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Psicanálise e alfabetização: um novo olhar

RELATOS DE CASOS

Psicanálise e alfabetização: um novo olhar

Manoela de Souza Silva PiccirilliI; Regina Maria FreireII

IPsicóloga; Mestranda em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, Brasil

IIFonoaudióloga; Professora Titular do Departamento de Clínica Fonoaudiológica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Manoela de Souza Silva Piccirilli Rua Gastão Vidigal, 245 – apto 03 Indaiatuba – SP – Brasil CEP: 13339-150 E-mail: manoelapiccirilli@hotmail.com

Pretende-se, com este texto de opinião, trazer ao leitor um conjunto de considerações sobre o trabalho de Dunker, CIL "Transitivismo e Letramento: constituição do sujeito e entrada no discurso alfabético", apresentado em um evento científico sobre alfabetização. Deter-nos-emos, dentre os vários aspectos discutidos pelo texto, naquele que, no momento, mais nos chama atenção, a saber, a noção de letra elaborada pelo campo psicanalítico.

O autor baseia seu trabalho na hipótese que a alfabetização é um processo mais específico do que aprender a ler e escrever. Assim, o que chama de "alfabetização" pode ser entendido como a entrada em um discurso, no sentido lacaniano e foucaultiano definido como:

a) Leis de coerção que estabelecem efeitos de poder, autoridade ou sanção;

b) Uma ordem ou necessidade lógica, que tornam um discurso capaz de reprodução e transmissibilidade, segundo razões de coesão e coerência; e

c) Dispositivos de individualização ou de produção de classes ou conjuntos. Por exemplo: os que sabem ler, os analfabetos, os analfabetos funcionais, ou seja, um discurso que contém regras de inclusão e exclusão.

O pensamento do autor é que a criança lê e escreve muito antes de ser alfabetizada. Para isso articula conceitos que fundamentam sua hipótese sustentando que para a criança entrar no discurso alfabético é preciso, em um primeiro momento, um trabalho de negação da primeira incidência da letra. Mas de que letra esse autor nos fala?

Para a Psicanálise existe uma noção de letra que é um pouco diferente na Pedagogia e na Linguística. Há a idéia de que exista um letramento primário (primeira incidência da letra) antes mesmo de a criança falar. Esse letramento primário seria a escrita primeira da criança, uma escrita que se relaciona a traços psíquicos e não a traços de grafia. As letras que o autor desse trabalho leva em consideração para pensar a entrada da criança no discurso alfabético não são as do alfabeto. Portanto, tomemos a letra como as marcas inscritas no aparelho psíquico de cada sujeito, marcas que tem a ver com o que cada um escuta desde o início de sua vida.

Para além do colocado acima, o autor afirma que entrar no discurso alfabético não é apenas um processo de construção de palavras e frases e conjuntos significativos como fonemas e letras, mas também, um novo estado na constituição do sujeito. Abre uma nota rápida sobre a constituição do sujeito delineando ainda mais o seu estudo. Explica essa noção fazendo um contraponto com duas operações características da Psicologia do Desenvolvimento: a construção e a formação. A primeira definida como "um processo de acúmulo e reequilibração de conceitos e experiências e a outra como um conjunto de contradições que se resolve periodicamente em soluções que contém de si o processo que lhes deu a causa"1 (Dunker CIL, 2011 p. 2). Aponta que, na constituição, o olhar deve se concentrar no processo e não no que se ganha ou se acumula, ou na solução e criação de novos problemas. Cabe perguntar: "o que é que nós perdemos para chegar até aqui?". Conclui que a letra é exatamente o que a criança perde para entrar na linguagem, pois, para que uma pessoa se torne um sujeito, para que alguém possa falar, muito antes de conceber a alfabetização, é preciso que a experiência do letramento primordial seja "soterrada". Por meio desse "soterramento", será possível surgir a noção de significante tão importante para a Psicanálise e, podemos complementar, não menos importante para a Fonoaudiologia e a Psicologia.

Em se tratando desse assunto, é importante destacar que Lacan pensou o significante por meio da Linguística de Saussure2 (1997), porém invertendo a posição dos elementos do algoritmo fundador, para identificar a primazia do significante sobre o significado. Pode-se, assim, a partir do significante psicanalítico, abordar a concepção de letra.

Segundo Guimarães3 (2007), Lacan4 concebeu a letra como aquilo que suporta o significante – estando aquela referida à instância simbólica.

Tomar a letra como as marcas inscritas no aparelho psíquico de cada sujeito, marcas essas que cada um escuta desde o início de sua vida é o que teoriza a Psicanálise lacaniana e a qual corroboramos. A letra ao ser "traduzida" ou interpretada apresenta-se como significantes pelos discursos falados ou escritos.

Entendemos que a noção de letra refere-se à historicidade de cada um de nós. Se pensarmos que o processo de passagem do letramento primário para o secundário produz sintomas, existe uma diferença entre tomarmos os sintomas produzidos pelas crianças durante o processo de alfabetização, como um dado objetivo e o tomarmos segundo o raciocínio que vimos desenvolvendo até agora. O sintoma representaria um material discursivo que diz respeito a questões e a história de vida daquele sujeito. O que queremos dizer é que os supostos "problemas de aprendizagem" que recaem como "transtornos" e circulam nas salas de aula, devem ser repensados. Por meio da perspectiva de Dunker é possível enxergar os "tropeços" da criança no momento da alfabetização como um processo que está implicando ali um sujeito e sua historicidade. Essa afirmação permite até mesmo ao professor assumir uma nova posição perante as dificuldades enfrentadas no trato com questões de aprendizagem, possibilitando, assim, novas estratégias de intervenção para a criança.

Avaliamos que a Psicanálise possa contribuir com esse tema e é sabido que muitas pesquisas na figura dessa ciência foram e continuam sendo realizadas. Todavia, indagamos como essas pesquisas chegam aos professores alfabetizadores. Elas circulam por esses agentes de ensino? Pois, embora esse trabalho tenha sido apresentado em um evento com a presença de professores de ensino básico, questiona-se, ainda, até onde terá ido sua compreensão e posterior reflexão sobre a prática e o modo de olhar seu aluno. Será preciso mais contato entre a prática e essa teoria do sujeito, que é a psicanálise? Sugerimos que sim e analisamos que esse manuscrito poderá ser mais um modo de dar continuidade a essa discussão, pois a hipótese da existência de um letramento anterior à alfabetização representa um avanço para as pesquisas nesse assunto.

Recebido em: 30/11/2012

Aceito em: 22/03/2013

Conflito de interesses: inexistente

Agradecimentos: CAPES

  • 1. Dunker, CIL. Transitivismo e Letramento: constituição do sujeito e entrada no discurso alfabético. Projeto A Alfabetização e seus Avatares; 2011; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, Brasil.
  • 2. Saussure F, Curso de linguística geral. 20 ed. São Paulo: Cultrix; 1997.
  • 3. Guimarães BF. Escrita e autoria: efeitos da escrita sobre o sujeito que escreve [trabalho de mestrado]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina. Curso de Psicologia. Programa de Pós-Graduação em Psicologia; 2007
  • 4. Lacan J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Lacan, J. autor. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 1998. p. 496-533.
  • Endereço para correspondência:

    Manoela de Souza Silva Piccirilli
    Rua Gastão Vidigal, 245 – apto 03
    Indaiatuba – SP – Brasil
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Set 2013
    • Data do Fascículo
      Ago 2013
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