Resumo
Este artigo tem como objetivo identificar a atuação do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) no processo de judicialização de saúde. Para isso, analisamos sua atuação judicial e extrajudicial e as estratégias utilizadas pelos seus membros no controle das políticas públicas de saúde. Adotamos os métodos quantitativo e qualitativo, realizando o levantamento de dados sobre o número da atuação judicial e extrajudicial, coleta de documentos e informações no site do MPSP e do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, análise sistemática dos documentos e entrevistas semiestruturadas. Foi possível verificar que a judicialização representa apenas parte da atuação do MPSP na política em questão. Uma parte significativa dessa atuação acontece pela via extrajudicial, sem a interação da instituição com o Poder Judiciário. Constatamos que, em ambas as atuações, judicial e extrajudicial, o MPSP não privilegia direitos coletivos. No caso das ações civis públicas, o foco na tutela individual pode levar a grandes perdas na discussão sobre direitos coletivos; no caso da sua atuação extrajudicial, apesar de estar focada na tutela coletiva, não está direcionada ao acesso a direitos sociais.
Ministério Público; judicialização da saúde; atuação judicial; atuação extrajudicial; direito à saúde
Abstract
This article aimed to identify the role of the Public Prosecutor’s Office of São Paulo (MPSP) in the health judicialization process. Therefore, we analyze their judicial and extrajudicial activities and the strategies used by their members in the control of public health policies. We adopted quantitative and qualitative methods, conducting data of judicial and extrajudicial actions, collecting documents and information on the website of the MPSP and the Court of Justice of São Paulo, systematic analysis of the documents and semi-structured interviews. It was possible to verify that judicialization represents only a part of the performance of MPSP in health policy. A significant part of this performance takes place through the extrajudicial route, without the interaction of the institution with the Judiciary. We found that in both actions: judicial and extrajudicial, the MPSP does not focus on collective rights. In the case of class actions, the focus on individual protection can lead to great losses in the discussion about collective rights; and in the case of its extrajudicial performance, despite being focused on collective protection, it is not directed to the diffusion of social rights.
Brazilian Public Prosecutor’s Office; judicialization; judicial performance; extrajudicial performance; right to health
INTRODUÇÃO 1 1 Este artigo é fruto da dissertação de mestrado de Rayane Vieira Rodrigues, intitulada Ministério Público, judicialização e atuação extrajudicial em saúde: o caso do MPSP , sob orientação da professora Vanessa Elias de Oliveira.
As teorias que tratam da democracia representativa afirmam que o controle sobre eleitos é central no campo da representação política ( ARANTES et al. , 2010ARANTES, Rogério Bastos et al . Controles democráticos sobre a administração pública no Brasil: Legislativo, tribunais de contas, Judiciário e Ministério Público. In: LOUREIRO, Maria Rita; ABRUCIO, Fernando Luiz; PACHECO, Regina Silva (orgs.). Burocracia e política no Brasil: desafios para o Estado democrático no século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2010. v. 26, p. 109-147. ). Todavia, instrumentos efetivos e continuados de controle devem ser implementados com intuito de monitorar não apenas representantes eleitos, mas também burocratas, já que os últimos também influenciam no processo de políticas públicas.
Esse processo se dá pelo que parte da literatura chama de accountability horizontal, que, segundo O’Donnell (1998)O’DONNELL, Guillermo. Accountability horizontal e novas poliarquias. Lua Nova: Revista de Cultura e Política , [ s.l. ], n. 44, p. 27-54, 1998. , trata-se da existência de agências estatais que exercem o controle de outros agentes, podendo, inclusive, impor sanções e impeachment quando provado o ilícito. No Brasil, as últimas décadas foram marcadas pela expansão e institucionalização de órgãos e mecanismos de fiscalização do poder público ( ARANTES e MOREIRA, 2019ARANTES, Rogério Bastos; MOREIRA, Thiago. Democracia, instituciones de control y justicia bajo la óptica del pluralismo estatal. Opinião Pública , Campinas, v. 25, n. 1, p. 97-135, 2019. ). Essa expansão trouxe, concomitantemente, a interferência dessas agências, voltadas a exercer accountability horizontal e fiscalizar a conduta de atores estatais no ciclo de políticas públicas ( ARANTES et al. , 2010ARANTES, Rogério Bastos et al . Controles democráticos sobre a administração pública no Brasil: Legislativo, tribunais de contas, Judiciário e Ministério Público. In: LOUREIRO, Maria Rita; ABRUCIO, Fernando Luiz; PACHECO, Regina Silva (orgs.). Burocracia e política no Brasil: desafios para o Estado democrático no século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2010. v. 26, p. 109-147. ). Entre elas, destaca-se o Ministério Público (MP), cuja atuação afeta a conduta de governantes e burocratas e também as próprias políticas públicas.
Fruto do processo de construção institucional que culminou na Constituição de 1988, ao MP foi concedido alto grau de autonomia, combinado com poucos instrumentos de accountability ( KERCHE, 2007KERCHE, Fábio. Autonomia e discricionariedade do Ministério Público no Brasil. Dados – Revista de Ciências Sociais , Rio de Janeiro, v. 50, n. 2, p. 259-279, 2007. e 2009KERCHE, Fábio. Virtude e limites: autonomia e atribuições do Ministério Público no Brasil. São Paulo: Edusp, 2009. ). Apesar de os políticos terem a possibilidade de emendar a Constituição, modificar a legislação infraconstitucional ou interferir no orçamento do MP, ainda assim há a garantia institucional de ampla autonomia e discricionariedade.
No que tange à discricionariedade do MP, esta reside, principalmente, no que diz respeito à liberdade de escolher quais processos serão levados adiante, sobretudo nas funções de fiscalização de políticos e burocratas ( KERCHE, 2007KERCHE, Fábio. Autonomia e discricionariedade do Ministério Público no Brasil. Dados – Revista de Ciências Sociais , Rio de Janeiro, v. 50, n. 2, p. 259-279, 2007. ; OLIVEIRA, LOTTA e VASCONCELOS, 2020OLIVEIRA Vanessa Elias de; LOTTA, Gabriela; VASCONCELOS, Natália Pires de. Ministério Público, autonomia funcional e discricionariedade: ampla atuação em políticas públicas, baixa accountability . Revista de Estudos Empíricos em Direito , [ s.l. ], v. 7, n. 1, p. 181-195, abr. 2020. ). Esse nível de discricionariedade é exacerbado pelo privilégio de propor Ação Civil Pública (ACP) e pelo monopólio do Inquérito Civil (IC). Mesmo que o MP não seja o único legitimado a propor ACP, a instituição lidera a utilização desse instrumento ( CNJ, 2018CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Ações coletivas no Brasil: temas, atores e desafios da tutela coletiva. Relatório Analítico Propositivo. Justiça Pesquisa: Direitos e Garantias Fundamentais, 2018. ). Além disso, parte dos conflitos é resolvida por meio de instrumentos extrajudiciais, ou seja, sem passar pelo Judiciário.
As amplas autonomia e discricionariedade, sem controle externo, têm implicações para a política e as políticas públicas. Na política, o caso Lava Jato explicitou os problemas causados pelo poder do MP ( AVRITZER e MARONA, 2017AVRITZER, Leonardo; MARONA, Marjorie. A tensão entre soberania e instituições de controle na democracia brasileira. Dados – Revista de Ciências Sociais , Rio de Janeiro, v. 60, n. 2, p. 359-393, 2017. ; ARANTES e MOREIRA, 2019ARANTES, Rogério Bastos; MOREIRA, Thiago. Democracia, instituciones de control y justicia bajo la óptica del pluralismo estatal. Opinião Pública , Campinas, v. 25, n. 1, p. 97-135, 2019. ). Nas políticas públicas, muito vem sendo decidido pelo MP e seus membros, sem controle social ou administrativo. Promotores decidem sobre as políticas públicas das mais variadas áreas e interferem diretamente na sua gestão ( ARANTES, 2019ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público, política e política pública. In: OLIVEIRA, Vanessa Elias de (org.). Judicialização de políticas públicas no Brasil . Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019. p. 95-122. ).
Nesse contexto, o objetivo deste artigo é compreender o papel do MP na judicialização da saúde. Analisamos sua atuação judicial e extrajudicial e as estratégias utilizadas pelos seus membros no controle dessa política. Na discussão sobre judicialização das políticas públicas, saúde é um dos temas mais analisados, porém pouco se fala sobre a atuação do MP. Para tanto, estudou-se o caso do Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) por meio dos métodos quantitativo e qualitativo, e foram realizados levantamento de dados sobre o número da atuação judicial e extrajudicial, coleta de documentos e informações no site do MPSP e do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), análise sistemática dos documentos e entrevistas semiestruturadas. A pergunta a qual a pesquisa procurou responder foi: “Quais as estratégias de atuação do MPSP na defesa do direito à saúde?”.
Nesse caso, a política de saúde foi selecionada pois, além de ser a área de política pública que recebe mais atenção nos estudos sobre judicialização, é a que torna mais evidente a escassez de investigações sobre o papel e a atuação do MP, inclusive no que diz respeito à sua atuação extrajudicial. Isto é, o estudo da área em questão oferece insumos e dados suficientes para comparação com resultados de pesquisas anteriormente realizadas, o que seria difícil de ser feito em outras áreas de políticas públicas, especialmente pela escassez de dados e de produções sobre elas.
Foi possível verificar que a judicialização representa apenas uma parte da atuação do MPSP. Uma parte significativa dessa atuação acontece pela via extrajudicial, sem a interação da instituição com o Poder Judiciário. Sobre o perfil das ACPs (atuação judicial) e dos procedimentos extrajudiciais (atuação extrajudicial), estes diferem em muitos aspectos. As ACPs propostas pelo MPSP indicam uma atuação voltada à defesa de direitos individuais, enquanto a extrajudicial está voltada à defesa do direito do consumidor e a questões de improbidade administrativa. Constatou-se, portanto, que em ambas as atuações, judicial e extrajudicial, o MPSP não privilegia os direitos coletivos e sociais. No caso das ACPs, o foco na tutela individual pode levar a grandes perdas na discussão sobre direitos coletivos; no caso da sua atuação extrajudicial, apesar de estar focada na tutela coletiva, não está direcionada ao acesso a direitos sociais.
A pesquisa aponta a relevância de aprofundar a investigação da atuação extrajudicial, ampliando a análise para a compreensão do enquadramento de boa parte dos ICs ao tema da improbidade administrativa; a interação entre outras instituições e o MP; e os efeitos de sua atuação nas políticas públicas. Sobre o último ponto, ainda que seja de extrema importância compreender os resultados dessa atuação na política ou nas políticas públicas, esse não será o foco deste trabalho.
O artigo está estruturado em cinco seções, para além da presente introdução. Iniciamos o texto com o debate sobre a judicialização da política de saúde. Posteriormente, apresentamos a principal literatura sobre a atuação judicial e extrajudicial do MP, bem como sua importância no processo de judicialização das políticas públicas. Na terceira seção, apresentamos o método para a coleta dos dados, os quais são examinados em detalhes na quarta seção. Na penúltima seção, discutimos os resultados à luz da literatura, assim como futuras agendas de pesquisa. Por fim, tecemos as considerações finais.
1. JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA DE SAÚDE
A judicialização das políticas públicas pode ser definida como um processo de “crescente utilização do sistema de justiça, para o questionamento de falhas ou omissões na produção de políticas públicas ( policies )” ( OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, Vanessa Elias de (org.). Judicialização de políticas públicas no Brasil . Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019. , p. 18). Nesse caso, o sistema de justiça passa a ser intermediário na elaboração e implementação de políticas, é em tal contexto que ocorre a judicialização. O MP e a Defensoria Pública tornaram-se atores centrais na formulação das demandas sobre políticas públicas levadas aos juízes, e os movimentos da sociedade civil, de forma direta ou por meio de instituições do sistema de justiça, também passaram a inserir suas demandas nos tribunais.
As áreas de políticas públicas passíveis de judicialização são diversas, reflexo da amplitude de direitos garantidos na Constituição Federal de 1988, mas saúde e educação são os temas mais tratados pela literatura ( OLIVEIRA, 2019OLIVEIRA, Vanessa Elias de (org.). Judicialização de políticas públicas no Brasil . Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019. ). Entre as principais instituições/atores que podem provocar o Judiciário, o MP se destaca ( CNJ, 2018CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Ações coletivas no Brasil: temas, atores e desafios da tutela coletiva. Relatório Analítico Propositivo. Justiça Pesquisa: Direitos e Garantias Fundamentais, 2018. ), mas o mesmo não acontece na produção acadêmica sobre o fenômeno.
No que diz respeito aos trabalhos que tratam da judicialização da saúde, a literatura se encontra bastante avançada quando comparada com outras áreas de políticas públicas. As produções acadêmicas também se destacam pelas diferentes abordagens disciplinares, o que contribui para que as pesquisas sejam realizadas sob diferentes perspectivas e utilizem diferentes arcabouços teóricos e métodos para interpretação do fenômeno. No entanto, são poucos os trabalhos que incorporam em suas análises o papel do MP, apesar de ser ele um importante ator político, muito atuante no processo de judicialização.
A judicialização da saúde no Brasil passa a ser debatida pela literatura a partir das ações que demandam medicamentos antirretrovirais para o combate à Aids ( SCHEFFER, 2009SCHEFFER, Mário. Judicialização e incorporação de tecnologias: o caso dos medicamentos para tratamento da Aids no sistema único de saúde. In: KEINERT, Tânia Margarete Mezzomo et al. (orgs.). As ações judiciais no SUS e a promoção do direito à saúde . São Paulo: Instituto de Saúde, 2009. p. 129-138. ; ENGELMANN e CUNHA FILHO, 2013ENGELMANN, Fabiano; CUNHA FILHO, Marcio Camargo. Ações judiciais, conteúdos políticos: uma proposta de análise para o caso brasileiro. Revista de Sociologia e Política , Curitiba, v. 21, n. 45, p. 57-72, mar. 2013. ). O aumento do número de óbitos e a centralidade dada pela mídia ao tema geraram grande comoção internacional. Movimentos sociais passaram a pressionar o governo com o intuito de que este adotasse políticas públicas voltadas aos portadores da doença ( PEPE et al ., 2010PEPE, Vera Lúcia Edais et al . Caracterização de demandas judiciais de fornecimento de medicamentos “essenciais” no estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 26, n. 3, p. 461-471, mar. 2010. ; VIEIRA e ZUCCHI, 2007VIEIRA, Fabiola Sulpino; ZUCCHI, Paulo. Distorções causadas pelas ações judiciais à política de medicamentos no Brasil. Revista de Saúde Pública , [ s.l. ], v. 41, n. 2, p. 214-222, 2007. ).
Após o sucesso obtido no caso da Aids, abriu-se espaço para judicialização de medicamentos para tratamento de doenças como hepatite C, artrite, diabetes, entre outras ( BORGES e UGÁ, 2009BORGES, Danielle da Costa Leite; UGÁ, Maria Alicia Dominguez. As ações individuais para o fornecimento de medicamentos no âmbito do SUS: características dos conflitos e limites para a atuação judicial. Revista de Direito Sanitário , São Paulo, v. 10, n. 1, p. 13-38, mar./jul. 2009. ). No entanto, as ações coletivas para acesso a medicamentos antirretrovirais, típicas do primeiro momento da judicialização, perderam espaço para as ações individuais. Essas ações, apesar de utilizarem-se do instrumento processual da ACP, adotam como conteúdo a defesa de direitos individuais ( CNJ, 2018CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Ações coletivas no Brasil: temas, atores e desafios da tutela coletiva. Relatório Analítico Propositivo. Justiça Pesquisa: Direitos e Garantias Fundamentais, 2018. ), como também foi observado por esta pesquisa.
As críticas relacionadas à judicialização da saúde dizem respeito a cinco características desse fenômeno: uso das ações individuais, incapacidade do Judiciário em pensar o problema como uma questão social e complexa que não se resolve com oferta de um medicamento, ações que privilegiam pessoas com maior nível de renda, distorção das competências federativas e favorecimento da indústria farmacêutica.
O tratamento individualizado produz distorções no sistema de saúde, além de ser ineficiente no que diz respeito à divisão justa dos recursos públicos, seguindo o princípio da equidade que sustenta o Sistema Único de Saúde (SUS). Tratando dos problemas mais específicos que o processo de judicialização da saúde tem apresentado, pesquisas empíricas acerca do perfil dos demandantes e das decisões judiciais revelam, ainda, distorções na definição de competência federativa ( WANG et al ., 2014WANG, Daniel Wei et al . Os impactos da judicialização da saúde no município de São Paulo: gasto público e organização federativa. Revista de Administração Pública , Rio de Janeiro, v. 48, n. 5, p. 1191-1026, set./out. 2014. ; MESSEDER et al ., 2005MESSEDER, Ana Márcia et al . Mandados judiciais como ferramenta para garantia do acesso a medicamentos no setor público: a experiência do estado do Rio de Janeiro, Brasil. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 21, n. 2, p. 525-534, mar./abr. 2005. ) e aquisição de medicamentos que não constam nas listas oficiais e de medicamentos não aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ( OLIVEIRA e NORONHA, 2011OLIVEIRA, Vanessa Elias de; NORONHA, Lincoln. Judiciary-Executive Relations in Policy Making: The Case of Drug Distribution in the State of São Paulo. Brazilian Political Science Review , [ s.l. ], v. 5, n. 2, p. 10-38, 2011. ). Além disso, há um desvirtuamento da política, pois a assistência farmacêutica acaba sendo desvinculada da assistência médica, ou seja, as receitas não são, em sua maioria, de origem do SUS ( TERRAZAS, 2010TERRAZAS, Fernanda Vargas. O Poder Judiciário como voz institucional dos pobres: o caso das demandas judiciais de medicamentos. Revista de Direito Administrativo , [ s.l. ], v. 253, p. 79-115, 2010. ). Alguns trabalhos também identificam conexões entre a indústria farmacêutica e o processo de judicialização. Soares e Deprá (2012)SOARES, Jussara Calmon Reis de Souza; DEPRÁ, Aline Scaramussa. Ligações perigosas: indústria farmacêutica, associações de pacientes e as batalhas judiciais por acesso a medicamentos. Physis – Revista de Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 22, n. 1, p. 311-329, 2012. discutem as ligações entre associações de pacientes e indústria farmacêutica, identificando a influência direta dessa indústria nas ações judiciais por medicamentos. Campos Neto et al . (2012)CAMPOS NETO, Orozimbo Henriques et al . Médicos, advogados e indústria farmacêutica na judicialização da saúde em Minas Gerais, Brasil. Revista de Saúde Pública , [ s.l. ], v. 46, n. 5, p. 784-790, 2012. também identificaram concentração de ações judiciais entre médicos e escritórios de advocacia, sugerindo a utilização da Justiça e da política pública de saúde para o favorecimento da indústria farmacêutica.
Ademais, as decisões judiciais privilegiam setores menos vulneráveis da sociedade e reproduzem desigualdades sociais ( CHIEFFI e BARATA, 2009CHIEFFI, Ana Luiza; BARATA, Rita Barradas. Judicialização da política pública de assistência farmacêutica e equidade. Cadernos de Saúde Pública , Rio de Janeiro, v. 25, n. 8, p. 1839-1849, ago. 2009. ). Medeiros, Diniz e Schwartz (2013)MEDEIROS, Marcelo; DINIZ, Debora; SCHWARTZ, Ida Vanessa Doederlein. A tese da judicialização da saúde pelas elites: os medicamentos para mucopolissacaridose. Ciência & Saúde Coletiva , [ s.l. ], v. 18, n. 4, p. 1089-1098, 2013. analisam a hipótese de que o tratamento para mucopolissacaridoses no Brasil seria um fenômeno das elites e estaria garantindo acesso a tratamento para classes mais altas, enquanto as classes baixas seriam excluídas do acesso – embora concluam sem uma posição definitiva sobre a questão, trazem dados que apresentam elementos consistentes acerca da potencial desigualdade gerada pela judicialização.
No entanto, a literatura também explicitou o outro lado da moeda. Se a judicialização gera desigualdades em alguns contextos, em outros, como no Distrito Federal, o acesso à justiça para obtenção de medicamentos é feito principalmente por intermédio da Defensoria Pública. Segundo Sant’Ana (2017)SANT’ANA, Ramiro Nóbrega. A judicialização como instrumento de acesso à saúde: propostas de enfrentamento da injustiça na saúde pública. 2017. 455 f. Tese (Doutorado em Direito) – Instituto CEUB de Pesquisa e Desenvolvimento, Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2017. , as demandas incluem ampla variedade de produtos e a maioria é relacionada a serviços e produtos já oferecidos pelas redes de atenção básica, o que demonstra falhas na política de saúde. Esse e outros estudos sugerem que o acesso à justiça também se dê pelas classes média e baixa ( DELDUQUE e MARQUES, 2011DELDUQUE, Maria Célia; MARQUES, Silvia Badim. A judicialização da política de assistência farmacêutica no Distrito Federal: diálogos entre a política e o direito. Tempus – Actas de Saúde Coletiva , [ s.l. ], v. 5, n. 4, p. 97-106, 2011. ). Diniz, Machado e Penalva (2014)DINIZ, Debora; MACHADO, Teresa Robichez de Carvalho; PENALVA, Janaina. A judicialização da saúde no Distrito Federal, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva , [ s.l. ], v. 19, n. 2, p. 591-598, 2014. também identificaram perfil diferente no Distrito Federal, onde o principal bem judicializado é o acesso a UTI, seguido por medicamentos e assistência médica. Os autores verificaram que quase a totalidade dos processos é realizada pelo defensor público e com receitas oriundas do serviço público de saúde.
Essas pesquisas chegam a diferentes conclusões acerca da distribuição de recursos públicos, pois os resultados dependem da seleção dos casos para estudo ( BIEHL et al ., 2018BIEHL, João et al . Judicialization 2.0: Understanding Right-to-Health Litigation in Real Time. Global Public Health , [ s.l. ], p. 1-10, 2018. ). Selecionar ações avaliadas pelos tribunais superiores ou inferiores gera análises de demandas de naturezas distintas. Da mesma forma, a variação do local e/ou instituição observada afeta o resultado: as Defensorias Públicas atendem sobretudo à demanda da população mais pobre ( BIEHL et al ., 2018BIEHL, João et al . Judicialization 2.0: Understanding Right-to-Health Litigation in Real Time. Global Public Health , [ s.l. ], p. 1-10, 2018. ). Essa complexidade foi recentemente enfrentada pela pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que comparou dados nacionais e apresentou um panorama mais amplo do complexo processo de judicialização da saúde no Brasil ( CNJ, 2019CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Judicialização da saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Relatório Analítico Propositivo. Justiça Pesquisa: Direitos e Garantias Fundamentais, 2019. ).
Entretanto, os trabalhos mencionados têm como foco de análise as ações judiciais. Poucos atentam para como as diferentes instituições do sistema de justiça tratam as demandas de políticas públicas. Não apenas o MP é negligenciado, como o são, especialmente, os procedimentos extrajudiciais. Estes são nossos objetos de análise: o MP e sua atuação, sobretudo a extrajudicial.
2. ATUAÇÃO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO
O MP, como parte integrante do sistema de justiça, é ator essencial na judicialização das políticas públicas. Isso se deve não apenas ao fato de a instituição deter mecanismos como a ACP e o IC para defesa de direitos, mas também ao acúmulo de atribuições da instituição, ou seja, são poucos os assuntos que não podem ser transformados em questão judicial ( KERCHE, 2009KERCHE, Fábio. Virtude e limites: autonomia e atribuições do Ministério Público no Brasil. São Paulo: Edusp, 2009. ). As nossas leis habilitam o MP a atuar no controle constitucional de leis e de atos normativos, na forma e no conteúdo das políticas públicas e no controle dos agentes políticos e sua conduta ( ARANTES, 2019ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público, política e política pública. In: OLIVEIRA, Vanessa Elias de (org.). Judicialização de políticas públicas no Brasil . Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019. p. 95-122. ).
Mesmo antes da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), diversas leis já haviam estabelecido os direitos difusos e coletivos. A Lei n. 6.938/1981, que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente, responsabilizou o MP pela ação de responsabilidade civil e criminal e é o marco jurídico inicial que assegura ao MP a defesa de direitos transindividuais ( ARANTES, 1999ARANTES, Rogério Bastos. Direito e política: o Ministério Público e a defesa dos direitos coletivos. Revista Brasileira de Ciências Sociais , [ s.l. ], v. 14, n. 39, p. 83-102, fev. 1999. ). No mesmo ano, a Lei Complementar n. 40/1981 deu nova organização ao MP e introduziu como uma de suas funções a promoção da ACP, que foi regulada apenas em 1985, a partir da Lei n. 7.347/1985.
A CF/1988 ampliou a quantidade de direitos que poderiam ser exigidos judicialmente e deu papel importante ao MP ao incluí-lo no capítulo de funções essenciais à Justiça e estabelecê-lo no art. 127 como “instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis”. Porém, foi só em 1990, com a Lei n. 8.078, que alguns aspectos da norma foram esclarecidos, como a definição de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. A institucionalização desses direitos foi acompanhada pela incumbência ao MP da promoção da ACP e do surgimento de uma nova instituição, dotada de independência institucional, em um modelo pouco comum quando comparado com organizações parecidas em outros contextos democráticos ( KERCHE, 2018KERCHE, Fábio. Independência, Poder Judiciário e Ministério Público. Cadernos CRH , Salvador, v. 31, n. 84, p. 567-580, 2018. ).
Após a CF/1988, outras leis passaram a reconhecer direitos difusos e coletivos e reforçar o papel central estabelecido constitucionalmente ao MP: normas relativas às pessoas portadoras de deficiências (1989), Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – 1990), Lei de Improbidade Administrativa (LIA – 1992), lei sobre infrações da ordem econômica (1994), lei da biossegurança e técnicas de engenharia genética (1995) e Lei de Responsabilidade Fiscal (2000), entre outras ( ARANTES, 2007ARANTES, Rogério Bastos. Judiciário, entre a justiça e a política. In: AVELAR, Lúcia (org.) Sistema político brasileiro: uma introdução. Rio de Janeiro: Konrad/Adenauer-Stiftung, 2007. ). O Código de Proteção e Defesa do Consumidor (CDC) inseriu o inciso IV ao art. 5 o da Lei de Ação Civil Pública, com a possibilidade de que órgãos legitimados para a propositura de ACP pudessem firmar compromisso de ajustamento de conduta, instrumento também consagrado em 1990 no ECA.
A partir da promulgação da CF/1988, os instrumentos de atuação extrajudicial foram disciplinados pela Lei Orgânica Nacional (Lei n. 8.625/1993), Lei Orgânica do Ministério Público da União (Lei Complementar n. 75/1993) ( OLIVEIRA, ANDRADE e MILAGRES, 2014OLIVEIRA, Luciano Moreira de; ANDRADE, Eli Iola Gurgel de; MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Ministério Público e políticas de saúde: implicações de sua atuação resolutiva e demandista. Revista de Direito Sanitário , São Paulo, v. 15, n. 3, p. 142-161, nov. 2014. ), entre outras resoluções, especialmente as do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).
A sua independência institucional permite a utilização da ACP contra políticos e de forma independente ( CARVALHO e LEITÃO, 2010CARVALHO, Ernani; LEITÃO, Natália. O novo desenho institucional do Ministério Público e o processo de judicialização da política. Revista Direito GV , São Paulo, v. 6, n. 2, p. 399-421, jul./dez. 2010. ). Apesar de o MP não ser o único a ter legitimidade para propor ACP, ele aparece como principal ator nas ações coletivas ( CNJ, 2018CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Ações coletivas no Brasil: temas, atores e desafios da tutela coletiva. Relatório Analítico Propositivo. Justiça Pesquisa: Direitos e Garantias Fundamentais, 2018. ). Contudo, não foi apenas a possibilidade de propositura de ACP que tornou o MP uma instituição essencial para a defesa de direitos difusos e coletivos, mas também a possibilidade de atuação extrajudicial, sem a necessidade de interferência do Judiciário – o que dotou o MP de autonomia para a resolução de conflitos. Somado a isso, houve a ampliação dos direitos sociais a partir da nova Constituição, o que proporcionou, de acordo com Lemgruber et al . (2016)LEMGRUBER, Julita et al . Ministério Público: guardião da democracia brasileira. Rio de Janeiro: CESeC, 2016. , a criação de núcleos ou promotorias especializadas no tratamento de diferentes assuntos, entre eles a saúde.
Por essa e outras razões apresentadas, o MP é uma instituição dinâmica, essencial ao processo de judicialização e à defesa de direitos prestacionais ( ASENSI, 2010ASENSI, Felipe Dutra. Judicialização ou juridicização? As instituições jurídicas e suas estratégias na saúde. Physis – Revista de Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 33-55, 2010. ). Nas palavras de Sadek (2009SADEK, Maria Tereza. A construção de um novo Ministério Público resolutivo. De Jure – Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais , Belo Horizonte, n. 12, p. 130-139, jan./jun. 2009. , p. 133), “o Ministério Público, diferentemente das demais instituições do sistema de Justiça, tem controle da agenda, ou seja, pode definir o que vai fazer, como vai fazer e quando vai fazer; ao que dará prioridade e ao que não dará prioridade”. O MP pode agir de forma independente, não necessariamente como autor de ações judiciais; a atuação judicial é apenas uma faceta entre as diversas possibilidades de controle das políticas públicas, propiciando que o MP aja com quase ou nenhum controle externo e interno.
A morosidade e a falta de conhecimento técnico dos juízes também influenciam a tendência da chamada desjudicialização das políticas públicas ( CAMBI e VANSCONCELOS, 2016CAMBI, Eduardo; VASCONCELOS, João Paulo. Desjudicialização de políticas públicas e o Novo Código de Processo Civil – contributo do Ministério Público e da advocacia pública à solução extrajudicial de conflitos. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional , Belo Horizonte, v. 16, n. 64, p. 225-251, abr./jun. 2016. ). As formas extrajudiciais de atuação, que podem ser uma etapa da judicialização ou uma forma de evitá-la, ocorrem por meio do IC, do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), das recomendações, das audiências públicas, do diálogo direto com o gestor, entre outros instrumentos. Além disso, promotores dão preferência para atuação extrajudicial como forma de evitar a morosidade da Justiça e agir de forma mais independente ( CNJ, 2018CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Ações coletivas no Brasil: temas, atores e desafios da tutela coletiva. Relatório Analítico Propositivo. Justiça Pesquisa: Direitos e Garantias Fundamentais, 2018. ). Nesse sentido, Sampaio e Viegas (2019)SAMPAIO, Mariana; VIEGAS, Rafael Rodrigues. Ministério Público: de fiscal a elaborador de políticas públicas. In: 43 o ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 2019, Caxambu. Anais do 43 o Encontro Anual da ANPOCS . Caxambu-MG, 2019. demonstram que promotores e procuradores priorizam a atuação extrajudicial na tutela coletiva. Além disso, os autores identificaram o crescimento do número de procedimentos extrajudiciais (procedimentos preparatórios, ICs e recomendações) entre os anos de 2015 e 2017.
Um dos principais instrumentos utilizados por essa instituição é o IC. A abertura de um IC pode ocorrer a partir da representação, da denúncia de atores externos ou da agenda própria de seus promotores. O IC pode ocasionar uma ação judicial, um procedimento extrajudicial ou arquivamento. Os caminhos das demandas no MP podem ter diversas origens: sociedade civil, atendimento ao público ou de ofício do MP. Essas demandas passam pelo filtro do MP e as escolhidas podem resultar na abertura de Procedimento Preparatório de Inquérito Civil (PPIC), IC, audiência pública, recomendações e TAC. Caso o problema seja solucionado, ele é arquivado; caso contrário, resulta em uma ACP. A Figura 1 , a seguir, resume o caminho que as demandas podem adotar dentro do MP.
O IC foi criado pela Lei de Ação Civil Pública em 1985, e a Resolução n. 23, de 17 de setembro de 2007, do CNMP, uniformiza esse instrumento em âmbito nacional. É um instrumento administrativo que tem como objetivo a investigação e a solução de conflitos, mediante o qual o MP pode investigar e requisitar informações. Dependendo do caso, o inquérito pode ser arquivado ou uma medida judicial ou extrajudicial pode ser adotada. O IC é extremamente importante no que diz respeito ao controle de conduta e de comportamento dos envolvidos, incluindo a própria administração pública ( ARANTES, 2019ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público, política e política pública. In: OLIVEIRA, Vanessa Elias de (org.). Judicialização de políticas públicas no Brasil . Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019. p. 95-122. ). O PPIC é instaurado para apurar notícias de irregularidades e pode ensejar um IC ou mesmo uma ACP, no caso em que as provas se mostrem suficientes.
Já o TAC é instrumento de acordo firmado entre o MP e determinado agente, previsto não só na Lei de Ação Civil Pública, mas também na Resolução n. 179, de 26 de julho de 2017, do CNMP. Tem como objetivo a garantia de direitos difusos e coletivos, individuais homogêneos e outros, adequação da conduta às exigências constitucionais e com eficácia de título executivo. Caso o acordo não seja cumprido, o MP terá de acionar o Poder Judiciário.
As Recomendações não têm caráter coercitivo; elas são um instrumento pelo qual o MP alerta, em ato formal, por razões jurídicas e com objetivo de persuadir seu destinatário, que este pratique ou deixe de praticar determinados atos. Esse instrumento está previsto na Lei Orgânica do Ministério Público (Lei n. 8.625/1993) e disciplinado na Resolução n. 164, de 28 de março de 2017.
Por fim, a realização de audiência pública está prevista no art. 27, parágrafo único, IV, da Lei Orgânica do Ministério Público, e foi regulamentada pela Resolução n. 82, de 29 de fevereiro de 2012, do CNMP. As audiências públicas são reuniões abertas para todos os setores da sociedade e têm como objetivo discutir e oferecer elementos que embasem decisões do MP e/ou prestar contas de atividades desenvolvidas.
No entanto, apesar de não fazer parte dos objetivos desta pesquisa, essas formas de atuação extrajudicial não encerram o campo de atuação que o MP pode adotar na defesa de direitos coletivos. Alguns exemplos são os termos de cooperação técnica, fóruns, grupos de trabalho, materiais informativos e associações e promotores e/ou procuradores. Além disso, também existem os procedimentos administrativos, conforme Resolução n. 174, de 4 de julho de 2007, instrumentos que têm como objetivo acompanhar o cumprimento do TAC, fiscalizar de forma continuada políticas públicas ou instituições, apurar fato que enseje a tutela de interesses individuais indisponíveis e embasar outras atividades não sujeitas a IC ( SAMPAIO e VIEGAS, 2019SAMPAIO, Mariana; VIEGAS, Rafael Rodrigues. Ministério Público: de fiscal a elaborador de políticas públicas. In: 43 o ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS, 2019, Caxambu. Anais do 43 o Encontro Anual da ANPOCS . Caxambu-MG, 2019. ).
A atuação extrajudicial também é chamada de juridicização, ou seja, quando os conflitos são discutidos sob o ponto de vista jurídico em momentos pré-processuais ( ASENSI, 2010ASENSI, Felipe Dutra. Judicialização ou juridicização? As instituições jurídicas e suas estratégias na saúde. Physis – Revista de Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 33-55, 2010. ). De acordo com Asensi (2010)ASENSI, Felipe Dutra. Judicialização ou juridicização? As instituições jurídicas e suas estratégias na saúde. Physis – Revista de Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 33-55, 2010. , sobre as estratégias jurídicas na saúde, esse processo é marcado (i) pela negociação e pelo predomínio do consenso pelo diálogo; (ii) pela escolha de estratégias que implementam recursos, diretriz e compromissos em um dado período; (iii) pela incorporação da sociedade civil para formulação de consensos; e (iv) pela pluralidade na interpretação judicial. Por fim, (v) são selecionadas estratégias de solução de problemas condizentes com a realidade e com as demandas apresentadas.
Porém, essas comparações entre a atuação judicial e a extrajudicial devem ser interpretadas com cautela e crítica, já que ainda existem poucos estudos sobre os efeitos dessa atuação nas políticas públicas, o que torna tal comparação pouco confiável. Além disso, mesmo que o objetivo de atuar extrajudicialmente seja garantir que a resolução dos conflitos assuma uma caraterística mais eficiente, isso não significa, necessariamente, que isso aconteça na prática. Ainda assim, Asensi et al . (2015)ASENSI, Felipe Dutra et al . O judicial e o extrajudicial: Ministério Público e direito à saúde no Brasil. A&C – Revista de Direito Administrativo & Constitucional , Belo Horizonte, v. 15, n. 60, p. 179-205, abr./jun. 2015. , ao tratar de judicialização e juridicização, observaram promotores que identificam a atuação extrajudicial mais célere na resolução de conflitos, pois permite maior aproximação do MP com a sociedade civil e o Estado.
A identificação da atuação extrajudicial como mais célere por parte dos promotores não foi comprovada por meio da análise dos resultados das políticas públicas que passaram pelo MP. Resolução célere de conflitos também não significa, necessariamente, uma relação harmoniosa entre MP, Estado e sociedade civil. Ainda que este trabalho não tenha como objetivo examinar o efeito ou resultado dessa atuação, o perfil dos procedimentos extrajudiciais ainda merece mais aprofundamento e análise empírica para que de fato possamos compreender o uso que a instituição faz desses instrumentos e seu sentido. Outro fator importante é a relação que se estabelece entre a instituição e os diferentes alvos de sua atuação. Se, em um primeiro momento, pode parecer positiva uma atuação mais resolutiva do MP e a possibilidade de evitar a morosidade da Justiça, é preciso considerar que são poucas as informações que a instituição fornece acerca desse tipo de atuação, tornando-a pouco transparente. Além disso, como ressaltado por Kerche (2009)KERCHE, Fábio. Virtude e limites: autonomia e atribuições do Ministério Público no Brasil. São Paulo: Edusp, 2009. , o instrumento do IC torna-se ainda menos accountable , já que não passa pelo Judiciário, e fica restrito ao controle interno da instituição.
Como forma de compreender melhor tanto o fenômeno da judicialização da saúde quanto a atuação extrajudicial da instituição na saúde, adotamos os métodos qualitativo e quantitativo.
3. METODOLOGIA
Para analisarmos a atuação judicial e extrajudicial do MP, a coleta de dados foi dividida em três momentos: no primeiro, foram mapeados os números e o perfil da atuação extrajudicial; no segundo, foi realizada a coleta de ACPs propostas pelo MP para análise da atuação judicial; por fim, foram realizadas entrevistas semiestruturadas.
Diferentes métodos foram utilizados na etapa de levantamento de dados devido à dificuldade de acessá-los por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), já que o pedido pelo conteúdo dos processos não foi atendido. Ademais, os dados não são disponibilizados de forma aberta no site institucional. Essas questões dificultam o acesso aos dados e exigem o desenvolvimento de ferramentas mais sofisticadas, o que não está de fato disponível para qualquer público. Trata-se de um aspecto de extrema importância, porque em entrevistas foi possível captar que, para o controle de políticas públicas, os promotores dão preferência para esse tipo de atuação. Isto é, parte relevante da atuação do MP é de pouco conhecimento da população, apresentando, inclusive, grandes desafios para a compreensão por parte de pesquisadores.
Na primeira etapa, foi construído um Web Scraper 2 2 Web Scraper é um método de coleta de dados na web que permite a raspagem de um grande número de informações de forma automática. para a coleta de dados referentes à atuação extrajudicial do MPSP. No momento de realização da pesquisa, o acesso às páginas se deu na seguinte ordem: abertura da página inicial do site do MPSP, 3 3 Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/home/home_interna . Acesso em: 14 jun. 2022. seguida pela página de consulta de procedimentos. 4 4 Disponível em: https://sismpconsultapublica.mpsp.mp.br/ . Acesso em: 14 jun. 2022. A partir de então, acessamos as páginas (1) de consulta de Inquéritos Civis, Termos de Ajustamento de Conduta, Procedimentos Preparatórios de Inquéritos Civis, Inquéritos Policiais e Procedimentos Investigatórios Criminais, 5 5 Disponível em: https://sismpconsultapublica.mpsp.mp.br/ConsultarProcedimentos/ObterProcedimentos . Acesso em: 14 jun. 2022. (2) de consulta de recomendações expedidas 6 6 Disponível em: https://sismpconsultapublica.mpsp.mp.br/ConsultarProcedimentos/Recomendacoes . Acesso em: 14 jun. 2022. e (3) de consulta de termos de ajustamento de conduta. 7 7 Disponível em: https://sismpconsultapublica.mpsp.mp.br/ConsultarProcedimentos/ObterProcedimentosTac . Acesso em: 14 jun. 2022.
O algoritmo desenvolvido coletou as informações mencionadas anteriormente sobre todos os procedimentos, página por página. 8 8 Importante notar que recentemente o site do MPSP foi reformulado, o que pode interferir na reprodução dos passos descritos. Como o objetivo do trabalho é compreender a atuação da instituição na judicialização da saúde a partir da análise de suas estratégias judiciais e extrajudiciais, o conteúdo dos documentos referentes à atuação extrajudicial foi lido na íntegra, categorizado, organizado e descrito. Essa categorização é uma contribuição importante da pesquisa, pois não existem trabalhos que tenham realizado o mesmo processo anteriormente, tratando-se, portanto, de um dado inédito.
A segunda etapa, relacionada à atuação judicial do MP, foi constituída por dados solicitados ao próprio MPSP, via LAI, com todas as ACPs propostas pela instituição no período entre 2009 e 2019. 9 9 Os dados foram coletados a partir de 2009, pois foi a partir desse ano que os procedimentos passaram a ser disponibilizados no sistema do MPSP. Para fins de comparação, foi selecionado o mesmo marco temporal para análise das ações disponíveis no site do TJSP. O MPSP atendeu à solicitação e forneceu uma lista com 1.939 ações. De posse do número das ações, foi possível realizar a coleta do conteúdo das ACPs no site do TJSP, 10 10 Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/ . Acesso em: 14 jun. 2022. via Web Scraper. Nesse caso, o algoritmo foi elaborado no software R por meio dos pacotes Rselenium e rvest. Tal algoritmo de extração foi construído em duas etapas. A primeira visou atender a dois objetivos: verificar se o número do TJSP é relacionado a um processo restrito ou não, 11 11 ACPs restritas estão sob segredo de Justiça e só podem ser acessadas mediante o uso de uma senha específica. e, caso não fosse restrito, armazená-lo na página com as informações detalhadas. Para tanto, após ser realizado o login no site do TJSP, o algoritmo buscou todos os 1.368 processos com números do TJSP com 25 caracteres (quantidade correta de caracteres para que se possa pesquisar o processo) em primeiro grau. Desses, 1.137 ACPs puderam ser acessadas, e uma amostra de 288 foi selecionada para leitura.
Por fim, a interpretação crítica desses documentos não poderia ser realizada sem complementação das informações com entrevistas, já que o mero conteúdo dos documentos coletados não é suficiente para compreender como promotores atuam. Por esse motivo, e como forma de oferecer um quadro ainda mais confiável acerca da atuação do MPSP, foram realizadas entrevistas semiestruturadas.
Para as entrevistas, foram coletados nomes de promotores que constavam como autores de ACPs, aqueles presentes em procedimentos administrativos e indicações. As entrevistas foram realizadas presencialmente, quando possível, e a distância, por chamada de vídeo. Além de promotores com atribuição na área de saúde pública, foram incluídos promotores que trabalharam como substitutos, promotores que atuam na área de direitos do consumidor (muitos dos documentos analisados tratam desse direito), promotores com atuação especializada na área da saúde e promotores de cidades do interior que detêm atribuição geral. Ao todo, foram entrevistados nove promotores do MPSP, com aplicação de um questionário.
Na análise dos documentos identificou-se a atuação do MP em sua dimensão processual, e as entrevistas complementam esses dados ao trazer informações imprescindíveis sobre os aspectos mais estratégicos de sua atuação.
4. RESULTADOS: OS NÚMEROS DA ATUAÇÃO JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL
O Gráfico 1 indica o total de procedimentos (14.840) na área da saúde por tipo de procedimento, no âmbito do MPSP. Essa informação foi enviada pela instituição por meio da LAI, porém o conteúdo dos documentos não foi enviado. Acessamos e realizamos a análise apenas daqueles que estavam disponíveis nos sites do MPSP (no caso da atuação extrajudicial) e do TJSP (no caso das ACPs).
Para a coleta dos ICs e PPICs, foi necessária a adoção de ferramenta de coleta, como descrito anteriormente. Importante lembrar que isso implicou o acesso a um número menor de procedimentos, pois nem todos estão disponíveis no site ; outros, apesar de ser possível encontrar o número do procedimento, não apresentam nenhum documento anexado; ainda, aqueles que estão sob segredo de Justiça também não puderam ser acessados. Dessa forma, a amostra foi reduzida, o que provavelmente impediu o contato com assuntos mais sensíveis. Porém, como o objetivo era compreender as estratégias voltadas à defesa do direito à saúde e não casos específicos, a análise dos dados não ficou prejudicada.
4.1. ATUAÇÃO EXTRAJUDICIAL
Nesta etapa, os documentos analisados são fruto de buscas realizadas no site do MPSP e coletados via Web Scraper. Como mostra a Tabela 1 , foi feita a leitura de 345 ICs reunidos por meio desse instrumento. Os documentos que estavam sob sigilo não puderam ser acessados ou mesmo identificados entre aqueles classificados no tema saúde.
Do total de procedimentos, a maior parte foi arquivada sem instauração de TAC ou recomendação. Isto é, os ICs são, em sua maioria, arquivados sem que se tornem TACs ou recomendações, e a maior parte das investigações não é levada adiante. Como veremos, os promotores entrevistados afirmam que isso se dá porque, ainda na etapa de investigação, boa parte dos problemas constatados pelos promotores é resolvida. Na leitura dos documentos, a justificativa nem sempre é clara sobre o arquivamento, mas normalmente aparece como perda do objeto, resultado da resolução do conflito em questão. Por isso, essas informações precisaram ser complementadas com entrevista.
São poucos os procedimentos que levam à proposição de TACs. A leitura também demonstrou que, do total de procedimentos, apenas 11 originaram ACPs – o que corresponde a pouco mais de 3% dos 345 procedimentos extrajudiciais iniciados. Na Tabela 2 , constam os principais assuntos dos procedimentos. É possível observar que o tema mais frequente é a improbidade administrativa (39% dos casos).
De acordo com a Tabela 3 , os representados, ou seja, aqueles que são alvo dos procedimentos, são principalmente os municípios e os planos de saúde, e entre os planos de saúde a Unimed é a que mais se destaca. Hospitais e Santas Casas de saúde também são altamente demandados.
Indivíduos e anônimos são os principais demandantes nos documentos analisados. Quando se trata do alcance dos procedimentos, verificamos que a maioria lida com direitos coletivos e individuais homogêneos, como mostra a Tabela 4 .
Finalmente, os dados da atuação extrajudicial analisados demonstram que os procedimentos são, em sua maioria, arquivados e não chegam à etapa da judicialização. São poucos os TACs, e a maior parte trata do tema da improbidade administrativa, com foco nos municípios.
4.2. ATUAÇÃO JUDICIAL
Do total de ações propostas pelo MP, foi possível acessar pelo site do TJSP um total de 1.137 ACPs. Para leitura e compreensão das ACPs retornadas desse site , selecionamos uma amostra aleatória com 95% de confiança e margem de erro de 5%, resultando em 288 ações. Dessa forma, foi possível ler e compreender o perfil das ações civis propostas pelo MP. Essa etapa é importante, pois os assuntos indicados nos documentos coletados via Web Scraper não levam a compreensão tão precisa do seu teor quanto a leitura completa do documento.
Identificamos que as ACPs (da amostra analisada) tratam, em sua maioria, de interesses individuais: fornecimento de medicamentos, tratamento médico-hospitalar e internação compulsória. Do total da amostra selecionada, 53% tratam de interesses individuais, 24% de direitos difusos ou coletivos e 9% de direitos individuais homogêneos. Em 13% dos casos a identificação não foi possível.
Em relação à distribuição dos temas por ano, é possível verificar aumento da quantidade de assuntos tratados nos primeiros anos, mas o fornecimento de medicamentos mantém-se como o principal assunto, como pode ser verificado na Tabela 5 . Esse dado é condizente com achados de outras pesquisas sobre judicialização da saúde (CNJ, 2018). Em segundo lugar, encontra-se o tema de tratamento médico-hospitalar.
Na Tabela 6 , é possível verificar que os principais alvos das ACPs são os municípios. Em alguns casos, estados e municípios são réus das ações e a exigência é que sejam fornecidos medicamentos e tratamento médico-hospitalar em regime de colaboração. Esse dado reforça aquele apresentado por Wang et al. (2014) sobre a questão federativa envolvida na judicialização da saúde: o Judiciário desconsidera a divisão de competências federativas do SUS, demanda dos municípios medicamentos cujo fornecimento não está sob sua responsabilidade, mas compete aos gestores estaduais. Esse é um problema que não se encerra na atuação do MP.
O Supremo Tribunal Federal passou a defender, a partir do Tema 793, a tese da solidariedade dos entes, que permite ação judicial contra qualquer ente federativo, abrindo espaço para exigir o cumprimento das ações do ente que oferecer menos resistência. Ainda que isso tenha sido repensado no julgamento do Recurso Extraordinário 855.178, que inseriu a necessidade de “direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro”, não houve afastamento completo da tese inicial. Compreendemos que isso pode gerar grandes prejuízos para as políticas públicas, já que elas respeitam lógicas próprias em sua organização orçamentária e de responsabilidade.
O objeto das ACPs propostas pelo MPSP indica uma atuação voltada à defesa de direitos individuais. Ainda, as ações civis propostas parecem manter o status quo da judicialização da saúde no Brasil, i.e., ainda tratam dos mesmos assuntos e não realizam grandes questionamentos sobre o direito à saúde ou as políticas públicas de saúde. O foco na tutela individual, nesse caso, representa um problema no uso desse importante instrumento judicial, uma vez que ele foi instituído para o oposto, isto é, para a tutela coletiva. Ademais, o desenho das políticas públicas ou seus problemas de implementação – que impedem o acesso ao direito –, não estão sendo questionados por boa parte das ações ajuizadas, que estão voltadas exclusivamente ao atendimento de um conjunto de interesses individuais. Trata-se, portanto, de uma judicialização atomizada, ainda que com base em um dos principais instrumentos de defesa dos interesses coletivos, que é a ACP.
4.3. ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO SEGUNDO A VISÃO DE SEUS MEMBROS
A atuação extrajudicial do MP levanta importantes questões sobre discricionariedade dos promotores para lidar com as demandas sociais, em especial pelo fato de que procedimentos extrajudiciais não chegam ao Judiciário e são utilizados principalmente para controle de políticos e burocratas. Eles nascem e morrem no MP, sem nenhum controle externo. É evidente que a autonomia institucional do MP é fruto de um processo de delegação de poderes à instituição por parte dos políticos e da criação de instrumentos que garantem essa liberdade ( KERCHE, 2007KERCHE, Fábio. Autonomia e discricionariedade do Ministério Público no Brasil. Dados – Revista de Ciências Sociais , Rio de Janeiro, v. 50, n. 2, p. 259-279, 2007. ), como aqueles adotados pelo CNMP para resguardar a autonomia da instituição no que diz respeito à sua atuação na área de políticas sociais ( OLIVEIRA, LOTTA e VASCONCELOS, 2020OLIVEIRA Vanessa Elias de; LOTTA, Gabriela; VASCONCELOS, Natália Pires de. Ministério Público, autonomia funcional e discricionariedade: ampla atuação em políticas públicas, baixa accountability . Revista de Estudos Empíricos em Direito , [ s.l. ], v. 7, n. 1, p. 181-195, abr. 2020. ).
No entanto, ao tomar a autonomia como fato já reconhecido pela literatura e fortalecido pelas leis evidenciadas anteriormente, faz-se necessário discutir o nível de discricionariedade dos promotores no que se refere à defesa de direitos coletivos e ao controle de políticas públicas. Promotores podem adotar diferentes formas de atuação. Segundo Silva (2001)SILVA, Cátia Aida. Promotores de justiça e novas formas de atuação em defesa de interesses sociais e coletivos. RBCS – Revista Brasileira de Ciências Sociais , [ s.l. ], v. 16, n. 45, p. 127-144, fev. 2001. , há dois tipos de promotores, os de fato e os de gabinete. Os promotores de fato são aqueles que utilizam procedimentos extrajudiciais como forma de articulação, pressão e mobilização de diferentes atores sociais, governamentais e não governamentais. Em contrapartida, os promotores de gabinete, apesar de evitarem a judicialização das demandas, optam por não lidar com questões relacionadas à implementação de serviços públicos.
Há também a diferenciação entre atuação demandista e resolutiva ( OLIVEIRA, ANDRADE e MILAGRES, 2014OLIVEIRA, Luciano Moreira de; ANDRADE, Eli Iola Gurgel de; MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Ministério Público e políticas de saúde: implicações de sua atuação resolutiva e demandista. Revista de Direito Sanitário , São Paulo, v. 15, n. 3, p. 142-161, nov. 2014. ). A atuação demandista é aquela em que a instituição age perante o Judiciário, demanda deste a resolução dos conflitos e utiliza instrumentos judiciais. A forma de atuação resolutiva é caracterizada pela atuação da instituição como mediadora dos conflitos sociais, que privilegia o uso de instrumentos extrajudiciais. Por fim, Coslovsky (2011)COSLOVSKY, Salo. Relational Regulation in the Brazilian Ministério Publico: The Organizational Basis of Regulatory Responsiveness. Regulation and Governance , [ s.l. ], v. 5, n. 1, p. 70-89, 2011. afirma que existem dois tipos de atuação dos promotores; aqueles que estão vinculados ao escritório e utilizam, principalmente, recursos formais e visíveis da organização, e aqueles que agem de forma desviante e buscam soluções criativas para problemas.
Os trabalhos mencionados trazem luz ao uso que diferentes promotores fazem de sua discricionariedade, mas não informam como isso é realizado a partir dos instrumentos que lhes são disponibilizados, ou seja, como eles utilizam sua autonomia na atuação cotidiana. Parte da literatura que estuda empiricamente a atuação extrajudicial do MP vê nesse processo uma qualidade, por significar a não judicialização e uma atuação mais ágil, mas desconsidera o debate mais profundo acerca dos limites que outras instituições e a própria sociedade detêm sobre o controle desse tipo de procedimento.
Neste trabalho, as entrevistas não tiveram como objetivo pensar em uma categorização ou diferentes formas de atuação por parte dos promotores, mas compreender de forma geral o sentido da atuação e aprofundar o entendimento sobre os dados apresentados anteriormente. Foi possível levantar informações importantes sobre a preferência pela atuação extrajudicial e a relação que promotores estabelecem com a administração pública.
Sobre a escolha da atuação extrajudicial, segundo todos os promotores entrevistados, é a melhor forma de resolver os conflitos, já que, quando as demandas são levadas para o Judiciário, eles perdem o controle sobre o que será decidido, além do tempo excessivo de demora da decisão. Ademais, a atuação extrajudicial envolve não apenas procedimentos tradicionais (PPIC, IC, TAC, recomendações e audiências públicas), mas também reuniões, ligações, conversas informais e Procedimentos Administrativos (PANI e PAA). Os TACs não parecem ser utilizados com muita frequência, e, conforme alguns relatos dos entrevistados, a administração pública tem receio de se comprometer com a assinatura de um acordo.
Eu acho tudo isso muito mais efetivo, a partir do momento que você entra com um ACP, você deixa de ser protagonista daquele processo . Embora você seja o autor da ação, ele passa a seguir no tempo do Judiciário, ele segue um processo judicial, é o juiz que está comandando. Então, a gente perde um pouco a liberdade de tomar determinadas atitudes , muito embora dentro do processo, em qualquer momento a gente possa fazer um acordo. A experiência foi mostrando que, muitas vezes, quando a gente chama os envolvidos, principalmente o Poder Público para conversar, às vezes não é falta de vontade do Poder Público, mas ele não saber exatamente qual decisão tomar. Ajuda muito quando o MP participa e começa a pensar junto quais são as estratégias e soluções daquele caso. A gente vai aproximando as pessoas, então a atuação enquanto um agente político é muito mais efetiva, é muito mais interessante do que ser autor de uma ação civil pública. (Promotora 9, grifos nossos)
No que diz respeito às demandas por medicamentos, alguns promotores decidem atuar apenas como fiscal da lei, poucos são os que afirmaram ajuizar a ação para a oferta de medicamentos. Ainda que o número de ações judiciais nesse tema seja muito alto, isso não quer dizer que todos os promotores estejam ajuizando esse tipo de ação. Mesmo que a atuação de alguns esteja principalmente voltada para ajuizar ACPs, outros podem adotar outro perfil de atuação.
Eu sempre fiz a opção de não atuar enquanto autora de ações individuais, o MP nessas ações sempre participava, que é um pleito contra o Poder Público, seja através do Estado ou do município. Então existia intervenção obrigatória do MP, eu preferia participar do processo como custos legis e não como autora. Isso me dava uma liberdade maior de definir alguns critérios para o posicionamento quanto à concessão ou não dos medicamentos. Eu sei que têm colegas [...] que têm volume muito grande de ações de medicamentos [...]. Como eu não tinha essa estrutura e as matérias envolvendo a questão de medicamento de tratamento é algo que foge do meu conhecimento, eu sempre achava melhor atuar enquanto promotora como custos legis para poder ter a liberdade de procurar as informações. Consultava muito os bancos de dados, a medicina baseada em evidência, para poder ter essa informação e fazer análise um pouco mais técnica nos processos. (Promotora 9)
Ademais, muitos promotores afirmaram que várias demandas individuais são repassadas para a defensoria, sobretudo nos casos relacionados a medicamentos.
O MP também atua em parcerias formais e informais, compartilha informações e utiliza de técnicos da administração pública para qualificar sua atuação. Essas parcerias são de extrema importância, principalmente em um contexto em que a instituição tem pouca capacidade de oferecer suporte técnico para os promotores de todo o estado. Além disso, elas também são um meio de elaborar e implementar políticas públicas, como é o caso do Acessa SUS, política pública elaborada e executada em parceria com instituições do Sistema de Justiça e Administração Pública.
Eu formei parcerias, e vou dizer assim, parcerias informais, isso foi, não houve um termo de cooperação, não houve um documento formalizando essas parcerias, isso se formava na base do diálogo e da convivência diária com médicos, com profissionais, com os próprios gestores do SUS. Diretores de departamento das secretarias municipais de saúde, principalmente aqueles responsáveis pelas triagens, pela regulação dos atendimentos e dos medicamentos, então a gente formava essas parcerias antes de entrar na Justiça, ou antes de requisitar a entrega dos medicamentos, nós submetíamos para eles para uma avaliação prévia. (Promotor 1)
Os promotores afirmaram lidar com diversas fontes de informação: recebem denúncias de funcionários da área de saúde, da população, denúncias anônimas, por meio da ouvidoria, por meio do atendimento ao público, e atuam também com base em notícias veiculadas na imprensa, entre outros. Além disso, problemas recorrentes também os levam a atuar, mesmo que sejam reclamações de indivíduos.
“Muitos dos meus inquéritos civis foram instaurados a partir de informações que eu tinha na imprensa e instaurava de ofício. Mas recebia por e-mail coisas da ouvidoria” (Promotora 9).
Esse fato permite ao promotor ampla discricionariedade, ficando a seu cargo decidir de que forma agir e quais questões investigar. A resolução que trata da instauração da notícia de fato e do procedimento administrativo (Resolução n. 174/2017) determina que toda notícia de fato e toda demanda dirigida aos órgãos de atividade-fim podem ser atendimentos, notícias, documentos, requerimentos ou representações. Possibilita também aos promotores adotar mecanismos de triagem, autuação, seleção e tratamento. Isto é, são diversas as fontes de demanda e o promotor tem a liberdade de adotar mecanismos de triagem e seleção como forma de decidir quais demandas serão investigadas.
Em relação à forma como promotores selecionam os casos a serem analisados, foi possível observar na análise anterior que os municípios são os principais demandados na atuação extrajudicial e por meio das ACPs. No entanto, existem competências administrativas definidas entre União, estados e municípios. Mesmo promotores que atuam no interior podem incluir em suas ações estados e municípios, no entanto isso não ocorre. Por isso, perguntamos a eles qual ente federativo é demandado com mais frequência. Muitos afirmaram que demandam quase sempre dos municípios, pois os pedidos são atendidos de forma mais rápida e fácil. Ainda que existam opiniões opostas, os promotores que afirmam agir dessa maneira justificaram que para demanda em saúde poderiam exigir qualquer um dos entes, mas que o município é o ente que executa mais rápido.
Além disso, no que se refere às ACPs, existe um cálculo que permite saber que juiz decidirá o caso e qual a preferência dele, ou seja, existe uma estratégia que aumenta a possibilidade de ganho do processo.
Na especialização da saúde, você pode escolher um dos entes, mas na prática os municípios que vão executar, geralmente é o município. Quando você entra com um [ente federativo] pedem para chamar outros dois, aí você coloca três. O juiz já excluiu um. A questão é entender como o juiz pensa para não atrasar o processo, esse é o problema da judicialização. (Promotor 2)
Não, e aí a prefeitura tenta incluir, eu não concordo [respondendo à pergunta: atua fazendo pedidos para prefeitura, você tem pedidos para o Estado de São Paulo?]. Essa tem sido uma estratégia que tem dado certo. Porém, se é uma cirurgia, a prefeitura vai lá e faz o que deveria ter feito. Não é feito em hospital particular e nem nada, é feito no próprio hospital público referência que já seria feito se o Poder Público tivesse feito a parte dele. Vira e mexe a prefeitura quer insistir e eu falo que não, que o autor não é obrigado a suportar uma ampliação do polo passivo da relação processual, e que de mais a mais tem lá, o Supremo é tranquilo, o Tribunal de Justiça também é tranquilo, são todos solidários, eu posso selecionar 1, 2 ou 3. Mas eu optei por 1. (Promotor 4)
Essa prática gera distorções no SUS por prejudicar muitos municípios, principalmente municípios pequenos, com pouca capacidade orçamentária (WANG et al. , 2014). Essa distorção também surgiu como preocupação em uma das entrevistas:
É obrigação do MP estudar a política pública, estudar a atribuição de cada gestor do SUS – federal, estadual ou municipal – e cobrar de cada um o que é devido. Isso é essencial, eu acho muito importante para que a gente não cause distorção, o que continua ocorrendo muito, na minha opinião. (Promotor 5)
Wang et al . (2014) demonstram como a judicialização da saúde sobrecarrega o município do estado de São Paulo ao exigir que este forneça medicamentos que deveriam ser fornecidos por outros entes federativos (estado ou União). Esse efeito da judicialização da saúde já é reconhecido pela literatura e pode estar sendo reproduzido não apenas por juízes em suas decisões, mas também pelo MP, que, como autor de ACPs ou até mesmo em sua atuação extrajudicial, pode estar seguindo o mesmo padrão de atuação.
O Quadro 1 resume as informações coletadas por meio das entrevistas:
As entrevistas contribuíram para aprofundar informações já possíveis de verificar a partir dos dados e documentos coletados, mas também trouxeram importantes informações sobre como agem e o que pensam os promotores quando atuam na área da saúde.
Na próxima seção, discutiremos as informações encontradas nas entrevistas à luz dos dados quantitativos apresentados nas seções 4.1 e 4.2.
5. DISCUSSÃO: OS SENTIDOS DAS ATUAÇÕES JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA ÁREA DA SAÚDE
O objetivo deste trabalho foi entender o papel do MPSP na judicialização da saúde, e para isso foram analisadas suas estratégias judiciais e extrajudiciais na defesa do direito à saúde. O objeto das ACPs propostas pelo MPSP indica uma atuação voltada à defesa de direitos individuais, ainda que o total de ações possa gerar efeitos indiretos e coletivos à sociedade. Ainda, as ACPs propostas parecem manter o status quo da judicialização da saúde no Brasil, i.e., não trazem em si questionamentos sobre o direito à saúde ou as políticas públicas de saúde, o que, como mencionado anteriormente, ressalta o uso equivocado, atomizado, que se vem fazendo de um instrumento pensado para a defesa de direitos difusos e coletivos. Para futuras pesquisas, seria importante compreender o motivo pelo qual juízes aceitam e decidem de forma favorável nesse tipo de ação.
O que observamos é que os principais assuntos se referem à oferta de medicamentos e tratamento médico-hospitalar. Esse tema também foi identificado na leitura dos procedimentos administrativos, porém, nesse caso, foi encontrado um número expressivo de procedimentos voltados à compreensão de questões relacionadas à improbidade administrativa. Esse dado pode ilustrar três pontos: (i) boa parte da atuação do MP, no que se refere a questões que envolvem saúde, está voltada para o tema da improbidade administrativa, (ii) essas questões não são judicializadas, mas tratadas de forma extrajudicial – importante notar, inclusive, que boa parte dos ICs é arquivada; e, (iii) ainda que a tutela coletiva seja preferencialmente utilizada nos procedimentos extrajudiciais, ainda assim, ela não está discutindo direitos sociais, difusos e coletivos.
Segundo Arantes (2019)ARANTES, Rogério Bastos. Ministério Público, política e política pública. In: OLIVEIRA, Vanessa Elias de (org.). Judicialização de políticas públicas no Brasil . Rio de Janeiro: Fiocruz, 2019. p. 95-122. , a instauração de um IC já é suficiente para modificar a conduta dos envolvidos na implementação de uma política pública, encerrando os casos sem a necessidade de instauração de uma ACP. Dessa forma, o IC é visto como instrumento de coação, no qual promotores conseguem agir de forma a “corrigir” problemas percebidos.
No entanto, o desfecho do IC também pode ser analisado sob a perspectiva de “não decisão”, isto é, promotores de justiça, em vez de ajuizarem, podem arquivar casos, contando apenas com a chancela de seus superiores ( VIEGAS, 2020VIEGAS, Rafael Rodrigues. Governabilidade e lógica de designações no Ministério Público Federal: os “procuradores políticos profissionais”. Revista Brasileira de Ciência Política , [ s.l. ], n. 33, p. 1-51, 2020. ). Portanto, por tal perspectiva, essa seria uma face oculta do poder do MP, já que essa atuação extrajudicial, além de não ter nenhum controle externo, não é de conhecimento público. As ACPs, ao contrário, são a parte visível da atuação do MP, são decisões públicas, e é por isso que restringir a análise apenas às ACPs limita nossa compreensão sobre a instituição. Ainda que este trabalho não se aprofunde em investigar nenhuma dessas questões, elas são extremamente importantes para de fato compreender o sentido da atuação política do MP.
Diferentemente da atuação judicial, em que a decisão cabe ao Poder Judiciário, é na extrajudicial que o MP detém o poder de influenciar e mudar a direção das políticas públicas sem controle externo. Além disso, a atuação extrajudicial não detém mecanismos de accountability , não há controle externo sobre esse tipo de atuação e pouco se sabe sobre ela. Em outras palavras, boa parte da atuação do MPSP na saúde se dá pelo uso de um instrumento do qual a instituição detém o monopólio (inquérito civil), sobre o qual quase não se tem informações públicas e ainda não existe nenhum tipo de controle externo.
Seus membros defendem que é a partir da atuação extrajudicial que promotores detêm a capacidade de lidar com os conflitos internamente e em diálogo direto com os envolvidos de forma mais eficiente. Esse aspecto foi ressaltado pelas entrevistas realizadas e já havia sido apontado por outros estudos ( CNJ, 2019CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Judicialização da saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Relatório Analítico Propositivo. Justiça Pesquisa: Direitos e Garantias Fundamentais, 2019. ). Essa é também uma preferência da instituição e do CNMP, ou seja, não é apenas uma escolha individual do promotor, como a literatura acerca do tema sugere. Apesar da discricionariedade formal dos membros do MPSP, a análise tanto dos documentos quanto das entrevistas aponta para um padrão de atuação entre os promotores, padrão esse que pode ser observado pelos temas que são judicializados e tratados de forma extrajudicial (oferta de bens e serviços, medicamentos e tratamento médico e questões de direito administrativo) e pelas preferências de atuação, isto é, atuação extrajudicial por meio de ICs. Ressaltamos que essa informação se limita à realidade observada na pesquisa, apesar de ser um importante achado para o conhecimento sobre o tema.
No que diz respeito aos ICs e a outros procedimentos analisados, apesar de se tratar de temas coletivos, não são realizados questionamentos sobre falhas e omissões no desenho de políticas públicas ou sobre a expansão do direito, mas sim sobre o acesso a bens e serviços de saúde, direito do consumidor e casos de improbidade administrativa. Esse dado aponta uma agenda de pesquisa: a investigação dos procedimentos enquadrados no assunto improbidade administrativa, com análise não só das ações judiciais nesse tema, mas também dos ICs, já que boa parte dos dados apresentados indica atuação dos promotores nesse sentido.
Contudo, parte importante da atuação extrajudicial não pôde ser investigada neste trabalho, como o uso dos procedimentos administrativos de acompanhamento, criado para o controle e acompanhamento de políticas públicas. Como foi verificado nos dados do CNMP, esses procedimentos são amplamente adotados pelo MPSP, mas há poucas informações disponíveis sobre eles. Além disso, apesar de serem utilizados praticamente com os mesmos objetivos do IC, estão sujeitos a um controle interno ainda menor.
Ademais, mesmo que a atuação extrajudicial seja muitas vezes descrita como espaço de diálogo entre MP e outras instituições, ou até mesmo como uma forma de lidar com as políticas públicas que seja mais coerente com a realidade, é melhor considerar essa afirmação com parcimônia.
Todavia, é necessário investigar a interação política entre o MP e outras instituições, públicas e privadas, com os três Poderes ou com entidades do terceiro setor, para compreender empiricamente de que forma essas relações são estabelecidas e oferecer um quadro mais completo da atuação extrajudicial.
Foi possível notar, inclusive, que os municípios são o principal objeto de questionamento no que se refere tanto aos procedimentos extrajudiciais quanto às ACPs. Além disso, é importante investigar as relações estabelecidas entre a administração municipal e o MP.
Um dado importante é a preferência de promotores de que demandas de oferta de serviços de saúde sejam implementadas pelos municípios, sem considerar, necessariamente, as competências federativas. Essa preferência surge da leitura de que os municípios seriam mais ágeis na resposta à demanda. Além disso, sobre as ACPs, a inclusão de mais de um ente federativo, de acordo com promotores entrevistados, é também estratégica do ponto de vista jurídico e do político: do jurídico, porque depende do juiz que irá decidir sobre o caso; do político, porque sinaliza para as expectativas que os integrantes têm em relação à instituição que irá exercer controle da ação (Judiciário) e à instituição que o próprio MP irá controlar (União, estados e municípios).
Além do mais, o MPSP atua em parcerias formais e informais em busca de (i) subsídios para compreensão de como funcionam as políticas públicas; (ii) instrumentos para implementar soluções de problemas em conjunto, como no caso do Acessa SUS; e (iii) apoio técnico da administração pública para qualificar sua atuação, quando corpo técnico da administração pública ou de outras instituições realiza análises a pedido de promotores, por exemplo. Essas parcerias são de extrema importância, principalmente em um contexto em que a instituição tem pouca capacidade de oferecer suporte técnico para promotores de todo o estado, e é também uma forma de o MP participar da implementação e transformação de políticas públicas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os procedimentos extrajudiciais são amplamente utilizados pelo MPSP nas questões que envolvem a saúde, o que levanta sérias questões sobre discricionariedade e falta de accountability nessa atuação. Além disso, ressaltamos a importância de se olhar para as diferentes formas de atuação das instituições do sistema de justiça, principalmente na atuação extrajudicial, que pode gerar inúmeros efeitos para as políticas públicas.
Mesmo que esta pesquisa não tenha considerado em suas análises toda a pluralidade da atuação extrajudicial do MPSP, ou mesmo os seus efeitos, é possível afirmar que a atuação extrajudicial é ampla na área de saúde, mas ainda se faz necessário investigar a interação entre o MP e outras instituições governamentais para compreender empiricamente de que forma essas relações são estabelecidas, bem como os resultados produzidos por elas. Além disso, uma importante característica da atuação do MP é a preferência de promotores em demandar que municípios ofertem serviços de saúde, sem considerar, necessariamente, as divisões das competências federativas, fato relevante para o arranjo federativo e para a divisão de competências federativas no SUS. Por fim, a atuação extrajudicial é muito ampla e não está restrita aos TACs. Ainda, a quantidade de ICs e o grande número de arquivamentos chamam atenção.
No caso da atuação judicial, o uso da ACP para a defesa de direitos individuais, característica já encontrada em pesquisa conduzida pelo CNJ (2018), demonstra um desvio no uso de um instrumento que fora pensado para a defesa de direitos coletivos e agora é utilizado na tutela de direitos individuais. Sobre esse assunto, ainda falta compreender por que isso ocorre, mas, para isso, deve-se olhar para as duas principais instituições envolvidas: MP e Judiciário, assim como para os principais atores desse processo: promotores e juízes.
Ficou claro que, no que se refere à judicialização da saúde, o MPSP atua de forma a manter o padrão já conhecido sobre esse fenômeno, que é o foco na judicialização por medicamentos, insumos e tratamento médico-hospitalar, bem como na atuação individual ao em vez da coletiva. Por outro lado, esse dado explica apenas uma parte da atuação dos membros dessa instituição na política pública de saúde, como os demais dados aqui apresentados demonstraram.
AGRADECIMENTOS
As autoras agradecem à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pelo apoio financeiro à pesquisa.
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1
Este artigo é fruto da dissertação de mestrado de Rayane Vieira Rodrigues, intitulada Ministério Público, judicialização e atuação extrajudicial em saúde: o caso do MPSP , sob orientação da professora Vanessa Elias de Oliveira.
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2
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3
Disponível em: http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/home/home_interna . Acesso em: 14 jun. 2022.
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4
Disponível em: https://sismpconsultapublica.mpsp.mp.br/ . Acesso em: 14 jun. 2022.
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5
Disponível em: https://sismpconsultapublica.mpsp.mp.br/ConsultarProcedimentos/ObterProcedimentos . Acesso em: 14 jun. 2022.
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6
Disponível em: https://sismpconsultapublica.mpsp.mp.br/ConsultarProcedimentos/Recomendacoes . Acesso em: 14 jun. 2022.
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7
Disponível em: https://sismpconsultapublica.mpsp.mp.br/ConsultarProcedimentos/ObterProcedimentosTac . Acesso em: 14 jun. 2022.
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8
Importante notar que recentemente o site do MPSP foi reformulado, o que pode interferir na reprodução dos passos descritos.
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9
Os dados foram coletados a partir de 2009, pois foi a partir desse ano que os procedimentos passaram a ser disponibilizados no sistema do MPSP. Para fins de comparação, foi selecionado o mesmo marco temporal para análise das ações disponíveis no site do TJSP.
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10
Disponível em: https://www.tjsp.jus.br/ . Acesso em: 14 jun. 2022.
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11
ACPs restritas estão sob segredo de Justiça e só podem ser acessadas mediante o uso de uma senha específica.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
21 Out 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
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Recebido
05 Abr 2021 -
Aceito
29 Abr 2022