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Requisitos exigidos pelo mercado aos praticantes da contabilidade na segunda metade do século XIX* * Este trabalho foi apresentado no XV Congresso USP de Iniciação Científica em Contabilidade, São Paulo, SP, Brasil, julho de 2018.

RESUMO

A pesquisa objetiva identificar os requisitos exigidos pelo mercado aos praticantes da contabilidade na segunda metade do século XIX no estado do Pará. Diferenciando-se da literatura existente, esta pesquisa amplia a compreensão da história da profissão contabilística enquanto ocupação, por meio do uso de conceitos advindos da teoria sociológica das profissões. A relevância do tema escolhido recai sobre a compreensão do impacto dos requisitos exigidos ao praticante da contabilidade no processo de profissionalização e na modelagem dos limites da estrutura ocupacional. As evidências proporcionam a possibilidade de fortalecimento das pesquisas da área da história da contabilidade ao demonstrar a dificuldade de definição do que era um “praticante da contabilidade”, uma vez que a expressão abrangia uma infinidade de situações de emprego, o desempenho de diversas tarefas e incluía subocupações especializadas. Trata-se de pesquisa de arquivo, baseada em anúncios de emprego publicados em jornais que circulavam no Pará, no período de 1859 a 1888, disponíveis na Biblioteca Nacional do Brasil. Os requisitos analisados foram características demográficas (sexo, idade, nacionalidade e estado civil) e competências. Os achados foram comparados com os de pesquisas similares, bem como com obras de recorte temporal hodierno. Os resultados desta pesquisa indicam que o mercado exigia que os praticantes contábeis fossem do sexo masculino, na faixa etária de 12 a 16 anos, com boa conduta atestada por fiador e conhecimento prático que nem sempre era restrito ao universo contábil. Os achados demonstram que não havia definição objetiva dos limites da identidade da ocupação e, em essência, os requisitos exigidos dos praticantes da contabilidade na segunda metade do século XIX persistem temporalmente. A contribuição desta pesquisa consiste em ampliar e aprofundar a compreensão histórica sobre a natureza da ocupação contábil no Pará, espaço de menor proeminência mercantil durante a segunda metade do século XIX.

Palavras-chave:
história da contabilidade; praticante da contabilidade; características demográficas - Pará; teoria das profissões; mercado de trabalho brasileiro

ABSTRACT

This study aims to identify the requirements demanded of accounting practitioners by the market in the second half of the 19th century in the state of Pará. Standing out from the existing literature, this study broadens the understanding of the history of the accounting profession as an occupation, through the use of concepts derived from the sociological theory of professions. The relevance of the topic chosen lies in understanding the impact of the requirements demanded of accounting practitioners on the professionalization process and on the modeling of the limits of the occupational structure. The evidence provides the possibility of strengthening the research in the area of accounting history by demonstrating the difficulty of defining what an “accounting practitioner” was, since the expression covered an infinity of employment situations, the performance of various tasks, and included specialized sub-occupations. The study involves archival research, based on job advertisements published in newspapers that circulated in Pará in the period from 1859 to 1888, available from the National Library of Brazil. The requirements analyzed were demographic characteristics (sex, age, nationality, and marital status) and competences. The findings were compared with those of similar studies, as well as with studies that analyze a contemporary period. The results of this research indicate that the market required accounting practitioners to be male, between 12 and 16 years old, with good conduct confirmed by a reference provider, and practical knowledge that was not always restricted to the accounting universe. The findings demonstrate that there was no objective definition of the limits of the identity of the occupation and, in essence, the requirements demanded of accounting practitioners in the second half of the 19th century persist over time. The contribution of this research consists of broadening and deepening the historical understanding of the nature of the accounting occupation in Pará, an area of less commercial prominence during the second half of the 19th century.

Keywords:
accounting history; accounting practitioner; demographic characteristics - Pará, theory of professions; Brazilian job market

1. INTRODUÇÃO

A prática contábil se baseia em um conjunto de conceitos abstratos próprios utilizados para conceder realidade a certos aspectos da vida cotidiana por meio de seu registro em livros de contas (Hines, 1988Hines, R. D. (1988). Financial accounting: in communicating reality, we construct reality. Accounting, Organizations and Society, 13(3), 251-261.). Esses conceitos são importantes para diferenciar a prática da contabilidade de outras práticas na divisão do trabalho no seio social (Macdonald, 1999Macdonald, K. M. (1999). The sociology of the professions. London: Sage Publications.). O reconhecimento da diferenciação da prática contábil e de seus praticantes no Brasil ocorre por meio do Estado a partir do final do século XIX. O Código Comercial de 1850, por exemplo, obrigava a utilização da escrituração contábil aos comerciantes, bem como apresentava o guarda-livros e o caixeiro como agentes auxiliares do comércio. Nessa época, ambos faziam parte do grupo amplo e heterogêneo de trabalhadores do comércio, cujas ocupações e atribuições ainda não estavam tão bem delimitadas (Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.).

Considera-se que toda ocupação tem um histórico que, em parte, pode ser descrito pelas mudanças nas atividades exercidas, nos valores que lhes são dados e no ambiente no qual a ocupação está inserida (Hughes, 2009Hughes, E. C. (2009). The sociological eye: Selected papers. New Brunswick: Transaction Books.). Assim, para compreender uma profissão no presente é pertinente compreendê-la enquanto ocupação, ou seja, entender sua história. Esta pesquisa, portanto, centra-se no período em que as pessoas que praticavam a contabilidade não eram consideradas um “grupo particular”, nem a própria contabilidade era uma área definida na divisão social do trabalho para responder à seguinte questão-problema: quais os requisitos exigidos aos praticantes da contabilidade pelo mercado no século XIX? Aqui, utiliza-se o termo “praticante da contabilidade” em substituição à “profissional da contabilidade”, pois se procura estabelecer a relação com o conceito de ocupação e evitar a transposição do conceito (Loraux, 1992Loraux, N. (1992). Elogio do anacronismo. In A. Novaes (Ed.), Tempo e história (pp. 57-69). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) sociológico moderno do termo “profissão” (Macdonald, 1999Macdonald, K. M. (1999). The sociology of the professions. London: Sage Publications.) para outra temporalidade. Considerando “requisitos” como “coisa necessária e indispensável” ou ainda “condição indispensável ou exigência”, este estudo se interessa, particularmente, pelas características demográficas e competências dos praticantes da contabilidade. A busca pelos requisitos terá como fonte principal anúncios de oportunidade de emprego publicados no período de 1859 a 1888 em jornais impressos na província do Pará, atualmente disponíveis na Biblioteca Nacional Digital do Brasil (BNDigital).

No Brasil, a literatura relacionada aos praticantes da contabilidade que atuavam anteriormente ao reconhecimento da profissão, em 1946, vem sendo desenvolvida nomeadamente por historiadores (e.g., Câmara, 2007Câmara, B. A. D. (2007). Vassoura, balcão, escritório e rua: a caixeiragem como carreira. Almanack Braziliense, 6, 39-53.; Martinho, 1976Martinho, L. M. (1976). Organização do trabalho e relações sociais nas firmas comerciais do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (18), 41-62., 1993Martinho, L. M. (1993). Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbaqno em desenvolvimento. In L. M. Martinho & R. Gorenstein (Eds.), Negociantes e caixeiros na sociedade da independência (pp. 21-124). Rio de Janeiro, RJ: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração.; Oliveira, 2013Oliveira, R. (2013). Demandas por qualificação profissional: Recife, segunda metade do século XIX. Revista Brasileira de Educação, 18(54), 629-794.; Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.; Santos, 2009Santos, M. A. da S. (2009). Casa e balcão: os caixeiros de Salvador (1890-1930). Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia.). Tais estudos concentram suas análises nas províncias do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, provavelmente por serem consideradas, já na época imperial, como as que tinham um setor mercantil proeminente, digno de tratamento tributário majorado em relação às demais (Lei n. 60, de 20 de outubro de 1838Law n. 60, of October 20th of 1838. Setting expenses and budgeting revenue for the 1939-1840 financial year. In Coleção das Leis do Império do Brasil de 1838 (Book I, Part I). Rio de Janeiro, RJ: Tipografia Nacional. ). Espaços de menor destaque mercantil, como a província do Pará, ainda não foram objeto de pesquisas semelhantes, o que justifica os esforços deste estudo. Dessa forma, esta pesquisa tem a expectativa de contribuir para essa literatura, diferenciando-se não apenas pelo espaço geográfico da análise, mas por meio da fundamentação na sociologia das profissões e pelo enfoque crítico dado pela comparação dos resultados com aspectos da atualidade, ou seja, a verificação da persistência dos achados na longa duração.

Este texto foi dividido em cinco seções. A primeira é dedicada à apresentação do contexto da época analisada, com destaque para questões de cunho político, econômico e social no Pará. A próxima seção apresenta o referencial teórico que suporta as análises, realçando discussões disponíveis na literatura sobre os praticantes da contabilidade e ocupações. Na sequência, o percurso metodológico adotado para a realização da pesquisa é evidenciado. Procede-se à discussão por meio da confrontação das preposições teóricas com as evidências empíricas na seção 4. A seção 5 apresenta as considerações finais e recomendações para futuras pesquisas.

2. CENÁRIO POLÍTICO, ECONÔMICO E SOCIAL

A área que atualmente constitui o estado do Pará era formalmente denominada, no período de 1821 a 1889, Província do Grão-Pará (Gregório, 2011Gregório, V. M. (2011). Dividindo o Grão-Pará: os debates para a criação da província do Rio Negro na Câmara dos Deputados, 1826-1828. Almanack, (1), 137-152.). Desde sua emancipação política, em 1822, a Província do Grão-Pará convivia em um clima turbulento, propício ao surgimento de movimentos que representavam a luta de uma maioria formada por índios, mestiços e escravos. Essa população era utilizada como mão-de-obra pela minoria branca, em regime de semiescravidão nas atividades de exploração das drogas do sertão (e.g., cravo, pimenta, plantas medicinais), na extração de madeiras e na pesca. Essa minoria branca era formada, principalmente, por comerciantes portugueses concentrados na cidade de Belém (Lopes, 2002Lopes, S. de N. (2002). Comércio interno no Pará oitocentista: atos, sujeitos sociais e controle entre 1840-1855 (Master’s Dissertation). Universidade Federal do Pará, Belém.; Nogueira, 2009Nogueira, S. M. S. (2009). “A soldadesca desenfreada”: politização militar no Grão-Pará da Era da Independência (1790-1850)(Doctoral Thesis). Universidade Federal da Bahia, Salvador.). O analfabetismo atingia parcela significativa da população, com taxas de até 90% em algumas paróquias, de acordo com o censo de 1872 (Recenseamento do Brasil em 1872, 1874Recenseamento do Brasil em 1872. (1874). Rio de Janeiro, RJ: Typ. G. Leuzinger. ).

A província passou por momentos de instabilidade no período de 1822 a 1835. Uma série de levantes populares ocorreu, tanto no interior quanto na capital. Tais levantes contaram com a adesão de soldados da tropa, descontentes com o baixo soldo, com o poder central e com as autoridades locais (Nogueira, 2009Nogueira, S. M. S. (2009). “A soldadesca desenfreada”: politização militar no Grão-Pará da Era da Independência (1790-1850)(Doctoral Thesis). Universidade Federal da Bahia, Salvador.). Uma dessas revoltas foi a Cabanagem (1835-1840), que ocorreu no Período Regencial. Os cabanos - população marginalizada que vivia amontoada em cabanas à beira dos rios e igarapés - conhecedores das péssimas condições em que viviam, depuseram uma série de governantes, além de exigir melhores condições materiais e a expulsão dos portugueses. Esses últimos foram tidos como os responsáveis pela miséria em que os cabanos viviam (Salles, 1992Salles, V. (1992). Memorial da Cabanagem. Belém, PA: Cejup.).

Em Belém e regiões vizinhas, existia uma concentração de engenhos, constituindo-se numa das primeiras regiões agrícolas do Grão-Pará, onde se desenvolveu o mais importante centro econômico, liderados pela exportação do cacau, arroz, cana-de-açúcar e fumo (Salles, 2004Salles, V. (2004). O negro na formação da sociedade paraense. Belém, PA: Paka-Tatu.). A Cabanagem atingiu fortemente a economia paraense com a destruição de todos os engenhos, alvo de ataques dos cabanos. Esses ataques desestruturaram a lavoura canavieira e o regime de escravidão, marcados pela intensa participação de escravos e índios (Salles, 1992Salles, V. (1992). Memorial da Cabanagem. Belém, PA: Cejup.).

Passados os anos de guerra, a economia paraense recuperou-se por meio da coleta de produtos silvestres remetidos à exportação para países da Europa e América do Norte. Os principais produtos eram, por exemplo, o cacau, a borracha, o couro, as castanhas e o guaraná. A partir de 1840, a goma elástica ganha grande destaque na pauta de produtos exportados do Grão-Pará (Lopes, 2002Lopes, S. de N. (2002). Comércio interno no Pará oitocentista: atos, sujeitos sociais e controle entre 1840-1855 (Master’s Dissertation). Universidade Federal do Pará, Belém.). A borracha se tornou o principal produto exportado na região no período de 1847 a 1863, atingindo seu auge no período de 1890 a 1910 (Nogueira, 2009Nogueira, S. M. S. (2009). “A soldadesca desenfreada”: politização militar no Grão-Pará da Era da Independência (1790-1850)(Doctoral Thesis). Universidade Federal da Bahia, Salvador.). O início da exploração gomífera propiciou o fortalecimento das finanças e a economia regional (Lopes, 2002Lopes, S. de N. (2002). Comércio interno no Pará oitocentista: atos, sujeitos sociais e controle entre 1840-1855 (Master’s Dissertation). Universidade Federal do Pará, Belém.).

O progresso da borracha na segunda metade do século XIX contribuiu para a diversificação comercial da região, o crescimento do porto e do setor bancário, a dinamização do transporte público e a modernização da capital. Esse processo possibilitou a instalação de firmas comerciais, passando a elite comercial a exigir o monopólio de suas atividades. Tais privilégios comerciais deram-se por meio de resoluções e legislação, frutos da cumplicidade entre a elite regional e o governo provincial que proibiram o regatão, comércio realizado por comerciantes itinerantes não registrados pelo fisco (Lopes, 2002Lopes, S. de N. (2002). Comércio interno no Pará oitocentista: atos, sujeitos sociais e controle entre 1840-1855 (Master’s Dissertation). Universidade Federal do Pará, Belém.). A atividade comercial em geral, em muitos casos, era a porta de entrada para muita gente ingressar no mercado de trabalho (Câmara, 2007Câmara, B. A. D. (2007). Vassoura, balcão, escritório e rua: a caixeiragem como carreira. Almanack Braziliense, 6, 39-53.), dentre os quais merecem destaque os praticantes da contabilidade. Esses eram peças fundamentais na engrenagem e no funcionamento das lojas e dos negócios por terem conhecimentos que permitem a atuação mais racional dos negócios (Martinho, 1976Martinho, L. M. (1976). Organização do trabalho e relações sociais nas firmas comerciais do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (18), 41-62., 1993Martinho, L. M. (1993). Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbaqno em desenvolvimento. In L. M. Martinho & R. Gorenstein (Eds.), Negociantes e caixeiros na sociedade da independência (pp. 21-124). Rio de Janeiro, RJ: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração.).

3. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA EMPÍRICA

Esta seção compreende duas subseções. A primeira é dedicada ao exame da literatura sobre os praticantes da contabilidade, com intuito de delimitar quem seriam esses indivíduos enquanto grupo social. A segunda subseção apresenta a abordagem conceitual de ocupações.

3.1. Praticantes da Contabilidade

Durante o período colonial da história do Brasil, e mesmo durante o século XIX, os praticantes da contabilidade fazem parte de um grupo de trabalhadores denominados genericamente “caixeiros” ou, simplesmente, “empregados no comércio”. Tal grupo é descrito na literatura como formado notadamente por indivíduos do sexo masculino (Câmara, 2007Câmara, B. A. D. (2007). Vassoura, balcão, escritório e rua: a caixeiragem como carreira. Almanack Braziliense, 6, 39-53.; Martinho, 1976Martinho, L. M. (1976). Organização do trabalho e relações sociais nas firmas comerciais do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (18), 41-62., 1993Martinho, L. M. (1993). Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbaqno em desenvolvimento. In L. M. Martinho & R. Gorenstein (Eds.), Negociantes e caixeiros na sociedade da independência (pp. 21-124). Rio de Janeiro, RJ: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração.; Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.; Santos, 2009Santos, M. A. da S. (2009). Casa e balcão: os caixeiros de Salvador (1890-1930). Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia.), quer em função do silêncio das fontes utilizadas em relação à presença do sexo feminino, quer pelo comodismo da costumeira ausência (Perrot, 2005Perrot, M. (2005). As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: Editora da Universidade do Sagrado Coração.). Porém, cabe destacar, nesse âmbito, o achado recentemente publicado de Lima e Popinigis (2017Lima, H. E., & Popinigis, F. (2017). Maids, clerks, and the shifting landscape of labor relations in Rio de Janeiro, 1830s-1880s [Special Edition]. International Review of Social History, 62(25), 45-73.) que, ao utilizarem processos judiciais como fonte, julgados em vara civil do Rio de Janeiro em meados do século XIX, relatam o caso de uma mulher descrita como “caixeira” por sua testemunha, tendo desempenhado tais funções no período de 1823 a 1842.

Por debaixo da nomenclatura genérica de caixeiro incluíam-se variadas ocupações rotuladas por diversas outras denominações como, por exemplo, guarda-livros, encarregado de venda, escriturário, moços do comércio, criados de loja e caixeiro de fora (Martinho, 1976Martinho, L. M. (1976). Organização do trabalho e relações sociais nas firmas comerciais do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (18), 41-62., 1993Martinho, L. M. (1993). Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbaqno em desenvolvimento. In L. M. Martinho & R. Gorenstein (Eds.), Negociantes e caixeiros na sociedade da independência (pp. 21-124). Rio de Janeiro, RJ: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração.; Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.; Sales, 1761-1773Sales, A. J. (1761-1773). Diccionario do commercio[depois de 1723]. Retrieved from http://purl.pt/13945/4/
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; Santos, 2009Santos, M. A. da S. (2009). Casa e balcão: os caixeiros de Salvador (1890-1930). Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia.). Essas designações guardavam estreita relação com funções desempenhadas pelos trabalhadores e serviam para posicioná-los hierarquicamente no interior do grupo (Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.; Sales, 1761-1773Sales, A. J. (1761-1773). Diccionario do commercio[depois de 1723]. Retrieved from http://purl.pt/13945/4/
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). Importa destacar, entretanto, que a divisão de funções entre diversos trabalhadores somente se fazia visível no interior de grandes casas comerciais. Caso o indivíduo atuasse em pequenos comércios (e.g., tabernas, botequins e pequenas lojas de secos e molhados), certamente seria responsável por um amplo espectro de funções que iam desde a limpeza e arrumação da casa comercial até a escrituração dos livros de contas (Câmara, 2007Câmara, B. A. D. (2007). Vassoura, balcão, escritório e rua: a caixeiragem como carreira. Almanack Braziliense, 6, 39-53.; Martinho, 1993Martinho, L. M. (1993). Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbaqno em desenvolvimento. In L. M. Martinho & R. Gorenstein (Eds.), Negociantes e caixeiros na sociedade da independência (pp. 21-124). Rio de Janeiro, RJ: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração.; Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.; Sales, 1761-1773Sales, A. J. (1761-1773). Diccionario do commercio[depois de 1723]. Retrieved from http://purl.pt/13945/4/
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). De maneira geral, as tarefas realizadas pelos “caixeiros” alternavam entre trabalho manual e intelectual (Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.).

Ao ingressar numa casa comercial, o aspirante a praticante da contabilidade, ou aprendiz, inicialmente ocupava o patamar mais elementar na hierarquia. Conforme interesse, o aprendiz poderia alcançar, progressivamente, as posições de caixeiro de balcão, de caixeiro de fora, de caixeiro de escritório e, por fim, no topo da pirâmide, a posição de guarda-livros ou primeiro caixeiro (Figura 1). Como se pode ver, o termo caixeiro aparece em todas as posições no meio da hierarquia. A diferença entre elas se dá pela adição de outros termos (como “de fora” ou “de balcão”) que têm relação direta com as tarefas executadas no serviço. Esse fato pode explicar por que os praticantes da contabilidade eram socialmente conhecidos como caixeiros.

Figura 1
Hierarquia dos caixeiros

O aprendiz desempenhava tarefas como, por exemplo, a limpeza do local e a arrumação de mercadorias nas prateleiras, e até mesmo atuava como garoto de recado. Com o tempo, o aprendiz poderia atender ao público e ocupar, gradativamente, a posição de caixeiro de balcão (Câmara, 2007Câmara, B. A. D. (2007). Vassoura, balcão, escritório e rua: a caixeiragem como carreira. Almanack Braziliense, 6, 39-53.; Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.), na qual o trato com os clientes e a capacidade de atrair o interesse dos transeuntes para dentro das lojas eram habilidades apreciadas (Câmara, 2007Câmara, B. A. D. (2007). Vassoura, balcão, escritório e rua: a caixeiragem como carreira. Almanack Braziliense, 6, 39-53.).

O caixeiro de fora era responsável por tarefas como levar títulos e letras para cobrar dos clientes do seu patrão, ir à alfândega tratar da burocracia do despacho e recepção de mercadorias, vender mercadorias nas ruas e entregar alguma encomenda de maior responsabilidade (Câmara, 2007Câmara, B. A. D. (2007). Vassoura, balcão, escritório e rua: a caixeiragem como carreira. Almanack Braziliense, 6, 39-53.; Martinho, 1976Martinho, L. M. (1976). Organização do trabalho e relações sociais nas firmas comerciais do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (18), 41-62., 1993Martinho, L. M. (1993). Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbaqno em desenvolvimento. In L. M. Martinho & R. Gorenstein (Eds.), Negociantes e caixeiros na sociedade da independência (pp. 21-124). Rio de Janeiro, RJ: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração.). Os caixeiros de escritório ou escriturários eram encarregados do expediente interno da casa, estando incumbidos da correspondência e da escrituração de livros auxiliares de contas (Sales, 1761-1773Sales, A. J. (1761-1773). Diccionario do commercio[depois de 1723]. Retrieved from http://purl.pt/13945/4/
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). Nesse ponto, o caixeiro já deveria ter profundos conhecimentos do negócio para responder com estilo, juízo e elegância aos correspondentes, a fim de se evitarem contendas e litígios (Sales, 1761-1773Sales, A. J. (1761-1773). Diccionario do commercio[depois de 1723]. Retrieved from http://purl.pt/13945/4/
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).

O guarda-livros ocupava o patamar mais elevado da hierarquia dos praticantes da contabilidade (Martinho, 1993Martinho, L. M. (1993). Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbaqno em desenvolvimento. In L. M. Martinho & R. Gorenstein (Eds.), Negociantes e caixeiros na sociedade da independência (pp. 21-124). Rio de Janeiro, RJ: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração.; Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.; Sales, 1761-1773Sales, A. J. (1761-1773). Diccionario do commercio[depois de 1723]. Retrieved from http://purl.pt/13945/4/
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; Santos, 2009Santos, M. A. da S. (2009). Casa e balcão: os caixeiros de Salvador (1890-1930). Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia.). Sob sua incumbência estavam a escrituração dos livros principais de contas (i.e., diário e razão), a elaboração de relatórios (e.g., balanço geral dos negócios e resumo de entradas), a guarda da arca do dinheiro e a supervisão dos demais caixeiros (Sales, 1761-1773Sales, A. J. (1761-1773). Diccionario do commercio[depois de 1723]. Retrieved from http://purl.pt/13945/4/
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). O galgar de posições hierárquicas dependia da demonstração de honestidade e, sobretudo, fidelidade ao patrão ao longo do tempo (Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.). Assim, o guarda-livros era comumente o “caixeiro” que já havia passado por todas as posições hierárquicas anteriores (Santos, 2009Santos, M. A. da S. (2009). Casa e balcão: os caixeiros de Salvador (1890-1930). Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia.).

A historiografia, igualmente, reporta informações sobre as competências atribuídas aos caixeiros, ou seja, o conjunto de habilidades e conhecimentos adquiridos para o exercício de uma atividade (Oliveira, 2013Oliveira, R. (2013). Demandas por qualificação profissional: Recife, segunda metade do século XIX. Revista Brasileira de Educação, 18(54), 629-794.). Segundo o lexicógrafo setecentista Silva (1789Silva, A. M. (1789). Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro(Vol. I, p. 417). Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira. , p. 427), serve-se à competência, “a quem mais, ou melhor fará” alguma coisa. Assume-se, neste estudo, que tais competências são socialmente construídas em diversos espaços de sociabilidade (e.g., na família, na igreja ou na escola) e têm três componentes principais: (i) saberes ou conhecimentos formais, que podem ser traduzidos em fatos e regras; (ii) saber-fazer, que pertence à esfera dos procedimentos empíricos, como os conhecimentos tácitos do ofício que se desenvolvem na prática quotidiana de uma ocupação; e (iii) saber-ser, o saber social ou do senso comum, que mobiliza estratégias e raciocínios complexos, interpretações e visões do mundo (Stroobants, 1997Stroobants, M. (1997). Savoir-faire et compétence au travail. Bruxelles: Université de Bruxelles.). Desde o século XVI que o repertório de competências incluía as regras de civilidade, saber portar-se bem moralmente em sociedade, que deveriam ser aprendidos na faixa etária de 7 a 12 anos, quer na escola, quer no seio familiar (Revel, 2009Revel, J. (2009). Os usos da civilidade. In R. Chartier (Ed.), História da vida privada, 3: da Renascença ao Século das Luzes (pp. 169-210). São Paulo, SP: Companhia das Letras .). Em sociedades hierarquizadas, o aprendizado da civilidade era tido como basilar para indivíduos nascidos em berços humildes, sobretudo se pretendesse galgar alguma mobilidade social (Revel, 2009Revel, J. (2009). Os usos da civilidade. In R. Chartier (Ed.), História da vida privada, 3: da Renascença ao Século das Luzes (pp. 169-210). São Paulo, SP: Companhia das Letras .).

A Tabela 1 apresenta, de forma sintética, as características demográficas e competências elencadas pela literatura. Para melhor compreensão dos achados na literatura, vale destacar que o conceito de infância, no século XIX, era diferente do atual, sendo normal o emprego de menores. Os maços de população de 1765 até 1836 consideravam “criança” apenas os indivíduos de 0 a 7 anos de idade (Martinho, 1976Martinho, L. M. (1976). Organização do trabalho e relações sociais nas firmas comerciais do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (18), 41-62.).

Não se considerava a infância como uma fase da vida na qual a criança deveria ser separada do mundo dos adultos, tendo seus interesses próprios e sendo iniciada nos problemas da vida através de um processo de aprendizado que requeria técnicas pedagógicas e escolas separadas da vida família. E o aprendizado, então, tinha um caráter mais empírico e a criança (no caso caixeiro pequeno) vai aprender através do contato direto com o dia a dia do adulto, sendo a transmissão da cultura, de uma geração para a outra, assegurada pela participação afetiva da criança nas atividades profissionais. (Martinho, 1976Martinho, L. M. (1976). Organização do trabalho e relações sociais nas firmas comerciais do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (18), 41-62., p. 54)

Cabe salientar que os praticantes da contabilidade desse período não tinham a segurança de um contrato formal de trabalho por escrito, o que os deixava expostos às vontades dos patrões. Isso incluía longas jornadas de trabalho diárias (superiores a 12 horas), bem como aos domingos e dias santos e, por vezes, o não recebimento de ordenados. Para os caixeiros atuantes em pequenos comércios, sua situação laboral era comparável à do escravo, por habitarem no próprio local de trabalho e terem a influência direta dos patrões sobre todos os aspectos de suas vidas (Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.).

Tabela 1
Síntese de estudos anteriores sobre os praticantes da contabilidade

A atuação como “caixeiro” não era percebida pelos indivíduos como atividade a ser desempenhada por toda a vida, mas como algo transitório. O sonho que nutriam era de se tornarem negociantes (Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.). Um artigo publicado em jornal em 1838 sobre a “ocupação de caixeiro” afirma que essa é a “porta mais acessível, e mais comum, por onde se entra para a profissão comercial”, ou seja, para a “importantíssima classe dos negociantes” (Commercio, 1838Commercio. (1838, 27 de março). O Despertador, Diario Commercial, Politico, Scientifico e Litterario, p. 2-3. Retrieved from http://memoria.bn.br/DocReader/706701/10
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, p. 2). Popinigis (2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas., p. 36) defende que o desejo de realizar o sonho de “futuro proprietário ... mitigava o trabalho duro e incessante, tanto manual quanto intelectual” da caixeiragem. Um passo importante para alcançar a profissão de negociante era conseguir se tornar “caixeiro interessado”, ou seja, obter participação nos lucros do estabelecimento no qual trabalhavam e estar “a ponto de tornarem-se sócios” (Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas., p. 45).

3.2. Ocupações

A sociologia das profissões é o campo da sociologia que se preocupa com a implantação, desenvolvimento, formação e institucionalização das profissões (Dubar, 2005Dubar, C. (2005). A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. São Paulo, SP: Martins Fontes.). A teoria das profissões, oriunda da sociologia, enfatiza que as profissões são concebidas como ocupações que aplicam um conjunto sistemático de conhecimento com objetivo de resolver problemas altamente relevantes para os valores centrais da sociedade (Rueschemeyer, 1964Rueschemeyer, D. (1964). Doctors and lawyers: A comment on the theory of the professions. Canadian Review of Sociology, 1(1), 17-30.).

O conceito de profissão, assim como seu significado, tem sido amplamente debatido na literatura sociológica. Apesar das discussões em torno de seu conceito, alguns atributos profissionais são compartilhados entre os estudiosos de profissões. Esses podem ser definidos pela existência de um padrão organizacional de trabalho especializado cujas principais características incluem: (i) ocupação integral de seus membros; (ii) treinamento padronizado em habilidades e conhecimentos; (iii) existência de aparatos institucionais de autorregulação; e (iv) status e autonomia (Macdonald, 1999Macdonald, K. M. (1999). The sociology of the professions. London: Sage Publications.). Para Carr-Saunders (1993Carr-Saunders, A. M. (1933). The professions. Oxford: The Clarendon Press.), uma “profissão” emerge no cenário social quando um número definido de pessoas começa a praticar uma técnica definida fundamentada em uma formação especializada e forma uma associação cujo objetivo é testar a competência técnica por meio de exames.

O Código Comercial de 1850, ao tratar da divisão do trabalho no comércio, rotula os guarda-livros e caixeiros como agentes auxiliares. Noutros termos, a caixeiragem seria uma ocupação subordinada aos comerciantes, a qual se delega a parte técnica da tarefa, ou o “trabalho sujo”, que não dignificaria o comerciante (Abbott, 1988Abbott, A. (1988). The system of professions: An essay on the division of expert labor. Chicago, IL: University of Chicago.; Dingwall, 2008Dingwall, R. (2008). Essays on professions. London: Ashgate., p. 45). Por sua vez, ao comerciante caberia o julgamento sobre o negócio (Commercio, 1838Commercio. (1838, 27 de março). O Despertador, Diario Commercial, Politico, Scientifico e Litterario, p. 2-3. Retrieved from http://memoria.bn.br/DocReader/706701/10
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). Dessa forma, as atividades intituladas pela literatura como “trabalho sujo”, no caso da caixeiragem, estendiam-se da vassoura, ou limpeza do estabelecimento comercial, à manutenção dos livros principais do negócio.

Os exames de competência técnica necessários para o ingresso na profissão contabilística, apontados na teoria sociológica como elemento integrante do arcabouço de uma profissão, foram iniciados tardiamente no Brasil, a partir do ano 2000 (Conselho Federal de Contabilidade [CFC], 2007Conselho Federal de Contabilidade (Federal Accounting Council). (2007). Caderno analítico do exame de suficiência: histórico dos resultados. Brasilia, DF: CFC .), apesar de sua existência já constar do documento legislativo (Decreto-Lei n. 9.295, de 27 de maio de 1946Decree-Law n. 9,295. (1946, May 27th). Creates the Federal Accounting Council, defines the attributions of an Accountant and a Bookkeeper, and makes other arrangements. Retrieved from http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/fontes_escritas/6_Nacional_Desenvolvimento/decreto-lei%20n.%209.295%20%96%20de%2027%20de%20maio%20de%201946%20contador%20ens%20comercial.htm
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) que criou o CFC, órgão de classe.

Diante do exposto, fica evidente a inadequação da transposição da totalidade do conceito de “profissão” para o momento estudado nesta pesquisa. Isso porque é possível observar a prática da contabilidade como ocupação que surge no Brasil no século XIX em sequência de mudanças tecnológicas transferidas de Portugal, como também de mudanças sociais. Por essa razão, esta pesquisa analisa a caixeiragem enquanto ocupação (Dingwall, 2008Dingwall, R. (2008). Essays on professions. London: Ashgate.; Macdonald, 1999Macdonald, K. M. (1999). The sociology of the professions. London: Sage Publications.) para demarcar a singularidade daquele momento histórico em relação às conceituações atuais propostas pela sociologia para o termo profissão, bem como não o imputar a qualidade de arcaico pela não observância de critérios hodiernos.

Dingwall (2008Dingwall, R. (2008). Essays on professions. London: Ashgate.) define ocupação como uma unidade na taxonomia popular do trabalho, que surge da negociação dos limites de uma área na divisão social do trabalho com o intuito de estabelecer o controle dessa área, tornando-a familiar, previsível e gerenciável. Trata-se de um termo sociológico bastante volátil, cujo significado depende de questões espaciais e temporais. Entretanto, pode ser entendido como papel social anterior ao da profissão, no qual seus praticantes são reconhecidos pela sociedade como indivíduos que exercem uma atividade em tempo integral que lhes rende ganho pecuniário para seu sustento (Davies, 1980Davies, C. (1980). Making sense of the census in Britain and the USA: The changing occupational classification and the position of nurses. Sociological Review, 28(3), 581-610.; Dingwall, 2008Dingwall, R. (2008). Essays on professions. London: Ashgate.; Hakim, 1980Hakim, C. (1980). Census reports as documentary evidence: The census commentaries 1801-1951. Sociological Review, 28(3), 551-580. ). Cabe destacar que nem todas as atividades ditas “econômicas”, que proporcionam rendimentos aos seus praticantes, podem ser consideradas ocupação. A noção de ocupação pessoal baseia-se numa série de desenvolvimentos sociais, nos quais se incluem a separação do lar e do local de trabalho, a mobilidade no seio da hierarquia do grupo, as rendas em dinheiro e o emprego remunerado contínuo (Davies, 1980Davies, C. (1980). Making sense of the census in Britain and the USA: The changing occupational classification and the position of nurses. Sociological Review, 28(3), 581-610.). Tais desenvolvimentos não se faziam presentes nem no início, tampouco no final do século XIX (Hakim, 1980Hakim, C. (1980). Census reports as documentary evidence: The census commentaries 1801-1951. Sociological Review, 28(3), 551-580. ). Portanto, considerando os limites temporais delimitados para esta pesquisa, os anúncios aqui estudados se referem, no limite, à ocupação de “caixeiros”.

Esse referencial teórico nos permitirá o diálogo histórico e sociológico. Avançaremos com a compreensão histórica sobre a caracterização dos praticantes da ocupação contábil, sobre a agência profissional e suas mudanças na era contemporânea, inspiradas pela teoria sociológica das profissões, com a reconceituação do estudo sobre profissionalização.

O movimento de reconceituação da sociologia, voltado para o espírito crítico da realidade social, analisa, entre outros fatos, os fundamentos da profissão, incluindo reflexões sobre sua deontologia, seu mercado de trabalho e o perfil dos seus agentes (Martins, 2015Martins, L. R. (2015). Teoria das profissões e a análise dos fundamentos do serviço social. Verinotio, revista on-line, X(20), 64-81.). Ao analisar o praticante da contabilidade no século XIX, realizamos uma reflexão retrospectiva e uma análise racional e crítica do perfil exigido pelo mercado de trabalho de uma época, no intuito de reformular, ampliar e transformar o conjunto de saberes que constitui a teoria prática prévia sobre os profissionais da contabilidade. Mais detalhes sobre questões metodológicas são oferecidos na seção seguinte.

4. METODOLOGIA

As fontes consultadas para execução da pesquisa são de natureza primária e centram-se nos jornais impressos que circulavam no Pará, localizados no website da BNDigital. O acervo de periódicos da BNDigital é composto por jornais, revistas, anuários, boletins e publicações seriadas. Entre as publicações, estão os primeiros jornais das províncias do império e aqueles que marcaram a história da imprensa no Brasil. A consulta pode ser realizada por título, período, edição, local de publicação e palavra(s). Para identificar os requisitos exigidos aos praticantes da contabilidade na segunda metade do século XIX, a amostra contempla anúncios de oferta e procura de emprego publicados nos periódicos impressos que circulavam no Pará. Os requisitos analisados foram características demográficas (sexo, idade, nacionalidade e estado civil) e competências (saberes formais, saber-fazer e saber-ser).

De acordo com Kreniski e Aguiar (2011Kreniski, G. C. P., & Aguiar, M. do C. P. (2011). O jornal como fonte histórica: a representação e o imaginário sobre o “vagabundo” na imprensa brasileira (1989-1991). In Anais do Simpósio Nacional de História - ANPUH 26 (p. 1-14). São Paulo, SP.), ao utilizar a imprensa escrita como fonte primária de pesquisa, é possível realizar a reconstrução dos acontecimentos por intermédio do mais eficaz meio de comunicação na propagação de informações. Segundo Neves (2009Neves, R. M. (2009). Anúncios classificados nos jornais impressos: o consumo da informação comercial. In VII Encontro Nacional de História da Mídia. Retrieved from http://www.ufrgs.br/alcar/encontros-nacionais-1/encontros-nacionais/7o-encontro-2009-1/Anuncios%20classificados%20nos%20jornais%20impressos.pdf
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) o serviço informativo prestado pelos jornais, por meio dos anúncios classificados, facilitou a comunicação entre o público leitor e/ou consumidor com interesses de compra, venda, troca, aluguel, empréstimos, doações, recados pessoais, religiosos, sentimentais e oferta e procura de empregos. Os termos “procura-se” e “precisa-se” dos anúncios classificados estão presentes nos jornais brasileiros dessa época, sendo possível identificar as características pessoais e competências exigidas dos praticantes da contabilidade. Martinho (1976Martinho, L. M. (1976). Organização do trabalho e relações sociais nas firmas comerciais do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (18), 41-62., 1993Martinho, L. M. (1993). Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbaqno em desenvolvimento. In L. M. Martinho & R. Gorenstein (Eds.), Negociantes e caixeiros na sociedade da independência (pp. 21-124). Rio de Janeiro, RJ: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração.) e Câmara (2007Câmara, B. A. D. (2007). Vassoura, balcão, escritório e rua: a caixeiragem como carreira. Almanack Braziliense, 6, 39-53.) são exemplos de pesquisas similares que igualmente fizeram uso desses anúncios publicados em jornais para obtenção de informações sobre a caixeiragem. Tais obras, juntamente com outras (Oliveira, 2013Oliveira, R. (2013). Demandas por qualificação profissional: Recife, segunda metade do século XIX. Revista Brasileira de Educação, 18(54), 629-794.; Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.; Santos, 2009Santos, M. A. da S. (2009). Casa e balcão: os caixeiros de Salvador (1890-1930). Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia.), são utilizadas como referência para comparação dos achados sobre os praticantes no Pará ao longo da análise para garantir a integridade histórica.

A delimitação temporal teve por lastro o conceito de ocupação expresso por Dingwall (2008Dingwall, R. (2008). Essays on professions. London: Ashgate.), papel social anterior à emergência do sentido de coletividade presente, por exemplo, na definição de profissão de Carr-Saunders (1993Carr-Saunders, A. M. (1933). The professions. Oxford: The Clarendon Press.). Assim, o período escolhido estende-se de 1859 a 1888. O recorte temporal em 1888 se justifica pelo surgimento do periódico destinado à categoria laboral dos praticantes da contabilidade em 15 de dezembro de 1889 (O Caixeiro), considerado evidência de consciência coletiva. É preciso sublinhar a particularidade do período escolhido para o lugar em estudo (Pará), uma vez que associações destinadas à categoria dos praticantes, outra evidência da consciência coletiva, já existiam na corte desde 1826 (Popinigis, 2018Popinigis, F. (2018). “Esperança e Fraternidade”: o papel do associativismo na defesa do ofício e na reserva do mercado do trabalho no comércio para os portugueses - Rio de Janeiro, século XIX. In G. S. Ribeiro, P. C. Terra & F. Popinigis (Eds.), Portugueses e cidadãos: experiências e identidades nos séculos XIX e XX (pp. 101-128). Rio de Janeiro, RJ: Mauad X, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.).

A seleção da amostra centra-se em periódicos: (i) de circulação diária; (ii) que apresentassem anúncios tanto de oferta quanto de procura; e (iii) que tivessem regularidade relativamente longa na publicação de edições. Dessa forma, selecionaram-se quatro jornais responsáveis por 300 anúncios, conforme se observa na Tabela 2.

Tabela 2
Relação de jornais e seus anúncios de procura e oferta de vagas por e para praticantes da contabilidade

Todos os periódicos selecionados são oriundos de tipografias fundadas pela iniciativa de alguns indivíduos. Suas linhas editoriais eram vinculadas a distintas ideologias (Tabela 3). Apesar disso, a semelhança na linguagem utilizada para publicitar os anúncios de emprego corrobora a noção de neutralidade dos anúncios em relação às notícias de cunho político (Azevedo, 2009Azevedo, D. (2009). A evolução técnica e as transformações gráficas nos jornais brasileiros. Mediação, 9(9), 81-97.; Rebouças & Bastos, 2017Rebouças, A. C. R. N., & Bastos, A. K. P. H. (2017). Tradições discursivas dos anúncios publicitários nos jornais do Recife do século XIX e XXI. Retrieved from http https://www.editorarealize.com.br/revistas/sinalge/trabalhos/TRABALHO_EV066_MD1_SA13_ID800_22032017100236.pdf
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).

A aquisição dos jornais poderia ser de forma avulsa ou via assinatura (mensal, trimestral, semestral ou anual) (Tabela 3). Para ilustrar, um exemplar do Diário de Notícias custava 40 réis, em 1881, valor considerado acessível até mesmo para um escravo de ganho (Morel, 2008Morel, M. (2008). Os primeiros passos da palavra imprensa. In A. L. Martins & T. R. Luca (Eds.), História da imprensa no Brasil (pp. 23-44). São Paulo, SP: Contexto.). Para os assinantes da Gazeta Oficial que pretendessem anunciar, não havia custo extra. Para os não assinantes, cobrava-se “o quanto se convencionar”, não sendo possível identificar o valor real (Gazeta Official, setembro de 1858, edição 99, p. 1). Os demais jornais omitiam essa informação, que pode se justificar pelo fato de que, não raramente, os anúncios eram publicados gratuitamente no século XIX (Azevedo, 2009Azevedo, D. (2009). A evolução técnica e as transformações gráficas nos jornais brasileiros. Mediação, 9(9), 81-97.).

Tabela 3
Valor da assinatura anual, temas e vínculos ideológicos dos jornais que compõem a amostra

A identificação e a seleção de anúncios para análise (oferta e procura) foram feitas pelos termos “Caixeiro”, “Caixeira”, “Caxeiro”, “Caxeira” e “Guarda-Livros” no título do anúncio ou no corpo do texto. Os termos utilizados foram escolhidos com base na literatura (Lima & Popinigis, 2017Lima, H. E., & Popinigis, F. (2017). Maids, clerks, and the shifting landscape of labor relations in Rio de Janeiro, 1830s-1880s [Special Edition]. International Review of Social History, 62(25), 45-73.; Martinho, 1976Martinho, L. M. (1976). Organização do trabalho e relações sociais nas firmas comerciais do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (18), 41-62., 1993Martinho, L. M. (1993). Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbaqno em desenvolvimento. In L. M. Martinho & R. Gorenstein (Eds.), Negociantes e caixeiros na sociedade da independência (pp. 21-124). Rio de Janeiro, RJ: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração.; Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.; Sales, 1761-1773Sales, A. J. (1761-1773). Diccionario do commercio[depois de 1723]. Retrieved from http://purl.pt/13945/4/
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; Santos, 2009Santos, M. A. da S. (2009). Casa e balcão: os caixeiros de Salvador (1890-1930). Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia.). Os anúncios selecionados para análise foram rotulados como “procura” e “oferta”. No primeiro, o “praticante” ou “aspirante a praticante” se habilita a exercer funções ou atividades relacionadas à caixeiragem. No segundo, potenciais “empregadores” oferecem vagas para funções ou atividades relacionadas à caixeiragem. No total da amostra, os anúncios de oferta são maioria. Justifica-se a inclusão de anúncios de procura na amostra da pesquisa por permitirem dupla checagem, por meio da percepção dos trabalhadores, em relação às características pessoais e competências requeridas pelo mercado e que os trabalhadores julgam relevantes.

Uma limitação deste estudo diz respeito à qualidade dos anúncios, que só permitem a análise dos níveis mais baixos da hierarquia dos praticantes da contabilidade. Identificou-se apenas um anúncio de “procura” de emprego por “guarda-livros”. A pouca ou quase inexistência de anúncios de “oferta” de emprego pode ser justificada pela requisição de uma relação de confiança entre patrão e empregado, construída normalmente após anos de serviço (Martinho, 1993Martinho, L. M. (1993). Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbaqno em desenvolvimento. In L. M. Martinho & R. Gorenstein (Eds.), Negociantes e caixeiros na sociedade da independência (pp. 21-124). Rio de Janeiro, RJ: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração.; Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.; Santos, 2009Santos, M. A. da S. (2009). Casa e balcão: os caixeiros de Salvador (1890-1930). Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia.).

Em termos epistemológicos, esta pesquisa entende o fazer história como um processo interpretativo, produto da atividade do historiador (Bloch, 1992Bloch, M. L. B. (1992). The historian’s craft. Manchester: Manchester University.). Portanto, a narrativa aqui disposta inclui interpretações e explicações do objeto em análise a partir das fontes consultadas. Durante a análise, reconhece-se e preserva-se a identidade própria do passado, garantindo sua autonomia em relação ao presente. Dessa forma, os dados são lidos por meio do quadro mental da época. A narrativa faz uso dos vocábulos inerentes à temporalidade, deixando claro seu sentido e ressaltando similaridades ou diferenças em relação aos conceitos atuais, para evitar que o leitor tenha uma interpretação equivocada.

5. RESULTADOS E DISCUSSÕES: OS CAIXEIROS DO PARÁ NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX

A exposição dos resultados seguirá a seguinte sequência nesta seção: (5.1.) as características demográficas; (5.2.) as competências exigidas; e (5.3.) a relevância dos achados desta pesquisa para a atualidade.

5.1. Características Demográficas Requeridas aos Praticantes

A totalidade dos anúncios da amostra era destinada ao sexo masculino. Depreende-se esse fato pela análise indireta dos anúncios, uma vez que o sexo não era informado de maneira clara e inequívoca. Todos os anúncios fizeram uso do termo genérico da profissão, sempre flexionado no gênero masculino. Alguns anúncios ainda continham, concomitantemente, outros vocábulos que aludiam ao sexo masculino, como “rapaz” e “homem”.

A informação sobre idade se fez presente em 160 anúncios, conforme se observa na Tabela 4. Foi possível identificar três formas distintas para citação da “idade” nos anúncios. A mais comum era a indicação de uma faixa etária, ou seja, a idade não aparece de forma específica, mas cita-se um período de tempo que abrange certo número de anos na idade. A segunda maneira mais utilizada foi a citação indireta por meio de termos que faziam alusão à idade. São exemplos de termos utilizados: “menino”, “pequeno”, “rapazito” e “moço” (Figura 2). A citação da idade específica foi a forma mais incomum.

Convém destacar que a determinação do número de classes e intervalo dispostos na Tabela 4 não seguiu critérios estatísticos, o que forçaria a “quebra” de faixas definidas na própria documentação da época. Portanto, a idade foi dividida em quatro intervalos. A variável faixa etária é classificada como contínua, uma vez que o limite superior de um intervalo é igual ao inferior do seguinte. No primeiro intervalo, estão incluídos todos os anúncios na faixa etária explícita de 8 a 12 anos (aberto nas extremidades). Assim, por exemplo, os anúncios referidos explicitamente à faixa etária de 10 a 15 anos (que está entre dois intervalos) foram incluídos no intervalo seguinte. A associação de termos genéricos em cada intervalo foi feita por analogia, utilizando-se, como referência, anúncios que contemplavam ambas as informações, ou seja, faixa etária e termo ou idade específica e termo. Dois casos foram retirados da análise por impossibilidade de se fazer tal associação. Os termos utilizados nesses anúncios eram especificamente “homem” e “caixeirinho”.

Tabela 4
Frequência absoluta e relativa do item idade nos anúncios de recrutamento de caixeiros em Belém, Pará, no período de 1859 a 1888

Depreende-se da Tabela 4 que o ingresso dos praticantes da contabilidade na segunda metade do século XIX no Pará ocorria normalmente na faixa etária de 12 a 16 anos. Portanto, eram indivíduos que estariam praticamente ao final do ensino primário ou já o teriam concluído (Recenseamento do Brasil em 1872, 1874Recenseamento do Brasil em 1872. (1874). Rio de Janeiro, RJ: Typ. G. Leuzinger. ). Essa característica também foi percebida na Bahia para o mesmo período (Santos, 2009Santos, M. A. da S. (2009). Casa e balcão: os caixeiros de Salvador (1890-1930). Salvador, BA: Universidade Federal da Bahia.). De acordo com Câmara (2007Câmara, B. A. D. (2007). Vassoura, balcão, escritório e rua: a caixeiragem como carreira. Almanack Braziliense, 6, 39-53.), o ingresso ainda muito jovem como caixeiro significava a primeira etapa no mundo do trabalho, sendo a caixeiragem o tipo mais comum de aprendizado e atividade profissional para indivíduos livres dessa faixa etária. Conforme Hughes (2009Hughes, E. C. (2009). The sociological eye: Selected papers. New Brunswick: Transaction Books.), as ocupações podem variar em sua demanda e exigir um compromisso completo e duradouro do praticante da ocupação.

Quando o empregador estava à procura de um caixeiro, o mais comum era exigir que os candidatos estivessem em determinada faixa etária. Entretanto, quando o praticante ou aspirante a praticante se habilitava a exercer a caixeiragem, utilizava-se de algum termo para menção indireta da idade (Figura 2). A maneira de referenciar a idade nos anúncios de oferta não era esperada, sendo possível explicar o comportamento do praticante como estratégia para aumentar sua probabilidade de inserção no trabalho, uma vez que esse desconhecia em detalhe a faixa desejada pelos empregadores em potencial.

Figura 2
Anúncio de procura de emprego referenciando idade e competência

A referência à nacionalidade (Figura 3) se fez presente em 31 anúncios de emprego no Pará, como requisito para a contratação de caixeiros. Apesar do número reduzido de anúncios, em 30 a nacionalidade citada foi a portuguesa. No entanto, não é possível afirmar que a nacionalidade, de maneira geral, e a portuguesa, em particular, fosse um requisito relevante exigido pelo mercado na segunda metade do século XIX no estado do Pará, diferentemente do resultado encontrado por Oliveira (2013Oliveira, R. (2013). Demandas por qualificação profissional: Recife, segunda metade do século XIX. Revista Brasileira de Educação, 18(54), 629-794.) para o Recife no mesmo período de análise.

Figura 3
Anúncio de oferta de emprego referenciando idade, nacionalidade e competências

Do total de anúncios, apenas um mencionou de maneira explícita o estado civil como exigência para contratação (anúncio de oferta), sendo evidente o termo “casado”. Todavia, a julgar pela faixa etária mais comumente reportada nos anúncios, presume-se que os empregadores estariam à procura de indivíduos solteiros. Martinho (1993Martinho, L. M. (1993). Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbaqno em desenvolvimento. In L. M. Martinho & R. Gorenstein (Eds.), Negociantes e caixeiros na sociedade da independência (pp. 21-124). Rio de Janeiro, RJ: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração.) relata que grande parte dos comerciantes preferia que seus caixeiros fossem solteiros e que morassem no emprego, para estarem sempre à disposição do patrão a qualquer momento que precisasse.

5.2. Competências Requeridas aos Praticantes

Das três tipologias de competências analisadas, a que se fez mais presente foi a de saber-fazer, com 167 anúncios que mencionavam a exigência de prática como requisito para recrutamento dos caixeiros. A Tabela 5 apresenta as práticas assinaladas pelos anúncios. Percebe-se que a exigência da prática não era somente para as atividades específicas de caixeiragem (Sales, 1761-1773Sales, A. J. (1761-1773). Diccionario do commercio[depois de 1723]. Retrieved from http://purl.pt/13945/4/
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), mas também outras atividades do meio comercial. Essas últimas iam desde a limpeza do estabelecimento, passando pelas entregas de porta em porta, até o atendimento aos clientes no balcão (Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.).

Tabela 5
Frequência absoluta e relativa do item prática nos anúncios de recrutamento de caixeiros em Belém, Pará, no período de 1859 a 1898

O termo “taberna” (Figura 4) designa, no período estudado, um tipo de loja na qual se vende vinho a retalho ou loja modesta de comes e bebes (Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.). Portanto, ao se mencionar tal termo, acredita-se que o indivíduo soubesse, por exemplo, atender aos clientes no balcão. Esse achado é compatível com os resultados encontrados por Oliveira (2013Oliveira, R. (2013). Demandas por qualificação profissional: Recife, segunda metade do século XIX. Revista Brasileira de Educação, 18(54), 629-794.). Para o autor, como não havia nenhuma certificação profissional para atestar a prática, cabia ao próprio caixeiro afirmar sua capacidade para realizar tal tarefa ou apresentar a referência de algum empregador anterior como prova.

Figura 4
Anúncio de oferta de emprego para caixeiro com exigência de idade e qualidades morais

Em 22 anúncios foi encontrada explícita a competência de fazer escrituração, que pode ser entendida como saber formal ou saber-fazer. No entanto, é importante destacar que havia mais anúncios de pessoas que mostravam ter essas competências (13 anúncios) do que empregadores fazendo tal solicitação (9 anúncios). A baixa procura por caixeiros com essa competência pode ser explicada pelo fato de existir uma hierarquia entre os caixeiros nos estabelecimentos comerciais, nos quais o natural seria começar como aprendiz e, de acordo com sua desenvoltura, subir de posição, chegando a caixeiro de escritório ou até guarda-livros. Ou seja, os caixeiros com essa competência seriam recrutados dentre os caixeiros do próprio estabelecimento, cujo comerciante já tivesse confiança, e muito pouco pelos anúncios dos jornais.

Em apenas 10 anúncios foram encontradas as exigências de saber ler e escrever, sendo todos de oferta de emprego (Figura 3). Esse resultado pode ser avaliado por distintas perspectivas. A primeira seria que os comerciantes julgavam relevante que os caixeiros já soubessem ler e escrever ao serem recrutados. A segunda seria que os empregadores viam, no cenário social da época, certa dificuldade em encontrar pessoas com essas competências devido aos altos índices locais de analfabetismo. Dessa forma, preferiam não o destacar. Esse resultado se mostrou diferente do encontrado por Oliveira (2013Oliveira, R. (2013). Demandas por qualificação profissional: Recife, segunda metade do século XIX. Revista Brasileira de Educação, 18(54), 629-794.), que verificou maior número de anúncios de caixeiros que sabiam ler e escrever oferecendo seus serviços do que de empregadores solicitando tal conhecimento.

Outros requisitos exigidos aparecem nos anúncios dos jornais, embora com menos frequência. Do total de anúncios da amostra, sete evidenciavam o termo “boa letra”, dos quais quatro era o próprio caixeiro que afirmava ter essa competência. A habilidade de realização de operações aritméticas ocorreu em quatro anúncios, sendo dois de oferta e dois de procura. Quanto aos idiomas (português, francês e inglês), encontraram-se apenas dois anúncios, sendo todos de procura de trabalho. Tais anúncios seriam provavelmente de casas comerciais do chamado “alto comércio”, ou seja, escritórios de exportação e importação tão numerosos em praças do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco (Popinigis, 2007Popinigis, F. (2007). Proletários de casaca: trabalhadores do comércio carioca, 1850-1911. Campinas, SP: Universidade Estadual de Campinas.). A baixa frequência corrobora a ideia de menor proeminência mercantil da província do Pará durante a segunda metade do século XIX.

Ao relacionar o resultado da idade dos caixeiros apresentado na Tabela 4 com os resultados das práticas exigidas na Tabela 5, verifica-se que, dos 157 anúncios que ofertavam vagas para caixeiros com alguma prática, em 62 foi possível perceber que também exigiam determinada faixa etária. Com isso, verificou-se que mesmo o ingresso dos caixeiros sendo de forma prematura, na faixa etária de 12 a 16 anos de idade, já lhes era exigida alguma prática. Assim, acredita-se que esses meninos, mesmo com pouca idade, já estivessem vinculados à atividade de caixeiro antes mesmo dos 12 anos de idade.

As competências de saber-ser igualmente se fizeram presentes nos anúncios de recrutamento de caixeiros, abordando, principalmente, questões de ordem moral ou comportamental, de civilidade. Considerando que a maioria dos caixeiros vivia na casa de seus patrões, como parte da família, sendo responsável por cobranças e pagamentos, é possível perceber a razão dessa exigência. Se os comerciantes não tivessem garantia das qualidades morais de alguém, não deixariam seus negócios nas mãos dela. Esse achado igualmente atesta, ainda que de forma indireta, o extrato social mais mundano ao qual pertencem os praticantes da contabilidade. Em 44 anúncios, foram encontradas exigências de “boa conduta” (Figura 4). De acordo com o lexicógrafo setecentista, o termo conduta abrange o procedimento moral, ou seja, como o indivíduo governa sua vida (Silva, 1789Silva, A. M. (1789). Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva natural do Rio de Janeiro(Vol. I, p. 417). Lisboa: Officina de Simão Thaddeo Ferreira. ). Em termos teóricos, a conduta de um empregado é aspecto importante que contribui para seu desempenho individual, uma vez que indivíduos de boa conduta seriam disciplinados, obedientes e dispostos a aprender (Revel, 2009Revel, J. (2009). Os usos da civilidade. In R. Chartier (Ed.), História da vida privada, 3: da Renascença ao Século das Luzes (pp. 169-210). São Paulo, SP: Companhia das Letras .). Quanto mais cedo o indivíduo for exposto às regras de civilidade, mais eficaz será seu aprendizado, e sua execução é tida como algo evidente e natural (Revel, 2009Revel, J. (2009). Os usos da civilidade. In R. Chartier (Ed.), História da vida privada, 3: da Renascença ao Século das Luzes (pp. 169-210). São Paulo, SP: Companhia das Letras .).

Possivelmente, por considerar que indivíduos jovens (com mais de 12 anos) podem se envolver mais facilmente em situações que propiciam má condução, em alguns casos não bastava apenas declarar ter boa conduta, seria preciso comprovar, apresentando um fiador. Cabia ao próprio praticante apresentar a referência (Figura 2), ou seja, nome de alguma pessoa ou, preferencialmente, de algum empregador anterior (Oliveira, 2013Oliveira, R. (2013). Demandas por qualificação profissional: Recife, segunda metade do século XIX. Revista Brasileira de Educação, 18(54), 629-794.). Dos 44 anúncios, a exigência do fiador foi verificada em 17 (13 solicitados pelos empregadores e 4 oferecidos pelos caixeiros). Essas exigências também foram observadas por Martinho (1976Martinho, L. M. (1976). Organização do trabalho e relações sociais nas firmas comerciais do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (18), 41-62., 1993Martinho, L. M. (1993). Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbaqno em desenvolvimento. In L. M. Martinho & R. Gorenstein (Eds.), Negociantes e caixeiros na sociedade da independência (pp. 21-124). Rio de Janeiro, RJ: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração.) e Oliveira (2013Oliveira, R. (2013). Demandas por qualificação profissional: Recife, segunda metade do século XIX. Revista Brasileira de Educação, 18(54), 629-794.). Martinho (1976Martinho, L. M. (1976). Organização do trabalho e relações sociais nas firmas comerciais do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, (18), 41-62.) explica que, para se tornarem aptos a conviver com o comerciante e sua família, os caixeiros tinham que dispor de uma série de qualidades morais, sujeitando-se, assim, à autoridade de seu patrão. Segundo Martinho (1993Martinho, L. M. (1993). Caixeiros e pés-descalços: conflitos e tensões em um meio urbaqno em desenvolvimento. In L. M. Martinho & R. Gorenstein (Eds.), Negociantes e caixeiros na sociedade da independência (pp. 21-124). Rio de Janeiro, RJ: Secretaria Municipal de Cultura, Turismo e Esportes, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração.), para receber o título de caixeiro, os “aspirantes” teriam que apresentar atestado de boa conduta e aptidão passadas pelo respectivo patrão. Em Recife, os patrões consideravam as qualidades morais (i.e., esperteza e honestidade) dos caixeiros mais importantes do que saber ler e escrever (Oliveira, 2013Oliveira, R. (2013). Demandas por qualificação profissional: Recife, segunda metade do século XIX. Revista Brasileira de Educação, 18(54), 629-794.).

5.3. Renovação da Contabilidade

Entende-se que a renovação da contabilidade implica na formação de uma pluralidade profissional. Assim como ocorre no serviço social, acredita-se que essa pluralidade tem como base diferentes procedimentos que embasam a legitimação prática (Netto, 2005Netto, J. Paulo. (2005). O movimento de reconceituação: 40 anos depois. Revista Serviço Social e Sociedade, XXVI(84), 5-19. ), visto que os praticantes da contabilidade vêm, em sequência da demanda do mercado, construindo uma visão crítica da sociedade e de sua própria atuação.

Tendo em vista as próprias características do desenvolvimento da sociedade, percebe-se que a modernização vem adequando a contabilidade às exigências do mercado por meio de (i) um posicionamento estrutural-funcionalista e (ii) de uma ruptura e continuidade com o passado (Netto, 2005Netto, J. Paulo. (2005). O movimento de reconceituação: 40 anos depois. Revista Serviço Social e Sociedade, XXVI(84), 5-19. ). No posicionamento estrutural-funcionalista, observa-se a busca por uma diretriz profissional da contabilidade, que consiste em adquirir conhecimentos técnicos capazes de interferir na sociedade. Na ruptura e continuidade com o passado, pesquisas anteriores (Biasibetti & Feil, 2017Biasibetti, A. P., & Feil, A. A. (2017). Análise do perfil do profissional contábil requerido pelas empresas do Vale do Taquari-RS. Revista Destaques Acadêmicos, 9(1), 89-110.; Pires, Ott & Damacena, 2009Pires, C. B., Ott, E., & Damacena, C. (2009). Uma análise do perfil profissional requerido pelo mercado de trabalho para contadores na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA). Revista Contabilidade Vista & Revista, 20(3), 157-187.; Rodrigues, Schmidt & Santos, 2012Rodrigues, L. L., Schmidt, P., & Santos, J. L. (2012). The origins of modern accounting in Brazil: Influences leading to the adoption of IFRS.Research in Accounting Regulation,24(1), 15-24.), juntamente com esta pesquisa, evidenciam que, apesar do aperfeiçoamento de antigas práticas profissionais da contabilidade para atender às novas exigências do perfil profissional, algumas práticas conservadoras são mantidas e, por sua vez, não há mudanças significativas no agir profissional (Netto, 2005Netto, J. Paulo. (2005). O movimento de reconceituação: 40 anos depois. Revista Serviço Social e Sociedade, XXVI(84), 5-19. ).

Esta pesquisa demonstra que o mercado de trabalho paraense, na segunda metade do século XIX, demandava tanto por determinadas características pessoais quanto por competências dos praticantes da contabilidade. Atualmente não é diferente. Biasibetti e Feil (2017Biasibetti, A. P., & Feil, A. A. (2017). Análise do perfil do profissional contábil requerido pelas empresas do Vale do Taquari-RS. Revista Destaques Acadêmicos, 9(1), 89-110.), por exemplo, ao sintetizarem seus achados em relação ao perfil do profissional contábil requerido por empresas situadas no Rio Grande do Sul, destacam o fator idade (i.e., de 26 a 35 anos), experiência (i.e., de 4 a 5 anos), conhecimento de língua estrangeira (i.e., alemã) e formação em ciências contábeis, além de ter “comprometimento com seu trabalho” e “domínio nas áreas”. Percebe-se, portanto, que os fatores idade e prática persistem na atualidade, muito embora guardem contornos distintos, por vezes alterados por imposições externas.

Uma ruptura, mas ao mesmo tempo uma continuidade com o passado, pode ser observada com relação ao fator idade. A idade continua a ser requisito para contratação do praticante da contabilidade, no entanto, o Decreto-Lei n. 5.452, de 1 de maio de 1942Decree Law n. 5,452. (1942, May 1st). Approves the Consolidation of the Labor Laws. Retrieved from https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-5452-1-maio-1943-415500-publicacaooriginal-1-pe.html
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, e suas alterações, em vigor no país, proíbem o labor para menores de 14 anos e delineia regras para os indivíduos na faixa etária de 14 a 18 anos (artigos 402-41).

Com relação às competências de saber-ser, civilidade, exigidas no século XIX (boa conduta, bom costume e ser diligente), destaca-se, sobretudo, a necessidade de uma postura moral, haja vista que os caixeiros seriam inseridos no mundo dos patrões, fazendo parte da sua família, muitas vezes atuando diretamente nas finanças da atividade comercial. A exigência por essa postura moral perdura até os dias atuais. Com a renovação da contabilidade, o contador é requisitado a exercer, por meio do código de ética profissional, a profissão com zelo, diligência, honestidade e capacidade técnica, observando os Princípios de Contabilidade e as Normas Brasileiras de Contabilidade, resguardando os interesses de seus clientes, sem prejuízo da dignidade e independência profissionais (CFC, 2003Conselho Federal de Contabilidade (Federal Accounting Council). (2003). Abordagens éticas para o profissional contábil. Brasilia, DF: CFC. Retrieved from http://portalcfc.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2013/01/livro_abord_etica-pdf.pdf
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).

No século XIX, era hábito exigir conhecimento relacionado à área ou ao ramo do negócio, o que persiste até a atualidade. Com a modernidade, a contabilidade brasileira recebe influências da escola doutrinária italiana, que encarava a contabilidade como uma ciência, com leis e princípios próprios, como também do pragmatismo contábil estadunidense, que se baseia em regras (Rodrigues et al., 2012Rodrigues, L. L., Schmidt, P., & Santos, J. L. (2012). The origins of modern accounting in Brazil: Influences leading to the adoption of IFRS.Research in Accounting Regulation,24(1), 15-24.). Ambas as escolas, juntamente com as necessidades do governo de fiscalizar contas e gerar informações contábeis confiáveis (Rodrigues et al., 2012Rodrigues, L. L., Schmidt, P., & Santos, J. L. (2012). The origins of modern accounting in Brazil: Influences leading to the adoption of IFRS.Research in Accounting Regulation,24(1), 15-24.), trouxeram uma forma crítica de atuação do praticante da contabilidade. Hodiernamente, considerando a crescente integração econômica e financeira global do Brasil, o mercado requer do praticante da contabilidade o conhecimento de contabilidade societária, legislação societária e tributária, bem como de tecnologia da informação e de convergência internacional (Pires et al., 2009Pires, C. B., Ott, E., & Damacena, C. (2009). Uma análise do perfil profissional requerido pelo mercado de trabalho para contadores na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA). Revista Contabilidade Vista & Revista, 20(3), 157-187.; Rodrigues et al., 2012Rodrigues, L. L., Schmidt, P., & Santos, J. L. (2012). The origins of modern accounting in Brazil: Influences leading to the adoption of IFRS.Research in Accounting Regulation,24(1), 15-24.).

Compreende-se, portanto, que o praticante da contabilidade atua sob a influência ideológica de uma época e também é interpelado a ocupar certa posição numa organização social.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Preenchemos uma lacuna de pesquisa ao investigar as características demográficas e competências requisitadas aos praticantes da contabilidade na segunda metade do século XIX no estado do Pará, especificamente no período de 1859 a 1889. Revelamos que, no que se refere às características pessoais, o mercado, na segunda metade do século XIX, no Pará, preferia recrutar praticantes da contabilidade do sexo masculino, na faixa etária de 12 a 16 anos e solteiros. Com relação às competências, mostramos que o requisito mais exigido pelos comerciantes era a prática, seguido da competência de fazer escrituração, de saber ler e escrever, ter boa letra, saber aritmética e falar outros idiomas.

Apresentamos que, no século XIX no Pará, era impreterível ter conhecimento relacionado à área ou ao ramo do negócio para conseguir uma oportunidade de trabalho no mercado contábil. Com o decorrer dos anos, influências da escola italiana, estadunidense e do governo (Rodrigues et al., 2012Rodrigues, L. L., Schmidt, P., & Santos, J. L. (2012). The origins of modern accounting in Brazil: Influences leading to the adoption of IFRS.Research in Accounting Regulation,24(1), 15-24.) conduziram a um melhor desempenho no agir profissional ao atender às demandas do governo e da sociedade pautado em bases teórico-metodológicas que buscaram superar as práticas tradicionais da contabilidade.

Os resultados encontrados devem ser analisados em seu contexto e apresentam limitações. Os anúncios de jornais somente permitem a análise dos níveis mais baixos da hierarquia dos praticantes da contabilidade no período avaliado. A amostra continha apenas um anúncio para guarda-livros, sendo esse de procura de emprego. O fato de a função de guarda-livros ser percebida na época como um cargo de confiança pode explicar a quase inexistência de anúncios de oferta. O “natural” seria que esse praticante já estivesse no estabelecimento desde moço. Assim, a convivência cotidiana em longo prazo ensejaria oportunidades de mostrar sua fidelidade ao patrão para, no futuro, poder ser promovido a guarda-livros.

A contribuição desta pesquisa consiste em ampliar e aprofundar a compreensão histórica sobre os praticantes da contabilidade, sobre a agência profissional e suas mudanças na era contemporânea. Ao recorrer ao potencial explicativo da teoria das profissões, contribuímos para a reconceituação do estudo sobre profissionalização. Contribuímos para a literatura ao apresentar que o estabelecimento e a evolução da profissão contábil também devem ser considerados a partir das necessidades criadas pelo mercado. A aposta nesse tipo de reflexão resultou na (re)construção consciente da compreensão sobre as exigências de mercado para o exercício da atividade contábil na prática. Por meio de análise crítica e racional, contribuímos também para a reformulação, ampliação e transformação do conjunto de saberes que constitui a teoria prática prévia sobre os praticantes da contabilidade. Afinal, a investigação sobre a realidade da atuação do contador no tempo é capaz de permitir a criação de condições da (potencial) reconstrução e reconceituação da prática profissional futura.

A pesquisa sobre a história contábil brasileira ainda é incipiente. Portanto, seria interessante a continuidade desta pesquisa, com estudos mais aprofundados relacionados aos guarda-livros, pautados em outras fontes de pesquisa, como acervos bibliotecários ou, ainda, o desenvolvimento de novas pesquisas que apresentem a transformação no mercado de serviços contábeis, com ênfase na evolução do conceito “ocupação” a “profissão” na área da contabilidade. Outras contribuições para a história da contabilidade no Brasil podem ser apresentadas por meio de lentes teóricas capazes de questionar a renovação da contabilidade, posicionando-a como prática social que pode influenciar e ser influenciada pelo ambiente no qual opera.

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    Este trabalho foi apresentado no XV Congresso USP de Iniciação Científica em Contabilidade, São Paulo, SP, Brasil, julho de 2018.

Editado por

Editor-Chefe:

Fábio Frezatti

Editor Associado:

Eliseu Martins

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2021

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2019
  • Revisado
    01 Abr 2019
  • Aceito
    31 Out 2019
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