração pública local, logo, poderia colocar-se à frente na organização de ações nessa direção, assumindo também responsabilidade e compromisso com a Rede e seus princípios.

A gestão pública do turismo, portanto, diante disso e por meio de suas decorrentes políticas públicas, poderá tornar-se um elemento potencializador e impulsionador da ativação da latência turístico-pedagógica de uma cidade, sobretudo as que se propõem educadoras. Há muito a ser aprofundado nas tessituras entre Cidades Educadoras, Turismo Essencialmente Pedagógico (TEP) e Políticas públicas e as discussões aqui apresentadas já apontam para o desenvolvimento e continuidade dos estudos nesse campo de investigação.

AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo apoio financeiro (bolsa/taxa PROSUC – 2018/2022) à pesquisadora Francielle de Lima, durante a sua formação – nível doutorado no Programa de Pós-graduação em Turismo e Hospitalidade da Universidade de Caxias do Sul, que subsidiou a realização da pesquisa “A dimensão pedagógica intrínseca ao turismo perspectivada na concepção de Cidade Educadora e na construção de processo de (re)formulação de políticas públicas de turismo com viés pedagógico”. O artigo se origina desse estudo.

  • Como Citar: Lima, F., & Ferreira, L. T. (2024). O turismo como agente promotor e protagonista de aprendizagens em cidades educadoras (AICE): perspectivando caminhos para a efetivação de seus princípios. Revista Brasileira de Pesquisa em Turismo, São Paulo, 18, e-2902, 2024. https://doi.org/10.7784/rbtur.v18.2902

REFERÊNCIAS

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  • Asociación Internacional de Ciudades Educadoras - AICE. (2020). http://www.edcities.org
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  • Carta das Cidades Educadoras. (2020). https://www.edcities.org/wp-content/uploads/2020/11/PT_Carta.pdf
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  • Köche, J. C. (1997). O acesso ao real: reflexão sobre os caminhos da ciência. In: Bombassaro, L. C., & Paviani, J. (org.). Filosofia, lógica e existência Caxias do Sul: Educs.
  • Lima, F. de. (2014). Incursões reflexivas sobre o conceito de turismo e a qualificação “pedagógico” no binômio “Turismo pedagógico” [Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Turismo da Universidade de Caxias do Sul]. Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. Repositório Institucional da UCS. https://repositorio.ucs.br/xmlui/bitstream/handle/11338/840/Dissertacao%20Francielle%20de%20Lima.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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  • Lima, F. de. (2022). A dimensão pedagógica intrínseca ao turismo perspectivada na concepção de cidade educadora e na construção de processo de (re)formulação de políticas públicas de turismo com viés pedagógico. [Tese de Doutorado, Programa de Pós-Graduação em Turismo e Hospitalidade da Universidade de Caxias do Sul]. Caxias do Sul, Rio Grande do Sul. Repositório Institucional da UCS. https://repositorio.ucs.br/xmlui/bitstream/handle/11338/10447/Tese%20Francielle%20de%20Lima.pdf?sequence=1&isAllowed=y
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  • Meneghetti, F. K. (2011). O que é um Ensaio-Teórico? Revista de Administração Contemporânea RAC, Curitiba, v. 15(2), 320-332. https://www.scielo.br/j/rac/a/4mNCY5D6rmRDPWXtrQQMyGN/?format=pdf⟨=pt
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  • Popper, K.R. (2007). A lógica da pesquisa científica São Paulo, SP: Cultrix.

Editor:

Leandro B. Brusadin.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2023
  • Aceito
    19 Fev 2024
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