RESUMO
Trata-se de uma carta ao editor elogiando o editorial publicado na Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões que detalha o processo de concessão de títulos de especialista na área da cirurgia. Ao mesmo tempo, contudo, questiona a emissão desses títulos para médicos que não concluíram residência médica.
Palavras-chave: Internato e Residência; Educação Médica; Especialização
ABSTRACT
This is a letter to the editor praising the editorial published in the Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões which details the process of granting specialist titles in the field of surgery. At the same time, however, the issuance of these titles to doctors who have not completed medical residency is questioned.
Keywords: Internship and Residency; Education, Medical; Specialization
Gostaria de parabenizar a Revista do Colégio Brasileiro de Cirurgiões pelo excelente editorial que aborda a questão da concessão do título de especialista por parte das sociedades médicas1.
Não há dúvida que as sociedades científicas têm um papel importantíssimo em confirmar a qualidade dos seus médicos especialistas. É isso que, entre outros fatores, garante maior segurança no cuidado à população, que tem o direito aos melhores níveis de atendimento em saúde no nosso país. Louvo, portanto, a abrangência e o rigor técnico assumidos pelo CBC para esse tipo de certificação.
A fundamentação para tanto, dada pelos autores, é sólida, partindo dos conceitos de competência e de profissionalismo, temas muito caros para quem trabalha diretamente com avaliação e formação médica nos seus diversos níveis. Isso é ainda mais relevante quando nos referimos a profissionais dos quais se espera uma prática de excelência.
Contudo, entendo que o editorial acaba suscitando outras discussões igualmente importantes, em especial sobre a terminalidade do curso de medicina e a formação da identidade profissional dos médicos.
Esse debate não é novo2,3. No Brasil, há mais de 40 anos esse assunto tem entrado em discussão, mas sempre de maneira marginal e, talvez justamente por isso, tenhamos avançado tão pouco nesse aspecto.
A experiência internacional nos mostra que a “terminalidade” já foi resolvida há bastante tempo, a ponto de que a grande maioria dos países não permite uma prática profissional plena e automática imediatamente após a graduação do curso médico. Geralmente há exigências de um exame de proficiência ou de um período de atuação com algum tipo de supervisão até que seja atingido um nível de competência considerado seguro para o exercício da profissão de modo independente4,5.
Essa é uma consequência natural frente a um cenário de complexidade crescente da atenção à saúde em todo o mundo e que tem exigido uma preparação acadêmica correspondente6.
Nessa perspectiva, o modelo ideal para a preparação para uma entrada segura do médico no mercado de trabalho é a residência, considerada ainda como o padrão-ouro na formação de médicos especialistas.
Cabe destacar aqui que o que define um especialista, além dos conhecimentos, habilidades e atitudes, é o “ser” especialista7. O processo de formação da identidade profissional é complexo e intenso, onde o médico, progressivamente, incorpora de forma indelével a identidade profissional do grupo no qual estará vinculado. Isso se dá por intermédio do trabalho e da interação muito próxima com médicos mais experientes na área (preceptores), com seus pares e em serviços bem estruturados8. Em resumo, é isso que a própria residência médica oferece há mais de cem anos e que a torna tão respeitada. O especialista é, então, um profissional que assume certas características próprias do seu campo de conhecimento e que reivindica uma identidade e valores próprios do grupo. Esse, portanto, é um conceito que extrapola o domínio das competências e do profissionalismo.
Estou consciente das enormes dificuldades do país, das desigualdades regionais, das necessidades de provimento para áreas desassistidas e dos orçamentos sempre insuficientes para a saúde nos três níveis de gestão governamental. Mas, mesmo nesse contexto, há duas perguntas intimamente relacionadas e que precisam ser urgentemente respondidas: (a) até quando emitiremos títulos de especialistas para médicos sem residência?; e (b) até quando permitiremos que um médico recém-formado trabalhe sem nenhum tipo de supervisão?
Infelizmente temos testemunhado médicos já formados inseridos em “estágios” ou cursos precários, com regulamentação frágil - especialmente em relação aos critérios de ingresso e de avaliação de competências -, com supervisão nem sempre adequada, parte teórica questionável (se sequer existente) e com dedicação apenas parcial à área escolhida durante a sua “formação”. São médicos que lutam por uma sobrevivência minimamente decente fazendo plantões em serviços de emergência, pronto-atendimentos ou e até em internações hospitalares de setores diferentes da sua escolha profissional, enquanto aguardam a chancela da sua almejada especialidade para ser chamado de “especialista” e poder, por consequência, ter o Registro de Qualificação de Especialidade (RQE) nos Conselhos Regionais de Medicina.
Na minha opinião, esse caminho duplo para a titulação deve ter um prazo para acabar. A titulação pelas sociedades científicas deveria ser concedida - com critérios rigorosos, como os adotados pelo CBC - somente aos médicos especialistas formados por meio de programas de residência formalmente credenciados pela Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM). É evidente que para isso ocorrer, há, concomitantemente, o imperativo de, por um lado, expandir a quantidade e a qualidade dos programas de residência em todas as especialidades (e de acordo com as necessidades do país) e, por outro lado, garantir um valor adequado para a bolsa de residência.
Com isso, retomamos a questão da terminalidade do curso médico, uma vez que a discussão sobre graduação e a pós-graduação/residência não pode ser feita separadamente. Por melhores que sejam as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), há a necessidade de incluir mais fortemente o conceito de que a formação médica é um processo contínuo, marcada por etapas de avaliação e certificação periódicas, que deveriam iniciar na graduação e seguir pelo tempo necessário durante a atividade profissional. Somente assim será possível garantir um padrão de qualidade assistencial que a sociedade brasileira exige e tem direito. Entendo, por fim, que esse deve ser um esforço conjunto do Estado e de toda a sociedade.
Referências bibliográficas
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
20 Set 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
09 Jun 2024 -
Aceito
11 Ago 2024