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Bibliotecas públicas, patrimônio cultural e atuação governamental: interlocuções possíveis

RESUMO

Introdução:

O presente trabalho aborda a trajetória histórica do conceito de patrimônio cultural, discorre sobre os processos de institucionalização do patrimônio à luz de teóricos contemporâneos da área e enfatiza o papel das bibliotecas públicas enquanto instituições culturais e patrimoniais e seu impacto na construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Objetivo:

a pesquisa buscou evidenciar a relação multifacetada entre bibliotecas públicas, patrimônio cultural e atuação governamental, observando como esses três elementos se interconectam e influenciam mutuamente.

Metodologia:

de abordagem qualitativa, a pesquisa baseouse em uma revisão de literatura narrativa sobre a temática em questão.

Resultados:

a partir de notícias veiculadas na mídia sobre o desmonte de bibliotecas e levando em consideração as relações existentes entre a institucionalização do patrimônio cultural e a atuação governamental, conclui-se que as bibliotecas públicas integram um conjunto de entidades responsáveis pela salvaguarda de uma parcela significativa da cultura nacional, estão suscetíveis às mudanças de governo no que tange à sua gestão e manutenção, e podem ser utilizadas como instrumentos para a efetivação de ideais políticos, econômicos e sociais, dando suporte a estratégias de governabilidade.

Conclusão:

a partir dos resultados da pesquisa, aponta-se a necessidade de: 1) criação de mecanismos legais de proteção às bibliotecas públicas, estabelecendo responsabilidades sobre decisões que interfiram no destino de acervos e bibliotecas; 2) definição, via legislação, do que constitui o patrimônio documental brasileiro, evidenciando a importância das bibliotecas públicas na sua preservação e manutenção.

PALAVRAS-CHAVE:
Bibliotecas públicas; Patrimônio cultural; Patrimônio documental; Governabilidade

ABSTRACT

Introduction:

The present work addresses the historical trajectory of the concept of cultural heritage, discusses the processes of institutionalization of heritage in the light of contemporary theorists in the area, and emphasizes the role of public libraries as cultural and heritage institutions and their impact on the construction of a more fair and egalitarian society.

Objective:

The research sought to highlight the multifaceted relationship between public libraries, cultural heritage, and government action, observing how these three elements interconnect and influence each other.

Methodology:

with a qualitative approach, the research was based on a narrative literature review on the topic in question.

Results:

Based on news published in the media about the dismantling of libraries and considering the relationships that exist between the institutionalization of cultural heritage and government action, it is concluded that public libraries are part of a set of entities responsible for safeguarding a significant portion of national culture, are susceptible to government changes in terms of their management and maintenance, and can be used as instruments for the implementation of political, economic, and social ideals, supporting governance strategies.

Conclusion:

Based on the research results, it is necessary to: 1) create legal mechanisms to protect public libraries, establishing responsibilities for decisions that affect the fate of collections and libraries; 2) definition, via legislation, of what constitutes Brazilian documentary heritage, highlighting the importance of public libraries in their preservation and maintenance.

KEYWORDS:
Public libraries; Cultural heritage; Documentary heritage; Governance

1 INTRODUÇÃO

As bibliotecas públicas desempenham um papel fundamental como centros de conhecimento, no apoio ao ensino, na difusão da cultura e na construção da cidadania. Como guardiãs do conhecimento acumulado e catalisadoras da busca pelo saber, essas instituições transcenderam sua função primária de armazenamento de documentos, evoluindo para espaços de interação social, acesso à informação e preservação do patrimônio cultural. Nesse contexto, a relação entre bibliotecas públicas, patrimônio cultural e atuação governamental emerge como um tópico de significativa relevância, pois reflete tanto a importância histórica dessas instituições, quanto o compromisso do poder público com a promoção da educação, da cultura e da inclusão social.

O patrimônio cultural encontra nas bibliotecas públicas uma dimensão ímpar. Como guardiãs da memória coletiva e da diversidade cultural, tais instituições abrigam coleções de autores locais, documentação regional, livros antigos, periódicos, material audiovisual, entre outros recursos de informação, enfim, todo um conjunto documental que constitui um repositório vital da herança cultural de uma comunidade.

Nesse sentido, a atuação governamental desempenha papel crucial na preservação e fomento desses espaços de saber. Os investimentos públicos em bibliotecas não apenas fortalecem a infraestrutura cultural de uma nação, mas também propagam um compromisso com a democratização do acesso à educação e à informação. Políticas efetivas de financiamento, planejamento e gestão sustentável são essenciais para garantir que as bibliotecas públicas possam cumprir sua missão de maneira eficaz e abrangente.

Este artigo aborda a relação multifacetada entre bibliotecas públicas, patrimônio cultural e atuação governamental, buscando evidenciar como esses três elementos se interconectam e influenciam mutuamente. Ao compreender melhor o papel central das bibliotecas públicas como guardiãs do patrimônio documental e a importância das políticas governamentais para a sua sustentabilidade, pode-se enriquecer o diálogo sobre a preservação do conhecimento e a promoção da cultura em um mundo em constante transformação.

A pesquisa realizada possui abordagem qualitativa e se baseou na revisão bibliográfica para a construção do aporte teórico sobre o tema. As seções que seguem apresentam a evolução do conceito de patrimônio cultural e a institucionalização do patrimônio; a relação entre o patrimônio cultural e a atuação governamental, tendo em vista as bibliotecas públicas como elementos integrantes do patrimônio da nação.

2 O CONCEITO DE PATRIMÔNIO CULTURAL

A origem do termo “patrimônio” remete à herança familiar transmitida ao longo das gerações. Funari e Pelegrini (2009FUNARI, Pedro Paulo; PELEGRINI, Sandra C. A. Patrimônio histórico e cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.), destacam os significados do termo na Roma antiga: a) o patrimônio era, no antigo direito romano, toda a propriedade privada pertencente ao pai de família (o pater ou pater familias) e incluía desde bens móveis e imóveis até animais, escravos e mesmo a mulher e os filhos deste e, nesse sentido, o patrimônio estava associado à propriedade individual e particular; b) o patrimônio não era identificado como algo representativo do bem público, da coletividade - pelo contrário, estava voltado exclusivamente para a perpetuação da propriedade familiar.

A noção contemporânea de patrimônio cultural está intimamente ligada à história econômica e social da França, especificamente com a ocorrência da Revolução Francesa (1789). Antes, porém, desse marcante acontecimento, o conceito de patrimônio já vinha sofrendo modificações em função das transformações pelas quais passava a sociedade, ampliando a noção de patrimônio aristocrática, característica da antiguidade clássica, e acrescentando-lhe valor religioso, com a passagem para a Idade Média, período no qual a Igreja Católica exerceu forte influência sobre a vida social, econômica, política e cultural das comunidades. Assim, neste período, o patrimônio passou não somente a representar um legado familiar, baseado em uma concepção exclusivamente individual, acabando por retratar, também, algo coletivo, como o culto aos santos, a exaltação dos milagres, a valorização das relíquias, a monumentalização das igrejas etc., elementos constituintes do patrimônio religioso.

Somente alguns séculos mais tarde, sob as óticas humanista e renascentista, surge o conceito contemporâneo de patrimônio cultural. Nesse período houve uma valorização dos objetos antigos e surgiu a prática do colecionismo, fundando o que se chamou de Antiquariado (ideia que posteriormente originou a concepção dos museus).

O marco definitivo para a modificação do conceito tradicional de patrimônio se deu com o surgimento dos Estados nacionais, resultantes especialmente das revoluções Francesa e Industrial, o que possibilitou não somente a ruptura de um padrão econômico, político e social vigente, mas o estabelecimento de uma noção de que as pessoas compartilham, de maneira homogênea, um passado comum, quer seja ele constituído de figuras de antepassados, de costumes, de tradições ou crenças. Tal passado possibilitaria a criação de um presente e um futuro também comuns, levando à consolidação do caráter de coletividade necessário à criação de cidadãos exigido pelo novo modelo socioeconômico. (Funari; Pelegrini, 2009FUNARI, Pedro Paulo; PELEGRINI, Sandra C. A. Patrimônio histórico e cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.).

Nesta perspectiva, é importante destacar que os Estados nacionais contemporâneos surgiram a partir de dois sistemas jurídicos distintos, o que, por sua vez, gerou duas concepções diferentes de patrimônio. São eles, o direito civil romano, de tradição latina, e o direito consuetudinário, de tradição anglo-saxã. A concepção de patrimônio oriunda do direito civil romano considera que, se um bem é dotado de valor público, deverá ser privilegiado diante da nação como um todo, ou seja, já não depende mais exclusivamente do proprietário a administração deste bem particular, pois esse bem passa a fazer parte da coletividade. Já a concepção de tradição anglo-saxã privilegia o direito à propriedade privada, ou seja, o proprietário tem total poder sobre o bem que detém, podendo fazer com este o que quiser, independentemente do valor que ele representa para a cultura da nação.

A partir de duas concepções diferentes, porém similares no sentido de que ambas reconhecem o patrimônio como um bem material concreto, de alto valor simbólico e/ou material para a nação, criam-se instituições voltadas para a administração e a preservação do patrimônio nacional.

O destaque dado ao patrimônio nacional, porém, atinge seu auge no período que vai da primeira à segunda Grande Guerra (entre 1914 e 1945). As mesmas nações que criaram o Estado nacional (França e, mais tarde, Inglaterra e Estados Unidos), consolidaram-se como impérios; concomitantemente, houve apropriação dos bens culturais e riquezas dos colonizados pelos colonizadores, já que estes concluíam ser os verdadeiros herdeiros do patrimônio cultural deixado por seus antepassados, iluminados pelas ideias nacionalistas que influenciaram esses dois acontecimentos históricos. O patrimônio estava à mercê de dois fatores do mundo moderno: o Estado nacional e o Imperialismo.

Entretanto, especialmente após a década de 1960, ocorre uma crescente crítica ao Estado nacional e ao Imperialismo e a sociedade civil já não aceita mais passivamente estas duas condições: passa a demonstrar a sua resistência por meio de revoltas e movimentos sociais, como os movimentos pela emancipação feminina e em prol dos direitos civis, por exemplo. Nesse contexto, novamente a noção de patrimônio sofre modificações que levam à moderna concepção de patrimônio, com sentido consideravelmente ampliado em relação ao conceito anteriormente adotado: o patrimônio, atualmente, inclui não somente bens materiais (móveis e imóveis), mas também bens imateriais, como os saberes, os fazeres e todo o contexto que envolve a sua materialidade, sem deixar de considerar toda a diversidade presente na produção destes bens e sua importância para as comunidades às quais pertencem. Já não se concebe mais a existência de um patrimônio nacional, único e representativo de uma coletividade, engessado e materializado em bens físicos (monumentos, edifícios, objetos etc.), mas sim de um conjunto de patrimônios, de diferentes comunidades, constituído tanto de bens materiais quanto imateriais, que formam uma “teia” patrimonial e esta sim, representa, com toda sua heterogeneidade, diversidade e particularidades, o patrimônio de uma nação. Nesse contexto, diferentes manifestações integram o patrimônio cultural, como o patrimônio documental, por exemplo, cujas instituições voltadas para a sua preservação são, predominantemente, bibliotecas e arquivos.

2.1 A institucionalização do patrimônio cultural

A institucionalização do patrimônio tem suas origens no século XVIII, quando, na França, o poder público tomou as primeiras iniciativas no sentido de preservar bens e monumentos considerados de alto valor para a história da nação. A ideia de um patrimônio comum a um grupo social, definidor de sua identidade, norteou o estabelecimento de políticas públicas e a criação de órgãos governamentais especialmente constituídos para a proteção dos bens culturais. Conforme comentado na seção anterior, para a efetiva consolidação de projetos políticos de ideais nacionalistas, fez-se necessária a definição de determinadas estratégias, dentre as quais se pode citar como de extrema relevância para a história da institucionalização do patrimônio a criação de referenciais culturais identitários em conformidade com o padrão exigido pelos recém-criados Estados nacionais.

Durante o século XIX, a criação de patrimônios nacionais intensificou-se e, no Brasil, a preocupação com a sua proteção e valorização começa com o movimento cultural modernista, oriundo da “Semana de Arte Moderna”, de 1922. A ideia de proteção ao patrimônio se efetivou em 1933, quando o então presidente Getúlio Vargas consagrou, por meio do Decreto nº. 22.928, a cidade de Ouro Preto (MG) como monumento nacional. Em 1937, o Decreto-lei nº 25 criou o Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), primeiro órgão federal brasileiro dedicado à preservação patrimonial, que anos mais tarde veio a se transformar no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN).

Buscando elucidar a maneira como são selecionados os bens culturais que constituem o patrimônio cultural de uma nação pelas instituições responsáveis por sua manutenção e valorização, apresenta-se, aqui, um compilado contendo as contribuições de teóricos contemporâneos ao tema proposto.

Krzystof Pomian, filósofo e historiador polonês, em sua “Teoria dos semióforos”, buscou relacionar a seleção de bens materiais à prática do colecionismo, hábito frequente no século XVIII entre as elites, hábito este que propiciou a formação de inúmeras coleções que, posteriormente, deram origem aos primeiros museus do mundo. Para o autor, os objetos privados de sua funcionalidade, ou seja, que já não servem mais aos propósitos para os quais foram criados e perderam sua função original, trazem um significado que vai além de sua materialidade. Tais objetos, ao passarem do estado utilitário para um estado de “contemplação” ou “celebração”, carregam em si uma forte carga de significados que acabam por torná-los semióforos, ou seja, suportes materiais de ideias com alto poder evocativo - daí advém seu valor como peças de coleção.

Para Pomian (1984), a escolha dos objetos que fazem parte do patrimônio cultural depende da sua capacidade de receber significados ligados, principalmente, à sua história anterior, à sua raridade, à sua aparência externa. Pomian (1984), conclui, declarando que patrimônio é, portanto, sinônimo de semióforo, ou seja, o patrimônio é constituído essencialmente por objetos portadores de significados.

Para Michael Pollak, sociólogo francês, o patrimônio é um sistema de referências, ideia que vai além da “Teoria dos semióforos” de Pomian. O autor retoma Maurice Halbwachs e sua “Teoria da memória coletiva”, relacionando a memória aos conceitos de identidade e pertencimento, e Pierre Nora, resgatando o conceito de “lugares de memória”, lugares não apenas físicos, mas também mentais onde seria possível reviver determinadas lembranças (Pollak, 1989, 1992). Para Pollak, o que se observa na atualidade seria uma acentuação do caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional em oposição às memórias das minorias. “O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais.”. (Pollak, 1989, p. 5).

Na perspectiva do patrimônio, as reflexões de Pollak vão ao encontro do pensamento do antropólogo espanhol Llorenç Prats, que considera o patrimônio cultural uma invenção e uma construção social: uma invenção que se dá pelo discurso e uma construção legitimada para alcançar determinado objetivo (Prats, 1998). A partir da leitura de Pollak e Prats, conclui-se que a seleção dos elementos integrantes do patrimônio nunca ocorre de forma neutra ou inocente, porém sempre visando a uma correlação entre ideias, valores e o contexto social de onde provém, ou seja, a construção do patrimônio cultural de uma nação ocorre de maneira intencional e mesmo estratégica.

Prats (1998), ao contrário de Krzystof Pomian, desconsidera a escassez, a perda de funcionalidade ou a nobreza de determinados elementos como características constituintes do patrimônio. Para o autor, os critérios “história”, “natureza” e “genialidade” constituiriam os verdadeiros critérios que circundam os referenciais simbólicos potencialmente patrimonializáveis na sociedade contemporânea. Tais referenciais (bens materiais e imateriais) alcançariam o status de patrimônio cultural, verdadeiramente, quando fossem “ativados” por determinadas instituições, especialmente as pertencentes aos poderes políticos através dos governos locais, regionais e nacionais.

Sendo assim, ao mesmo tempo em que o patrimônio serviria para fins de identificação coletiva, serviria também aos propósitos das instituições que ativam estes referenciais, que se utilizam da memória coletiva como instrumento para efetivação de seus programas e a legitimação simbólica de suas ideologias identitárias.

Dominique Poulot, historiador francês, ratifica a concepção de patrimônio de Llorenç Prats, porém crê que não somente as instituições predominantemente políticas exercem sua influência sobre o patrimônio, como também as econômicas, através, especialmente, do turismo (Poulot, 2008). Prats também considera o poder e a economia (turismo) como constituintes do patrimônio: para Prats, institucionaliza o patrimônio quem tem mais poder. Para Poulot, é preciso construir a história dos bens que se tornaram patrimônio cultural, estabelecendo conexões com a realidade e descobrindo os motivos que os levaram a serem escolhidos como patrimônio, e não crer cegamente que determinado bem tombado é, aprioristicamente, patrimônio nacional. Em síntese, Poulot propugna uma histórica desconstrutivista do patrimônio, que problematize os métodos disciplinares que institucionalizam o patrimônio.

3 O PATRIMÔNIO CULTURAL E A ATUAÇÃO GOVERNAMENTAL

Levando em consideração as reflexões teóricas apresentadas, conclui-se que o patrimônio cultural está na base das relações de poder de grupos sociais, proporcionando a criação de suas identidades na construção dos lugares onde vivem.

Os lugares de memória seriam, portanto, “[...] formas de manutenção e reconhecimento de existência social de determinados grupos culturais que se unem por uma memória que lhes dá os laços identitários” (Machado, 2012MACHADO, Ironita Adenir Policarpo. História, patrimônio e cidade: uma questão política. Revista Memória em Rede, Pelotas, v. 2, n. 7, p. 1-14, jul./dez. 2012. Disponível em: http://www2.ufpel.edu.br/ich/memoriaemrede/beta-02-01/index.php/memoriaemrede/article/view/94. Acesso em: 21 dez. 2022.
http://www2.ufpel.edu.br/ich/memoriaemre...
, p. 3).

Nesse sentido, pode haver conflito na seleção dos bens nacionais patrimonializáveis, ou mesmo na valorização e reconhecimento daqueles bens que já foram patrimonializados em outras épocas, privilegiando-se determinados aspectos em detrimento de outros, criando um “falso” reflexo da realidade de um grupo, ou ainda, elaborando o patrimônio que, presume-se, deva representar determinado grupo e excluindo-se, propositalmente, outro(s) que deva(m) cair no esquecimento.

Baczko (1986) “[...] se refere ao imaginário social como um meio potencial de controle da vida coletiva e, especialmente, do exercício da autoridade e do poder.” Tal ideia vai ao encontro a de Foucault (2008FOUCAULT, Michel. Aula de 4 de abril de 1979. In: FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 397-430.), quando afirma que o poder está nas instituições antes mesmo de estar na sociedade e no Estado que o acolhe, ou seja, para o autor há uma relação de indissociabilidade entre as instituições e o poder.

Seguindo a linha de pensamento de Foucault, é possível observar o patrimônio cultural através da sociedade civil, ou seja, o patrimônio cultural está nitidamente associado às sociedades de controle e pode ser encarado como uma categoria de pensamento e ação, uma instituição que reflete as relações de poder de uma comunidade ou um grupo de indivíduos.

A atuação governamental se dá em vários níveis, inclusive por meio da apropriação do patrimônio cultural a da possibilidade de uso de seu universo simbólico para o alcance de objetivos.

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das integrações do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as oposições irredutíveis. Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum, [...] eis as duas funções essenciais da memória comum. Isso significa fornecer um quadro de referências e de pontos de referência. (Pollak, 1989POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-13, 1989. Disponível em: https://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf. Acesso em: 12 maio 2023.
https://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memor...
, p. 9).

Deduz-se, portanto, que a memória que une os grupos sociais a outras memórias, por sua vez, é tanto unificadora quanto excludente: ao mesmo tempo que encontra elementos comuns para reforçar o sentimento de pertencimento e, portanto, contribui com a constituição da identidade, exclui e ignora elementos que possam vir a contradizer a identidade nacional, fazendo com que

[...] desigualdades “desapareçam” porque rejeitam tudo o que não corresponde ou não se enquadra em identidades nacional, estadual e municipal, imaginadas em princípios elitistas e que potencializam no cotidiano a exclusão já contida na memória que os une. (Machado, 2012MACHADO, Ironita Adenir Policarpo. História, patrimônio e cidade: uma questão política. Revista Memória em Rede, Pelotas, v. 2, n. 7, p. 1-14, jul./dez. 2012. Disponível em: http://www2.ufpel.edu.br/ich/memoriaemrede/beta-02-01/index.php/memoriaemrede/article/view/94. Acesso em: 21 dez. 2022.
http://www2.ufpel.edu.br/ich/memoriaemre...
, p. 6).

Por outro lado, o papel do Estado é fundamental dentro da organização da memória nacional e oficial para a manutenção da identidade coletiva “inventada”, pois seleciona, intencionalmente, o quadro de referências que devem ser celebrados pela memória oficial, efetivando-se uma criação estratégica da memória:

A análise das vicissitudes do patrimônio está integralmente incluída no âmbito de uma nova consciência política, não apenas no caso de medidas governamentais que tratam especificamente do patrimônio [...], mas também no fato de que a existência de uma razão patrimonial pode fornecer um ambiente para a política internacional e para a condução dos negócios em sentido amplo. (Poulot, 2008POULOT, Dominique. Um ecossistema do patrimônio. In: CARVALHO, Claudia S. Rodrigues de et al. (org.). Um olhar contemporâneo sobre a preservação do patrimônio cultural material. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2008. p. 26-43. Disponível em: http://www.docvirt.com/DocReader.net/DocReader.aspx?bib=MHN&pagfis=22803. Acesso em: 18 maio 2023.
http://www.docvirt.com/DocReader.net/Doc...
, p. 34).

Desse modo, a finalidade do patrimônio vai além da representação do passado das nações, tornando-se, de fato, um instrumento para a condução de políticas de governo, com alto potencial econômico, inclusive, materializado especialmente pelas vias do turismo cultural.

3.1 Bibliotecas públicas, patrimônio cultural e atuação governamental

O livro, principal material do qual se ocupam as bibliotecas, é, reconhecidamente, um bem cultural. Como tal, pode ser observado a partir de diferentes ângulos: a) sob o aspecto da funcionalidade: como suporte para o registro de informação/conhecimento; b) sob o aspecto sociocientífico: como fonte/recurso de informação sobre determinado assunto ou tema; c) sob o aspecto da materialidade: como objeto em si.

A observação do livro enquanto objeto ou artefato cultural possibilita ir além dos aspectos funcional e sociocientífico, permitindo vislumbrá-lo como “coisa”, como algo que pode ser admirado e que deve ser preservado por sua beleza e/ou características exóticas e incomuns. Retomando os teóricos apresentados na subseção 2.1, pode-se, por exemplo, compreender um livro raro como semióforo, a partir da visão do colecionador ou do bibliófilo. Considerando ainda que o conceito de raridade bibliográfica adotado por muitas bibliotecas advém de uma concepção originada, principalmente, no universo do colecionismo bibliográfico - formado por colecionadores, bibliófilos e comerciantes especializados em obras raras, compreende-se os motivos pelos quais determinados livros são elevados à categoria de raridades.

Retomando a ideia de que o patrimônio cultural é, ou pode ser utilizado estrategicamente como um instrumento de apoio à governabilidade, acredita-se que as bibliotecas públicas, integrantes do patrimônio cultural de uma nação, estão à mercê das trocas de governo no que tange à sua criação, manutenção e gestão e podem ser utilizadas no suporte à efetivação de ideais políticos e sociais de seus governantes.

Neste trabalho, são abordadas, especificamente, as bibliotecas públicas, por entenderse que estas desempenham importante papel na minimização da desigualdade de acesso à informação, no combate à desinformação e na promoção de uma sociedade mais justa, igualitária e ética. O Manifesto da Biblioteca Pública IFLA/UNESCO 2022, ratifica:

A biblioteca pública é o centro local de informação, disponibilizando todo tipo de conhecimento e informação aos seus usuários. Ela é um componente essencial das sociedades do conhecimento, adaptando-se continuamente a novos meios de comunicação para cumprir sua função de fornecer acesso universal a informações e permitir que todas as pessoas possam fazer uso significativo da informação. Ela fornece um espaço de acesso público para a produção de conhecimento, compartilhamento e troca de informações e cultura, como também a promoção do engajamento cívico. (IFLA; UNESCO, 2022).

O documento enfatiza, ainda, as características de seu acervo:

Ter alta qualidade, ser relevante às necessidades e condições locais e retratar a diversidade linguística e cultural da comunidade são atributos essenciais. As coleções devem refletir as tendências atuais e a evolução da sociedade, bem como a memória da atividade humana e os produtos de sua imaginação. As coleções e os serviços não devem estar sujeitos a nenhuma forma de censura ideológica, política ou religiosa, nem a pressões comerciais. (IFLA; UNESCO, 2022).

No Brasil, a primeira biblioteca pública foi fundada na cidade de Salvador (BA), em 1811. No entanto, somente a partir do século seguinte as bibliotecas públicas passaram a receber mais atenção, especialmente a partir da Semana de Arte Moderna, em 1922, com a destacada atuação de Mário de Andrade, defensor da criação de bibliotecas públicas pelo Brasil:

[...] parece uma das atividades mais atualmente necessárias para o desenvolvimento da cultura brasileira. Não que essas bibliotecas venham resolver qualquer dos dolorosos problemas da nossa cultura, o da alfabetização... Mas a disseminação, no povo, do hábito de ler, se bem orientada criará fatalmente uma população urbana mais esclarecida, mais capaz de vontade própria, menos indiferente à vida nacional. Será talvez esse um passo agigantado para a estabilização de uma entidade racial, que, coitada, se acha tão desprovida de outras forças de unificação. (Andrade, 1939 apudSuaiden, 2000SUAIDEN, Emir José. A biblioteca pública no contexto da sociedade da informação. Ciência da Informação, Brasília, v. 29, n. 2, p. 52-60, maio/ago. 2000. Disponível em: http://revista.ibict.br/ciinf/index.php/ciinf/article/view/252. Acesso em: 13 ago. 2023.
http://revista.ibict.br/ciinf/index.php/...
, p. 53).

Mário de Andrade foi uma figura de extrema importância para a história da defesa do patrimônio cultural de nosso país, tendo sido o autor do projeto de criação do SPHAN (atual IPHAN). No entanto, no Brasil, as políticas públicas para bibliotecas públicas surgem, de forma sistemática e com propósitos claramente definidos, somente a partir da década de 1990, em especial com a criação do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), em 1992, vinculado ao Ministério da Cultura e subordinado à Fundação Biblioteca Nacional. Tal iniciativa teve por objetivo fortalecer as bibliotecas públicas do país, oportunizando a implementação de “[...] um processo sistêmico baseado em ações voltadas para a interação e integração dessas bibliotecas em âmbito nacional” (Biblioteca Nacional, 2006).

A partir daí, novas ações e projetos foram implementados, tais como o Programa Nacional de Incentivo à Leitura (PROLER), também vinculado à FBN, no mesmo ano; o programa Uma Biblioteca em Cada Município, em 1993; o projeto Arca das Letras, em 2003, voltado para a criação de bibliotecas em áreas rurais, criado por iniciativa da Secretaria do Desenvolvimento Agrário do Ministério da Reforma Agrária; o Programa Fome de Livro, em 2005; e o Programa Mais Cultura, em 2007, o qual propiciou a abertura de editais para investimentos em bibliotecas públicas e ampliou o conceito de Pontos de Cultura, criando os Pontos de Leitura (Machado, 2010MACHADO, Elisa Campos. Análise de políticas públicas para bibliotecas no Brasil. InCID: R. Ci. Inf. e Doc., Ribeirão Preto, v. 1, n. 1, p. 94-111, 2010. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/incid/article/view/42307. Acesso em: 21 dez. 2022.
https://www.revistas.usp.br/incid/articl...
).

O aumento expressivo de Bibliotecas Públicas em território nacional, no período que compreende aos anos de 1999 a 2014, pode ser entendido a partir da implementação de políticas públicas nas áreas do livro, da leitura e das bibliotecas, tais quais a Política Nacional do Livro e da Leitura (PNLL) (2011), cujas diretrizes são voltadas para a necessidade de formar uma sociedade leitora como condição essencial e decisiva para promover a inclusão social de milhões de brasileiros, e a Política Nacional de Leitura e Escrita (PNLE) (2018), instituída como estratégia permanente para promover o livro, a leitura, a escrita, a literatura e as bibliotecas de acesso público no Brasil (Brasil, 2018). (Rocha; Oliveira, 2021ROCHA, E. S.; OLIVEIRA, D. A. Políticas públicas para as bibliotecas públicas no Brasil. Ciência da Informação Express, [S. l.], v. 2, n. 7, 12 jul. 2021. Disponível em: https://brapci.inf.br/index.php/res/download/223072. Acesso em: 21 dez. 2022.
https://brapci.inf.br/index.php/res/down...
).

Percebe-se que as políticas públicas voltadas para as bibliotecas públicas giram em torno da leitura e do seu incremento. Há pouco debate sobre as bibliotecas sob o ponto de vista patrimonial, de preservação da memória, à exceção de projetos e ações voltados, especificamente, para a Biblioteca Nacional.

O descaso com a cultura e o patrimônio cultural brasileiro é fato conhecido, dada sua relação histórica com a sociedade, o que se faz sentir, por consequência, junto às bibliotecas públicas. A exemplo disso, destaca-se a extinção, entre os anos de 2015 e 2020, de 764 bibliotecas públicas. Esse número pode ser ainda maior, devido ao controle pouco efetivo dos sistemas estaduais e da falta de dados do Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP), vinculado ao Ministério da Cultura, órgão que foi extinto em 2019 e substituído pela Secretaria Especial de Cultura, vinculada ao Ministério do Turismo (Carrança, 2022CARRANÇA, Thais. Brasil perdeu quase 800 bibliotecas públicas em 5 anos. BBC News Brasil, São Paulo, 16 jul. 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil62142015. Avesso em: 13 ago. 2023.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil621...
; Araújo et al., 2022ARAÚJO, C; BARZOTTO, V. H.; Pieruccini, I. Desmonte das bibliotecas públicas evidencia o desinvestimento cultural e educacional no Brasil. Jornal da USP, São Paulo, 02 set. 2022. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/desmonte-das-bibliotecas-publicas-evidenciao-desinvestimento-cultural-e-educacional-no-brasil/. Acesso em: 13 ago. 2023.
https://jornal.usp.br/atualidades/desmon...
).

A Tabela 1 apresenta os dados por Região.

Tabela 1
Quantidade de bibliotecas públicas fechadas no Brasil, de 2015 a 2020, por Região

Conforme demonstra a Tabela 1, a região Sudeste foi a que sofreu a maior perda, com 683 bibliotecas públicas fechadas no período. Destas, a maior parte estava concentrada entre os estados de São Paulo e Minas Gerais e se constituía de bibliotecas públicas municipais.

Os Relatórios de Gestão do SNBP dos anos de 2012, 2013, 2014, 2021 e 2022 encontram-se disponíveis na página institucional do Sistema. Há uma lacuna no período de 2015 a 2020 (não há nenhum relatório referente a esses anos). Porém, a partir da documentação disponibilizada, é possível visualizar a evolução do número de bibliotecas públicas no país entre 2010 e 2021, conforme demonstra o Gráfico 1.

Gráfico 1
Número de bibliotecas públicas existentes no Brasil: 2010-2021

Os dados apresentados confirmam a observação de Rocha e Oliveira (2021ROCHA, E. S.; OLIVEIRA, D. A. Políticas públicas para as bibliotecas públicas no Brasil. Ciência da Informação Express, [S. l.], v. 2, n. 7, 12 jul. 2021. Disponível em: https://brapci.inf.br/index.php/res/download/223072. Acesso em: 21 dez. 2022.
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), sobre o incremento de políticas públicas voltadas para as áreas do livro, da leitura e das bibliotecas no período de 1999 a 2014, o que se refletiu na ampliação da oferta de bibliotecas públicas no país. Porém, revelam também o quanto as políticas públicas voltadas para as bibliotecas encontramse à mercê das trocas de governo.

A história do próprio Ministério da Cultura fornece indícios desse processo de falta de valorização da cultura e do patrimônio cultural brasileiro, haja vista o questionamento sobre a sua existência desde os anos 1990, com o governo Collor, “[...] quando o então presidente editou uma Medida Provisória tornando o MinC uma Secretaria Especial vinculada diretamente à Presidência da República” (Prado, 2022PRADO, Luiz. Destruição da cultura no governo Bolsonaro é tema de livro. Jornal da USP, São Paulo, 28 jan. 2022. Disponível em: https://jornal.usp.br/?p=486444. Acesso em: 14 ago. 2023.
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); passando pelo governo Temer (2016-2018), quando este resolveu extinguir o Ministério da Cultura, transformando-o em uma secretaria do Ministério da Educação (a decisão durou apenas uma semana, mas gerou uma série de protestos, especialmente da classe artística brasileira); e chegando ao governo Bolsonaro (2019-2022), quando este “[...] rebaixou o status do Ministério da Cultura para Secretaria Especial da Cultura” (Prado, 2022), vinculada inicialmente ao Ministério da Cidadania e, mais adiante, ao Ministério do Turismo.

O desmonte de bibliotecas, no Brasil, especialmente nos anos mais recentes, tem se agravado. Os ataques às instituições ocorrem de forma generalizada e não somente às bibliotecas públicas. Bibliotecas pertencentes à administração pública federal também sofrem a ação de gestores desinformados e mal-intencionados, como o que se observou em fevereiro de 2020, quando foi noticiada na mídia a reforma que reduziria pela metade o espaço físico da Biblioteca do Palácio do Planalto para dar lugar a um gabinete com banheiro privativo para uso da primeira-dama. A referida biblioteca mantém documentos históricos da Presidência da República, como boletins internos, registros sonoros de discursos presidenciais e relatórios da Comissão Nacional da Verdade, e permanece, ainda hoje, fechada ao público, sem previsão de reabertura, conforme destacam Amado e Barretto (2023AMADO, Guilherme; BARRETTO, Eduardo. Desalojada por Bolsonaro, biblioteca do Planalto segue sem previsão de reabertura. Metrópoles, Brasília, 28 fev. 2023. Disponível em: https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/desalojada-por-bolsonarobiblioteca-do-planalto-segue-sem-previsao-de-reabertura . Acesso em: 14 ago. 2023.
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).

Outra situação que causou indignação sobre a atuação governamental em relação às bibliotecas da administração pública ocorreu em junho de 2021, e diz respeito à Fundação Cultural Palmares, instituição pública fundada em 1988, “[...] voltada para promoção e preservação dos valores culturais, históricos, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira” (Fundação cultural palmares, 2022). Por meio do Relatório Público 01 - CNIRC, assinado pelo então Coordenador-Geral do Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra, anunciou-se o expurgo de 5.300 livros da Biblioteca Oliveira Silveira, por terem sido considerados “inconvenientes”, cujas temáticas e abordagens fugiriam do escopo da Fundação e teriam “caráter panfletário e ideológico”. (Conselho Regional de Biblioteconomia - 1ª REGIÃO, 2022b). A notícia teve ampla repercussão na imprensa e nas mídias sociais, notas de repúdio foram manifestadas por profissionais bibliotecários e entidades de classe. O Conselho Regional de Biblioteconomia - 1ª Região (DF/GO/MT/MS) autuou a entidade e instaurou investigação sobre a condução da elaboração do Relatório, tendo concluído que o mesmo “[...] não contou com a efetiva participação de profissional bibliotecário responsável, confirmando o auto de infração sobre o exercício indevido da profissão por indivíduo não graduado em Biblioteconomia [...]” (Conselho Regional de Biblioteconomia - 1ª REGIÃO, 2022b). Em janeiro de 2022, a Justiça Federal proibiu a Fundação Cultural Palmares de se desfazer do acervo.

Tais desmontes não estão restritos apenas à esfera distrital. No que diz respeito ao Executivo e ao Judiciário, várias bibliotecas dos ministérios e também de órgãos da justiça federal estão sendo extintas ou em vias de serem sob a alegação de que os espaços que ocupam serão destinados à espaços de convivência dos servidores ali lotados - como se tais bibliotecas não caracterizassem também tais espaços. Ademais, muitas dessas bibliotecas possuem um vasto e valioso acervo, que compõe a memória e o patrimônio histórico, cultural e bibliográfico do Brasil, cuja destinação é uma incógnita. (Conselho Regional de Biblioteconomia - 1ª REGIÃO, 2022a).

Há, ainda, os casos de perda total de acervos, decorrentes do descaso do poder público com a cultura e o patrimônio nacional, como o incêndio que atingiu o Museu Nacional (Rio de Janeiro), em setembro de 2018, o qual consumou, também, parte do acervo documental e bibliográfico da instituição; e o incêndio que atingiu a Cinemateca Brasileira (São Paulo), em junho de 2021. Ambos os desastres poderiam ter sido evitados se as autoridades tivessem levado a sério alertas e avisos emitidos pelos funcionários das instituições em relação às más condições de manutenção de infraestrutura e a falta de investimentos.

Bibliotecas escolares também sofrem os impactos das más decisões governamentais. Em novembro de 2022, a Prefeitura de Goiânia (GO) anunciou o fechamento de 50 bibliotecas escolares, em razão da abertura de cerca de 5.000 vagas na pré-escola e educação infantil. Segundo a Secretaria Municipal de Educação, os espaços ocupados por essas bibliotecas deverão se tornar salas de aula, as quais irão acomodar as crianças (Calazenço, 2022CALAZENÇO, Leonardo. Educação fecha 50 bibliotecas de escolas da rede municipal de Goiânia. Diário de Goiás, Goiânia, 09 nov. 2022. Disponível em: https://diariodegoias.com.br/educacao-fecha-50-bibliotecas-de-escolas-da-rede-municipal-degoiania/260556. Acesso em: 14 ago. 2023.
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).

A extinção de bibliotecas, o desfazimento de acervos (descarte, ou, tentativas de descarte), o desmantelamento, o abandono, a descaracterização e a destruição deliberada calcada em motivações pessoais, ideológicas, partidárias ou políticas põem em risco a preservação do patrimônio documental bibliográfico brasileiro. No entanto, tais ações encontram razões mais profundas do que o simples descaso com a cultura e o patrimônio cultural: colaboram na configuração de estratégias de governabilidade mais amplas.

6 CONCLUSÃO

A partir das leituras realizadas, é possível distinguir o patrimônio cultural segundo três dimensões diversas: a) a dimensão simbólica, ligada aos valores culturais de uma comunidade e à identificação coletiva de seus membros; b) a dimensão política, já que é um processo de construção intencional, político e estratégico das instituições às quais está subordinado; c) e a dimensão econômica, uma vertente de uso e apropriação do patrimônio que se retroalimenta das duas dimensões anteriores, e que tem no turismo cultural sua manifestação mais contundente.

A população brasileira sofre com o elevado nível de desigualdade social e cultural que assola o país. Nos últimos anos, profissionais bibliotecários e gestores de bibliotecas públicas tiveram que lidar com diversas preocupações, como os cortes orçamentários às instituições culturais; a redução de investimentos no campo da cultura e da preservação do patrimônio - a partir de investimentos oriundos de instituições e agências de fomento, muitas bibliotecas públicas conseguiam implementar melhorias via projetos, o que tem se tornado cada vez mais difícil frente à redução de incentivos; a proliferação da veiculação de fake news.

Levando em consideração as três dimensões do patrimônio mencionadas, é possível visualizar as bibliotecas públicas como entidades integrantes de um conjunto de instituições que colaboram na salvaguarda de uma parcela significativa da cultura nacional - o patrimônio documental, em especial o patrimônio bibliográfico. Conclui-se, ainda, que tais instituições estão suscetíveis às mudanças de governo no que tange à sua gestão e manutenção, e podem ser utilizadas como instrumentos de apoio à efetivação de seus ideais políticos, econômicos e sociais, dando suporte a estratégias de governabilidade.

Nesse sentido, percebe-se a necessidade de criar mecanismos legais de proteção às bibliotecas públicas, estabelecendo responsabilidades sobre decisões que interfiram no destino de acervos e bibliotecas. Igualmente necessária é a definição, via legislação, do que constitui o patrimônio documental brasileiro, evidenciando a importância das bibliotecas públicas na sua preservação e manutenção.

Reconhecimentos

Não aplicável.

REFERÊNCIAS

  • Financiamento:

    Não aplicável.
  • Aprovação ética:

    Não aplicável.
  • Disponibilidade de dados e material:

    Os conjuntos de dados e informações analisados durante o presente estudo estão disponíveis nos seus respectivos endereços eletrônicos, em acesso aberto (os endereços podem ser conferidos nas referências).
  • JITA:

    DC. Public libraries.
  • ODS:

    4. Educação de Qualidade

Editado por

Editor:

Gildenir Carolino Santos

Disponibilidade de dados

Os conjuntos de dados e informações analisados durante o presente estudo estão disponíveis nos seus respectivos endereços eletrônicos, em acesso aberto (os endereços podem ser conferidos nas referências).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2023
  • Aceito
    28 Fev 2024
  • Publicado
    04 Mar 2024
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