Open-access Enraizamento de infraestruturas digitais de coleta de dados pelos Tribunais de Contas*

RESUMO

O objetivo deste trabalho foi identificar as trajetórias de automatização da coleta de dados em diversos Tribunais de Contas, as características comuns aos sistemas que emergiram e os impactos para os controles fiscal e contábil no Brasil. A automação de coleta de dados é parte da transformação digital no campo de auditoria, porém, as literaturas de auditoria pública no Brasil, de transformação digital ou de infraestrutura digital, não analisam como tal transformação se dá e como as infraestruturas se estabilizam e moldam o campo de auditoria. A automação da coleta de dados traz implicações inesperadas para o conteúdo da auditoria pública e de gestão financeira dos órgãos fiscalizados. A identificação das trajetórias dessa automatização permite discutir as diversas soluções presentes no campo e como isso afeta a uniformização da auditoria de governos. A automatização da coleta de dados pelos Tribunais de Contas, sobretudo o escopo e a frequência dessa coleta, induz como os órgãos fiscalizados priorizam a adoção e a manutenção de políticas e processos contábeis, orçamentários e de planejamento financeiro. As infraestruturas digitais que emergem desses sistemas moldam todo o campo de auditoria, enraízam-se e aumentam o custo de mudança futuro, perpetuando a heterogeneidade na fiscalização e na administração financeira de governos na federação. O artigo apresenta um estudo de caso longitudinal (1994 a 2020), com narrativas construídas a partir de questionários e entrevistas com analistas de controle externo de 26 Tribunais de Contas. A automatização da coleta de dados orçamentários e contábeis pelos Tribunais de Contas tem alterado a lógica do campo de auditoria de governos no Brasil. As infraestruturas digitais que emergem ao conectar Tribunais e seus jurisdicionados enraizaram conceitos, definições e expectativas implícitas na lógica de auditoria remota.

Palavras-chave: Tribunal de Contas; auditoria pública; contabilidade; governo eletrônico

ABSTRACT

This study aimed to identify the trajectories for data collection automation in various Courts of Accounts (Tribunais de Contas), the standard features of the systems that have emerged, and the impacts on fiscal and accounting oversight in Brazil. Data collection automation is part of the digital transformation in the field of auditing; however, the literature on public sector auditing in Brazil, on digital transformation, or digital infrastructure, does not analyze how this transformation occurs and how the infrastructures are stabilized and shape the field of auditing. Data collection automation has unexpected implications for the content of public sector audits and the financial management of the public sector auditees. Identifying the trajectories for digital tools of data collection automation enables a discussion on whether currently adopted solutions vary and the effects on the standardization of government audits. The automation of data collection by the Court of Accounts, particularly its scope and frequency, affects how the audited public organizations prioritize the adoption and maintenance of accounting, budgeting, and financial planning policies and processes. The digital infrastructures that emerge from these digital tools shape the entire field of auditing, they become embedded, and they increase the cost of future changes, perpetuating the heterogeneity in the auditing and financial management of governments in the Brazilian federation. The article presents a longitudinal case study (1994 to 2020), with narratives built based on questionnaires and interviews with auditors from 26 Courts of Accounts. The automation of budgetary and accounting data collection by Courts of Accounts has changed the logic of the field of government auditing in Brazil. The digital infrastructures that emerge by connecting Courts and the audited public organizations under their jurisdictions have embedded concepts, definitions, and implicit expectations in a remote auditing logic.

Keywords: Court of Auditors; public sector auditing; accounting; e-government

1. INTRODUÇÃO

As organizações de auditoria vêm, ao longo do tempo, assimilando cada vez mais a tecnologia em seus processos. Já é conhecida, por exemplo, a adoção de “ferramentas e técnicas assistidas por computador” na análise de dados por auditores (no inglês, computer-assisted audit tools and techniques) (Bradford et al., 2020). No setor público, por exemplo, desde o final da década de 1980, a International Organisation of Supreme Audit Institutions (Intosai) promove o uso de tais ferramentas na auditoria de governos, visando ganhos de eficiência ao automatizar tarefas repetitivas, estruturadas e intensas em mão de obra (Huang & Vasarhelyi, 2019).

Os estudos que têm implicações para automatização de auditoria focam, em geral, na etapa de análise dos dados e estão dispersos em diferentes áreas de conhecimento (Alles & Vasarhelyi, 2007). Recentemente, literaturas de transformação digital (Mergel et al., 2019) e infraestrutura digital (Furneaux & Wade, 2011; Fürstenau et al., 2019) analisaram como se dá e se estabiliza tal transformação em diversos contextos empíricos, porém não alcançaram o campo de auditoria.

No Brasil, há 26 anos os Tribunais de Contas vêm incrementalmente automatizando a coleta de dados de órgãos públicos para realizar diversos tipos de fiscalização. Em geral, a automatização da coleta de dados no Brasil antecedeu a automatização da análise de dados, que ainda está em fase inicial em muitos Tribunais. É da automatização da coleta de dados que se origina a transformação digital em curso. Essa automatização é um exemplo de transformação digital (Mergel et al., 2019), pois trouxe implicações significativas, contínuas e incrementais pela combinação de computação, informação e tecnologias de conectividade.

A automatização da coleta de dados pode ser entendida como a introdução de protocolos eletrônicos de comunicação durante o processo de prestação de contas pelos auditados. Esses protocolos fazem a interface entre o emissor e receptor dos dados fiscais, orçamentários e contábeis. Em geral, utiliza-se um sistema de coleta de dados (SCD) definido como uma aplicação digital em que os órgãos públicos fiscalizados enviam suas informações para que sejam analisadas pelos auditores (pertencentes a qualquer organização competente como autoridades fiscais, segundo a legislação vigente no país). No Brasil, além dos Tribunais de Contas, o governo federal também usa sistemas similares para receber informações de execução orçamentária e de políticas públicas de governos locais, como os sistemas do Ministério da Saúde [Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Saúde (Siops)], do Ministério da Educação [Sistema de Informações sobre Orçamentos Públicos em Educação (Siope)] e da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) [Sistema de Informações Contábeis e Fiscais (Siconfi)]. Um exemplo internacional de coleta eletrônica de dados de governos é o Budgeting, Accounting and Reporting System, do estado de Washington, nos Estados Unidos da América (State Auditor’s Office [SAO], 2021, 9 março).

Ao automatizar e tornar a coleta remota por meio dos SCDs, os Tribunais de Contas obtêm benefícios ao romper limites das restrições de tempo e de recursos necessários para coletar, armazenar e usar tais informações cada vez em maior escopo e frequência. Por exemplo, a guarda de documentos físicos é substituída por armazenamento digital e a transferência também não depende de meios físicos, passando a ser organizada por protocolos de transmissão de dados (Reis et al., 2015).

Contudo, como se dá tal transformação, as trajetórias de inovação e as implicações ainda não foram tratadas e são de grande valia para a melhor coordenação de digitalização da auditora pública no país. Assim, neste estudo observam-se o surgimento e a proliferação de SCDs nos Tribunais e como esses se tornam infraestruturas digitais para organizar as tarefas de auditoria. Adotamos o conceito de infraestrutura digital como um conjunto de sistemas computacionais eletrônicos (software) individuais, mas interconectados, que evoluem de maneira conjunta (Fürstenau et al., 2019), e o conceito de dependência no caminho (path-dependence) (Fürstenau et al., 2019; Vergne & Duran, 2010) como possível explicação para o enraizamento dessas infraestruturas em cada Tribunal e no campo de auditoria.

Dessa forma, o artigo tem como objetivo analisar a trajetória da automatização da coleta de dados pelos Tribunais de Contas atuando na fiscalização de governos municipais no Brasil. O artigo ainda descreve as funcionalidades e os princípios comuns aos diversos sistemas que emergiram e discute algumas implicações.

Foi conduzido um estudo de caso longitudinal das escolhas de automatização de 26 Tribunais de Contas, de 1994 a 2020. A pesquisa foi desenvolvida por meio de entrevistas com diretores e servidores seniores que atuam com tecnologia da informação (TI) e comunicação nesses Tribunais, trianguladas com documentos públicos e questionário enviado pelos autores.

Os resultados indicam que a automatização da coleta de dados se deu por uma sequência de investimentos (em software, recursos humanos e manuais de uso) que os Tribunais fizeram para desenvolver seus SCDs. A partir desses SCDs, emergiram infraestruturas digitais que impulsionam a digitalização ampla do processo de auditoria pública. Essas infraestruturas digitais incluem os sistemas de administração financeira nos municípios, que enviam dados e os disponibilizam para uso da auditora remota pelos auditores nos Tribunais. Cada infraestrutura que se desenvolve a partir dos SCDs dos diversos Tribunais recebeu investimentos próprios, mas também de desenvolvedores de software de administração financeira e de órgãos jurisdicionados que arcaram e arcam com a contínua adequação de software e processos.

Foram encontradas oito diferentes trajetórias de automatização nos SCDs adotadas pelos Tribunais que levaram à convergência de conceitos centrais e a uma lógica de coleta de dados de órgãos fiscalizados como parte importante do modelo de auditoria pública vigente no país. Apesar dessa convergência, o artigo alerta para as implicações dessa transformação.

O artigo apresenta, a seguir, breve contexto da prestação de contas de governos, que é justamente o processo que foi automatizado e de onde se origina a transformação digital em curso no campo. Em seguida, apresenta-se o conceito de path-dependence como mecanismo central de configuração das trajetórias de desenvolvimento dos SCDs e, consequentemente, nas infraestruturas digitais. Após apresentar a metodologia, dedicamos duas seções para explicar apenas as configurações e trajetórias dos SCDs em uso pelos Tribunais. Em seguida, discute-se o argumento de que em torno dos SCDs surgiram infraestruturas digitais que potencializam o enraizamento desses sistemas. Ao final, apresentamos o que consideramos de destaque sobre implicações e nossas conclusões.

2. O CONTEXTO DA PRESTAÇÃO DE CONTAS DE GOVERNOS AOS TRIBUNAIS DE CONTAS

As diversas prestações de contas impostas aos municípios brasileiros se aproximam de uma sobrecarga, no inglês accountability overload (Halachmi, 2014). Apesar de diversos órgãos públicos fiscalizados (jurisdicionados) prestarem contas de alguma natureza aos Tribunais de Contas, a sobrecarga ocorre principalmente em prefeituras, dada a amplitude da sua atuação e por ser o órgão responsável pela consolidação das informações nos entes. Como atuam na prestação de serviços, execução de políticas públicas, arrecadação tributária, regulação de uso do solo, expansão urbana, entre outros assuntos, prestam contas em crescente volume e frequência de envio de dados, tanto para os Tribunais de Contas quanto para ministérios e STN.

Um marco para esse contexto de sobrecarga de accountability foi a entrada da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) (Lei Complementar n. 101, de 4 de maio de 2000), que levou à maior proeminência dos Tribunais de Contas no monitoramento fiscal de governos (Loureiro et al., 2009). Até então, essas organizações atuavam, sobretudo, na análise de legalidade de atos de pessoal, orçamentários e de contratação e no julgamento das contas anuais de governo. As novas demandas da LRF resultaram no aperfeiçoamento da auditoria, sobretudo quando a partir de 2005 a maioria das Cortes aderiu ao Programa de Modernização do Sistema de Controle Externo dos Estados, Distrito Federal e Municípios Brasileiros (Promoex) realizado em cooperação com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) (Silva & Mário, 2018).

Contudo, historicamente, os Tribunais preservaram a postura coletiva defensiva com foco quase exclusivo em auditoria de legalidade (Azevedo & Lino, 2018) e acumularam críticas quanto à sua orientação excessivamente política (Loureiro et al., 2009) e práticas de nepotismo, clientelismo e corrupção (Lino & Aquino, 2020). Apesar de seguirem o mesmo modelo organizacional, os diversos Tribunais de Contas distribuídos pelo território nacional têm diferentes entendimentos da regulação fiscal (Nunes et al., 2019; Teixeira, 2020) e níveis de monitoramento (Lino & Aquino, 2018).

O típico processo de accountability fiscal atual que os Tribunais de Contas institucionalizaram com o tempo pode ser descrito em três fases. Na primeira, órgãos públicos, como prefeituras municipais, compulsoriamente enviam dados ao Tribunal com a frequência e escopo por ele definidos. Na segunda, os dados armazenados são usados na auditoria remota conduzida pelos auditores e, terceira, o colegiado de conselheiros do Tribunal faz o julgamento anual das contas e define medidas corretivas ou sanções.

A automatização da coleta de dados se deu justamente na primeira etapa do processo mencionado, substituindo o envio até então realizado em meio físico de documentos (formato analógico), como relatórios financeiros e atos de contratação (Reis et al., 2015). Inicialmente, servidores municipais iam pessoalmente na sede (ou unidade regional) do Tribunal entregar todos os documentos e compilações de dados requeridos para as prestações de contas. Começaram entregando documentos no formato analógico, e passaram a usar disquetes para armazenamento e transporte dos documentos gravados em formato digital e planilhas. Posteriormente, com a aplicação de protocolos eletrônicos de comunicação e de transferência de dados, a coleta e o armazenamento de dados passaram a usar meios digitais e remotos, com uso de um SCD. Com isso, alguns Tribunais convergiram para um modelo de atuação em que as tarefas de auditoria são centradas nos dados coletados - conhecidos como data driven audit (Arnold, 2018). Por exemplo, Tribunais passaram a fazer o processamento prévio dos dados coletados e o envio de “alertas de não conformidade” aos auditores responsáveis pelo município (Lino & Aquino, 2018).

Como será apresentado a seguir, cada Tribunal, a seu tempo, adotou um SCD, e diferentes modelos e versões estão atualmente em uso no país. Porém, existem aspectos comuns a todos. São sistemas conectados à internet que aplicam um protocolo de comunicação eletrônica e uma arquitetura previamente definida (layout de dados) para receber pacotes de dados enviados pelo software de administração financeira dos órgãos fiscalizados, o chamado Sistema ÚnicoeIntegradode Execução Orçamentária,Administração,Financeira e Controle (Siafic), segundo o Decreto n. 10.540 (2020, 5 de novembro). A coleta de dados é distinta do que é conhecido como “extração de dados”. O SCD recebe dados do auditado, enquanto na extração de dados os auditores usam aplicativos para acessar diretamente o sistema de adminstração financeira, por exemplo, para testes de controles internos e transações (Teeter et al., 2010). É o Siafic usado pela prefeitura municipal que envia o pacote de dados orçamentários e contábeis no formato e frequência requeridos pelo Tribunal de Contas.

Cada prefeitura tem autonomia para escolher seu Siafic. A solução comumente adotada por prefeituras no país é contratar uma licença de uso de software comercial, no qual o fornecedor arca com a maior parte dos custos de mudança de versões ou de parametrização às mudanças constantemente impostas pelo SCD do Tribunal de Contas (Aquino, Azevedo, Lino & Cardoso, 2021; Azevedo, Lino, Martins & Aquino, 2020).

Como será visto, à medida que o módulo central do Siafic nos auditados se conecta ao SCD e fornece dados para as tarefas de análise de dados pelos auditores, começa a se formar a infraestrutura digital para organizar a auditoria baseada em dados em cada Tribunal, permitindo a expansão da lógica de auditoria remota no campo. As escolhas feitas no desenvolvimento do SCD são a origem e a parte central da infraestrutura digital.

3. PATH-DEPENDENCE DA INFRAESTRUTURA DIGITAL

O desenvolvimento de um novo SCD, as replicações de SCDs similares em diversos Tribunais via acordos de cooperação técnica, descontinuidades e trocas de versões são decisões que ocorrem no nível da organização “Tribunal de Contas”, mas afetam e são afetadas pelo que ocorre no campo do controle externo de governos (composto por Tribunais, mais de 5.500 municípios, fornecedores de sistemas, associações profissionais de auditores e outros atores). Argumenta-se que existe uma trajetória para a automatização da coleta de dados em cada Tribunal e uma trajetória para o campo de auditoria como um todo.

A automação da coleta de dados é vista como uma inovação aplicada pelos Tribunais, inicialmente adotada para aprimorar o monitoramento fiscal revigorado pela LRF. Cada Tribunal autonomamente decidiu sobre a adoção de SCDs e paulatinamente foi se consolidando e enraizando uma infraestrutura digital. Essa se desenvolve como resultado de sistemas interdependentes evoluindo em relação aos demais (Fürstenau et al., 2019). Essa infraestrutura interage, em uma ponta, com os sistemas de administração financeira nos governos (Siafic), na interface do SCD do Tribunal com os auditados (municípios) e, na outra ponta, com sistemas de auditoria eletrônica [computer assisted audit techniques (CAATs)] usados pelos auditores daquele Tribunal. Com o contínuo uso e interação, ao longo dessa trajetória de desenvolvimento da infraestrutura, os sistemas individuais se tornam parte das rotinas daqueles profissionais e fornecedores, são aceitos como parte integrante da realidade organizacional, deixam de ser questionados (Fürstenau et al., 2019), e são enraizados. Assim, no campo, diversas infraestruturas digitais emergem, desenvolvem-se e são enraizadas, segundo escolhas daqueles Tribunais.

Tribunais que adotam a inovação em um estágio inicial (early adopters) buscam ganhos de produtividade na sua atuação (Fligstein, 1985). Já em fases posteriores, outras organizações adotam soluções similares tardiamente (later adopters) em busca de legitimidade (Scott, 2014; Tolbert & Zucker, 1983) ou em resposta às incertezas envolvidas no uso de uma solução ainda não testada. Exemplo dessas influências que vêm do campo organizacional, como o de auditora de governos, é o programa Promoex. Uma vez adotada uma solução, contínuos investimentos elevam barreiras à mudança da trajetória.

Entre três explicações correntes na literatura sobre o enraizamento da trajetória de uma infraestrutura digital, adota-se a noção de path-dependence (Fürstenau et al., 2019). Path-dependence é a propriedade de um processo estocástico (que possui múltiplas direções possíveis na evolução do processo, dada uma condição inicial conhecida) de seguir uma trajetória por contingências ao longo dessa trajetória ou por autorreforço, se não houver um choque externo, gerando o efeito lock-in (Vergne & Duran, 2010). Na condição de path-dependence, os eventos/oportunidades (contingências) que surgem na trajetória influenciam mais o caminho do que as condições iniciais (Vergne & Duran, 2010).

Uma vez que um caminho de tecnologia foi escolhido, contingências e mecanismos de reforço desse caminho podem intensificar a permanência nesta solução. São exemplos de reforço as externalidades positivas de redes de atores, retornos crescentes de escala, escopo ou aprendizado (Vergne & Duran, 2010) ou mesmo perdas (sunk cost) associadas às demais alternativas possíveis (Kay, 2005).

Com a atuação desses mecanismos de reforço do caminho, organizações que permanecem em determinada rota de desenvolvimento ficam presas (locked-in) em um estado do qual “não se escapa endogenamente” (Vergne & Duran, 2010, p. 743). A tendência de permanecer no caminho poderia ser rompida por um choque externo, como uma mudança institucional [ex., Schneiberg (2007)], se o caminho se exaurir com o fim dos ganhos de escala e escopo (Ruttan, 2001) ou quando as funcionalidades do sistema se tornam inadequadas para as demandas atuais, devido a mudanças regulatórias ou tecnológicas (Furneaux & Wade, 2011).

Em contrapartida, em algumas situações “certa solução se desenvolve de tal maneira que é difícil, se não impossível, reverter o curso ou considerar o uso de abordagens alternativas mesmo que levando a resultados superiores” (Scott, 2014, p. 144)

Retomando a noção de enraizamento, a inércia de uma infraestrutura digital em mudar de trajetória, mesmo com eventual perda de funcionalidade, é fortalecida pelo grau em que o sistema é parte integrante e inquestionável das rotinas da organização (system embeddedness, traduzido aqui como “enraizado”) (Furneaux & Wade, 2011; Fürstenau et al., 2019). A dificuldade da mudança de uma infraestrutura digital pode não ser associada pelos gestores à perda dos investimentos feitos ou custos irrecuperáveis ou afundados (sunk-cost) e aos custos da troca de sistemas (switching costs) como mostrado em Furneaux e Wade (2011). Um enraizamento profundo faz com que tarefas e processos dependam intensamente da infraestrutura digital interconectada com outros sistemas organizacionais e seu abandono passa a ser quase impensável (Furneaux & Wade, 2011).

4. METODOLOGIA

A análise a seguir observa dois aspectos: (i) a trajetória da automatização da coleta de dados por Tribunais de Contas; e (ii) as funcionalidades e princípios comuns aos diversos sistemas que emergiram no período analisado. Foram analisados apenas os SCDs focados em dados orçamentários e contábeis. Contudo, sabe-se que os diversos Tribunais de Contas têm sistemas para coletar dados de outra natureza, como obras, licitações e atos de pessoal. A amostra reúne um grupo diversificado de SCDs contábeis e orçamentários em operação para comparar como esses sistemas variam em relação aos atributos de um SCD típico que está sendo institucionalizado no campo. A convergência de atributos desse SCD típico vem de iniciativas isoladas e de influências de outras soluções no campo (Tolbert & Zucker, 1983), à medida que as soluções de coleta de dados patrocinadas pelos Tribunais buscam ampliar os benefícios percebidos da automatização, caso aceitem (ou ignorem) os efeitos colaterais da automatização no processo de auditoria.

Foi realizado o estudo de caso longitudinal (Elliott et al., 2008) das trajetórias de automatização dos Tribunais de Contas no período de 1994 a 2020. A “trajetória de automatização” é o conjunto de escolhas feitas por um Tribunal de Contas desde o desenho e a implantação até o aprimoramento contínuo das versões de seu SCD no período analisado. O estudo focou em 26 Tribunais com jurisdição sobre múltiplos municípios, a partir da classificação proposta em Lino e Aquino (2018). Ao final, captamos dados via entrevistas e documentos para 26 Tribunais (Figura 1) e via questionário para 18 desses (Tabela 1).

4.1 Coleta de Dados

A pesquisa utilizou fontes documentais e informações coletadas em questionários e entrevistas. As entrevistas foram realizadas em dois momentos, em janeiro/fevereiro de 2016 e em agosto/setembro de 2018.

4.1.1 Coleta de dados em 2016

Primeiro, foi elaborado um questionário eletrônico sobre os atributos centrais de um SCD típico a partir de informações coletadas sobre os SCDs nos websites dos Tribunais, além de uma entrevista-piloto com um respondente-chave de um Tribunal de Contas. Posteriormente, o questionário desenvolvido foi validado pelo respondente-chave e por consultores de um fornecedor de Siafic para municípios do mesmo estado. Em seguida, o questionário foi enviado ao coordenador de TI de todos os 26 Tribunais selecionados para este estudo, tendo sido recebidas 18 respostas válidas e completas. Em seguida, foram agendadas entrevistas com diretores e servidores seniores atuantes com TI nos Tribunais que responderam. Para os oitos Tribunais que não responderam, foram enviados pedidos por meio de ouvidoria, buscando o melhor contato para entrevistas.

Foram realizadas entrevistas de episódio (episodic interviews) para captar uma narrativa sobre a “adoção e desenvolvimento” do SCD daquele Tribunal. Esse tipo de entrevista associa o evento concreto (mudança tecnológica) a outras situações concretas (momento, localidade, pessoas envolvidas, outros eventos contemporâneos) vivenciadas pelo respondente e, por fim, associa ao conhecimento (descontextualizado e abstrato) que o respondente tem (sobre o SCD) (Flick, 1998; Hermanns, 1995). Baseado nas narrativas, foi gerado um mapa conceitual esquemático (Figura 1) de trajetórias identificadas por codificação temática (Flick, 1998), mostrando a sequência de versões adotadas por cada Tribunal.

As entrevistas com os Tribunais iniciavam com a confirmação das características do SCD vigente captadas pelo questionário ou no website do Tribunal. Em seguida, o entrevistado narrava o episódio da adoção do SCD em questão. O protocolo incluiu os eventos associados ao desenvolvimento do SCD, o contexto existente à época, eventuais acordos de cooperação técnica com outros Tribunais de Contas para cessão do sistema e pressões para adequação do SCD. Questionou-se, adicionalmente, como o SCD foi impactado pelo Plano de Contas Aplicado ao Setor Público (Pcasp) imposto pela reforma da contabilidade pública em curso à época.

Foram realizadas entrevistas por telefone com auditores de cada um dos Tribunais, com duração média de 20 minutos (máximo 1h18 e mínimo de 10 minutos), além de chamadas adicionais para sanar eventuais dúvidas. As entrevistas dessa fase não foram gravadas, porém, com uso de chamada telefônica no viva-voz, o pesquisador fez apontamentos na planilha eletrônica, conferindo os atributos do SCD e tomando notas adicionais durante e ao final do contato telefônico. Outras entrevistas de triangulação foram feitas com consultores que enviam os dados para os SCDs por prefeituras clientes e com o responsável técnico pelo estudo do Instituto Rui Barbosa, que diagnosticou as infraestruturas digitais em uso pelos Tribunais de Contas em 2011.

4.1.2 Coleta de dados em 2018

Uma segunda rodada de entrevistas com os Tribunais anteriormente entrevistados questionou a mudança de versões dos SCDs e como estavam tratando a adequação à “Matriz de Saldos Contábeis” desenvolvida pela STN. Também foram entrevistados Tribunais de Contas que não haviam participado anteriormente. Aplicou-se o mesmo protocolo completo nas entrevistas com diretores ou servidores sêniores. Foram realizadas entrevistas com 19 Tribunais de Contas, com duração média de 31 minutos (máximo de 1h01 e mínimo de 18 minutos). Nessa etapa, todas as entrevistas foram gravadas e transcritas.

Cada Tribunal também foi identificado segundo a condição favorável ou desfavorável a uma adoção pioneira ou tardia do seu SCD (Tabela 1). Um contexto favorável à automatização é aquele que potencializa benefícios da adoção pioneira do SCD. Para esse texto, consideramos que os seguintes fatores impulsionariam uma adoção pioneira: menor relação auditores/jurisdicionados, maior dispersão geográfica de jurisdicionados, áreas de difícil acesso, melhor estrutura de TI na maioria dos jurisdicionados, ausência de resistências internas ou existência de líderes apoiadores do projeto. Algumas dessas condições já haviam sido apotadas por Lino e Aquino (2018), outras foram levatadas indutivamente das entrevistas.

4.2 Codificação da Narrativa da Automatização

A narrativa da trajetória de automatização dos SCDs foi codificada a partir das entrevistas de episódio e está representada na Figura 1. Identificamos que a trajetória se dá pela troca de versões de SCD, entendidas aqui como configurações do sistema, funcionalidade e atributos (ex., maior ou menor granularidade ou integridade) pela aplicação de tecnologia (ex., linguagem, arquitetura de programação e de bases de dados, protocolos de comunicação). Existe certa dependência entre tecnologia empregada e funcionalidades, como o uso de XBRL na estruturação dos dados, o que afeta sua integridade.

Em uma abordagem abdutiva (Reichertz, 2013), partimos da literatura prévia de TI em auditoria e identificamos, a partir das entrevistas e dos questionários, os atributos de um SCD típico: estruturação; integridade; espelhamento; granularidade; frequência; alertas e análise. Os atributos correspondem à última versão do SCD operante em 2016 (Tabela 1) e o histórico de sucessão das versões até 2020 (Figura 1), mas não captam as diferentes configurações anteriores.

5. ATRIBUTOS DE UM SCD TÍPICO

Os resultados indicam a convergência dos atributos dos SCDs dos Tribunais de Contas, provavelmente favorecida pela interação dos Tribunais durante o Promoex. A Tabela 1 compara os atributos de 18 SCDs (estruturação; integridade; espelhamento; granularidade; frequência; e alertas e análise).

5.1 Estruturação

É a associação de uma categoria/rótulo aos dados no momento do registro dos dados que dá significado a uma unidade de dados (ex., receita própria de tributos). Quanto menos violável for o fluxo de dados (registro e armazenamento dos dados no Siafic, extração e posterior armazenamento dos dados pelo SCD) e mais claros e estáveis forem os rótulos usados, menos o processo de auditoria estará suscetível a manipulações indevidas ou interpretações equivocadas (Singleton, 2010). A manipulação indevida de dados é mais provável quando o nível de estruturação é baixo, ou seja, quando a transmissão dos dados é feita por envio de arquivos de texto ou planilhas. Atualmente, são usadas as seguintes maneiras para envio de dados, ordenadas de menor para maior estruturação: (i) o órgão público fiscalizado gera informações em seu Siafic e as digita em uma “ferramenta-cliente” que pode ser o website ou um aplicativo do próprio Tribunal; (ii) os dados são gerados e empacotados pelo Siafic em um arquivo local, em padrão e formatos pré-definidos (txt, csv, xls, XML, XBRL), e em seguida são transferidos para o SCD pelo comando de uma pessoa encarregada; ou (iii) o Siafic transfere automaticamente os dados para o SCD sem qualquer interferência humana.

5.2 Integridade

Integridade aqui é a ausência de falhas nos dados coletados, como valores e dados fora de domínio (ex., valores invertidos em contas contábeis). Tais falhas são comuns na ausência de validação dos dados no envio e impedem algumas análises (Singleton, 2013). Na maior parte dos Tribunais, entre a transmissão (ou digitação) de dados e seu “aceite” pelo SCD, o sistema faz validações para impedir o recebimento de dados inconsistentes segundo regras de sistemas (também chamadas na linguagem de software de “regras de negócios”). As validações são feitas no processo de envio e recepção dos dados. Após ter sido aceito, o dado é armazenado e fica disponível para uso interno do Tribunal. A integridade considera, ainda, a conferência dos saldos entre dados de diferentes períodos transmitidos para controlar alteração de dados anteriormente transmitidos. Por exemplo, o saldo da conta “tributos” ao final de um mês deve ser igual ao saldo inicial do próximo mês.

5.3 Espelhamento

É o nível em que os dados enviados refletem exatamente os dados armazenados no Siafic do órgão fiscalizado. Uma provável manipulação indevida dos dados antes do envio (em limites fiscais, por exemplo) poderia ser mitigada se o profissional usuário do login do SCD no órgão fiscalizado fosse responsabilizado, com o uso de senhas individualizadas de acesso para o envio dos dados. A qualidade da informação enviada poderia ser melhorada se fossem reduzidos os incentivos para o envio de dados parciais, provisórios e de baixa qualidade (com falhas). Como alguns SCDs permitem a retransmissão dos dados, o espelhamento é reduzido, pois os dados podem ser alterados após análises dos Tribunais. Alguns Tribunais impedem a retransmissão ou adotam uma retransmissão controlada.

5.4 Granularidade

Quanto maior o detalhamento dos dados, maior seu volume e complexidade (Danziger & Andersen, 2002) e maior a necessidade de automatização. Se a informação solicitada pelo Tribunal se restringir aos “saldos de contas do balanço patrimonial consolidado”, essa poderia ser digitada na tela do SCD (com risco de erros e manipulações). Em contrapartida, à medida que o nível de detalhe cobrado se aproxima da transação em si (nível analítico), o envio por digitação se torna impraticável. Alguns Tribunais pedem o envio detalhado da execução orçamentária por transação (“contas correntes”) ou os lançamentos contábeis analíticos (todos os registros de débito e crédito).

5.5 Frequência

É o intervalo de tempo entre dois envios de dados para o SCD, reunindo dois conjuntos de dados que, apesar de similares, recuperam transações de diferentes períodos gravadas no Siafic (ex.: Abril vs. Junho, 1º trimestre vs. 2º trimestre, 2000 vs. 2021). O envio de dados mensais (ou até diários, como alguns adotam para determinadas informações) limita que eventuais ajustes na contabilidade sejam feitos pelo auditado no próprio mês, pois os dados de meses anteriores já foram reportados, o que induziria melhoria de gestão (Power, 1997). Alguns sistemas coletores captam os dados em menor periodicidade ou continuamente, permitindo a auditoria concomitante (Byrnes et al., 2015) e obrigando as prefeituras a manterem os registros em ordem. Se os dados são coletados apenas anualmente, os contadores das prefeituras podem ajustar todos os lançamentos daquele ano todo até a véspera da prestação de contas.

5.6 Alertas e Análise

O sistema usa rotinas automáticas para emitir alertas de não conformidade e relatórios preliminares sobre tais ocorrências aos auditores e órgãos públicos fiscalizados. É um tipo de auditoria concomitante (Huang & Vasarhelyi, 2019). Entre os diversos usos da informação coletada estão emissão e disponibilização de: (i) alertas para os fiscalizados pelo cumprimento de uma regra legal, como limites de gastos previstos na LRF; (ii) relatórios para os fiscalizados, apresentando a situação orçamentária, fiscal ou contábil; (iii) alertas e relatórios situacionais para auditores; e (iv) informações para controle social no website do Tribunal.

6. TRAJETÓRIAS DA AUTOMATIZAÇÃO DA PRESTAÇÃO DE CONTAS

A partir do lançamento do primeiro SCD (1994), pode-se desdobrar a automatização no campo em quatro fases, acompanhando as ondas de mudança tecnológica e de regulação no ciclo de gestão financeira (Figura 1). A fase pré-LRF (1994-1999) teve como características principais a busca pelo controle de gastos com pessoal (Lei Camata I e II - Lei Complementar n. 82, de 27 de março de 1995 e Lei Complementar n. 96, de 31 de maio de 1999) e baixa informatização. A fase pós-LRF (2000-2005) apresentou aumento do controle fiscal automatizado, mas ainda com escassez de recursos dedicados à TI. A seguir, a fase do Promoex (2006-2012) foi marcada pela ruptura tecnológica, pela redução do custo de acesso à internet e novas tecnologias e pela colaboração entre Tribunais (Silva & Mário, 2018). Por fim, na fase pós-Pcasp (a partir de 2013), os Tribunais aderiram ao novo plano de contas unificado e a novas funcionalidades de geração automática das demonstrações diretamente a partir das contas contábeis. A transformação ainda está em andamento, atualmente marcada pela expansão do escopo dos dados coletados pelos Tribunais, avançando para temas como licitações e contratos ou folha de pagamento, que vão além dos dados fiscais-orçamentários já coletados.

6.1 Contextos Iniciais

Apesar de a regulação do ciclo de gestão financeira ser a mesma para os diversos Tribunais de Contas, alguns aspectos geram contextos mais ou menos favoráveis à adoção de SCDs. Entre esses estão as diferenças de recursos disponíveis para investimento, equipes, base tecnológica instalada dos Tribunais (Fernandes et al., 2018; Lino & Aquino, 2018) ou dos órgãos fiscalizados e a dispersão geográfica de municípios onde o Tribunal atua.

No momento da adoção inicial, um contexto favorável à automatização potencializaria os benefícios do Tribunal ser pioneiro (Janowski, 2015) e induziria a busca por ganhos de produtividade ou legitimidade (Tolbert & Zucker, 1983). Em uma condição favorável, os Tribunais pioneiros assimilariam o custo de desenvolvimento da sua própria solução de SCD ou adotariam soluções cedidas por outros Tribunais, mesmo sob incerteza da efetividade da solução. Em contrapartida, em contextos desfavoráveis, o Tribunal aguardaria soluções já experimentadas, postergando o processo de automatização. A adoção da primeira versão foi considerada pioneira até 2005 (antes do Promoex) ou tardia a partir de 2006.

A maior parte dos Tribunais analisados lançou seu SCD (ao menos uma primeira versão) até 2005 e é considerada pioneira (Figura 1). Alguns iniciaram a automatização antes ou no ano da entrada da LRF (oito casos), dado que as Leis Camata I e II já estabeleciam o monitoramento de gastos com pessoal. Nessa primeira fase, os pioneiros lançaram suas próprias soluções, e apenas o estado de Roraima optou por adotar uma solução já existente (a do estado de Santa Catarina). Logo em seguida, na segunda fase (pós-LRF - 2000-2005), a LRF suscitou uma rápida ampliação do monitoramento fiscal; cinco Tribunais desenvolveram suas soluções e quatro adotaram o sistema do estado de Santa Catarina.

Em geral, os pioneiros tinham um contexto favorável à adoção. Alguns fatores explicam esse movimento inicial, como a existência de uma menor relação auditores/total de órgãos fiscalizados, dispersão geográfica dos órgãos públicos fiscalizados e dificuldade de acesso. Nos casos dos estados do Espírito Santo e Rio de Janeiro, o menor número de auditados e concentração geográfica reduziria parte do benefício da inovação. Sem maior necessidade, os estados do Espírito Santo, Acre, Amazonas e Rondônia adotaram SCDs com menor investimento.

6.2 Contingências no Caminho

Passada a adoção inicial, os Tribunais atualizaram as versões de seu SCD, seja para agregar novas tecnologias ou para adequar à regulação. Em geral, a troca de versões foi feita por investimentos incrementais na versão existente ou substituindo-a por um novo SCD próprio ou por uma versão de um SCD cedido em cooperação com outro Tribunal.

Mesmo com constantes atualizações e mudanças, as evidências indicam que a trajetória dos SCDs foi em grande parte definida por mecanismos de reforço do caminho, como custos irrecuperáveis (sunk-costs) e de troca (switching costs), busca por legitimação e embeddedness (resistência de equipes técnicas e dos órgãos públicos fiscalizados) (Furneaux & Wade, 2011; Vergne & Duran, 2010).

Os investimentos feitos e aplicados na troca de versões incluíram a criação de módulos, expansão da capacidade de armazenamento e processamento de dados, aplicativos para uso de auditores, treinamento de auditores e confecção de manuais. Os dois importantes mecanismos de reforço de caminho estão presentes na decisão de troca de versões: auditores e auditados gastavam recursos e tempo na migração de versões (switching costs) e recursos empregados em versões anteriores foram perdidas (sunk-cost). Entre os pioneiros que persistiram na sua própria solução, alguns aperfeiçoaram continuamente as versões com novas funcionalidades (padrão 1, Tabela 1), empregando constantemente recursos em equipes de TI e conseguiram vencer a barreira da transição para o ambiente web, aumentaram a granularidade dos dados, automatizaram alertas e emissão de análises e avançaram na integridade dos dados.

Figura 1
Proliferação de sistemas de coleta de dados (SCDs) financeiros pelos Tribunais de Contas (1994-2020)

Outros Tribunais (padrão 2) fizeram apenas atualizações e pequenas parametrizações para atender às mudanças de normativas ou melhorias sem alterar a estrutura ou o layout (padrão 2). No período de 2012 a 2014, novos investimentos foram feitos para atualizar a versão de seus SCDs para o novo plano de contas (Pcasp), aumentando a dependência no caminho. Assim, a dependência do caminho do padrão 1 é significativamente maior do que a do padrão 2 pelos custos irrecuperáveis (sunk-cost) e pelo enraizamento com outros sistemas (embeddedness), que ficam ainda mais presos à sua própria rota tecnológica de solução. Outros padrões de automatização são caracterizados pelo uso de versões cedidas por outro Tribunal em algum ponto da trajetória (padrões 3, 4, 5, 7 e 8). Observam-se dois grupos de Tribunais convergindo em torno dos modelos do Sistema de Acompanhamento da Gestão dos Recursos da Sociedade (Sagres) e do Sistema Informatizado de Contas Municipais (Sicom) (de 2001/2002) que influenciaram total ou parcialmente oito Tribunais entre 2007-2014 (Figura 1). Sobretudo no padrão 1, observou-se muita experimentação nas camadas mais superficiais do SCD, com adoção de coleta em novos temas, descontinuidade em outros e constantes mudanças nas regras de validação de dados.

Alguns Tribunais pioneiros, depois de lançarem seu próprio SCD, migraram para soluções cedidas por acordo de cooperação quando já era mais claro o que seria ideal para um SCD típico para Tribunais de Contas no Brasil (padrão 3, Tabela 1).

Outros Tribunais fizeram o inverso, iniciando com códigos cedidos [do Auditoria de Contas Públicas (ACP) do estado de Santa Catarina] e migraram em seguida para solução própria (padrão 4, Tabela 1). Esses Tribunais tinham um contexto desfavorável à adoção pioneira e optaram por iniciar o processo com menor investimento (sem custos de desenvolvimento).

Já os estados do Acre e Espírito Santo (padrão 5, Tabela 1) iniciaram com sistemas próprios nos primeiros anos, sem terem tanta pressão para adoção comparativamente, e passaram por diversas mudanças até chegarem a uma maior automatização.

O estado do Piauí, por sua vez, adotou e aperfeiçoou o Sagres da Paraíba (padrão 7, Tabela 1), internalizando maior automatização no curto prazo, contudo ancorado na solução anterior; inicialmente, não implantou soluções para garantir o espelhamento dos dados, como o uso de XML, adotado apenas em 2014.

Tabela 1
Padrões de trajetórias de automatização dos sistemas de coleta de dados (SCDs) e escopo de dados contábeis/fiscais coletados em 2016

Outros Tribunais que não tinham tanta pressão para adoção pioneira adotaram o sistema Sicom ou o Sagres (padrão 8, Tabela 1) e avançam em automatização com a mesma limitação inicial do estado do Piauí, referente ao baixo espelhamento. Por fim, alguns Tribunais tiveram dificuldades em lançar seus sistemas próprios. Os estados da Bahia, Maranhão e Pará (padrão 6, Tabela 1) vêm desenvolvendo seus sistemas, mas com baixo grau de automatização efetiva. Esses teriam, a priori, um contexto favorável à inovação, mas, além de entrarem tardiamente, enfrentaram dificuldades na quarta fase. Comparados aos SCDs desenvolvidos internamente, aqueles adotados por acordo de cooperação tinham menor custo irrecuperável (sunk-cost) e, portanto, menor resistência por parte das equipes do Tribunal. De qualquer forma, a troca de versões (própria ou cedida) traz custos de troca para toda a cadeia, afetando fornecedores de Siafic e prefeituras clientes (visto a seguir).

6.3 Choques Exógenos

Mudanças tecnológicas ou regulatórias disruptivas reduzem o aprisionamento na solução ou lock-in (Furneaux & Wade, 2011; Schneiberg, 2007; Vergne & Duran, 2010). Dois choques poderiam ser considerados como exógenos e alterar as práticas de prestação de contas de governos no Brasil, incluindo o surgimento e a mudança dos SCDs. Primeiro, a entrada da LRF suscitou a transição da maneira “analógica em meio físico” para “eletrônica” para coleta de dados, dada a ampliação da exigência de acompanhamento de informações pelos Tribunais. Contudo, os custos irrecuperáveis (sunk-cost) de desenvolvimento e treinamento continuamente decairiam à medida que as versões mais recentes dos SCDs atendessem as falhas das anteriores.

O segundo choque foi a adoção compulsória de um novo plano de contas (Pcasp) em 2013, que não foi suficiente para reduzir o lock-in das trajetórias mais antigas. A adoção de um plano de contas padronizado nacionalmente é icônica para o campo. Dependendo da arquitetura de programação do SCD, não é viável modificar um código fonte de centenas de milhares ou milhões de linhas. Se a estrutura para recebimento dos dados (que reflete e é organizada em torno de um “plano de contas”) for definida diretamente no código fonte do programa, a mudança será nas camadas mais profundas do sistema, com maior chance de abandono da solução anterior.

A maior parte dos Tribunais antecipou em um ou dois anos a adoção do plano de contas padronizado (Pcasp) em relação ao prazo definido pela STN (Tabela 1). Por exemplo, os Tribunais dos estados de Goiás, São Paulo e Paraná adotaram o novo Pcasp com dois anos de antecedência. Esses Tribunais no padrão 1 já acumulavam maior custo irrecuperável (sunk-cost) e novamente arcaram com os custos de adequação de seus SCDs. Em contrapartida, os Tribunais com soluções compartilhadas com outros Tribunais, e que já haviam assimilado custos irrecuperáveis de suas versões anteriores, migraram com poucas perdas para soluções adequadas ao Pcasp. Esse foi o caso do estado do Espírito Santo, que descontinuou a versão do Sicom de 2010 (à época não adaptada ao novo plano de contas, pois esse SCD foi adequado ao Pcasp apenas em 2014 pelo estado de Goiás) para adotar o CidadesWeb [versão inspirada no Auditoria Eletrônica de Órgãos Públicos do estado de São Paulo (Audesp)]. Atualmente, os SCDs já preveem adequações periódicas do plano de contas com atualizações de baixo custo operacional.

Apesar de os choques tecnológicos e regulatórios reduzirem o lock-in nos SCDs, as mudanças decorrentes desses choques trazem instabilidade na infraestrutura de administração financeira de governos e reduzem a disposição para novos investimentos por esses governos. Como o modelo dominante de Siafic no país é o de contratação terceirizada (Azevedo, Lino, Martins & Aquino, 2020), os governos transferem o risco de obsolescência aos fornecedores de Siafic do setor privado e terceirizam as equipes de TI e de contabilidade. Foram também identificadas soluções menos frequentes de Siafic, como o uso de software livre ou de sistemas modulares desenvolvidos pelo próprio órgão de controle e cedidos sem custo aos jurisdicionados.

7. O ENRAIZAMENTO DAS INFRAESTRUTURAS DIGITAIS

Path-dependence é uma das prováveis razões para o enraizamento de infraestruturas digitais (Fürstenau et al., 2019), estabilizando as principais características no centro da infraestrutura. Essas características se alteradas provocariam grandes custos de troca ou perda de investimento. Como já apresentado anteriormente, as trajetórias dos SCDs são o centro da infraestrutura digital de coleta de dados fiscais no Brasil.

No período analisado, diversas entrevistas apontam que o SCD se tornou um meio fundamental pelo qual circulam dados para o processo de fiscalização de órgãos públicos, conectando os auditores dos Tribunais e os municípios fiscalizados. Como tratado, as trajetórias dos diversos SCDs em operação evitaram custos de troca e investimentos irrecuperáveis, mas contêm um nível de path dependence latente. Na ausência de outros choques externos (além da entrada do Pcasp), os Tribunais evitaram custos de troca e perda de investimentos, aceitaram um nível subótimo de funcionalidade e resumiram as inovações a aspectos incrementais no curso da trajetória atual. Assim, a transformação, no longo prazo, em relação ao campo de auditoria como um todo, deixou de ser radical. Essa transformação no campo de auditoria de governos vem justamente do SCD como centro de uma infraestrutura digital.

Os mecanismos de reforço do caminho que influenciaram as decisões de inovação nos SCDs carregam também custos de troca e riscos de investimentos irrecuperáveis que ocorrem em ambas as pontas de conexão da infraestrutura digital. Em uma ponta estão os contadores das prefeituras operando Siafics para envio dos dados, revisando as políticas contábeis e de registro orçamentário adotadas às mudanças na regulação e no SCD, e na outra ponta, os aplicativos de auditoria assistida por computador que, ao serem usados por auditores para processar os dados coletados, moldam rotinas, escopo e planos de auditoria. A influência dos protocolos eletrônicos de SCDs alcança também os processos e módulos dos demais sistemas satélites do Siafic [chamados de estruturantes pelo Decreto n. 10.540 (2020, 5 de novembro)], porém de maneira não uniforme, o que pode dificultar a própria integração entre esses módulos.

A influência dos protocolos de SCDs também alcançam manuais e treinamentos que tratam do assunto, e, sobretudo, as rotinas dos servidores e consultores que cuidam dessa tarefa em municípios, como visto em Tilson et al. (2010). Isso implica que mudanças de versões do SCD têm desdobramentos em toda a cadeia de valor da auditoria de governos, pois afeta toda a infraestrutura digital constituída. Ao mudar uma versão de SCD, o Tribunal de Contas impõe custos a toda a cadeia de stakeholders, órgãos fiscalizados e fornecedores de serviços de contabilidade e orçamento de governos locais. Dependendo das mudanças impostas, o custo de implantação e distúrbios no processo podem levar à perda sistêmica de compliance na prestação de contas pelos fiscalizados daquele Tribunal.

Essa transformação tem ocorrido de maneira incremental e silenciosa, própria do enraizamento de infraestruturas (system embeddedness) (Furneaux & Wade, 2011; Fürstenau et al., 2019). Uma evidência de path-dependence nessa interconexão de sistemas na infraestrutura é como os Tribunais consideram os riscos de troca de versões decorrentes do impacto em seus auditados. Por exemplo, Tribunais postergaram a adoção de uma nova versão de SCD, pois a maior parte dos municípios atrasaria o envio dos dados ou teria perda de qualidade desses por falta de recursos ou limitações em seus sistemas. O desenvolvimento do SCD está intimamente ligado a como as partes conectadas à infraestrutura digital responderão à mudança. O Tribunal busca não exceder a capacidade de os seus fiscalizados se adequarem às mudanças propostas, como relatado em entrevistas: “não implantamos antes porque os municípios não tinham condições, e não iriam enviar os dados”. Uma solução frequentemente adotada por Tribunais que inovam seus SCDs é a mudança incremental, em que novas versões são recorrentemente lançadas. Porém, para os órgãos fiscalizados, esse modelo implica em uma constante agenda de adequações e uma escalada de custos de adaptação com sobrecarga de prestações de contas. Um desafio adicional dos Tribunais com múltiplos jurisdicionados é lidar com eventual heterogeneidade da infraestrutura administrativa e financeira dos órgãos públicos que ele fiscaliza, que facilitaria a convergência de sua infraestrutura digital, efeito similar ao identificado por Bjorn et al. (2010).

A expansão das infraestruturas digitais é um fenômeno vivo, em andamento, que começou com a adoção dos SCDs e, agora, segue com a proliferação de ferramentas de auditoria assistida por computador. Nesse período, o uso contínuo da infraestrutura digital reforçou rotinas e processos organizacionais (system embeddedness), como tratado em Furneaux e Wade (2011). O desenvolvimento das diversas infraestruturas digitais também enraíza conceitos e definições (ex., “transmissão de dados”, “alertas de não conformidades”), expectativas (ex., a cadeia de valor se adéqua a seus sistemas) e uma lógica de ação (ex., dados são enviados remotamente, o tempo do auditor é liberado para outras funções e o custo de report é do órgão fiscalizado) (Aquino, Lino, Azevedo & Silva, 2021).

No campo de auditoria pública, a presença de mais de 30 infraestruturas digitais mantidas pelos Tribunais, conectando mais de 5 mil municípios, gera mercado para especialistas, desenvolvimento de fornecedores de sistemas e compartilhamento de conhecimento. As trajetórias analisadas, conforme se estabilizam e convergem em alguns aspectos, acabam moldando a trajetória geral de transformação do campo, até que choques externos alterem a trajetória. Esse efeito é reforçado por outras iniciativas, como as do Ministério de Saúde, do Ministério da Educação e da STN, que trazem complexidade adicional, implicando que um mesmo município deva cumprir uma agenda de envio de dados para diversos SCDs.

8. IMPLICAÇÕES PARA O CONTROLE EXTERNO

A capacidade de apontamento de irregularidades pelos Tribunais de Contas depende de suas equipes, recursos e fatores políticos (Lino & Aquino, 2018, 2020). Os resultados indicam que o processo de coleta de dados também pode afetar positivamente a qualidade da atuação das organizações de auditoria. Por exemplo, alguns ganhos de produtividade foram apontados nas entrevistas, como redução de custos para armazenar documento físicos. As evidências de entrevistas também indicam que, junto com benefícios da inovação de processos de auditoria, a proliferação de SCDs no controle externo de governos subnacionais desenvolve uma infraestrutura digital que afeta toda a cadeia de auditoria e a administração financeira de governos, o que carrega algumas ameaças (Ghoneim et al., 2011).

Primeiro, a constante troca de versões de SCDs pode levar à fragilização da administração financeira (software, processos e capacitação de equipes) de governos fiscalizados. Como os SCDs se integram aos Siafics, a mudança do SCD gera custo irrecuperável (sunk-cost), tanto do SCD quanto do Siafic, para toda a cadeia, além de custos de troca, pois demanda adequações das versões de Siafic e processos ou os tornam obsoletos.

A troca abrupta e constante de versões de SCDs gera incerteza sobre a viabilidade de rapidamente seguir uma nova versão lançada, ou se é mlehor esperar a seguinte. Isso desincentiva investimentos na parametrização e integração de sistemas e em treinamento de equipes nos jurisdicionados. Como a integração entre SCD e Siafic é essencial para a troca de dados com granularidade e frequência, o próprio processo de coleta de dados é prejudicado. Ainda, como os fornecedores de Siafic têm dificuldade para repassar esses custos na carteira de clientes, esses priorizam as parametrizações que naquele momento os Tribunais de Contas mais valorizam, e com isso definem a operacionalização da agenda de reformas no setor, com baixa influência do regulador da contabilidade pública (Azevedo, Aquino, Neves & Silva, 2020).

As contínuas mudanças também podem precipitar pequenos fornecedores de soluções comerciais de Siafic a saírem desse segmento de mercado por não conseguirem manter suas soluções atualizadas em um ambiente de alta frequência de mudanças legais e inovações impostas pelos SCDs. Ainda, como alguns Tribunais de Contas entendem que o Siafic é um “software de prateleira” e não permitem a contratação na modalidade de licitação técnica e preço, forçam competição por preços e não valorizam investimentos em funcionalidades do sistema (Azevedo, Lino, Martins & Aquino, 2020). Ao final, o aperfeiçoamneto das práticas de gestão financeira e contábil na federação pode ser mais dificultado e menos homogêneo do que se pensava.

Segundo, as diferenças de atributos nos diversos SCDs de Tribunais podem levar a uma maior diversidade na atuação desses Tribunais. Em comparação à maneira analógica e física anteriormente usada, a automatização da coleta de dados abre novas possibilidades quanto à granularidade, à frequência e ao uso dos dados coletados. Contudo, eventuais diferenças de atributos do SCD que não convergiram tendem a ampliar as diferenças já existentes (i) entre os sistemas e processos de administração financeira em municípios no país, (ii) na atuação dos Tribunais em função da extensão dos dados coletados e (iii) nas interpretações quanto à LRF embarcadas na lógica e nos protocolos dos SDCs. Essas diferenças nem sempre são observadas por auditores (Aquino, Lino, Azevedo & Silva, 2021).

Terceiro, a automatização induz a definição dos processos de auditoria e de contabilidade em Tribunais e órgãos públicos fiscalizados (jurisdicionados). Nos Tribunais, o SCD espelha as decisões do Tribunal sobre o conteúdo priorizado, definindo os dados armazenados e, portanto, o alcance futuro da auditoria remota, além de eventuais aplicações de inteligência artificial nessas bases. Ainda nos Tribunais, o investimento em SCDs que cobrem apenas dados financeiro-contábil pode reduzir esforços em auditoria operacional ou de desempenho. Já nos órgãos públicos fiscalizados, o SCD delineia os processos contábeis (ex., reconhecimento, mensuração, registro) de controle interno e também a adoção de módulos do Siafic (Aquino, Azevedo, Lino & Cardoso, 2021).

A definição dos dados a serem coletados também influencia diretamente a gestão “real” nos órgãos fiscalizados. Tais órgãos públicos tendem a priorizar a manutenção e o aperfeiçoamento de processos associados aos dados coletados pelo SCD do Tribunal de Contas, diferentemente dos processos ainda não cobertos pelo SCD, que perdem prioridade mesmo que exista obrigatoriedade legal. Exemplo disso é a prioridade na gestão de imobilizado que produz dados coletados pelo SCD enquanto a renúncia de receitas não é coletada, portanto, nem aperfeiçoada pelos órgãos. Em um contexto como esse, processos serão aperfeiçoados pelo órgão fiscalizado com foco em compliance.

Quarto, o contexto de accountability overload dado o aumento nas diversas coletas de dados impostas a municípios consome crescentes recursos para manter equipes dedicadas nesta função (Halachmi, 2014). O efeito negativo é intensificado quando múltiplos SCDs coletam dados de mesma natureza, mas com diferentes recomendações de contabilização, normatizam de maneira conflitante e induzem diferentes práticas. Um exemplo é a alteração nos classificadores orçamentários de receitas que, apesar de solicitada pela STN (Portaria Conjunta n. 1, 2017, 15 de setembro), não foi adaptada pelo SCD do Ministério da Saúde tempestivamente. Assim, auditados tinham duas solicitações distintas e conflitantes naquele ano.

Outros efeitos que parecem presentes no campo são a falsa expectativa do alcance da auditoria remota (Azevedo & Lino, 2018) e vieses na auditoria remota. O uso de verificação automática de não conformidade nos dados, com foco em aspectos orçamentário, fiscal e contábil, pode dar uma falsa expectativa de qualidade de informação e compliance (Azevedo & Lino, 2018). Por exemplo, não são todos os aspectos da regulação fiscal e demais regulações que são monitorados pelo Tribunal. Sobretudo em uma análise nacional, a percepção pode ser ainda mais distante da realidade, já que cada SCD tem diferentes escopo e granularidade na coleta. Já o viés na auditoria pelo uso de aplicativos assistidos por computador foi recentemente discutido em mais detalhes por Aquino, Lino, Azevedo e Silva (2021). Em breves palavras, os autores destacam que a automatização de auditoria com foco fiscal-orçamentário enfatizará a verificação das não conformidades observáveis remotamente nos dados coletados, mas em detrimento das não conformidades observáveis apenas nos processos físicos ou eletrônicos que ocorrem no jurisdicionado.

9. CONCLUSÕES

Nos últimos 26 anos, a automatização da coleta de dados de auditados pelos Tribunais de Contas se desenvolveu com os Tribunais adotando SCDs. Com o tempo, tais SCDs se transformaram em infraestruturas digitais, transportando dados que vêm do Siafic de municípios aos aplicativos de auditoria assistida por computador usados por auditores. Observaram-se oito diferentes trajetórias de desenvolvimento dos SCD que acabaram influenciando, de certa maneira, as infraestruturas digitais desses Tribunais, desde a coleta ao uso dos dados pelos auditores.

As trajetórias, em grande parte, seguem mecanismos de reforço do caminho (path-dependence) e ocorrência de lock-in, apesar de reconhecermos que as ações desses mecanismos não são plenamente verificáveis e falseáveis (Vergne & Duran, 2010). Destacando tais limitações metodológicas, sugere-se que a narrativa de path-dependence seja vista aqui como possível fio condutor na trajetória do campo e não uma explicação definitiva e completa para o processo. Observa-se a convergência de atributos em torno de um SCD típico, porém as diferenças entre os SCDs em operação podem intensificar as diferenças dos Tribunais já identificadas (Azevedo & Lino, 2018; Lino & Aquino, 2018; Nunes et al., 2019) e ocasionar uma indução heterogênea das reformas no ciclo de gestão financeira de governos (Bjorn et al., 2010).

O fenômeno analisado é um processo ainda vivo e dinâmico. O período de 1994-2020 mostra apenas o início do surgimento das infraestruturas digitais dos Tribunais e a convergência dos aparatos da coleta de dados fiscais e da lógica de auditoria remota (Aquino, Lino, Azevedo e Silva, 2021). Os Tribunais continuam revendo suas soluções, pressionados, por exemplo, pela convergência ao projeto de Matriz de Saldos Contábeis da STN e por recorrentes mudanças na regulação.

Algumas soluções poderiam ser adotadas para lidar com eventuais efeitos negativos antecipados na seção anterior. Os Tribunais, por meio de um Conselho Nacional dos Tribunais de Contas (nos moldes do que já ocorreu no judiciário), de uma associação, como a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon) ou do Instituto Rui Barbosa, poderiam coordenar ativamente o desenvolvimento da lógica de automatização e não apenas reagir às mudanças de tecnologia e regulação. Tal coordenação ativa engajaria municípios e fornecedores em torno de uma matriz de maturidade do processo de coleta de dados fiscais, além de apoiar projetos de Siafics integrados, seja por software livre ou por certificação de soluções comerciais.

Algumas reflexões para pesquisas futuras podem ser listadas. Primeiro, as infraestruturas digitais, como qualquer artefato digital em organizações, não são apenas matéria tecnológica, mas instrumentos de coordenação. Apesar da modernização tecnológica em curso, os Tribunais ainda não iniciaram um aperfeiçoamento da sua governança e acumulam sérias críticas nesse aspecto (Lino & Aquino, 2020). Parte dos protocolos embarcados nos sistemas pode carregar influências da politização presente nos Tribunais e atuar como instrumentos sistêmicos de poder. Segundo, apesar de a legislação ser padronizada nacionalmente, há, na prática, uma falta de simetria entre os Tribunais de Contas. Observam-se diferentes priorizações nos dados a serem coletados e em seu detalhamento que também podem representar efeitos políticos, mais do que apenas tecnológicos. Terceiro, essas infraestruturas carregam uma carga normativa, moldam aquilo que tem maior ou menor valor, a maneira como deve ser feito, paulatinamente cristalizada na infraestrutura digital. Em uma perspectiva institucional, a entrada e a proliferação dessas infraestruturas acabam por reforçar uma lógica de ação de auditoria remota, mas podem também pomover sem maior reflexão os interesses daqueles que possuem maior poder e influência no campo de atuação dos Tribunais. Como os atores com maior poder têm acesso a recursos suficientes para desenhar a infraestrutura digital, seguindo especificidades para atender seus interesses, podem dirigir o comportamento de auditores, contadores ou outras funções e cargos de menor poder, seja nos Tribunais ou nos órgãos auditados.

Como evidenciado, as trajetórias de automatização da coleta de dados por Tribunais de Contas é um fenômeno vivo, mas estão consolidadas. As funcionalidades e atributos associados aos SCDs compõem infraestruturas digitais e enraízam comportamentos tanto de auditores quanto contadores. Apesar dos benefícios associados à automatização, diversos efeitos não esperados da proliferação de infraestruturas digitais foram apontados. Destaca-se ser necessário um maior grau de reflexividade sobre a tecnologia aplicada, tanto no que se refere aos seus antecedentes (motivações) quanto aos seus efeitos sobre a gestão fiscal e contábil.

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    Versão preliminar do artigo foi apresentada no XVI Congresso USP de Contabilidade, São Paulo, SP, Brasil, julho de 2016. Nós agradecemos a Anna Paula da Silva Moreira e Ícaro Saraiva Laurinho pelo trabalho cuidadoso na validação dos dados, aos pesquisadores do grupo Public Sector Accounting and Governance pelos valiosos comentários, aos auditores dos vários Tribunais que participaram como respondentes, e também aos revisores anônimos do artigo.

Editado por

  • Editor-Chefe: Fábio Frezatti
  • Editor Associado: Eliseu Martins

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Mar 2020
  • Revisado
    22 Abr 2020
  • Aceito
    29 Mar 2021
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