Open-access Reflexões sobre o legado brasileiro para consolidação de obrigações internacionais extraterritoriais em saúde global

REFLECTIONS ON THE BRAZILIAN LEGACY FOR CONSOLIDATION OF EXTRATERRITORIAL INTERNATIONAL OBLIGATIONS IN GLOBAL HEALTH

REFLEXIONES SOBRE EL LEGADO BRASILEÑO PARA CONSOLIDACIÓN DE OBLIGACIONES INTERNACIONALES EXTRATERRITORIALES EN SALUD MUNDIAL

Resumo

Este artigo é um estudo de caso avaliativo em direito internacional, com investigação de aspectos da decisiva participação da diplomacia brasileira na deflagração do processo de formação de normas internacionais que resultou na Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a Saúde Pública, bem como na Decisão de 2003 do respectivo Conselho sobre o mesmo tema, culminando com a introdução do art. 31bis no referido acordo. Confirma-se a hipótese de que a gênese dessas normas constitui exemplo prático da ocorrência de efeito irradiante de normas do regime de direitos humanos sobre outros regimes internacionais, conferindo-lhes maior coesão em sua aplicação, ao mesmo tempo em que caracterizam obrigações extraterritoriais, conforme abordagens teóricas da literatura especializada. Constata ainda que os mesmos fundamentos jurídicos serviram de base para reivindicações que levaram à flexibilização de patentes com vistas à redução de desigualdades na distribuição de vacinas durante a pandemia de covid-19, analisando ainda a participação do Brasil no pertinente processo político de fundo até seus mais recentes desdobramentos.

Palavras-chave Estratégia diplomática; patentes; direito à saúde; irradiação normativa; obrigações extraterritoriais

Abstract

This article is an evaluative case study in international law investigating aspects of the decisive participation of Brazilian diplomacy in the triggering of the process of formation of international standards that resulted in the Doha Declaration on the TRIPS Agreement and Public Health and in the 2003 Decision of the respective Council on the same topic, culminating in the introduction of art. 31bis in the aforementioned agreement. The study confirms the hypothesis that the genesis of these norms constitutes a practical example of the occurrence of a radiating effect of human rights regime norms on other international regimes, giving them greater cohesion in their application, at the same time that they characterize extraterritorial obligations, according to theoretical approaches of specialized literature. It also notes that the same legal foundations served as the basis for claims that resulted in the flexibility of patents with a view to reducing inequalities in the distribution of vaccines during the covid-19 pandemic, analyzing Brazil’s participation in the relevant political process in the background up until its most recent developments.

Keywords  Diplomatic strategy; patents; right to health; normative irradiation; extraterritorial obligations

Resumen

Este artículo es un estudio de caso evaluativo en derecho internacional que investiga aspectos de la participación decisiva de la diplomacia brasileña en el desencadenamiento del proceso de formación de estándares internacionales que resultó en la Declaración de Doha sobre los ADPIC y la Salud Pública y en la Decisión de 2003 de lo respectivo Consejo sobre el mismo tema, que culminó con la introducción del art. 31bis del citado acuerdo. El estudio confirma la hipótesis de que la génesis de estas normas constituye un ejemplo práctico de la ocurrencia de un efecto irradiante de las normas de los regímenes de derechos humanos sobre otros regímenes internacionales, dándoles mayor cohesión en su aplicación, al mismo tiempo que caracterizan obligaciones extraterritoriales según enfoques teóricos de la literatura especializada. También señala que los mismos fundamentos legales sirvieron de base para reivindicaciones que resultaron en la flexibilización de las patentes con miras a reducir las desigualdades en la distribución de vacunas durante la pandemia de covid-19, analizando en segundo plano la participación de Brasil en el proceso político pertinente hasta sus desarrollos más recientes.

Palabras clave  Estrategia diplomática; patentes; derecho a la salud; irradiación normativa; obligaciones extraterritoriales

Introdução

A efetivação de direitos econômicos, sociais e culturais (DESC) básicos mostra-se um dos grandes desafios assumidos pela comunidade internacional neste século XXI no campo dos direitos humanos em geral, notadamente a partir de amplos compromissos políticos consubstanciados nos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio de 2000, renovados sob a forma dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) em 2015. Sólidas evidências de estudos filosóficos e econômicos demonstram que tais objetivos apenas serão viáveis, em diversos países do mundo, desde que haja cooperação internacional, especialmente visando auxiliá-los na estruturação de políticas públicas de garantia massificada de bens e serviços (Sachs, 2005). E se tal desafio implicará necessariamente assistência material por meio de aporte de recursos financeiros (Assistência Oficial ao Desenvolvimento - AOD), com muito mais razão exigirá, no mínimo, abstenção de interferências externas que possam restringir programas nacionais de implementação de direitos, inclusive a demandar uma revisão geral dos impactos de normas internacionais de regência do comércio internacional nesse contexto.

Dessa forma, passam a ser reconhecidas verdadeiras obrigações “extraterritoriais” (positivas e negativas) a cargo dos Estados para garantia de DESC, com especial destaque para a temática da saúde, certamente pela sua repercussão mais imediata sobre todas as capacidades do indivíduo e maior sensibilidade que normalmente desperta na opinião pública. Corroborando esse fenômeno, constata-se o desenvolvimento de toda uma vertente da diplomacia especializada em saúde global, que envolve frequentemente aspectos de cooperação e assistência mútuas entre Estados nacionais, as quais transbordam de simples preocupações sobre segurança sanitária para alcançar também a ideia de maior solidariedade entre as nações (Kickbusch et al., 2012).

Nessa linha de raciocínio, a diplomacia brasileira voltada a temas de saúde global assumiu um papel decisivo e pioneiro na consolidação de normas que materializam de forma bastante concreta a ideia de influência do regime de direitos humanos sobre outros regimes internacionais, de modo a concretizar obrigações extraterritoriais, contribuição essa ainda não devidamente sistematizada e refletida na literatura especializada sob o viés jurídico, embora mencionada com certa frequência em análises políticas na seara das relações internacionais (Alcázar, 2008; Gómez, 2012; Castro, 2018). O presente artigo1 pretende avançar nessa lacuna de investigação na seara jurídica a partir de uma breve sistematização das estratégias adotadas pelo Estado brasileiro, que resultaram na deflagração de todo um processo de produção normativa, não só pela fixação de diretrizes interpretativas, mas pela efetiva modificação de normas internacionais positivadas. Pretende-se, assim, demonstrar a relevância histórica dessas estratégias a partir da constatação de que produziram dois relevantes avanços no plano do direito internacional contemporâneo: (a) introduziram a ideia de irradiação normativa de princípios do regime internacional de direitos humanos no regime internacional de propriedade industrial, principalmente no que se refere ao tema da proteção patentária e do acesso a medicamentos, em prol de abordagens mais solidárias em favor de populações vulneráveis; (b) explicitaram verdadeiras obrigações extraterritoriais voltadas à garantia de DESC na modalidade respeitar e proteger quanto à garantia do direito à saúde, notadamente em relação ao acesso a medicamentos.

Pretende-se, ainda, demonstrar como a recente pandemia vivenciada em todo o globo criou um ambiente deveras propício ao florescimento exatamente desses mecanismos outrora introduzidos no cenário político-jurídico internacional (GDP, 2021), com essencial participação e liderança brasileiras, pondo em maior destaque os avanços político-jurídicos mencionados. Em contraste, demonstra-se que, ao longo da referida crise em saúde global, houve um momento de recuo na posição diplomática brasileira diante da modificação de diretriz de política externa que vinha sendo seguida por sucessivos governos nessa temática. Evidencia-se ainda que, mesmo assim, o referido legado brasileiro continua a produzir sensíveis frutos no cenário global, considerando-se a utilidade concreta das inovações em tela para ensejar soluções de problemas típicos do desenvolvimento socioeconômico, a começar por questões mais prementes de saúde pública. Propõe-se, ao final, uma reflexão sobre os prejuízos decorrentes do referido recuo pontual no tocante ao capital político obtido pelo Brasil com esforços despendidos ao longo de mais de uma década na seara em foco, bem como sobre os desafios para a retomada da liderança brasileira nesse contexto.

1. A campanha internacional por acesso a medicamentos essenciais mediante flexibilização do Acordo TRIPS

Para situar adequadamente a problemática adiante abordada, deve-se rememorar que o Brasil promoveu a adequação de sua legislação interna aos termos do Acordo sobre Assuntos Relacionados ao Comércio e Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual (TRIPS) (Brasil, 1994) por meio da Lei n. 9.279/1996 (Brasil, 1996), modificando a diretriz legal anterior que excluía medicamentos, alimentos e produtos químicos do regime jurídico de propriedade intelectual e chegando mesmo a antecipar a eficácia dessa legislação, quando lhe era garantido prazo maior de transição na condição de país em desenvolvimento. Em que pese a introdução, no ordenamento jurídico brasileiro, de regime protetivo amplamente favorável a multinacionais sediadas em países desenvolvidos, o licenciamento compulsório (independente da anuência do titular da patente) foi incorporado à Lei n. 9.279/1996 (Brasil, 1996), de modo que uma patente está sujeita a essa restrição se o seu titular exercer os direitos em abuso de poder econômico. Ademais, uma licença compulsória pode ser concedida quando o produto patenteado não é explorado no Brasil ou quando a venda do produto protegido não satisfaz as necessidades do mercado (art. 68). Permitem-se ainda licenças compulsórias em casos de patentes dependentes (art. 70) e em casos de emergência nacional ou de interesse público declarados pelo Executivo federal (art. 71) (Brasil, 1996).

Com efeito, a anterior exclusão de medicamentos do regime patentário brasileiro havia impulsionado a indústria de “genéricos” (assim como ocorreu na Índia), o que gerou pressão da indústria farmacêutica perante governos dos países desenvolvidos pela implementação de normas internacionais mais rígidas sobre propriedade intelectual no âmbito do Acordo TRIPS, inclusive para restringir a aplicação das referidas flexibilidades. Como reação, houve, nesse momento histórico, um peculiar fenômeno de mobilização de governos e de organizações da sociedade civil em defesa da produção de genéricos em países como a Índia, a África do Sul e o Brasil (Ragavan; Vanni, 2021, p. 9-15).

A conhecida campanha internacional pelo acesso a medicamentos movida pelo Brasil no início da década de 2000 representou, assim, um contraponto àquela modificação no cenário jurídico, visando, ao menos, reduzir custos de políticas internas de assistência farmacêutica, resguardando a prerrogativa do país de aplicar interpretação ampla na utilização das flexibilidades do Acordo TRIPS sobre propriedade industrial no país, de modo a permitir que conferisse licenças compulsórias para viabilizar aquisição de medicamentos em situações de emergência de saúde pública (conforme art. 31, “b”, do Acordo [Brasil, 1994]).

De fato, naquele momento, a pressão exercida pelos Estados Unidos e outros países aliados à indústria farmacêutica trazia riscos à viabilidade econômica do programa brasileiro de enfrentamento da epidemia de HIV/AIDS, programa esse que fora reconhecido em diversas instâncias internacionais como pioneiro e exemplar no tratamento de pacientes em larga escala por sistemas públicos. Pretendia-se, por exemplo, limitar drasticamente as hipóteses que um membro do acordo pudesse considerar de emergência. Tal pressão teve como ápice uma demanda formal ao órgão de solução de controvérsias da Organização Mundial do Comércio (OMC), que questionava o art. 68 da lei brasileira de patentes (Lei n. 9.279/1996 [Brasil, 1996]). Embora o artigo não tratasse diretamente de licenças compulsórias em emergência pública, tornou-se representativa de todo o referido conflito de interesses e, assim, um símbolo da luta pelo acesso de países em desenvolvimento a medicamentos diante de demandas de saúde pública.

Nesse contexto, foi então deflagrada toda uma estratégia diplomática pelo governo brasileiro, que abrangeu as seguintes medidas: (a) construção de um discurso que associou a pressão formal exercida pelos Estados Unidos perante a OMC à questão mais ampla da pressão difusa sobre o país em torno da produção de medicamentos genéricos, com riscos de impacto sobre o programa nacional de enfrentamento à AIDS; (b) inserção do assunto nos fóruns políticos multilaterais relacionados ao tema da saúde no âmbito internacional (Comissão de Direitos Humanos, OMC, Organização Mundial da Saúde [OMS] e Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas [ONU]); (c) mobilização de organizações não governamentais (ONGs) no plano nacional e internacional; (d) publicação de anúncios na imprensa que pudessem atingir mais diretamente a opinião pública norte-americana e internacional; (e) mobilização diplomática para esclarecimento formal definitivo no âmbito da OMC quanto ao alcance normativo da flexibilidade do Acordo TRIPS sobre emergência pública, voltado a prevenir futuras pressões internacionais nesse particular; (f) engajamento em cooperação internacional com outros países em desenvolvimento, visando ofertar acesso a medicamentos antirretrovirais e assim angariar maior apoio entre esses beneficiários (Nunn, 2009; Flynn, 2010; Vanni, 2016).2

O resultado da mobilização brasileira, com participação de diversas ONGs e de outros governos, foi não apenas a desistência da demanda por parte dos Estados Unidos, mas também a “Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a Saúde Pública”, de 2001, proclamadora da prerrogativa dos países em desenvolvimento de deliberarem sobre os casos de emergência que justificassem licenças compulsórias, entre outros aspectos. Referida declaração representou um marco ao subordinar mais incisivamente normas de propriedade industrial a objetivos de saúde pública, aduzindo que os Estados-membros concordavam que o Acordo TRIPS não os impediria de adotar medidas para proteger a saúde pública, bem como que deveria ser interpretado e implementado de forma favorável ao direito dos aludidos membros de proteger a saúde pública e, em particular, de promover o acesso a medicamentos para todos. Ademais, reconheceram que os membros com capacidade de fabricação insuficiente ou inexistente no setor farmacêutico poderiam ter dificuldades para efetivar o licenciamento compulsório, razão pela qual se atribuiu ao Conselho do TRIPS a tarefa de encontrar solução para tal problema.

Dessa forma, a partir da dita Declaração de Doha, foram deflagrados desdobramentos políticos e jurídicos que resultaram na decisão de agosto de 2003 do referido Conselho que, mais recentemente, culminou na entrada em vigor do art. 31bis do mesmo acordo em 2017 (Abbot; Reichman, 2007; Anderson, 2009; Brasil, 2018). Esse dispositivo articula-se com aludida Declaração (cujo efeito vinculante é confirmado pelo item 5 do art. 31bis) para garantir, em linhas gerais, além de interpretações mais elásticas em relação a flexibilidades já incluídas no Acordo TRIPS em favor da saúde pública (art. 31, “b”, do Acordo) e da extensão do período de adaptação dos países em desenvolvimento a seus dispositivos (previsto no art. 66.1 do Acordo), uma ampliação de possibilidades de acesso a medicamentos mais baratos a países em desenvolvimento por meio de importações, com regramento mais específico quanto ao que consta do art. 31, “f”, do mesmo Acordo.

Dado relevante a destacar é que, para se alcançar tal resultado e superar a intensa pressão política do governo dos Estados Unidos e de outros países aliados à indústria farmacêutica (que propunham interpretações bem mais restritivas do Acordo TRIPS), foi necessária uma inédita mobilização da opinião pública global em torno do argumento de que o interesse econômico de preservação de direitos de propriedade industrial deveria ceder diante da necessidade de evitar sérias violações ao direito humano à saúde, proclamado em outros documentos jurídicos internacionais, inclusive no tocante ao acesso a medicamentos. Ou seja, buscou-se introduzir no caso uma lógica de compatibilização entre regulações comerciais e valores humanitários que concretiza exatamente a previsão teórica de um efeito de irradiação normativa entre regimes jurídicos internacionais, em um sentido de maior integração e coesão, conforme detalhado a seguir.

Os resultados obtidos com a referida campanha global renderam notável reputação internacional para o Brasil, considerando especialmente sua postura agressiva e bem-sucedida em garantir acesso a medicamentos antirretrovirais, para manter um programa pioneiro de tratamento em massa de pessoas infectadas pelo vírus HIV. Isso motivou o governo brasileiro a buscar manter e aprofundar tal prestígio por meio de políticas de cooperação internacional na área de saúde, entre outras (Gómez, 2012, p. 17). Afinal, se mesmo uma potência média poderia ofertar auxílio a outros países em desenvolvimento, muito mais se deveria esperar dos países desenvolvidos, notadamente das maiores economias do mundo.

Embora a literatura especializada já tenha documentado, em diversos momentos, a relevância e as repercussões da liderança brasileira em todo esse processo do ponto de vista político (Alcázar, 2008),3 tal fenômeno ainda carece de análise mais detalhada do ponto de vista jurídico, no sentido de enquadrá-lo nas previsões teóricas relacionadas ao processo de integração de regimes internacionais por irradiação normativa de princípios e normas de direitos humanos, bem como ao reconhecimento de verdadeiras obrigações extraterritoriais em favor de países em desenvolvimento, nas modalidades respeitar, proteger e satisfazer. A seguir, exploramos com mais vagar esse enquadramento teórico para, em seguida, demonstrar a sua aplicabilidade no recente contexto pandêmico vivenciado mundialmente, confirmando-se, assim, a enorme relevância atual das inovações outrora capitaneadas pelo Brasil, notadamente para implementação de ODS da agenda global para 2030.

2. Evidências do efeito irradiante do direito humano à saúde sobre o sistema da OMC

Sabe-se que um fenômeno debatido no âmbito do direito internacional contemporâneo é o de uma crescente fragmentação do ordenamento jurídico global com a instituição de diversos regimes regulatórios específicos independentes entre si. Nesse contexto, conforme sistematizado no conhecido relatório apresentado no âmbito da Comissão de Direito Internacional (CDI) das Nações Unidas, em 2006, sob liderança de Martti Koskenniemi (A/CN.4/L.682), um desses self-contained regimes seria justamente o dos direitos humanos. O relatório menciona, então, entre as possibilidades aventadas para tratamento desse fenômeno de fragmentação, a atribuição de uma espécie de hierarquia abrangida pela noção de obrigações especiais “integrais”, que gozariam de um tipo de precedência sobre instrumentos transacionais meramente bilaterais. Frisa haver dificuldades em enquadrar tal efeito como hipótese de aplicação de lex speciàlis, lex posterĭor ou lex superĭor, destacando que ela daria relevo ao que denomina “força normativa dos tratados de direitos humanos” (que seriam “tratados integrais ou absolutos”). Menciona, enfim, como exemplo dessa visão, a prática dos “human rights bodies” de adotar leituras das convenções sobre direitos humanos que vislumbram seu effet utile em uma extensão talvez mais ampla do que tratados comuns (United Nations, 2006, p. 127 e 216).

Assim, em contraposição à dita fragmentação, atuaria a expansão do alcance da rede protetiva formada pelas normas internacionais de direitos humanos, as quais, pelas suas características peculiares e seu substrato filosófico, tenderiam a irradiar um elemento de uniformidade no ordenamento internacional, capaz de contagiar, influenciar e redirecionar a criação, interpretação e aplicação de outras normas de direito internacional. Ramos (2013, p. 98-100) ressalta essa “força expansiva” ou efeito irradiante, reportando-se especialmente a votos do juiz Cançado Trindade no caso Argentina v. Uruguai (Pulp Mills on the River Uruguay) perante a Corte Internacional de Justiça, em que aponta, em contraste com a dita fragmentação, uma reafirmada expansão do direito internacional para regular não apenas relações interestatais, mas também intraestatais. Segundo o citado autor, a finalidade humana do Estado dará coesão ao direito internacional e às suas inúmeras ramificações, banindo qualquer alegoria de fragmentação (Ramos, 2013).

Sem pretender aprofundar as diversas possibilidades de irradiação de normas protetivas de direitos humanos sobre outros chamados self-contained regimes, põe-se em relevo neste artigo que as estratégias brasileiras em estudo resultaram em uma potente evidência prática desse caráter irradiante das normas de direitos humanos no ordenamento jurídico internacional. Tal constatação confirma a “força expansiva” atribuída a essa espécie de norma, tal como aventado no citado Relatório da CDI. Isso porque se utilizou do argumento acerca da força dos valores subjacentes à garantia solidária de tratamento para graves enfermidades para reconfigurar a interpretação e o alcance de normas comerciais de proteção à propriedade industrial do regime internacional específico do Acordo TRIPS.

Deve-se esclarecer que o objetivo desta análise não é reavivar o debate sobre referido fenômeno de fragmentação, mas tão somente demonstrar que a estratégia liderada pela diplomacia brasileira, no caso, serviu à configuração de hipótese concreta da dita irradiação normativa do regime protetivo de direitos humanos para outros regimes tidos por autocontidos, confirmando sua relevância histórica para o direito internacional. Nesse sentido, Peters (2017, p. 676-678 e 702) propõe uma renovada visão da diversificação de regimes internacionais não exatamente como fragmentação, mas sim como refinamento do direito internacional, investindo no estudo do panorama atual de técnicas empregadas em diversos casos para coordenação e harmonização de regimes internacionais. Destaca, a propósito, que uma das áreas problemáticas típicas entre as quais podem surgir tensões é especialmente a do livre comércio diante da proteção ambiental e de espécies, ou dos direitos humanos/direitos trabalhistas, e o subcampo mais discutido nesse particular, até o momento, é justamente esse último. Menciona, entretanto, a possibilidade de uma integração preventiva de potenciais conflitos mediante interação não contenciosa entre regimes e ressalta a possibilidade de ampla participação de Estados-partes, experts e outros atores interessados, em um procedimento mais inclusivo e transparente para debate de racionalidades normativas. No artigo ora proposto, delineia-se justamente, como propugna Peters (2017), um caso de integração mais avançada entre regimes internacionais, em que se supera uma posição de conflito interpretativo inicial para admitir-se uma remodelação de textos normativos a partir de consenso político e absorção de perspectivas mais plurais na produção da norma.

Anteriormente, já havia sido ensaiada a inserção da discussão sobre interferências de direitos de propriedade industrial sobre a saúde pública (a partir de demanda posta por um consórcio de ONGs) no âmbito do regime internacional dos direitos humanos, por meio da Resolução 2000/7, de 17 de agosto de 2000,4 da Subcomissão das Nações Unidas para a Promoção e Proteção dos Direitos Humanos (United Nations, 2000a). A resolução abordava a existência de conflitos reais ou potenciais entre a implementação do Acordo TRIPS e a realização de DESC em relação, inter alia, a restrições de acesso a produtos farmacêuticos patenteados e as implicações para gozo do direito à saúde, ressaltando, outrossim, a primazia das obrigações de direitos humanos sobre políticas e acordos econômicos (Helfer, 2015, p. 327). No entanto, foi na Resolução 2001/33 (sobre “acesso à medicação no contexto de pandemias como a de HIV/AIDS” [United Nations, 2001]), proposta pelo Brasil perante a Comissão de Direitos Humanos da ONU, como parte da citada campanha de acesso a medicamentos, que se reconheceu, pela primeira vez, o acesso a medicamentos como expressão do direito à saúde no plano internacional (Nunn, 2009, p. 130). Aliás, o seu item 4 tangenciou exatamente a questão que envolveu Brasil e Estados Unidos na OMC, ao conclamar os Estados a facilitarem, dentro do possível, o acesso a medicamentos em outros países e a assegurarem que suas ações como membros de organizações internacionais levassem em conta o direito humano à saúde, propagando ainda que a aplicação de acordos internacionais servisse às políticas de saúde em outros países.

Observe-se que a Resolução 2001/33 voltou-se especificamente ao direito à saúde, no contexto emblemático da epidemia de HIV/AIDS, inaugurando, assim, uma sucessão de outras resoluções, relatórios e recomendações no sistema de direitos humanos da ONU que identificaram conflitos significativos entre o regime internacional de propriedade industrial e o direito à saúde, reconhecendo-se, em linhas gerais, que o direito à saúde engloba o direito de acesso a medicamentos que salvam vidas e que esse direito tem primazia sobre a proteção à propriedade industrial. Entre os mais notáveis estão: declarações da Assembleia Geral da ONU em 2001 e 2006; resoluções da Comissão de Direitos Humanos em 2001, 2002, 2003 e 2005; um estudo de 2001 do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos; vários relatórios de relatores especiais sobre o direito à saúde; Diretrizes de Direitos Humanos para Empresas Farmacêuticas em Relação ao Acesso a Medicamentos, adotadas em 2008; uma Declaração de 2001 sobre Direitos Humanos e Propriedade Intelectual pelo Comitê do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC); um comentário geral de 2003 do Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança; e uma resolução de 2008 da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (Helfer, 2015, p. 328).

No âmbito da 12a Sessão do novo Conselho de Direitos Humanos da ONU, foi aprovada a Resolução A/HRC/12/L.23, de 25 de setembro de 2009 (United Nations, 2009), que reafirmou a conclamação dos Estados, em síntese, a tomarem medidas de modo a garantir que suas ações, como membros de organizações internacionais, levem em conta o direito de todos aos melhores padrões de saúde física e mental (reportando-se ainda às resoluções anteriores da Comissão de Direitos Humanos da mesma Organização: 2001/33, de 23 de abril de 2001; 2002/31 e 2002/32, de 22 de abril de 2002; 2003/28, de 22 de abril de 2003; 2004/27, de 16 de abril de 2004; e 2005/25, de 15 de abril de 2005). Tal Resolução foi bem explícita ao destacar que a proteção da propriedade intelectual não deve criar barreiras ao comércio legítimo de medicamentos, pois os dispositivos de acordos comerciais correlatos devem ser interpretados e implementados de modo a garantir aos Estados-partes o direito de proteger a saúde pública e promover o acesso a medicamentos para todos que deles necessitam, considerado tal acesso direito humano inafastável.

Constata-se, portanto, que, embora a aludida Resolução 2001/33 e outras que a sucederam sobre o tema não assumam força vinculante nos moldes do direito internacional clássico, representaram um extraordinário ponto de inflexão na compreensão do alcance de normas de direitos humanos, notadamente do direito à saúde, como capaz de irradiar, influenciar ou mesmo condicionar a aplicação de outras normas. Todos esses documentos de manifestação de vontade política, a despeito de não disporem de eficácia vinculante formal, desenvolveram ou consolidaram o mesmo pensamento jurídico subjacente à Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a Saúde Pública de 2001, bem como à Decisão do Conselho do TRIPS de 2003, que resultou na emenda de 2005 ao acordo, com a introdução do art. 31bis em seu contexto. Referidos atos contribuíram, assim, para fomentar que se firmasse, no âmbito daquele acordo, uma interpretação das flexibilidades ali contidas em favor de maior proteção à saúde pública, aditando-se posteriormente o respectivo texto para ampliá-las ainda mais. Mais recentemente, essas ideias foram reafirmadas pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU por meio de diversas resoluções, entre as quais vale destacar a A/HRC/50/L.13, de 4 de julho de 2022 (United Nations, 2022), que se reporta a outras, versando sobre acesso equitativo, economicamente suportável, oportuno e universal para todos os países no tocante a vacinas em resposta à difusão da covid-19, e evocando novamente o teor da Declaração de Doha de 2001.

Em contrapartida, toda essa movimentação político-jurídica, que resultou em consequências concretas de modificação normativa no sistema do Acordo TRIPS, contribuiu também para configurar, com maior clareza, espécies de obrigações extraterritoriais de Estados desenvolvidos, em suas vertentes teoricamente definidas como “respeitar” e “proteger”, e alguns chegam atualmente até mesmo a propugnar por correlatos deveres de “satisfazer”, conforme se aprofunda na seção a seguir.

3. Implementação do conceito jurídico de obrigações extraterritoriais em saúde global

A produção teórica relativa ao direito internacional dos direitos humanos com conteúdo econômico (entre os quais o direito à saúde) tem avançado para reconhecer um verdadeiro dever de cooperação na implementação desses direitos, notadamente com base no art. 2.1 do PIDESC (Brasil, 1992a), secundado por diversas outras referências à cooperação internacional inseridas no mesmo pacto e reforçado pelo teor de dispositivos contidos em outros atos normativos (tais como os arts. 4o e 24, 4, da Convenção sobre os Direitos da Criança [Brasil, 1990]). Justifica-se, com frequência, essa abrangência extraterritorial de deveres baseados no PIDESC pelo fato de tais dispositivos não conterem uma cláusula que limite seus efeitos à área sob jurisdição de um Estado (como ocorre com o art. 2.1 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos [Brasil, 1992b]) (Salomon, 2007; Langford et al., 2013).

Os Comentários Gerais do Comitê de Monitoramento do PIDESC (notadamente os de n. 03 e n. 14) têm aplicado a classificação doutrinária tripartite das obrigações em direitos humanos com sendo de: (a) respeitar, (exige que os Estados se abstenham de interferir direta ou indiretamente com o gozo de direitos); (b) proteger (exige que os Estados adotem medidas que impeçam que terceiros interfiram no gozo de direitos); e (c) satisfazer (exige que os Estados adotem medidas legislativas, administrativas, orçamentais, judiciais, promocionais e outras para a plena realização de direitos). Esta última espécie desdobra-se ainda em subespécies de (c.1) facilitar (exige a adoção de medidas positivas que capacitam e assessoram os indivíduos a usufruírem de direitos); (c.2) promover (pressupõe disseminar informação e despertar consciência sobre direitos); e (c.3) prover (implica garantir a fruição de um direito específico, quando indivíduos não são capazes de obtê-los pelos meios ao seu dispor por razões além de seu controle). Conforme a abordagem do Comitê, esses diversos aspectos das obrigações relativas a direitos humanos, inclusive ao direito à saúde, também se projetam na sua vertente extraterritorial, de modo que se deve reconhecer todas essas modalidades de obrigações de um Estado não apenas em relação à sua própria população, mas também quanto a populações de outros Estados (United Nations, 1990, 2000b).

Os “Princípios de Maastricht em Obrigações Extraterritoriais dos Estados na área de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais”, elaborados em reunião convocada pela Universidade de Maastricht e pela Comissão Internacional de Juristas em 2011, buscaram sistematizar a fundamentação jurídica das citadas obrigações extraterritoriais (Schutter et al., 2012), e, embora não constituam documento jurídico revelador de consenso entre Estados, apontam a consistência de tal fundamentação e podem até mesmo constituir relevante evidência de uma opinio juris sive necessitatis, ínsita às normas de direito internacional costumeiro. Conforme descrito no Princípio 9, “a”, entre aqueles proclamados na ocasião, as obrigações extraterritoriais surgem quando um Estado exerce controle, poder ou autoridade sobre pessoas ou situações localizadas fora do território soberano de uma forma que poderia ter um impacto sobre o gozo de direitos humanos por aquelas pessoas ou em tais situações. Tal como descrito no Princípio 9, “b”, as obrigações extraterritoriais também se baseiam nas obrigações de cooperação internacional, estabelecidas no direito internacional (o item 9, “a”, parece referir-se mais às obrigações de respeitar e proteger, enquanto o item 9, “b”, às de satisfazer). Esses princípios também indicam que (Princípio 31) cada Estado deve separadamente, e quando necessário, em conjunto, contribuir para a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais extraterritoriais, proporcionalmente às suas capacidades econômicas, técnicas e tecnológicas, aos recursos disponíveis e às influências internacionais nos processos de tomada de decisão. Estados-membros devem, portanto, cooperar para mobilizar o máximo de recursos disponíveis para a realização universal dos DESC.

Outro relevante subsídio para fundamentação jurídica das ditas obrigações, além do texto do PIDESC e de convenções correlatas, é o reconhecimento paulatino, por parte da Assembleia Geral da ONU, acerca de deveres solidários como prática costumeira humanitária, podendo-se falar, portanto, da emergência de um direito à assistência, embora ainda carente de maior elaboração e determinação mais precisa de seu conteúdo (Cançado Trindade, 2003, p. 429-430). Com efeito, desde o advento das Resoluções 43/131 (1988), 45/100 (1990) e 46/182 (1991), a Assembleia Geral da ONU reconheceu que os mesmos princípios humanitários vigentes para conflitos armados nos moldes das Convenções de Genebra também seriam aplicáveis a situações de desastres naturais e outras emergências (Macedo, 2005). Ressalta-se que tais obrigações extraterritoriais positivas ganharam ainda maior destaque na Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento, de 1986, cujo art. 4o, item 1, estabelece: “como complemento dos esforços dos países em desenvolvimento, uma cooperação internacional efetiva é essencial para prover esses países de meios e facilidades apropriados para incrementar seu amplo desenvolvimento” (United Nations, 1986). Atualmente, aguarda-se a apreciação, pela Assembleia Geral da ONU, de proposta de draft de Resolução (A/HRC/35/35, de 25 de abril de 2017 [United Nations, 2017]) que consolida as concepções dessas obrigações extraterritoriais sob um conceito-síntese de “direito à solidariedade”, tomando por base diversos dispositivos convencionais, declarações políticas e práticas costumeiras.

Diante desse panorama normativo de progressivo desenvolvimento da ideia de obrigações extraterritoriais dos Estados, especialmente no que se refere à garantia do direito aos mais altos níveis de saúde possíveis (art. 12 do PIDESC [Brasil, 1992]), como pressuposto do direito à vida, conclui-se que, v.g., os Estados devem se abster de condutas como embargos econômicos ou outras medidas no âmbito de organizações internacionais que possam comprometer a satisfação de direitos humanos em outros Estados. Devem também impedir que agentes sujeitos à sua jurisdição o façam, assim como devem demonstrar e justificar esforços despendidos para contribuir com a garantia de acessibilidade a bens e serviços essenciais para populações estrangeiras, principalmente quando se trata de garantir o direito à vida e à saúde (Toebes, 1999, p. 307-310; Tobin, 2012, p. 325-326 e 331-333).

Busca-se atualmente consolidar a construção teórica do conceito de obrigações extraterritoriais, apontando suas manifestações concretas e suas funções transformadoras das relações econômicas globais, de modo a combater a pobreza e a desigualdade extremas, evitando-se que se torne apenas um discurso legitimador do status quo com base em um vago conceito de “cooperação internacional” (Wilde, 2018). Diante das dificuldades encontradas no reconhecimento de casos de violação extraterritorial de direitos humanos, por exemplo, identificando-se “influência ou medidas decisivas” que o Estado poderia exercer ou adotar, para caracterização de omissão na sua realização, chega-se a propor um novo enfoque que reconceitua tais obrigações como “universais” ou “transnacionais” (Palombo, 2023).

Por conseguinte, existe notável relevância em se demonstrar que o caso da flexibilização de patentes, deflagrado desde a referida campanha global para acesso a medicamentos, representa exatamente uma hipótese prática de concretização desse tipo de obrigação extraterritorial nas modalidades de “respeitar” e “proteger” a implementação local de centros de produção de medicamentos, avançando-se, até mesmo, no presente momento, para reivindicações em torno do dever de “satisfazer” por meio da efetiva partilha e transferência de tecnologia, insumos e produtos farmacêuticos, propondo-se, inclusive, inovadores modelos jurídicos para tanto.5

Este artigo demonstra um notável reforço à consolidação conceitual de obrigações extraterritoriais dos Estados. Constatou-se que, no caso em tela, a obrigação extraterritorial de “respeitar” concretiza-se na diretriz de que as autoridades do Executivo de países desenvolvidos devem se abster de iniciativas diplomáticas ou jurídicas que possam criar entraves desproporcionais à flexibilização de patentes em países que necessitem fazer uso desse mecanismo para ampliação de acesso da respectiva população a medicamentos. Além disso, a obrigação extraterritorial de “proteger” implica que Estados desenvolvidos devem adotar medidas regulatórias sobre particulares e empresas para impedir que atuem de modo a prejudicar esse acesso, não permitindo ainda que eventuais demandas movidas perante autoridades administrativas e/ou judiciais o prejudiquem (Costa, 2017, p. 418-419).6

No entanto, atualmente os países em desenvolvimento passam a reivindicar também o cumprimento de obrigação extraterritorial de “satisfazer” o direito à saúde (nas submodalidades de “facilitar”, “promover” e “prover”) mediante atuação multilateral de países desenvolvidos em favor de populações mais vulneráveis nos países em desenvolvimento, com a estruturação de mecanismos de transferência de tecnologia em saúde. Essa atuação criaria condições mais propícias ao acesso a medicamentos, assim como contribuiria para empoderar segmentos dos países em desenvolvimento a buscarem usufruir desse acesso, chegando ainda à implementação de aportes diretos e sistemáticos de auxílio financeiro/material para garantir tal acesso. Nesse sentido, a estruturação da Covax facility, durante a recente pandemia, representou um caminho viável de partilha de tecnologia e auxílio financeiro para expansão menos desigual da cobertura vacinal em todo o mundo.7

Analisam-se a seguir os desdobramentos da questão no referido ambiente de emergência em saúde global, com ênfase nas posições políticas do Brasil e de outras das maiores lideranças entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, considerando todo o contexto histórico e jurídico antecedente traçado anteriormente.

4. Evolução do legado brasileiro na consolidação de um conceito de obrigações extraterritoriais em saúde global na recente pandemia de covid-19

A recente pandemia decorrente da difusão do vírus SARS-CoV-2 (novo coronavírus) trouxe uma inédita conjuntura de emergência, potencializada pela facilidade e velocidade de meios de transporte, de modo a assumir status global em poucas semanas. Tal conjuntura ensejou novas demandas por insumos/equipamentos, tratamentos e, especialmente, vacinas, e colocou em evidência a excessiva desigualdade no acesso a bens e serviços de saúde entre as diversas nações. Vale destacar, nesse contexto, o reconhecimento científico do risco sistêmico de proliferação de novas cepas do vírus enquanto não houver tratamento conjunto e uniforme das populações vulneráveis em todo o globo, bem como a escalada do número de infectados e mortes, seguida por medidas restritivas de atividades coletivas nas maiores cidades do mundo, tudo a gerar sensibilização da opinião pública global para o reconhecimento da necessidade de medidas solidárias no enfrentamento da pandemia (vide, a respeito, estudo empírico de Leuffen et al., 2023).

Nesse momento histórico, evidenciou-se uma renovada relevância do conteúdo da Declaração de Doha sobre o Acordo TRIPS e a Saúde Pública, bem como das alterações promovidas no referido acordo, no sentido de ao menos limitar restrições patentárias à produção de vacinas em contextos emergenciais. Atentos a essa oportunidade política para obtenção de avanços nas concessões de Estados desenvolvidos, a Índia e a África do Sul capitanearam proposição perante a OMC sobre o assunto (Comunicado IP/C/W/669, de 2 de outubro de 2020 [WTO, 2020]), mencionando vários relatos sobre direitos patentários e outros de propriedade intelectual que dificultam imediata ou potencialmente o fornecimento oportuno de produtos médicos acessíveis aos pacientes. Destacaram ainda dificuldades na implementação de flexibilidades do Acordo TRIPS, especialmente quando ausente capacidade suficiente de produção.

No entanto, o Brasil, que até recentemente era líder inequívoco nessa seara, mesmo diante de conjuntura tão favorável, passou a sustentar posições reticentes e até contrárias à pauta tradicional de reivindicação dos países em desenvolvimento. Tal mudança de postura foi fortemente questionada por influentes segmentos da opinião pública nacional e global, e com frequência associada a uma diretriz de política externa do governo brasileiro do presidente Jair Bolsonaro de alinhamento automático com os Estados Unidos. O noticiário da imprensa no período da pandemia é bastante rico em demonstrar essa percepção sobre tal postura da diplomacia brasileira (por exemplo, Chade, 2021), a qual surge justificada, em essência, por suposta ineficácia da proposição e ainda violação de direitos da indústria farmacêutica (vide notas e pronunciamentos a seguir referidos).

O governo brasileiro chegou a apoiar outra proposta defendida por grupo de Estados sob o rótulo de “terceira via”, capaz de conciliar os interesses da indústria em questão e dos países em desenvolvimento. De acordo com nota à imprensa divulgada em 9 de abril de 2021 (Brasil, 2021a), o Brasil copatrocinaria, com Austrália, Canadá, Chile, Colômbia, Equador, Nova Zelândia, Noruega e Turquia, a iniciativa intitulada “Ampliando a Atuação da OMC nos Esforços Globais para a Produção e Distribuição de Vacinas e de Outros Produtos Médicos Contra a Covid-19”, a qual seria convergente com as posições brasileiras históricas na matéria. A nota destaca o foco da iniciativa em mapeamento da capacidade produtiva instalada, celebração de acordos de transferência de tecnologia e solução consensual de barreiras à produção e distribuição. Embora mencione tais medidas como adequadas às flexibilidades consagradas na Declaração de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública de 2001, constata-se que a proposta é muito mais modesta do que aquela sustentada pela Índia e pela África do Sul. E, ao contrário do que é dito na nota, essa terceira via negocial não se mostra exatamente convergente com as posições brasileiras históricas na matéria, as quais, como mencionado anteriormente, foram mais ambiciosas, incisivas e combativas na defesa do interesse da saúde pública.

Foi então noticiada pela imprensa (Abrasco, 2020) a assinatura de carta destinada ao Itamaraty por mais de mil especialistas, ativistas e organizações em apoio à suspensão dos direitos de propriedade intelectual sobre tecnologias em saúde utilizadas no combate à covid-19. Em outro documento, o Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI), integrado por 19 organizações da sociedade civil, criticou duramente o posicionamento brasileiro diante da proposta da Índia e da África do Sul, considerando ter ocorrido uma “omissão inaceitável” do Brasil (GTPI, 2021). Convocado a prestar depoimentos perante as Comissões de Relações Exteriores de Defesa Nacional da Câmara Federal, em 28 de abril de 2021, e do Senado Federal, em 6 de maio de 2021, o então ministro das Relações Exteriores, Carlos França, buscou justificar a posição brasileira basicamente aduzindo que a proposta da Índia e da África do Sul seria ampla demais e destacando dois pontos, em síntese: (a) o maior gargalo hoje, para o acesso a vacinas, seriam os limites materiais da capacidade de produção, pois vacinas seriam quase impossíveis de copiar, a curto ou médio prazo, sem o apoio dos laboratórios que as desenvolveram; (b) países em desenvolvimento já contam com a possibilidade de emitir agilmente licenças compulsórias, como já previsto na legislação brasileira, e nem por isso têm conseguido assegurar suprimentos de imunizantes (Brasil, 2021b).

Em 5 de maio de 2021, a representante comercial dos Estados Unidos, Katherine Tai, divulgou histórico comunicado de imprensa que anunciava apoio à renúncia às proteções de propriedade intelectual para vacinas contra a covid-19, considerando tratar-se de uma crise de saúde global e que as circunstâncias extraordinárias da pandemia da covid-19 exigem medidas também extraordinárias. Reafirmou sua crença nas referidas proteções, mas declarou que o objetivo dos Estados Unidos seria levar o maior número de vacinas seguras e eficazes ao maior número de pessoas, o mais rapidamente possível, trabalhando com o setor privado e demais parceiros para expandir a produção e distribuição de vacinas, bem como a oferta das pertinentes matérias-primas (Statement [...], 2021). Essa movimentação da diplomacia dos Estados Unidos acabou sendo logo objeto de adesão pelo governo brasileiro, conforme nova nota à imprensa divulgada em 7 de maio de 2021, em que afirmou terem recebido com satisfação a nova posição dos Estados Unidos e destacou que “a flexibilização de posições dos EUA e de demais parceiros na OMC poderá contribuir para os esforços internacionais de resposta à covid, inclusive nas negociações em curso sobre suspensão temporária de disposições no acordo de TRIPS relativas ao combate à pandemia” (Brasil, 2021c). Ressalta ainda que tal mudança de posição poderia “facilitar a implementação das propostas da ‘terceira via’, que visam a aumentar e diversificar a produção e disseminação de vacinas, principalmente em países em desenvolvimento, com melhor utilização de capacidade ociosa” (Brasil, 2021c).

Percebe-se a intenção da nota em melhorar a imagem do Brasil diante da óbvia constatação de que fora insistente e intransigente em defesa de posições que, até um de seus maiores beneficiários, qual seja, o governo dos Estados Unidos, acabou por abandonar, inclusive diante da falta de sustentação perante segmentos formadores da opinião pública internacional. Registra-se que 175 ex-líderes mundiais e laureados com o Prêmio Nobel chegaram a dirigir carta ao presidente Joe Biden propugnando por medidas urgentes para a adoção da aludida proposta da Índia e da África do Sul, bem como aventando um “Pool de Acesso à Tecnologia covid-19 pela Organização Mundial da Saúde” (The People’s Vaccine, 2021). Nesse aspecto, o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito, constituída para apurar a atuação do Executivo brasileiro durante a pandemia, concluiu que, embora o país tenha flexibilizado sua posição contrária ao licenciamento compulsório, acompanhando a mudança de posição dos Estados Unidos, ainda preferiu defender a chamada “terceira via” proposta pela Alemanha e pela União Europeia, a depender da disposição das grandes empresas farmacêuticas para emitir “licenças voluntárias” a custos moderados para países mais pobres. Pondera-se então que tal ideia já havia sido proposta sem sucesso no início de 2020 pela OMS, com a plataforma de compartilhamento de tecnologia C-TAP (Brasil, 2021d).

Finalmente, foi obtido acordo no âmbito da OMC em 22 de junho de 2022, consubstanciado em Decisão Ministerial (WT/MIN(22)/30 WT/L/1141 [WTO, 2022])8 que confere aos membros em desenvolvimento maior margem para anular o efeito de exclusividade das patentes por meio de uma renúncia direcionada ao longo dos próximos cinco anos, visando diversificar a produção de vacinas referentes à covid-19. A decisão prevê ainda discussões posteriores sobre extensão da isenção/renúncia relativa a direitos patentários a medicamentos e tratamentos. Confirma, portanto, a viabilidade da flexibilização desses direitos para redução do nível de desigualdade global no acesso a vacinas, contrariando, assim, quaisquer previsões acerca de graves ameaças ao contínuo processo de inovação tecnológica em saúde.

Deve-se rememorar, ainda, que, em meio ao referido debate, o Congresso Nacional brasileiro editou a Lei n. 14.200/2021 (Brasil, 2021e), alterando a Lei n. 9.279/1996 (Brasil, 1996) (Lei de Propriedade Industrial [LPI]) e regulamentando internamente os mecanismos autorizados pela OMC para flexibilização do direito sobre patentes, inclusive considerando que o teor do art. 31bis do Acordo TRIPS já tinha sido objeto do Decreto n. 9.289/2018. Houve veto presidencial aos parágrafos 8o, 9o e 10o, introduzidos no art. 71 da LPI, os quais previam obrigatoriedade de transferência de tecnologia para viabilizar a concessão de licenças compulsórias. Aludido veto atingiu ainda outros dispositivos que representavam uma tentativa do Legislativo de suprir diretamente por lei a falta de mobilização do Executivo na flexibilização de direitos patentários em relação à emergência sanitária que estava em curso.

Em síntese, as razões desse veto ecoam, de modo generalista, teses da indústria farmacêutica e de seus Estados de sede, o que ensejou diversas críticas ao posicionamento presidencial, notadamente no que diz respeito à excessiva proteção à exclusividade de dados científicos utilizados para aprovação de produtos (Baker, 2021; Fonseca; van der Ploeg; Silva, 2022). Vale observar que, na exposição de motivos do Projeto de Lei n. 2.505, de 2022 (Brasil, 2022), o senador Paulo Paim9 ressalta a falta de previsão dessa proteção adicional no Acordo TRIPS (expressamente rejeitada quando de sua aprovação), bem como a existência da diretiva da União Europeia (2016/943 [União Europeia, 2016]) que dispõe limites e diversas exceções à proteção de informações confidenciais em função do interesse público, de modo similar ao que ocorre na legislação dos Estados Unidos. No particular, Vanni (2021) ressalta que o período de exclusividade de dados de pesquisas sobre fármacos e vacinas proporciona uma camada de proteção adicional não contemplada no Acordo TRIPS, que contribui para atrasar ainda mais a entrada de produtos genéricos no mercado.

Com a mudança de governo após a eleição de Luis Inácio Lula da Silva, a posição brasileira vem se restabelecendo na linha mais incisiva em favor da flexibilização de direitos de propriedade industrial em relação à saúde pública, sendo que o Brasil já se uniu recentemente aos países que apoiaram originalmente a aludida waiver, no âmbito da OMC, para voltar a cobrar medidas mais amplas aplicáveis também a medicamentos e tratamentos para covid-19, em comunicado de 19 de dezembro de 2023 (WT/GC/W/902 [WTO, 2023]).10 Embora o Brasil haja mudado de posição para apoiar tardiamente esse resultado concreto e histórico, fato é que perdeu o timing da liderança, o que poderia ter incrementado seu soft power nessa seara e aberto outros caminhos para protagonismo em iniciativas de diplomacia global da saúde. Nesse sentido, poderia ainda ter reforçado sua liderança ao ofertar exemplo de práticas mais avançadas, caso tivesse mantido a promulgação integral da Lei n. 14.200/2021 (Brasil, 2021e), para capitanear discussão global sobre compartilhamento de tecnologia para fins de saúde pública. De qualquer forma, essa lei representou a consolidação, no ordenamento interno, do mecanismo de flexibilização de patentes inserido no Acordo TRIPS, assim como atribuiu status legal à diretriz de solidariedade outrora adotada pela política externa brasileira (art. 5o), conclamando esforços no plano internacional a fim de viabilizar a cooperação com vistas a assegurar o “acesso universal aos produtos farmacêuticos, vacinas e terapias necessários para o combate ao novo coronavírus (SARS-CoV-2) e a outras epidemias ou graves crises de saúde pública” (Brasil, 2021e).

Conclusão

Em estudos de casos como o empreendido neste artigo, além de sistematizar-se a descrição de determinados fenômenos, busca-se avaliar se teorias existentes são suficientes para explicar os respectivos instrumentos e processos decisórios envolvidos, bem como resultados alcançados. Além disso, é possível, comum e desejável que esse tipo de estudo, na seara político-jurídica, também se volte à reflexão normativa no tocante à avaliação de como os modelos teóricos aplicados podem servir ao enfrentamento de grandes problemáticas da realidade social (Bauböck, 2008).

Com efeito, a extraordinária mobilização empreendida pelo governo brasileiro desde o início da década de 2000 não apenas gerou declarações enquadráveis na categoria de soft law, mas também influenciou de modo decisivo alterações de textos de hard law (notadamente no Acordo TRIPS), de modo a acomodar hipóteses e meios mais claros e amplos de flexibilização de patentes de medicamentos. Percebe-se, então, que o fenômeno de produção normativa ora investigado revelou uma implementação concreta da previsão teórica de irradiação de efeitos do regime internacional de proteção a direitos humanos sobre o regime internacional de propriedade industrial, de forma a modificar sua lógica em favor de abordagens de conciliação em prol de direitos essenciais da pessoa. O mesmo fenômeno também serviu para delinear, de modo mais preciso, notáveis exemplos de obrigações extraterritoriais na implementação de DESC, sobretudo quanto ao direito à saúde em favor de populações mais vulneráveis.

Referidas contribuições brasileiras ao debate e à consolidação normativa abriram diversas outras possibilidades de promoção do direito humano à saúde, e, durante a recente emergência global em saúde, todo o arcabouço jurídico internacionalizado constituído com significativa participação brasileira passou a ser invocado para fundamentar propostas de ampla flexibilização de patentes de vacinas referentes à covid-19, em movimento liderado pela África do Sul e Índia, a partir do qual se obteve inédito avanço com a adesão dos Estados Unidos, acompanhados posteriormente por outras potências. Embora ainda estejam sendo ensaiados modestos passos no sentido de se superar a notória concentração da oferta de vacinas e medicamentos no mundo desenvolvido (serão necessários novos estudos sobre impactos reais e prospectivos das recentes mudanças normativas), deve-se reconhecer que a mobilização brasileira deixou um legado relevante para o futuro do direito internacional dos direitos humanos nessa sensível seara.

A partir da reconstrução de fatos recentes realizada, evidencia-se uma flagrante falha de estratégia política na decisão do governo brasileiro, em plena pandemia, de se alinhar a interesses tradicionais dos Estados Unidos e abandonar a liderança que havia construído entre países em desenvolvimento em prol da partilha mais equitativa de benefícios decorrentes dos avanços tecnológicos em saúde. No entanto, observou-se logo uma retificação, ainda que tímida, da posição brasileira, e, com a posterior mudança do cenário político interno, desenha-se a retomada da política externa brasileira de não alinhamento automático com grandes potências e, no ponto em questão, a possibilidade de que reassuma a referida liderança. De qualquer forma, é inegável que as sementes políticas e as bases da atual abordagem jurídica dessa temática no plano internacional foram produtos de ativa mobilização diplomática brasileira, junto a outros parceiros com atuação nacional e internacional, o que ainda permanece como um legado reconhecível do país ao patrimônio moral e jurídico da humanidade.

Por oportuno, considerando-se uma abordagem integrada de aspectos jurídicos e políticos, deve-se salientar que o estudo de caso ora promovido também confirma previsões no âmbito da teoria das relações internacionais, no sentido de que é possível que países em desenvolvimento - entendidos como periféricos, ainda que reconhecidos como potências médias - possam influir na produção normativa no âmbito global (Menezes; Vieira, 2022, p. 115-119; Milani, 2018, p. 268, 302 e 309-310).11 No presente caso, a influência brasileira contribuiu decisivamente para deflagrar mudanças sensíveis no ordenamento jurídico internacional e abriu caminho para a atuação de outras potências médias, como a Índia e a África do Sul.

Vale enfatizar, a propósito, o significativo envolvimento de organizações da sociedade civil no impulsionamento de decisões políticas em todo o contexto anteriormente narrado, notadamente em conjunturas extremas para a saúde pública. Sem dúvida, cabe aos formuladores da política externa brasileira, considerando essa mobilização social, refletir sobre a conveniência de se preservar e potencializar referido legado político e jurídico por meio de novas estratégias, que sejam encaradas como diretrizes de estado e não decisões atribuíveis a governos transitórios. Isso considerando que as iniciativas ora enfocadas não somente posicionaram o Brasil como relevante player em um cenário de prevalência de interesses econômicos de países desenvolvidos, mas também abriram caminhos viáveis, nas vertentes política e jurídica, para avanços na implementação de ODS, especialmente os de n. 3, 10, 16 e 17.12

REFERÊNCIAS

  • 1
    O estudo de caso proposto foi construído a partir de registros contidos em fontes secundárias, obtidas por meio de revisão narrativa de literatura, com destaque para teses de doutorado fundadas em trabalho de campo, inclusive entrevistas com atores proeminentes no contexto avaliado. Avançou-se, outrossim, no exame de fontes primárias para análise atualizada dos desdobramentos mais recentes do caso (notas oficiais, atos normativos, declarações públicas, resoluções de órgãos internacionais e notícias jornalísticas).
  • 2
    Entre os trabalhos mais abrangentes publicados sobre essa estratégia brasileira e seus desdobramentos políticos, estão as teses de doutorado de Nunn (2009) e Flynn (2010). Mais recentemente, a tese de doutorado de Vanni (2016) promove análise conjunta da situação de outros dois países em desenvolvimento (Índia e Nigéria). Todos esses trabalhos documentaram entrevistas com profissionais com relevantes atuações pertinentes à temática.
  • 3
    Alcázar (2008), por exemplo, considera a postura brasileira uma verdadeira “revolução de copérnico” ao colocar valores da saúde pública acima de interesses comerciais.
  • 4
    Todas as resoluções da ONU referidas no texto podem ser colhidas do sítio da organização: https://digitallibrary.un.org/, com acesso em 22 de dezembro de 2023.
  • 5
    Beiter (2020) segue proposta similar de estudo de caso ao buscar demonstrar que obrigações extraterritoriais decorrentes do direito humano de acesso à educação e cultura imporiam limites à exigência de retribuições e restrições à circulação de livros em países em desenvolvimento, nos termos do Acordo TRIPS e da Convenção de Berna para a Proteção dos Direitos Literários e Obras Artísticas de 1971.
  • 6
    A Comissão Internacional de Juristas (ICJ, 2021) produziu parecer que sustenta o dever dos países desenvolvidos de não obstaculizar a adoção de waiver ampla no Acordo TRIPS voltada a direitos de patentes sobre vacinas, tratamentos e medicamentos para a covid-19, corroborando exatamente o enquadramento proposto desse dever como expressão de obrigações extraterritoriais.
  • 7
    Os participantes autofinanciados podem solicitar à Covax facility doses suficientes para vacinar entre 10% e 50% de suas populações; o Gavi Covax AMC (Advance Market Commitment) visa garantir que 92 países de renda média e baixa também tenham igual acesso às vacinas mediante financiamento distinto via AOD, bem como contribuições do setor privado e filantrópico (Gavi Alliance, 2023). Aliás, a Unitaid, criada com participação decisiva do Brasil (Costa, 2017, p. 442-450), pode ser considerada um modelo precursor da Covax.
  • 8
    Dados de decisões da OMC foram colhidos diretamente do sítio eletrônico da organização https://www.wto.org/, com acesso em 22 de dezembro de 2023.
  • 9
    Dados sobre atos legislativos do Senado Federal e da Câmara dos Deputados foram colhidos dos respectivos sítios eletrônicos https://www25.senado.leg.br/ e https://www.camara.leg.br/busca-portal/proposicoes/pesquisa-simplificada, com acesso em 22 de dezembro de 2023.
  • 10
    A posição diplomática brasileira tem efetivamente avançado na defesa do acesso mais amplo a tecnologias em medicamentos, como se pode perceber das intervenções da delegação brasileira na 77a Assembleia Geral da Saúde (maio de 2024) em defesa do projeto de tratados sobre pandemias e na recente cúpula do G20 no Rio de Janeiro, em que propôs a criação de uma Aliança Global para produção local e regional de insumos e inovação em saúde (novembro de 2024) (Na OMS, 2024; Coalisão [...], 2024).
  • 11
    Menezes e Vieira (2022) destacam o potencial normativo do Brasil para contribuir para soluções políticas e institucionais, e reconstruir normas e padrões que afetam a distribuição do poder e da riqueza internacionais. Milani (2018), por sua vez, analisa a pretensão da diplomacia brasileira de influenciar o processo de integração normativa em que interagem países centrais, periféricos e semiperiféricos.
  • 12
    Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades; reduzir as desigualdades dentro dos países e entre eles; promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis; bem como fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável.
  • Como citar este artigo
    COSTA, José Guilherme Ferraz da. Reflexões sobre o legado brasileiro para consolidação de obrigações internacionais extraterritoriais em saúde global. Revista Direito GV, São Paulo, v. 20, e2443, 2024. https://doi.org/10.1590/2317-6172202443
  • Editores responsáveis
    Catarina Helena Cortada Barbieri (Editora-chefe). desk review.
  • Pedro Salomon Bezerra Mouallem (Editor-chefe). três decisões editoriais, incluindo a decisão final.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2024
  • Aceito
    12 Jul 2024
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