Open-access Profissão atuarial e seguridade social no Brasil da Primeira República à Era Vargas

RESUMO

O objetivo deste trabalho foi compreender as relações entre a consolidação da profissão atuarial e as políticas de seguridade social no Brasil, da Primeira República à Era Vargas. De modo geral, há escassa literatura sobre a história da profissão atuarial no Brasil. Especificamente, não há trabalho que aborde a relação entre o desenvolvimento da profissão atuarial e as políticas de seguridade social no momento crucial de ampliação do seguro social brasileiro, durante a Era Vargas. Este trabalho contribui para suprir tal lacuna. De tempos em tempos, reformas da seguridade social brasileira são debatidas. O papel dos atuários em tal discussão é pouco compreendido. Entretanto, tais profissionais, historicamente, foram essenciais para as políticas de seguridade. Este artigo lança luzes sobre essa história. O texto poderá ampliar o conhecimento sobre a história da profissão atuarial e das suas relações com as políticas de seguridade social no Brasil. Este é um trabalho histórico, construído com base em documentação primária. Foram pesquisadas fontes sobre as organizações atuariais de previdência social no Brasil e sobre os profissionais atuários que compuseram seus quadros. As referências às trajetórias profissionais dos atuários foram cruzadas e consideradas à luz das informações colhidas sobre a atuação das instituições que os empregaram. A análise foi qualitativa e o material foi interpretado com apoio da bibliografia referenciada. Este artigo evidencia que a consolidação da profissão atuarial se deu a partir da participação dos engenheiros-atuários nas organizações públicas que subsidiaram as políticas de varguistas de seguridade social. O trabalho também contribui para ampliar os conhecimentos sobre a história da profissão atuarial no Brasil da Primeira República à Era Vargas (1930-1945).

Palavras-chave: história da profissão atuarial; seguridade social; formação de atuários; previdência social brasileira

ABSTRACT

The aim of this paper was to understand the relationships between the consolidation of the actuarial profession and social security policies in Brazil, from the First Republic up to the Vargas Era. In general, there is little literature on the history of the actuarial profession in Brazil. Specifically, there is no study that addresses the relationship between the development of the actuarial profession and the social security policies at the crucial moment of Brazilian social security expansion during the Vargas Era. This paper contributes to filling that gap. From time to time, Brazilian social security reforms are debated. The role of actuaries in this discussion is poorly understood. However, these professionals have historically been essential to social security policies. This article sheds light on that history. The text may broaden the knowledge on the history of the actuarial profession and its relationships with social security policies in Brazil. This is a historical study, built based on primary documentation. Sources were researched relating to the actuarial organizations for social security in Brazil and the actuarial professionals who composed their staff. The references to the professional trajectories of actuaries were crossed and considered in light of the information gathered regarding the actions of the institutions that employed them. The analysis was qualitative and the material was interpreted with the support of the referenced bibliography. This article reveals that the consolidation of the actuarial profession came about based on the participation of engineers-actuaries in the public organizations that supported the varguista social security policies. The paper also contributes to broadening the knowledge on the history of the actuarial profession in Brazil from the First Republic up to the Vargas Era (1930-1945).

Keywords: history of the actuarial profession; social security; actuarial education; Brazilian social security

1. INTRODUÇÃO

Nas atuais discussões acerca da reforma da Previdência Social, conforme nota Loyola (2019), os economistas, e não os atuários, exercem papel de destaque. Dezessete anos atrás, também no âmbito de debates sobre a previdência, Ramos (2002) queixava-se de que a falta de informação sobre a atuária deturpava os objetivos e dificultava o exercício da profissão. Longeva e pouco explorada, a história das relações entre a profissão atuarial e a previdência social no Brasil constitui o objeto deste artigo.

O desenvolvimento da profissão de atuário e a criação das instituições de previdência social no Brasil foram processos relacionados e cruciais para a definição do campo atuarial brasileiro. As relações foram iniciadas ainda na Primeira República, mas ganharam nova dimensão na Era Vargas (1930-1945). Durante a Primeira República, a formação dos atuários foi associada à dos profissionais da contabilidade, no bojo dos cursos técnicos de formação comercial. Até os anos 1920, mais precisamente 1923, pode-se afirmar que o campo para ação atuarial se circunscrevia às companhias privadas de seguro. A edição da Lei Eloy Chaves e a criação do Conselho Nacional do Trabalho (CNT), órgão colegiado inicialmente consultivo, constituíram os marcos inaugurais de inclusão da atuária na área do seguro social, ainda incipientemente. Os anos de Getúlio Vargas à frente do Palácio do Catete foram de ampliação da atuação dos atuários no âmbito da previdência social, ela mesma ressignificada pelo Governo Provisório e, sobretudo, pelo Estado Novo. Discute-se, neste trabalho, como a inserção dos atuários no aparelho do Estado e a sua organização em classe profissional da Primeira República à Era Vargas contribuíram para a conformação de um espaço social - um campo - dedicado à atuária no Brasil. Para tanto, fontes primárias documentais foram pesquisadas e elaborou-se uma abordagem histórico-sociológica que se valeu dos conceitos de campo e de trajetória, ambos da sociologia de Pierre Bourdieu. Este texto comunica os passos e os resultados da pesquisa em quatro seções, além da presente introdução.

A próxima seção realiza uma revisão historiográfica da questão, de sorte a explicitar a lacuna existente e o tipo de contribuição que se pretende aportar à matéria. Em seguida, discutem-se a abordagem histórico-sociológica conferida ao assunto e os procedimentos metodológicos promovidos durante a investigação. A penúltima seção apresenta os resultados da pesquisa e está subdividida em três partes: na primeira, discorre-se sobre a inovação institucional em matéria previdenciária promovida pelo regime político instaurado em novembro de 1930; na segunda, esboça-se um quadro da herança transmitida pela Primeira República a Getúlio Vargas quanto à legislação sobre seguros sociais e educação comercial; na terceira, discutem-se a preponderância dos engenheiros nos serviços atuariais das instituições responsáveis pelas políticas varguistas de seguridade social e como tais profissionais lideraram o processo de criação da primeira associação nacional de atuária. A seção final contém as conclusões.

2. REVISÃO HISTORIOGRÁFICA

A produção acadêmica sobre a história da profissão atuarial no Brasil é praticamente inexistente. As parcas referências disponíveis encontram-se em textos acerca do ensino das ciências atuariais, do desenvolvimento do mercado de seguros privados e da seguridade social no país. O quadro é francamente contrastante com o que ocorre na Inglaterra, onde nasceu a ciência atuarial moderna.

Inexiste, no Brasil, um similar à History of actuarial profession, de James Hickman (2004), que oferece um sobrevoo sobre a história da profissão atuarial da metade do século XIX ao final do século XX, com foco na Inglaterra e suas ex-colônias. O autor sublinha a importância do ano de 1762 para a história da profissão atuarial, pois ali se deu a formação da Society for Equitable Assurances on Lives and Survivorships. Essa sociedade londrina forneceu aos atuários aquilo que Hickman (2004) considera fundamental para qualquer profissão: um propósito público. No caso específico da profissão atuarial, a asseguração da vida humana.

Alborn (1994) acentuou a importância do século XIX para os atuários ingleses. Ele tratou dos desenvolvimentos ocorridos no seio do London Institute of Actuaries, criado em 1848, e da defesa que os profissionais da época fizeram não apenas de suas habilidades para calcular riscos, mas, sobretudo, de suas capacidades de julgamento sobre os seguros. O autor abordou as relações entre o mercado de seguros de vida, o desenvolvimento dos conhecimentos atuariais baseados na matemática e na estatística e a capacidade de análise dos atuários para a consolidação da profissão no Reino Unido.

Tais relações entre seguro de vida e profissão atuarial, no entanto, não foram exploradas no Brasil. Aqui, embora tenha oferecido uma história dos seguros no país entre 1808 e 2008, Siqueira (2008) não explorou os impactos da atividade securitária para o estabelecimento da profissão atuarial, para o avanço dos saberes atuariais e para a formação dos profissionais brasileiros. Atenção ao papel dos atuários na operacionalização dos seguros, de fato, é difícil de ser encontrada até mesmo em textos que abordam o papel dos especialistas técnicos para o desenvolvimento das políticas de seguro social. Tanto Malloy (1986) quanto Oliveira e Teixeira (1989), ao abordar a política previdenciária varguista, trataram tais especialistas enquanto tecnocratas. Não especificaram, entretanto, os tecnocratas atuários. Com efeito, foram outros os profissionais destacados pelos autores mencionados.

Malloy (1986) sublinhou o papel dos advogados no corpo técnico do Ministério do Trabalho e do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), as duas instituições em que, segundo o autor, o emprego dos especialistas técnicos foi marcante. Os advogados Arnaldo Sussekind e Moacir Cardoso tiveram suas contribuições para a política de seguridade varguista destacadas. O único engenheiro-atuário, o tipo de profissional sobre o qual nos deteremos, que Malloy (1986) mencionou foi João Carlos Vital, que reaparecerá adiante, quando apresentarmos os resultados da pesquisa.

Oliveira e Teixeira (1989) trataram dos intelectuais gabaritados, sobretudo os do IAPI, que tiveram papel de destaque na política previdenciária varguista, mas não os identificaram. Os autores criticaram o caráter “contencionista” de suas atuações nas instituições de seguro social, com o claro objetivo de aumentar contribuições e reduzir gastos. À decisão política de conter gastos, os especialistas previdenciários, com excelente formação estatístico-atuarial, teriam aportado capacidade técnica de implementação. Os autores, todavia, não exploraram quem eram os especialistas, como angariaram sua excelente formação e como ocuparam espaços na administração pública federal.

A formação dos atuários brasileiros até meados dos anos 1940 é o aspecto mais recorrente na historiografia, ainda que, via de regra, apareça de maneira lateral, em textos dedicados ao treinamento de contadores e economistas. É assim, por exemplo, nos trabalhos de Bueno (1972), acerca da evolução do ensino de economia no país, de Souza (2006), sobre a história da profissão de economista no Brasil, de Peleias, Silva, Segreti e Chirotto (2007), sobre a evolução do ensino de contabilidade no Brasil e de Soares, Richartz, Voss e Freitas (2011), acerca da evolução do currículo de contabilidade no país desde 1809. Bueno (1972) é um dos poucos autores a explorar o fato de os engenheiros terem sido pioneiros nos serviços públicos atuariais brasileiros.

O presente artigo explora como os engenheiros ocuparam as posições atuariais nas instituições de previdência social durante a Era Vargas, sobretudo no Ministério do Trabalho, e como, a partir daquelas posições, contribuíram decisivamente para estruturar o campo atuarial brasileiro. Contrasta-se, ademais, esse cenário com o precedente, da Primeira República.

A próxima seção explicita como a pesquisa foi construída.

3. ABORDAGEM E PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Este é um estudo histórico informado pela perspectiva interdisciplinar dos Annales (Reis, 2000). Parte-se da identificação de uma lacuna - a compreensão histórica das relações entre a profissão atuarial e a política previdenciária na primeira metade do século XX - e empregam-se aportes da sociologia para abordá-la. Trata-se de uma análise qualitativa, histórico-sociológica, que se valeu de dois conceitos da sociologia de Pierre Bourdieu - o de campo e o de trajetória.

O conceito de campo (Bourdieu, 1989, 1996a, 1996b, 2004; Catani, 2011) confere o sentido em que é empregada a expressão campo atuarial - um espaço social composto por normas, organizações e agentes. Estes disputam a posse dos capitais ali relevantes (sociais, econômicos, simbólicos etc.), isto é, dos recursos sociais que lhe possibilitam ocupar diferentes posições no campo, ao longo de suas trajetórias de vida. Este artigo lida precisamente com um conjunto de normas sobre as instituições de seguridade social e a educação atuarial, assim como com as trajetórias dos atuários nas organizações em que trabalharam e se associaram, sobretudo o Atuariado do Ministério do Trabalho e o Instituto Brasileiro de Atuária (IBA).

Os profissionais atuários mencionados neste trabalho ocuparam diferentes posições nas organizações atuariais ligadas à seguridade social e desenvolveram trajetórias que concorreram para a conformação de seu campo de atuação. As trajetórias, no entanto, não devem ser entendidas como biografias, no sentido de fios de acontecimentos precipuamente ligados para produzir relatos de vida. Como nota Bourdieu (1996a), a noção de trajetória é radicalmente relacional, pois pressupõe a contínua consideração das sucessivas posições ocupadas por um mesmo agente em um espaço social sujeito a transformações.

Os procedimentos metodológicos foram elaborados tendo-se em vista a abordagem historiográfica eleita. O mapeamento das organizações e das normas que deram corpo ao campo atuarial ocorreu por meio da pesquisa em bases de legislação - o Diário Oficial da União (DOU) e o repositório da Câmara dos Deputados. Ali, além das estruturas das organizações atuariais e das disposições referentes aos seguros sociais, buscaram-se informações sobre os atuários que compunham os quadros dos órgãos que lidavam com a seguridade social no Brasil. Rastreados os profissionais atuários, informações acerca das suas produções intelectuais, sobre as posições que ocuparam na administração pública federal e sobre as suas práticas associativas foram procuradas no DOU, em jornais de época e na Revista Brasileira de Atuária (RBA).

Assim, dois corpos documentais foram coletados - um sobre os serviços atuariais dos órgãos de seguridade social e as normas de seguro social e outro acerca dos profissionais atuários. Os dados sobre as trajetórias profissionais provenientes de diversas fontes foram cruzados entre si e com as informações sobre os serviços atuariais, com a intenção de identificar suas participações nas instituições de seguridade social e em sua associação de classe. A bibliografia de apoio foi utilizada para amparar compreensão das fontes.

4. RESULTADOS

4.1. O Ministério da Revolução e a Questão Social

“A questão social é um caso de polícia” e o “ministério da revolução” são duas expressões cunhadas em momentos próximos um do outro e que evidenciam a distância entre as abordagens conferidas às relações trabalhistas e à previdência social pela Primeira República e pelo regime inaugurado em 3 de novembro de 1930. A primeira é atribuída ao deposto presidente Washington Luís. A segunda, ao primeiro titular do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, Lindolfo Collor. Este, já na cerimônia de sua posse, segundo o Jornal do Brasil de 2 de dezembro de 1930, marcou as distinções. O ministro afirmou ser impossível negar a existência de uma questão social no Brasil e manifestou a disposição do novo governo de tratá-la em bases mais liberais e avançadas do que até então se fizera.

Liberais. O adjetivo empregado pelo jornal, logo se veria, não era o apropriado para indicar a afiliação ideológica da política trabalhista e previdenciária varguista. Quem melhor a definiu foi Oliveira Vianna (1951): “uma iniciativa estatal, um presente generoso dos líderes políticos - e não uma conquista de nossas massas trabalhadoras (p. 66). Corporativista, Vianna vislumbrou as políticas de promoção dos trabalhadores como parte de um processo de desenvolvimento socialmente harmonioso (Vieira, 2010). Intelectual identificado com o pensamento autoritário, colaborou para a abordagem “de outorga” das questões trabalhistas e previdenciárias, na condição de consultor jurídico do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, entre 1932 e 1940.

A pasta foi uma das primeiras criações do Governo Provisório, instituída pelo Decreto n. 19.433, de 26 de novembro de 1930. Em sua estrutura, foram incorporados o Serviço de Estatística Comercial e o Instituto de Previdência e Caixas Econômicas, ambos anteriormente alocados no Ministério da Fazenda. Não tardaria e a atuação do ministério se estenderia à seguridade social. Já em janeiro de 1931, conforme informou o jornal O Estado de São Paulo do dia 25 daquele mês, reuniu-se no Rio de Janeiro uma comissão para discutir o anteprojeto de reforma da legislação sobre as Caixas de Aposentadorias e Pensões (CAPs), nomeadamente os Decretos n. 4.682, de 24 de janeiro de 1923, e n. 5.109, de 20 de dezembro de 1926. A norma de 1923 ficou conhecida como Lei Eloy Chaves e criou as CAPs para os funcionários das companhias de estradas de ferro. Já o decreto de 1926 estatuiu caixas semelhantes para os empregados das empresas portuárias e marítimas. As discussões sobre a reforma da legislação previdenciária consumiram quase um ano e resultaram na edição do Decreto n. 20.465, de 31 de outubro de 1931, cujo artigo primeiro apresentou as inovações:

I- DA INSTITUIÇÃO DAS CAIXAS DE APOSENTADORIA E PENSÕES. Art. 1º Os serviços públicos de transporte, de luz, força, telégrafos, telefones, portos, água, esgotos ou outros que venham a ser considerados como pais, quando explorados diretamente pela União, pelos Estados, Municípios ou por empresas, agrupamentos de empresas particularidades, terão, obrigatoriamente, para os empregados de diferentes classes ou categorias, Caixas de Aposentadoria e Pensões, com personalidades jurídicas, regidas pelas disposições desta lei e diretamente subordinadas ao Conselho Nacional do Trabalho.

Há uma enumeração de classes ou categorias que deveriam contar com caixas, as quais seriam subordinadas ao CNT. O conselho, por seu turno, em comparação com a legislação que o criou na Primeira República, teve ampliadas suas atribuições atinentes aos serviços de aposentadorias e pensões. Segundo Malloy (1986), as inovações introduzidas não foram grandes, mas serviram para difundir os conceitos já existentes em bases sistemáticas a partir de uma novidade organizacional. As CAPs, a partir de 1933, foram incorporadas aos Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), organizações baseadas em categorias ou classes profissionais, e não em empresas. Isso concorreu para a ampliação do número de beneficiários. Ademais, a norma, ao dispor sobre as fontes de financiamento das caixas, obrigou-as a manter serviços de estatística que deveriam proporcionar elementos para a avaliação atuarial dos seus fundos e para o cálculo das aposentadorias devidas. Tais obrigações foram estendidas aos IAPs posteriormente.

A avaliação atuarial dos fundos, no entanto, deveria seguir as diretrizes expedidas pelo CNT, órgão também incorporado à estrutura do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Impunha-se, pois, que esse conselho fosse dotado de capacidade técnica normativa. Para tanto, seria necessário dispor de pessoal e estrutura capazes de lidar com cálculos e projeções atuariais. Eis o ponto no qual as políticas de seguridade social, centrais para assentar os laços de Vargas com diversas categorias profissionais, sobretudo no Governo Provisório e durante o Estado Novo, esbarraram na necessidade de serviços atuariais e de atuários. Quem, afinal, ofereceria a esse conselho os subsídios técnicos para expedir diretrizes? O Decreto n. 24.747, de 14 de julho de 1934, criou o órgão técnico responsável pelo serviço - o Atuariado do Ministério do Trabalho. O Decreto n. 24.748, também de 14 de julho de 1934, estatuiu-lhe o regulamento:

Art. 1º O Actuariado do Ministerio do Trabalho, Industria e Commercio, creado pelo decreto n. 24.748, de 14 de julho de 1934, é um corpo technico especializado, regido pelo presente regulamento, e destinado a superintender de modo geral os serviços actuariaes do Conselho Nacional do Trabalho, dos departamentos, institutos e demais repartições subordinadas ao Ministério do Trabalho, Industria e Commercio, bem como a auxiliar o governo no estudo de todas as applicações da technica actuarial.

Vê-se, pois, que a materialização das atribuições do CNT dependia do atuariado, ao qual competia a organização, a direção e a execução dos serviços atuariais no âmbito do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Isso incluía estudar, em bases técnicas, tábuas de mortalidade e invalidez, escalas de salários, estatística e atuária. Para tanto, o órgão deveria ter, em sua estrutura, nos termos do seu regulamento, um conselho atuarial, órgão colegiado de caráter deliberativo e consultivo, um serviço técnico-administrativo e outro técnico-atuarial.

Ao Conselho Atuarial do Atuariado cabia, dentre outras coisas, responder às consultas de natureza técnica que lhe fossem dirigidas por outros setores do Ministério do Trabalho e, também, pelos poderes Legislativo e Executivo. O artigo 12, item “d”, do Decreto n. 24.748, de 14 de julho de 1934, atribuiu ao conselho atuarial a competência de “organizar projectos de regulamentos e instrucções que o Governo tiver de expedir sobre assumpto technico actuarial, ouvidas as repartições interessadas, e opinar sobre projectos organizados pelas mesmas repartições e relativos ao mesmo assumpto”. Com isso, na prática, as atribuições normativas do CNT com relação à seguridade social passaram a depender do Conselho Atuarial do Atuariado do Ministério do Trabalho.

Como se não bastassem tamanhas atribuições, ao atuariado competia, ainda, organizar e manter uma revista especializada para publicar as deliberações e pareceres exarados pelo órgão, além das resenhas e dos trabalhos assinados pelos atuários pertencentes aos quadros da instituição ou por outros, de fora, mas que apresentassem contribuições de notável valor.

E eis aqui uma dificuldade para a efetivação da política previdenciária do Ministério do Trabalho. Se, para conceber as instituições atuariais, bastaram discussões, papel e tinta, para dar-lhes concretude, muito mais seria necessário. Onde encontrar atuários de notável valor? Como recrutá-los para as posições de chefes, assistentes e adjuntos criadas pelo artigo 4 do Regulamento do Atuariado? Para se ter uma ideia da dimensão do desafio, retenha-se que os cursos superiores de ciências atuariais passaram a existir somente a partir da Lei n. 1.401, de 31 de julho de 1951. Até então, a atuária associava-se à contabilidade no ensino superior e tal situação era recente, pois remontava ao Decreto-Lei n. 7.988, de 22 de setembro de 1945. Até 1945, a formação só ocorria nas escolas técnicos-comerciais.

Entre o início dos anos 1930 e meados dos anos 1940, portanto, o atuariado enfrentou o desafio de recrutar pessoal especializado. A formação de peritos-contadores e atuários dava-se nos cursos comerciais, cuja organização, estabelecida pelo Decreto n. 20.158, de 30 junho de 1931, foi contemporânea à reforma da legislação de CAPs. Tratava-se de curso técnico com duração de seis anos. Nos três primeiros, havia disciplinas propedêuticas como português, inglês, francês, matemática, física e história; nos três últimos, optar-se-ia por uma formação. Caso a opção recaísse sobre o curso de atuária, estudar-se-ia, dentre outras coisas, contabilidade mercantil e de seguros, matemática comercial e financeira, cálculo atuarial e estatística geral e aplicada à atuária. Com o diploma técnico de atuário poder-se-ia acessar o curso superior de administração e finanças.

Como se vê, a formação dos atuários carecia completamente de aprofundamento nas disciplinas atuariais e estatísticas, oferecidas apenas no último ano dos cursos técnicos. Contudo, eram os egressos desses que, segundo o artigo 79 do decreto de organização do ensino comercial, deveriam ocupar os cargos técnicos de atuária nos institutos de montepio e previdência da União, dos estados e dos municípios. A situação era particularmente contraditória para o atuariado. Criado em julho de 1934, deveria ter seu quadro composto por técnicos concursados dos quais se exigiria, nas provas, proficiência em cálculo diferencial, atuária, estatística e probabilidades, legislação de seguros e organização de CAPs. Porém, a obtenção de tais conhecimentos, em grande medida, deveria advir do esforço pessoal dos candidatos, já que a grade curricular do curso técnico em atuária não previa alguns desses assuntos e não se detinha em outros.

Em atenção a essa dificuldade, uma ausência e uma possibilidade podem ser destacadas no Regulamento do Atuariado. Quanto à ausência, a norma obrigou a realização de concursos para o provimento dos cargos de atuários, mas não os reservou aos diplomados em cursos técnicos de atuária. As vagas foram preenchidas, sobretudo, por engenheiros oriundos da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, solidamente embasados em cálculos e versados em estatística, matéria que estudavam, desde o século XIX, associadamente à economia política e ao direito administrativo (Moreira, 2014). No tocante à possibilidade, o regulamento permitia a contratação de técnicos estrangeiros de notável valor e capacidade.

A possibilidade foi utilizada. Em 21 de junho de 1932, o Ministro do Trabalho (Diário Oficial da União [DOU], 1932) designou os atuários Clodoveu de Oliveira, Paulo Leopoldo P. da Câmara e Maurice Gauthier para compor a comissão destinada a dar parecer sobre a criação da Caixa de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos, futuro Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Marítimos (IAPM). Clodoveu de Oliveira e Paulo Leopoldo eram engenheiros e logo ocupariam posições no Atuariado do Ministério do Trabalho e participariam da organização de sua classe profissional. Já Maurice Gauthier, também engenheiro, era membro do Instituto dos Atuários Franceses. Filiado à Sociedade Estatística de Paris desde 1928, chegou ao Brasil poucos anos depois, a serviço da Companhia de Seguros Sul-América (Société de Statistique de Paris, 1961).

Em abril de 1932, antes de ser nomeado para a comissão de criação do IAPM, Gauthier apresentou a tese “Contabilidade das empresas de seguros de vida e de capitalização” ao Segundo Congresso Brasileiro de Contabilidade. Ali, enfatizou o caráter específico dos contratos de seguro, segundo ele, mais complexos do que as operações contábeis ordinárias em longo prazo, pois envolviam rendas vitalícias e temporárias previstas em planos respaldados por reservas matemáticas, que definiu como a “diferença entre os compromissos do segurador e do segurado. O cálculo das reservas é feito por meio de fórmulas subordinadas a uma técnica especial, a ciência atuarial” (1932, p. 160).

A preocupação com a ciência atuarial, todavia, não era apanágio de um atuário francês no Brasil. Já aparecera no Primeiro Congresso Brasileiro de Contabilidade, organizado em 1924, um ano após a criação do CNT. Naquele encontro, Augusto Carlos de Setubal, um dos seus promotores e entusiasta da regulamentação do ensino e da profissão contábeis no Brasil, reconheceu a conveniência do espraiamento das sociedades de previdência, pois “quanto mais difundida for a ação destas instituições, menor será a tarefa da assistência pública” (Setubal, 1927, p. 329), mas instou o governo a organizar o setor, fazendo com que as tabelas de auxílio fossem examinadas por atuários oficiais.

Entre o texto de Setubal, apresentado em 1924 e publicado em 1927, e o Decreto que criou o Atuariado do Ministério do Trabalho, em 1934, pode-se afirmar que houve avanço nas disposições sobre a formação dos atuários, assim como no seu emprego em serviços atuariais da seguridade social. A criação de um atuariado para subsidiar os trabalhos do CNT e a existência de um curso técnico de atuária no bojo do ensino comercial exemplificam isso. O quadro herdado da Primeira República, caracterizado pela legislação previdenciária incipiente, que mencionava os profissionais de atuária de modo esparso, sofreu, portanto, significativas modificações.

4.2. O Legado da Primeira República

A primeira norma republicana sobre seguros, o Decreto n. 294, de 1895, destinava-se apenas à securitização de vidas promovida por empresas privadas estrangeiras. Enfocava a necessidade da publicação dos seguros garantidos e determinava o emprego das reservas de todas as apólices em valores nacionais, fossem bens imóveis ou ações de caminhos de ferro. Em 1901, um regulamento mais abrangente foi editado pelo Ministro da Fazenda Joaquim Murtinho, por meio do Decreto n. 4.270, de 10 de dezembro de 1901, que criou a Superintendência Geral de Seguros, depois Inspetoria de Seguros, e estabeleceu as regras para a fiscalização de toda a atividade seguradora no Brasil. Na longa norma, contudo, não há mais do que uma menção aos atuários, no artigo 160, para determinar que fossem empregados para atestar que as reservas que amparavam as apólices eram, de fato, aplicadas em títulos nacionais.

Se, para os seguros privados, a precariedade da referência aos atuários sugeria a debilidade da fiscalização da aplicação dos valores de reserva das apólices em títulos nacionais, para os seguros sociais, a deficiência da legislação era maior. A composição do CNT, criado pelo Decreto n. 16.027, de 30 de abril de 1923, sequer mencionava a figura do profissional atuário. O artigo 7 do texto previa a existência de um genérico perito nos assuntos de competência do conselho, que incluía matéria previdenciária vasta, como se pode ler no artigo 2 (Decreto n. 16.027, de 30 de abril de 1923):

Art. 2º Além do estudo de outros assumptos que possam interessar á organização do trabalho e da previdencia social, o Conselho Nacional do Trabalho occupar-se-ha do seguinte: dia normal de trabalho nas principaes industrias, systemas de remuneração do trabalho, contractos collectivos do trabalho, systemas de conciliação e arbitragem, especialmente para prevenir ou resolver as paredes, trabalho de menores, trabalho de mulheres, aprendizagem e ensino technico, accidentes do trabalho, seguros sociaes; caixas de aposentadorias e pensões de ferroviários, instituições de credito popular e caixas de credito agrícola.

Os profissionais atuários também não foram mencionados na legislação que dispôs sobre as CAPs. Sua ausência, além de sintomática da escassez de profissionais da área e do precário entendimento sobre o escopo de seus trabalhos, apontava para a materialização limitada das atribuições atuariais reservadas às caixas e ao CNT. Somente após a derrubada da Primeira República, essas questões foram atacadas no sentido da racionalização da formação dos profissionais e do seu emprego sistemático nos serviços de seguridade social que, então, ampliavam a cobertura previdenciária no meio urbano.

Com efeito, durante a Era Vargas, avançou-se sistematicamente em direção ao estabelecimento de um arcabouço institucional para a seguridade social, incorporando-se os profissionais atuários em seu bojo. Tal arcabouço foi composto pelo Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e por seu atuariado, pela reforma da legislação das CAPs, pela criação dos IAPs e pela edição do Decreto n. 20.158, de 30 de junho de 1931, que instituiu uma grade curricular oficial para os cursos técnicos de atuária.

Até então, a legislação do ensino comercial pouco dispusera sobre a formação dos atuários. A República herdara do Império a formação errática dos profissionais que lidavam com a atuária e a estatística comercial. Em São Paulo, o Colégio Mackenzie, a partir de 1886, passou a oferecer um Curso Superior de Comércio (Garcez, 2004) que, se não formava profissionais atuários especificamente, preparava para o exercício de funções comerciais. O curso, todavia, sob a justificativa de não ser atrativo, foi transformado em técnico comercial. No Rio de Janeiro, a experiência com a formação de contadores, atuários e guarda-livros era mais antiga, mas sofreu solução de continuidade. Em 1856, criou-se o Instituto Comercial para substituir a Aula de Comércio, instituída em 1846. A escola oferecia, dentre outras disciplinas, estatística comercial, mas foi extinta em 1882, com justificativa semelhante à da conversão do curso do Colégio Mackenzie anos após: falta de alunos.

Apenas com a República, começou-se a estabelecer um tratamento sistemático à formação de contadores, atuários e economistas. Em 1905, o Decreto n. 1.339, de 9 de janeiro, reconheceu como de utilidade pública a Academia Comercial do Rio de Janeiro e, por conseguinte, os diplomas que ela expedia. A norma previu a oferta de um curso geral e um superior. O primeiro habilitaria para o exercício da função de guarda-livros e prepararia para o ingresso no segundo. Este, por seu turno, formaria os profissionais atuários e os chefes de contabilidade. O mesmo regime jurídico foi estendido à Escola de Comércio de São Paulo que, assim como a academia carioca, funcionava desde 1902. As disciplinas do curso superior, que misturavam correspondência diplomática e estatística, eram tão variadas quanto diversas eram as habilitações previstas (Decreto n. 1.339, de 9 de janeiro de 1905, art. 1º, §1º): “agentes consulares, funccionarios do Ministério das Relações Exteriores, actuarios de companhias de seguros e chefes de contabilidade de estabelecimentos bancarios e grandes emprezas commerciaes.”

Foi esse o decreto que forneceu as balizas curriculares para a formação dos profissionais do comércio, atuários incluídos, até 1926. Basicamente, como notou Bueno (1972), estabeleceu o curso da Academia de Comércio do Rio de Janeiro como padrão oficial de ensino comercial no país. Entre 1905 e 1926, desenvolveu-se, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, um núcleo de contabilistas que passou a militar pelo reconhecimento da profissão e pela regulamentação do ensino comercial. Eles se engajaram nos esforços de reorganização dos serviços contábeis e de racionalização econômico-orçamentária do Estado, ocupando posições importantes na Contadoria Central da República, caso de Francisco D’Áuria, e no Ministério da Fazenda, a exemplo de João Ferreira de Moraes Junior. Em troca, solicitaram legislação de ensino e profissional consoante seus anseios. Durante o quadriênio Arthur Bernardes, o presidente, mais de uma vez, elogiou os préstimos dos serviços de contabilidade para a sua gestão (Bernardes, 1924).

Como retribuição, comitivas de contabilistas foram ouvidas quando se discutia a edição da legislação sobre o ensino comercial, sob coordenação do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio. A edição da Revista Paulista de Contabilidade de junho de 1925 (Instituto Paulista de Contabilidade, 1925) destacou a participação de um grupo enviado pela Escola de Comércio Álvares Penteado para apresentar, em maio do mesmo ano, sua contribuição para o projeto de regulamentação. O Decreto n. 17.329, de 28 de maio de 1926, que dispôs sobre o ensino técnico-comercial, foi o dispositivo resultante das negociações e incorporou propostas dos contadores. A norma criou um curso superior em economia, estabeleceu o currículo para o ensino técnico-comercial e facultou aos estabelecimentos de ensino reconhecidos pelo governo federal a possibilidade de ofertar especializações em atuária e perícia contábil sem, contudo, especificar-lhes a grade curricular. A menção à atuária circunscrevia-se ao parágrafo único do artigo 3 (Decreto n. 17.329, de 28 de maio de 1926): “os estabelecimentos poderão ainda manter cursos de especialização destinados a profissões determinadas (actuaria, consular, de pericia contabil, etc.).”

Isso mudou o panorama para os profissionais atuários. O Decreto n. 1.339, de 9 de janeiro de 1905, previa que o curso superior seria responsável por formá-los. O Decreto n. 17.329, de 28 de maio de 1926, em contrapartida, reservou a formação superior para a graduação de economistas. A grade curricular desse curso, por seu turno, embora contemplasse matemáticas aplicadas às operações comerciais e ciência das finanças, não continha qualquer disciplina relativa à atuária (Decreto n. 17.329, de 28 de maio de 1926). O treinamento atuarial seria realizado em cursos de especialização posteriores à graduação que poderiam ou não ser oferecidos pelas escolas de ensino comercial.

A Primeira República legou ao governo instalado em novembro de 1930, portanto, um quadro disperso quanto à formação dos atuários e à sua atuação no âmbito da seguridade social. Foi justamente o interesse do novo regime pelas questões trabalhistas e previdenciárias que disparou as alterações no emprego dos profissionais atuários na estrutura do Estado brasileiro. A legislação e a difusão do ensino na área, a despeito de não terem acompanhado o ritmo das alterações produzidas na inserção dos atuários no aparelho do Estado, sobretudo no Ministério do Trabalho, também receberam impulso.

4.3. Os Engenheiros e a Seguridade Social. O Atuariado do Ministério do Trabalho

A legislação do ensino comercial foi reformada pelo Decreto n. 20.158, de 30 de junho de 1931, e depois alterada pelo Decreto n. 21.033, de 8 de fevereiro de 1932. Dessa feita, entretanto, a modificação foi elaborada pelo Ministério da Educação, sem o mesmo tipo de envolvimento que os contabilistas tiveram 1926. Pela primeira vez, a formação atuarial recebeu uma grade curricular própria. Dos seis anos de formação, três propedêuticos e três técnicos, as matérias específicas de atuária e estatística concentravam-se no último (Decreto n. 20.158, de 30 de junho de 1931):

Art. 6º - As disciplinas dos cursos técnicos serão assim distribuidas: d) Curso de Atuário. Terceiro ano: 1) Contabilidade dos seguros: Orientação como a das demais cadeiras de contabilidade, mas em relação a uma companhia de seguros; 2) Cálculo atuarial: Estatística e demografia. Cálculo das probabilidades. Sobrevivência e mortalidade. Rendas vitalícias. Usufruto e nua propriedade dos títulos. Notações atuariais. Tábuas de comutação. Seguro de vida. Seguros sociais. Reserva técnica; 3) Legislação de seguros: Interpretação dos textos legais e sua aplicação. Casos práticos; 4) Estatística: Em geral e sua aplicação à atuária.

Todavia, não foi suficiente. A escassez de atuários persistiu. Havia previsão legal para a formação dos técnicos, mas a realidade seguia sem formar profissionais suficientes. As próprias normas editadas pelo Governo Provisório confirmavam-no. O artigo 74 do Decreto n. 20.158, de 30 de junho de 1931, determinou a apresentação dos diplomas ali previstos para que os profissionais pudessem assumir posições de atuários nas companhias seguradoras e ocupar cargos públicos que demandassem conhecimentos contábeis. Todavia, em 1933, a execução do dispositivo foi suspensa por nove meses; em 1934, por um ano. As razões foram dadas pelo Decreto n. 22.382, de 23 de janeiro de 1933: “deficiência de profissionais diplomados nas condições exigidas para a inscrição em concurso destinado ao provimento imediato de elevado número de cargos.”

Além de quantitativamente escassos, os técnicos em atuária sofriam com insuficiências em suas formações. Como visto, estudavam conteúdos especificamente atuariais e estatísticos apenas no ano final de seus cursos. Ora, inserido nos esforços de racionalização burocrática de setores da máquina administrativa federal, o Atuariado do Ministério do Trabalho, em obediência ao Decreto n. 24.748, de 14 de julho de 1934, recrutava seus quadros por meio de rigorosos concursos públicos, que incluíam a apuração prévia da idoneidade moral dos candidatos e que tinham caráter prático, centrado em cálculos, estatística e probabilidades. Nesses certames, os aprovados não foram os técnicos atuários. Os ocupantes das posições no Atuariado do Ministério do Trabalho, em sua maioria, foram engenheiros, profissionais com formação tradicional sólida em matemática e estatística, provenientes de escolas militares e politécnicas, graduados, portanto, em cursos superiores, algo que os atuários somente alcançariam depois de 1945. Como notou Bueno (1972), a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, por exemplo, oferecia aos estudantes de engenharia, desde 1890, em seu curso de matemática, o estudo de tábuas de mortalidade, amortizações pelo sistema Price e cálculos das sociedades denominadas Tontinas.

Isso provocou discussões quando da organização da classe atuarial em associação, passo importante para a conformação do campo da atuária no Brasil. Na ata da sessão de constituição do IBA, ocorrida em 14 de setembro de 1944, na sede do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), relata-se que cinco pessoas, que se recusaram a dizer seus nomes, apresentaram-se como atuários diplomados e, nessa condição, reivindicaram a participação nos debates sobre os estatutos da nubente associação. A assembleia consentiu e Eduardo Guidão da Cruz, secretário da reunião, legou-nos o registro, publicado no DOU de 9 de dezembro de 1944, p. 20.729:

Reiniciada a leitura e debate dos Estatutos, a mesma pessoa que antes o fizera alegando a qualidade de atuário diplomado, pediu reiteradamente à palavra para repisar sempre, e a propósito de qualquer assunto, o mesmo argumento, a saber, que deviam ser admitidos ao Instituto os possuidores daquele título. Por diversas vezes a mesa explicou à aludida pessoa que a uma sociedade civil é lícito fazer, a seu critério, a seleção de seus fundadores e fixar as normas para posterior admissão de sócios.

A manifestação dos atuários é significativa da história da correlação de forças no campo profissional que se desenhava. Os diplomados em atuária existiam, formados por cursos técnicos, mas não lhes coube a liderança do processo de formação da primeira associação nacional da categoria, e sim aos engenheiros. Estes, nas publicações oficiais dos serviços atuariais federais, eram referidos como atuários. De fato, no Atuariado do Ministério do Trabalho e no IRB eles eram os atuários e estenderam sua liderança dessa esfera para a associativa, conduzindo o processo de constituição do IBA. Logo, não fazia sentido circunscrever o acesso ao instituto, naquele momento, aos diplomados nos cursos técnicos de atuária. O modo de ocupação de espaços no atuariado foi replicado no IBA.

Guidão da Cruz, secretário da certidão de nascimento do instituto, enquadrava-se na condição de engenheiro e atuário do Ministério do Trabalho. Ele secretariou uma reunião aberta pelo engenheiro civil João Carlos Vital, personagem com extensa folha de serviços prestados ao governo federal. Presidente do IRB entre 1939 e 1946, foi diretor-geral de Estatística e Publicidade do Ministério do Trabalho, presidente da comissão que organizou o IAPI, ministro interino do Trabalho e prefeito do Rio de Janeiro entre 1951-1952 (Abreu, 2001). Após abrir os trabalhos, Vital indicou o professor Abrahão Izecksohn, engenheiro que servira como atuário do Ministério do Trabalho até assumir a cadeira de termodinâmica da Escola Nacional de Engenharia em 1940 (DOU, 1940), para conduzir os trabalhos de aprovação do estatuto e de eleição da direção da associação.

A assembleia de criação do IBA, de fato, reuniu vários engenheiros que contribuíram para a política previdenciária varguista. Dois merecem destaque. Primeiro, Clodoveu de Oliveira (Almanak Laemmert, 1934; DOU, 1936, 1937, 1939; Gomes, 2007), formado na Escola de Engenharia de Ouro Preto e longevo militante trabalhista, participou da elaboração do decreto que criou a Carteira de Trabalho e Previdência Social, escreveu um livro sobre acidentes de trabalho (D’Oliveira & Tullio, 1935) e foi atuário-chefe e presidente do Conselho Atuarial do Atuariado do Ministério do Trabalho. Segundo, Lino Leal de Sá Pereira, foi o primeiro presidente do IBA, professor da Escola Nacional de Engenharia e esteve à frente do Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado em 1941 (DOU, 1939, 1941, 1949). Carreiro (1948) atribui-lhe a construção da tábua INP (Instituto Nacional de Previdência) de mortalidade geral, até então usualmente empregada na avaliação do seguro social no Brasil.

Ademais, todos os atuários membros do Atuariado do Ministério do Trabalho (1942) assinaram a fundação do IBA em 1944. A Tabela 1 apresenta-os.

Tabela 1
Membros do atuariado (1942), engenheiros e fundadores do Instituto Brasileiro de Atuária (IBA) em 1944

Os dois nomes que faltam para completar o quadro do Atuariado do Ministério do Trabalho de 1942 são Renato de Castro e de Gilberto Lyra da Silva, os únicos para os quais não foram encontrados registros de que fossem engenheiros. Note-se que, dos nomes listados na tabela, Gastão Quartin Pinto de Moura, João Lyra Madeira, Paulo Leopoldo P. da Câmara e Carlos Augusto Leal Jourdan foram sucessores de Lino Leal na presidência do IBA.

A constituição dessa instituição é, pois, mirante privilegiado para a análise da formação do campo de atuação dos atuários brasileiros. Eram, majoritariamente, engenheiros; estavam inseridos na estrutura do Estado, mormente no Atuariado do Ministério do Trabalho, de onde contribuíram para a criação dos IAPs e produziram a revista que deixava clara a importância do setor previdenciário público para a consolidação da profissão atuarial no Brasil.

A RBA estava prevista no Decreto n. 24.747, de 14 de julho de 1934, que criou o atuariado. No entanto, foram precisos sete anos para que a publicação viesse a lume. Trimestral, seu primeiro número saiu em abril de 1941, com apresentação de Getúlio Vargas. Ali ele reconheceu o caráter indispensável da técnica atuarial para a previdência social e chamou os paladinos da ciência atuarial brasileira de colaboradores do bem-estar social no Brasil. Com efeito, eles colaboravam tecnicamente para a construção da lógica “ofício-benefício”, caracterizadora da política social do presidente (Gomes, 2005). Clodoveu de Oliveira, também na introdução do primeiro volume do periódico, forneceu pistas de que os engenheiros-atuários tinham consciência da moldura política na qual seus trabalhos se inseriam. Para ele, os profissionais da área empenhavam-se no amparo à fragilidade humana ante o infortúnio, mas eram escassos (D’Oliveira, 1941, p. 5): “quantitativamente reduzidíssima, quiçá numericamente a menor das classes.” Não eram tantos também os alcançados pela proteção social por eles desenhada. Circunscrita aos trabalhadores urbanos, chegou ao meio rural e aos domésticos somente no início dos anos 1970 (Hochman & Fonseca, 1999).

O pequeno grupo, no entanto, foi prolífico nas páginas da revista. Ali, além dos pareceres emitidos pelo conselho atuarial e das atas de suas reuniões, marcaram presença artigos técnicos e, até mesmo, a tradução do relatório Beveridge sobre o seguro social para a Grã-Bretanha no pós-guerra (Atuariado do Ministério do Trabalho, 1943). No volume 4 (Instituto Brasileiro de Atuária, 1944-1945), relatou-se a assembleia de constituição do IBA e reproduziu-se o texto de seu estatuto. A criação do instituto foi apresentada como aspiração antiga dos atuários, concretizada graças à iniciativa da comissão organizadora, composta por Eduardo Guidão da Cruz, Gastão Quartin Pinto de Moura, João Lyra Madeira, René Celéstin Scholastique, Victor Gulzgoff e Frederico José de S. Rangel. Da comissão organizadora, apenas Vitor Gulzgoff e René Celestin Scholastique, chefe atuarial da Companhia Sul América de Seguros e futuro presidente do IBA, não pertenceram ao Atuariado do Ministério do Trabalho.

À concretização dessa aspiração seguiu-se um período de avanços. Em 1945, a formação atuarial foi elevada à condição de curso superior de ciências contábeis e atuariais. Em 1951, a atuária completou um movimento iniciado nos anos 1930 e 1940 e se dissociou do curso de contabilidade, constituindo um bacharelado próprio. Embora continuasse a compartilhar espaços institucionais e a dialogar com as ciências contábeis, passou a aproximar-se, mais e mais, da estatística e da matemática. Exemplo disso é a contribuição que Oscar Edivaldo Porto Carreiro, engenheiro, membro do atuariado e posteriormente professor da Escola Nacional de Engenharia, ofereceu à revista do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No artigo “A estatística e a atuária” (Carreiro, 1948, p. 357), asseverou que a particularidade dos contratos de seguro, que fixam prêmios a serem pagos em caso de ocorrência de eventos aleatórios, aproximava os dois campos de saber:

Os problemas atuariais decorrem de um contrato "sui generis" em que as partes contratantes assumem compromissos de pagamento se ocorrerem fatos aleatórios. Esses fatos podem ser o resultado de um sorteio, a vida ou a morte de indivíduos, a invalidez, a doença, acidente de trabalho; podem ser incêndio, naufrágio, roubo, dano a terceiros ou geada. Mas devem ser casuais; e como o acaso só manifesta regularidade se fôr grande o número de lances, é necessário que as experiências aleatórias características do contrato se repitam muitas vêzes, ao menos para uma das partes contratantes - o segurador. E' desta singularidade do contrato que resultam, como se verá adiante, as relações entre estatística e atuária.

Outro avanço posterior a 1945 foi a edição do Decreto-Lei n. 806, de 4 de setembro de 1969. A norma disciplinou o exercício da profissão atuarial, reservando aos atuários, em seu artigo 5, os cargos do Serviço Atuarial do Ministério do Trabalho.

Se, no início dos anos 1930, portanto, o ofício e a formação dos atuários eram tratados no bojo da legislação sobre o ensino comercial e a profissão de contador, o engajamento dos engenheiros nas atividades previdenciárias ao longo da Era Vargas modificou esse quadro. Os engenheiros-atuários foram absorvidos pelas organizações responsáveis pela política de seguridade social varguista e, paralelamente a essa ocupação de espaços, lideraram a formação do IBA. Por meio das páginas da RBA, nas quais publicaram estudos e pareceres, contribuíram para divulgar o saber atuarial e para fixar o perfil técnico específico dos atuários, exigente em conhecimentos estatísticos. Afinal, aposentadorias e pensões requeriam tábuas de vida e de invalidez embasadas em censos populacionais e análises probabilísticas complexas.

Portanto, o desenvolvimento da profissão atuarial no Brasil, de 1930 a 1945, andou pari passu com a constituição do arcabouço institucional da seguridade social no país. O processo deu-se por meio da ação protagonizada por engenheiros, profissionais cujas trajetórias pelos serviços atuariais federais, sobretudo o Atuariado do Ministério do Trabalho, foram essenciais para organizar um espaço social para a ação dos atuários brasileiros.

5. CONCLUSÃO

De referências esparsas em normativos atinentes aos seguros privados e às Caixas de Aposentadorias na Primeira República, a atuária caminhou, a partir dos anos 1930, no sentido da consolidação de um campo profissional e acadêmico. Esse caminho envolveu engenharia e previdência social. Se os economistas, e não os atuários, ocupam papel de destaque nas discussões sobre as reformas da previdência social no Brasil desde o final do século XX, coube aos engenheiros a proeminência técnica na ampliação da seguridade social no Brasil ao longo da Era Vargas. Foram os atuários do Estado.

O regime inaugurado em 1930 conferiu outra dimensão à questão social. As relações trabalhistas e a previdência social foram priorizadas, sobretudo no Governo Provisório e na ditadura do Estado Novo, como forma de legitimação política. Para dispor sobre matéria previdenciária, foram necessários normas, estrutura burocrática e pessoal. As duas primeiras foram providenciadas pela reforma da legislação de seguridade social, pela criação do Atuariado do Ministério do Trabalho e dos IAPs. Quanto ao pessoal, a ocupação dos postos no atuariado deu-se, majoritariamente, por engenheiros, profissionais de nível superior com formação matemática e estatística mais sólida do que a dos egressos dos cursos técnicos de atuária. Os engenheiros-atuários organizaram uma revista, criaram a primeira associação nacional da classe atuarial brasileira e, paulatinamente, assentaram as bases da atuária no país.

Ao final da Era Vargas, o campo social de atuação dos atuários ganhara densidade. O espaço desses profissionais estava consolidado no interior dos serviços de seguridade social, havia uma associação nacional de classe e a formação atuarial fora alçada à condição de curso superior. Nem tudo se conseguira, no entanto. Ainda demoraria 25 anos para que o Estado regulasse o exercício profissional.

Referências bibliográficas

  • *
    Artigo apresentado no 16º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia, Campina Grande, PB, Brasil, outubro de 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    02 Nov 2018
  • Revisado
    21 Nov 2018
  • Aceito
    31 Out 2019
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