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O problema de encontrar um problema para chamar de seu

Ao ingressar no ambiente acadêmico, a palavra problema muda de sentido na vida das pessoas. Cotidianamente, olhamos o problema como algo a ser evitado; mas, no ambiente acadêmico, problema é algo a se buscar identificar e resolver. A atividade de pesquisa deve levar a esse resultado, uma solução completa, parcial ou mesmo que seja um degrau para uma solução. É para isso que o pesquisador existe. A solução de um problema deve gerar um novo conhecimento, e essa contribuição traz benefício para toda uma comunidade ou, ao menos, para um segmento dela. O problema é o elemento mais relevante para o desenvolvimento do projeto de pesquisa (Saunders et al., 2019Saunders, M. N. K., Lewis, P., & Thornhill, A. (2019). Research Methods for Business Students (8th ed.). Pearson.). Parece ser uma coisa simples e até mesmo óbvia, mas não é.

Particularmente na área de sociais aplicadas e, mais especificamente, no ambiente de negócios, as possibilidades são inúmeras, assim como as ontologias e epistemologias possíveis. Por um lado, isso gera enorme fertilidade; por outro, gera grande dificuldade de entendimento, progresso e consolidação de um novo conhecimento. Esperamos que o novo conhecimento traga impacto sobre as mudanças da comunidade, em algum momento.

A aceitação do princípio de que o conhecimento deve beneficiar alguém é um ponto de partida a ser respeitado. Uma nova técnica, um novo modelo, um olhar diferente, uma solução não apresentada anteriormente, por exemplo, continuam sendo algumas das possíveis contribuições para os principais beneficiados finais, aqueles para os quais voltamos o nosso foco de impacto. São as organizações públicas e privadas. Afinal, é isso que se espera de uma pesquisa na área de sociais aplicadas. Tratar um assunto que o beneficiário final considere que já foi resolvido pode ser potencialmente atraente pela facilidade e abundância de conhecimentos disponíveis, mas inócuo e estéril como avanço do conhecimento. A relevância tem prazo de validade e intensidade diferentes no tempo. Ela surge contextualmente e se modifica. Quem não perceber isso vai ter dificuldade para desenvolver conhecimento relevante.

O beneficiário final seria uma organização ao implementar um novo modelo de gestão, por exemplo, enquanto que o beneficiário intermediário é o que identifica ou aperfeiçoa o conhecimento para que o beneficiário final possa usufruir, embora não operacionalize. Quando alguém questiona o fato de que muitos pesquisadores só publicam para outros pesquisadores, antes de condenar, recomendo que avalie se o estágio do novo conhecimento ainda demanda uma ponte que pode ser proporcionada por alguém fortemente alicerçado nas organizações e, portanto, em condições de fazer o conhecimento chegar ao beneficiário final. O grande problema não está aí, no beneficiário intermediário, aquele que traduz para o beneficiário final, mas sim na adequação do problema escolhido, que alguns chamariam de qualidade do problema escolhido para ser trabalhado.

A propósito, temos outras áreas de conhecimento em que essa é exatamente a maneira de fazer chegar ao beneficiário final: o pesquisador pesquisando para o pesquisador, para que a solução do problema, se relevante, possa ser tratada dentro de uma linha de pensamento segmentada e consistente até chegar a quem realmente vai utilizar o novo conhecimento. Talvez na área de negócios sejamos tão carentes de sermos percebidos como inovadores, que não enxergamos o potencial futuro de uma linha de pensamento consolidada, fruto do acúmulo do conhecimento, o que demanda de vários atores uma perspectiva de longo prazo, de continuidade, e não apenas oportunidade.

Quando comparamos nossas publicações com outras áreas de conhecimento, encontramos, na área, grande amplitude em termos de diversidades ontológicas, epistemológicas e desenho metodológico, o que torna difícil conseguir que um artigo de sociais aplicadas seja publicado em curto espaço de tempo. Ao mesmo tempo em que temos comunicações com alta percepção de atemporalidade, temos outros com obsolescência rápida. Paradoxalmente, quando a publicação ocorre num prazo muito curto, a comunidade tende a questionar a lisura/legitimidade e dificilmente atribui o prazo à eficiência do periódico.

O sistema de avaliação se propõe a gerar confiabilidade às publicações, e isso fica na mão de inúmeras pessoas dificilmente coordenáveis. Ou mudamos completamente o modelo de pesquisa e comunicação - o que é realmente complicado, mesmo no mundo do ChatGPT -, ou vamos nos contentar com pequenas reduções de prazo, sempre possíveis com segmentação. O que isso tem a ver com o problema? O tempo decorrido produz a obsolescência da necessidade de solução ou a sua menor eficácia. Ou chegamos de forma inteligível às organizações em tempo hábil, ou elas não precisarão de nós, pesquisadores, para se desenvolver. A propósito, entendo que precisam, e muito.

Se não atendemos às necessidades das organizações em vários problemas, como elas estão sobrevivendo? As consultorias poderiam responder. São pragmáticas, dividem os problemas em slots e vão administrando, sendo reconhecidas e muito bem remuneradas. Afinal, as organizações não cobram tanta precisão metodológica como exigimos na perspectiva acadêmica. E la nave va. Temos algo a aprender com as consultorias? Claro, a começar pela forma como estabelecem relacionamento de confiança com os clientes e pontos de análise que serão adequadamente atendidos, e pela forma como colaboram para que o problema a ser tratado seja relevante para o seu cliente e factível de ser resolvido dentro das condições acordadas. Por outro lado, as abordagens metodológicas são absolutamente pragmáticas e pouco questionadas e, se a proposta funcionar, fica resolvida a questão. Para o consultor o que interessa é o resultado percebido pelo cliente, fatiado job por job.

Queremos apenas ser citados ou queremos que o conhecimento seja aplicado? Se quisermos somente a primeira escolha, este texto não vai ajudar. Se perceberem que existe uma enorme possibilidade no segundo eixo, vamos incluir um tipo de pesquisador que muitas vezes ignoramos. Alguém imagina que um CEO ou CFO vai gastar tempo lendo um artigo de 15 páginas para aprofundar seu conhecimento e, depois, decidir uma implantação? Alguém imagina que ele vai se dedicar a aprender coisas que nem imagina se poderá utilizar? Quem ele vai culpar se der errado (perdoem o maquiavelismo pragmático)? Alguém acredita que eles devam entender a metodologia e os nossos argumentos cartesianos?

Alguém precisa fazer a tradução do campo para a academia e, na volta, da academia para o campo. Entender o problema de maneira adequada, de acordo com a lógica do campo, é o início. Devolver o novo conhecimento da academia para o campo é uma etapa relevante e é a que as pessoas têm criticado, sem perceber que a dificuldade começou bem antes. Não dá para se apoiar em um dos lados sem o outro. Reconheço que existem pesquisadores que transitam bem pelos dois lados, mas nem sempre é assim.

Nessa hora imagino que um agente importante, um tipo especial de pesquisador relevante, que tem seus próprios métodos, é o consultor que pode traduzir os conhecimentos para seus clientes. Ele não vai citar nossos trabalhos, mas irá aplicá-los se soubermos nos comunicar e torná-los parceiros. O que acontece é que, com intensidades diferentes, ele ganha a confiança do cliente para ter espaço para propor soluções. Isso vale muito para o contato e mesmo para obtenção de dados confiáveis para ver o conhecimento sendo efetivamente utilizado.

É nesse ponto que fica interessante o questionamento sobre os pesquisadores publicarem para outros pesquisadores. Para alguns colegas existiriam outras soluções alternativas? A aproximação da área acadêmica com as organizações é algo que vem sendo tentado há muito tempo e, reconheço, com sucesso por parte de algumas instituições de ensino e pesquisa; em alguns casos, muito mais devido ao foco de relacionamento pessoal do que institucional, mas esse é um caminho fundamental para a valorização da pesquisa.

Convivi com executivos de uma empresa cujo CEO colocou uma mensagem na sala dos vendedores: O CLIENTE NÃO ESTÁ AQUI. É mais ou menos isso, caros pesquisadores: O PROBLEMA QUE VAI PROPORCIONAR A VOCÊ RECONHECIMENTO E GLÓRIA está... nas organizações, e você precisa saber como identificar, traduzir e modelar, com ou sem parceria.

Tem alguma formula mágica para encontrar um bom problema? Não é mágica, mas sim trabalhosa, estudando o segmento e o tipo de organização na qual deseja dedicar seu tempo. Sem o problema relevante que tenha uma solução possível, a pesquisa pode não se ancorar de forma eficiente no ambiente do ecossistema organizacional em momento algum e será uma enorme perda de tempo e recursos. Demanda tempo identificar e estruturar um problema relevante, mas vale a pena.

Evidentemente que o mergulho sobre o que já se estudou sobre o assunto é fundamental e, se escolhido um problema que seja relevante, mapear o que já se sabe é fundamental para identificar a lacuna, que é o ponto decisivo para a valorização do desenvolvimento da pesquisa. Em outras palavras, o que não se sabe sobre o problema? Para isso, o referencial deve proporcionar um construto que permita olhar a questão empírica e analisá-la de forma estruturada no ambiente do país e fora dele.

A lógica do ecossistema pode ser adaptada à escolha do problema. Em algum momento vai proporcionar a definição da questão de pesquisa para direcionar e delimitar o problema (Cooper & Schindler, 2001Cooper, D. R., & Schindler, P. S. (2001). Business Research Methods (17th ed.). McGraw Hill.). Emprestando a lógica da biologia, umecossistemaconsiste em uma comunidade de organismos em conjunto com seu ambiente físico. Assim existe uma inter-relação entre esses organismos e, quanto mais o problema identificado tiver amplitude de impacto no ecossistema, consequentemente a sua solução mais relevante será. Nessa visão de abrangência, algumas sugestões para o aperfeiçoamento do trato com os problemas podem ser oferecidas:

  1. 1. Maior aproximação prévia com as organizações, levando em conta a segmentação de interesse mútuo e perspectiva de contribuição. Esta sugestão é necessária para a segunda sugestão e, sem isso, continuaremos desalinhados com as demandas por conhecimento relevante em termos de utilidade e tempo de entrega. Do lado das organizações, existem casos em que elas nos chamam para discutir problemas que, às vezes, elas mesmas não conseguem dimensionar.

  2. 2. Criação de disciplina que proporcione, aos ingressantes nos programas de pós-graduação, entendimento, identificação, escolha e design de pesquisa voltados para o problema. Uma disciplina, mesmo que seja relativamente curta em comparação com as tradicionais, teria um formato em que representantes de organizações públicas e privadas interagiriam com os alunos com a coordenação dos professores. Formato de workshops, visitas ao campo como ponto de partida e discussões interativas com o objetivo de definir um problema em um dado contexto. Isso não ocorre com as disciplinas de metodologia? Provavelmente não na intensidade proposta, pois todo o desenvolvimento metodológico deveria ser atrelado ao problema, mas nem sempre essa visão prevalece.

  3. 3. Aproximação dos pesquisadores com os beneficiários intermediários - no caso, representados, não exclusivamente, pelos consultores - e atentando para percepções sobre necessidades e premência. O aprendizado desse convívio pode gerar novas oportunidades de problemas relevantes, com soluções factíveis e grande impacto.

  4. 4. Expor e validar os problemas identificados em vários segmentos e/ou públicos, com o objetivo de perceber o impacto possível com a sua solução, total ou parcial. A validação de um bom problema pode demandar um certo tempo, mas vale a pena para proporcionar assertividade ao processo de pesquisa, além de avaliação de amplitude de impacto.

  5. 5. Olhar a pesquisa como uma atividade que demanda postura individual e coletiva. Isso pode ser feito de várias maneiras em termos de aproximação de pessoas e grupos, mas uma possibilidade prática seria a “feira de problemas”, onde pessoas oferecem problemas com objetivo de identificar grupos que queiram trabalhar no desenvolvimento da pesquisa. Sair do ambiente de atividade individual e entrar no grupo exige confiança, maturidade, vontade, flexibilidade e resiliência dos pesquisadores, mas gera benefícios quanto à obtenção de diferentes talentos na gestão do projeto de pesquisa e, possivelmente, redução de prazos.

  6. 6. Na escolha dos problemas, podemos identificar um que possa ser desdobrado adequadamente, sem se constituir numa técnica “salame”, mas gerenciando olhar longitudinal em que seja possível um portfólio de problemas viáveis a partir de maturidade, olhar evolutivo e, com isso ser tratado de maneira segmentada. Pode ser interessante para aumentar a capacidade de avaliar se o problema é muito adequado ou se é algo que se resolve e não demanda continuidade. Novamente, o longo prazo se apresenta como agregador de valor ao problema e a seu tratamento como projeto de pesquisa.

O conhecimento proporcionado por um problema relevante, com lacuna evidenciada, contribuição inovadora e impacto percebido, é o que faz dos pesquisadores entes úteis ao ecossistema das organizações. Desejo que cada um ache alguns bons problemas para chamar de seus.

REFERENCES

  • Cooper, D. R., & Schindler, P. S. (2001). Business Research Methods (17th ed.). McGraw Hill.
  • Saunders, M. N. K., Lewis, P., & Thornhill, A. (2019). Research Methods for Business Students (8th ed.). Pearson.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024
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