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Precedentes judiciais: uma análise jurimétrica no Tribunal de Justiça do Ceará

JUDICIAL PRECEDENTS: A JURIMETRIC ANALYSIS IN THE COURT OF JUSTICE OF CEARÁ

Resumo

O artigo tem por objetivo investigar o atual funcionamento do modelo de precedentes brasileiro, consolidado pelo Código de Processo Civil de 2015, principalmente se o mecanismo de julgamento vertical por meio de processos repetitivos nos tribunais superiores vem, efetivamente, produzindo maior coerência e agilidade ao sistema judicial. O estudo envolve a aplicação de metodologias qualitativa e quantitativa na investigação de espaços privilegiados de observação no Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE): o Sistema do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes (Sisnugep) e a observação do trabalho de aplicação desse modelo de precedentes pelos magistrados. Baseado em um estudo jurimétrico, faz-se uma análise dos processos em trâmite relativos aos temas 766 e 1038 do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Conclui-se, com a análise da amostra extraída pela Associação Brasileira de Jurimetria, que, no âmbito do TJCE, a fixação vertical de teses pelo STJ não está repercutindo necessariamente nos processos locais existentes sobre a mesma temática, seja em relação à ordem de sobrestamento nacional, seja nos efetivos julgamentos. Propõe-se, consequentemente, uma reflexão sobre esse modelo hierarquizado de precedentes e seus efetivos resultados na realidade do funcionamento do Poder Judiciário.

Precedentes; coerência; vinculação; modelo brasileiro; jurimetria

Abstract

The article aims to investigate the current operation of the Brazilian judicial precedents model, consolidated by the Civil Procedure Code of 2015, especially if the mechanism of vertical judgment through repetitive cases in higher courts has been effectively producing greater coherence and agility to the judicial system. The study involves the application of qualitative and quantitative methodologies in the investigation of privileged spaces of observation in the Court of Justice of Ceará (TJCE): the System of the Precedent Management Center (SISNUGEP) and in the observation of the work of application of this model of precedents by the judges. Based on a jurimetric study, an analysis is made of the cases in progress related to themes 766 and 1038, of the Superior Court of Justice (STJ). It is concluded from the analysis of the sample extracted by the Brazilian Association of Jurimetrics that, within the scope of the TJCE, the vertical establishment of theses by the STJ is not necessarily having repercussions on the existing local proceedings on the same theme, whether in relation to the order of national suspension or in actual judgments. It is proposed, consequently, a reflection on this hierarchical model of precedents and its effective results in the reality of the functioning of the Judiciary.

Precedents; coherence; binding force; Brazilian model; jurimetrics

INTRODUÇÃO

O Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), consolidando diversas contribuições doutrinárias e legais que já existiam, buscou trazer um ganho de coerência na aplicação do Direito por meio de uma maior sistematização da jurisprudência brasileira. Sem dúvida, normas como as constantes dos arts. 926 1 1 “Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” ( BRASIL, 2015 ). e 927 2 2 “Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados” ( BRASIL, 2015 ). desse Código claramente demonstram o intuito de corrigir disfunções existentes em um sistema judicial historicamente marcado pela instabilidade e incoerência das decisões judiciais. Com efeito, no Brasil, diversos recursos chegavam – e ainda chegam – ao conhecimento dos tribunais superiores para tratar de matérias já apreciadas por esses tribunais de vértice, os quais se resumiam a reafirmar decisões já anteriormente tomadas. Portanto, um dos pontos altos da inovação legislativa consistiu exatamente em procurar trazer maior coerência ao sistema judicial. 3 3 Nesse sentido, pode-se verificar esta notícia da época: CÓDIGO de Processo Civil entra em vigor com a promessa de agilizar ações. Agência Brasil , 18 mar. 2016. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-03/novo-codigo-civil-entra-em-vigor-com-promessa-de-agilizar-acoes-na-justica . Acesso em: 23 jun. 2022.

Nesse sentido, destaca-se o mandamento cogente para que juízes e tribunais observem os julgamentos de recursos repetitivos e, principalmente, a lógica de que tais recursos deveriam ser debatidos pelos tribunais superiores como representativos de controvérsias em todo o Brasil e, após o efetivo julgamento, ser aplicados aos diversos processos existentes nas instâncias ordinárias. Nos termos do art. 1.030 do CPC/2015, por exemplo, é obrigatório o sobrestamento na instância inferior de recurso que versar sobre controvérsia de caráter repetitivo ainda não decidida pelos tribunais superiores.

Portanto, a sistemática que se estabeleceu, em resumo, foi a seguinte: em vez de os tribunais superiores receberem uma infinidade de processos de todos os cantos do Brasil sobre uma mesma questão jurídica, represam-se esses feitos em suas instâncias de origem até que os representativos da controvérsia sejam solucionados, o que possibilita o julgamento em massa de todos os outros feitos similares.

A pergunta que se apresenta neste trabalho, contudo, é a seguinte: esse mecanismo de julgamento vertical por meio de processos representativos vem funcionando corretamente de modo a cumprir seu objetivo – trazer mais coerência e agilidade aos julgamentos? Tal questionamento é pertinente porque, hoje, o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já possuem mais de mil teses ou temas representativos desses processos, o que, evidentemente, torna extremamente complexos a gestão e o funcionamento do sistema idealizado. Com efeito, este artigo enfrenta tal problemática analisando dados concretos sobre como as teses fixadas pelo STJ estão sendo aplicadas na prática cotidiana.

Adota-se como campo de investigação o Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), órgão do Poder Judiciário de maior abrangência no estado em que os autores desenvolvem suas pesquisas. Justifica-se esse recorte pela continuidade das investigações sobre o sistema de precedentes, já iniciadas no âmbito da referida corte. 4 4 Esses estudos resultaram na publicação da obra A aplicação dos precedentes judiciais no Brasil e o novo paradigma epistemológico das ciências: um estudo a partir da experiência no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará ( SÁ, 2020 ). Ademais, trata-se de um órgão julgador de médio porte, com um número intermediário de processos dentro do cenário nacional e de fácil acesso aos dados. O estudo nesse tribunal oferecerá também elementos para reflexão dos processos em curso em outras cortes estaduais brasileiras, até porque são analisados não apenas questões administrativas, mas o conteúdo de decisões proferidas por magistrados. A metodologia escolhida para a coleta de dados girou em torno, primeiro, de uma análise do sistema administrativo utilizado pelo TJCE – Sistema do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes [Sisnugep] –, focando no quantitativo dos dados catalogados. Após, fez-se um estudo sobre como os próprios julgadores estão trabalhando com esses processos repetitivos no âmbito de suas decisões. A sistemática de investigação pode ser resumida na seguinte sequência: (i) fez-se um recorte envolvendo o TJCE e o STJ, já que o primeiro, como afirmado anteriormente, corresponde ao local onde a pesquisa vem sendo desenvolvida, e o segundo congrega a sistemática dos recursos especiais repetitivos; (ii) no sítio do STJ, no campo dos recursos repetitivos, selecionou-se a busca de temas ou teses fixadas a partir de processos originários do TJCE; (iii) a resposta dessa busca resultou em dois temas específicos – o 766 5 5 “O Ministério Público é parte legítima para pleitear tratamento médico ou entrega de medicamentos nas demandas de saúde propostas contra os entes federativos, mesmo quando se tratar de feitos contendo beneficiários individualizados, porque se refere a direitos individuais indisponíveis, na forma do art. 1 o da Lei n. 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público)” ( BRASIL, 2018 ). - 6 6 Quanto ao tema 766, embora tenha sido julgado como representativo da controvérsia um processo do estado de São Paulo, e não do Ceará, a suscitação da necessidade de julgamento no rito dos repetitivos incluiu um processo do TJCE, o que satisfaz para fins desta pesquisa a pergunta se o tema ou a tese possui aplicabilidade no âmbito do tribunal local. e o 1038; 7 7 “Os editais de licitação ou pregão não podem conter cláusula prevendo percentual mínimo referente à taxa de administração, sob pena de ofensa ao artigo 40, inciso X, da Lei n. 8.666/1993” (BRASIL, 2020a). (iv) selecionados os temas, solicitou-se ao TJCE a extração de todos os processos em sua base de dados, desde a data da ordem de suspensão nacional até o dia 19 de outubro de 2020, data de fechamento da coleta dos dados da pesquisa, separando-os em duas tabelas, uma para cada grupo de processos relativos aos correspondentes temas; (v) depois, essa lista de processos foi remetida para a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ) (2020)ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JURIMETRIA (ABJ). Amostra de Pesquisa Aleatória. [S. l.]: [s. n.], 2020. Disponível em: https://gist.github.com/jtrecenti/f63f2a56a883edd04a1acc495a534c94. Acesso em: 31 mar. 2021.
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, que calculou uma amostra 8 8 O código que criou essa amostra – feito na linguagem de programação estatística R – pode ser acessado neste link: https://gist.github.com/f63f2a56a883edd04a1acc495a534c94 . aleatória para investigação em cada um dos grupos de processos; (vi) finalmente, respeitado o número mínimo de processos necessários para a observância da amostragem, 9 9 O número mínimo foi fixado em 30 processos para cada tema. O código gerado pela ABJ, que cria essa amostra (feito na linguagem de programação estatística R), pode ser acessado neste link: https://gist.github.com/f63f2a56a883edd04a1acc495a534c94 . além da indispensável aleatoriedade, cada processo foi aberto e foi verificado se a tramitação fora sobrestada após a ordem de sobrestamento nacional e, ainda, se nas decisões, sentenças ou acórdãos a tese fixada – 766 ou 1038 – foi de alguma forma citada, seja para seguir a diretriz estabelecida, seja para fins de distinção.

É preciso destacar que este artigo não busca discutir em profundidade, do ponto de vista doutrinário, questões relacionadas aos conceitos, às definições ou às análises qualitativas do modelo de gestão de precedentes adotado no Brasil, inclusive se esse modelo poderia ser denominado um sistema de precedentes. O ponto principal é investigar, sob a perspectiva quantitativa, com substrato na jurimetria, se os procedimentos consolidados pelo CPC/2015, no que tange à gestão desses processos repetitivos, vêm apresentando resultados compatíveis com o que fora idealizado. Nesse sentido, a relevância prática e teórica deste artigo reside no trabalho investigativo de examinar se o ideal de coerência e agilidade pugnado pelo modelo de julgamento de processos repetitivos, concretamente, vem produzindo efeitos no sistema judicial brasileiro. Com efeito, o exame do inteiro teor de decisões judiciais que possuem o mesmo objeto de temas vinculantes julgados pelos tribunais superiores permite a extração de conclusões práticas sobre os reais impactos do modelo vertical de aplicação dos chamados precedentes qualificados. Outrossim, as conclusões também auxiliam em uma reflexão teórica sobre o funcionamento do ordenamento jurídico brasileiro na atualidade.

O artigo divide-se em quatro seções: (i) na primeira, faz-se uma breve reflexão sobre as divergências doutrinárias acerca do modelo de precedentes e as possíveis contribuições da jurimetria; (ii) na segunda seção, são analisados os dados existentes e consolidados no Sisnugep, do TJCE; (iii) na terceira, pesquisa-se na amostra extraída pela ABJ como estão sendo enfrentados os desafios relacionados à gestão dos processos repetitivos aqui selecionados, no âmbito do TJCE; (iv) na quarta seção são apresentadas sugestões de pesquisas futuras que possam contribuir para um aprofundamento dos estudos aqui iniciados, a partir dos resultados observados.

O trabalho, essencialmente, busca contribuir para uma maior reflexão sobre o gerenciamento dos processos repetitivos no Brasil, e enfrenta questões que não representam críticas a pessoas específicas, administrações de tribunais ou outras instituições jurídicas, mas, fundamentalmente, ao próprio modelo consolidado pelo CPC/2015 e sua eventual eficácia. Acima de tudo, procura trazer elementos para o aperfeiçoamento do ordenamento jurídico brasileiro e o fortalecimento do Estado Democrático de Direito.

1. AS DIVERGÊNCIAS DOUTRINÁRIAS SOBRE O MODELO DE PRECEDENTES E AS POSSÍVEIS CONTRIBUIÇÕES DA JURIMETRIA

O estabelecimento de conceitos ou aprofundamentos doutrinários sobre precedentes judiciais, como já ressaltado na parte introdutória, não é o objeto deste trabalho. Contudo, alguns esclarecimentos são fundamentais para que a análise jurimétrica possa ser feita com maior clareza nas próximas duas seções.

Assim, um primeiro ponto que precisa ficar bastante claro é que não há uma uniformidade de entendimento na literatura científica brasileira acerca da existência ou não de um sistema propriamente dito de precedentes no Brasil. Streck e Abboud (2016)STRECK, Lenio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o Sistema (sic) de precedentes no CPC? Revista Consultor Jurídico, 18 ago. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-ago-18/senso-incomum-isto-sistema-sic-precedentes-cpc. Acesso em: 16 jun. 2019.
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, por exemplo, sustentam que o CPC/2015 apenas estabeleceu uma série de provimentos judiciais que passariam a ter conteúdos vinculantes aos demais órgãos do Poder Judiciário, porém, sem que isso pudesse ser rotulado como um sistema. Viana e Nunes (2018VIANA, Aurélio; NUNES, Dierle. Precedentes: a mutação no ônus argumentativo. Rio de Janeiro: Forense, 2018. , p. 221), de outra banda, defendem que houve um intuito de se criar um modelo de sistema de precedentes judiciais, apesar das peculiaridades aqui existentes.

Havendo ou não um sistema próprio, é indiscutível a utilização cada vez mais frequente do direito jurisprudencial ou a escolha de um caminho em busca de mais coerência do sistema judicial, que encontra, não como um ponto final, mas como um local de consolidação, o CPC/2015.

As divergências não ficam restritas ao campo formal da existência de um sistema próprio ou não, entrando, inclusive, em discussões sobre qual o papel dos tribunais pátrios na formação e aplicação dos precedentes. Mitidiero (2018MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. , p. 80) chega a defender a existência de dois tipos de cortes, as de Justiça, compostas dos tribunais de justiça e tribunais regionais federais, e as de precedentes, formadas pelos tribunais superiores. 10 10 “É preciso distinguir entre as funções das Cortes de Justiça – exercer controle retrospectivo sobre as causas decididas em primeira instância e uniformizar a jurisprudência – e as Cortes de Precedentes – outorgar uma interpretação prospectiva e dar unidade ao direito” ( MITIDIERO, 2018 , p. 80-81).

Marinoni (2015MARINONI, Luis Guilherme. O julgamento das cortes supremas: precedentes e decisão do recurso diante do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. , p. 22) defende a existência de força vinculante nas decisões do STF e do STJ, ainda que não proferidas em casos repetitivos.

Marinoni (2015)MARINONI, Luis Guilherme. O julgamento das cortes supremas: precedentes e decisão do recurso diante do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. e Mitidiero (2018)MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. representam uma corrente de entendimento que defende a necessidade de o modelo adotado no Brasil passar a utilizar mecanismos hierarquizados de fixação de precedentes, concentrando-se nos tribunais superiores, na linha de que tal solução trará maior segurança jurídica ao ordenamento jurídico.

Do outro lado, há uma vertente acadêmica que defende o precedente não como mecanismo de vinculação vertical subsuntiva, mas como instituto fundamental para uma coerência sistêmica resultante do enriquecimento hermenêutico. Representando esse entendimento, Lopes Filho (2016LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os precedentes judiciais no constitucionalismo brasileiro contemporâneo. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2016. , p. 119) ressalta que, “se resumir a previsibilidade de resultados em razão de um enunciado preestabelecido, os precedentes não estão em posição melhor do que as leis para garanti-la”. Na mesma linha de pensamento, Nunes e Bahia (2014NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Jurisprudência instável e seus riscos: a aposta nos precedentes vs. uma compreensão constitucionalmente adequada do seu uso no Brasil. In: MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; MARINONI, Luiz Guilherme; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coords.). Direito jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. v. 2. p. 433-471. , p. 438) criticam a forma de utilização de precedentes verticalizados, e sustentam, inclusive, que tal modo de pensar configuraria um verdadeiro retorno da antiga escola da exegese. 11 11 Essa temática pode ser vista com maior profundidade em Lopes Filho (2016) .

Uma análise dos dispositivos legais sobre a matéria, principalmente os já citados arts. 927 e 1030 do CPC/2015, ou uma visita aos sítios dos tribunais superiores nas áreas reservadas aos processos repetitivos, apresenta uma resposta bastante clara: o modelo de vinculação que vem prevalecendo no Brasil assemelha-se ao defendido por Marinoni (2015)MARINONI, Luis Guilherme. O julgamento das cortes supremas: precedentes e decisão do recurso diante do novo CPC. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015. e Mitidiero (2018)MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. . Com efeito, os tribunais de vértice fixam seus “precedentes” para uma hipotética aplicação automática pelas cortes locais.

De qualquer forma, independentemente do modelo defendido de precedentes, é indiscutível a necessidade de um sistema que traga mais coerência e organicidade ao ordenamento jurídico. 12 12 A discussão sobre a natureza dos precedentes pode ser aprofundada em Duxbury (2008) . O presente artigo não pretende discutir em profundidade qual teoria deveria prevalecer, do ponto de vista doutrinário, mas essencialmente provocar reflexões se a prática cotidiana do que vem sendo concretizado no Brasil está contribuindo para uma maior estabilidade e coerência do sistema judicial, tal como estabelecido pelo art. 926 do CPC/2015.

A disciplina de que se lança mão para a concretização desse mister é a jurimetria. Segundo Guedes Nunes (2020GUEDES NUNES, Marcelo. Jurimetria: como a estatística pode reinventar o direito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. , p. 111), a jurimetria “é a disciplina do conhecimento que utiliza a metodologia estatística para investigar o funcionamento de uma ordem jurídica”. Ou seja, a jurimetria se concentra em dados coletados para descrever o seu problema e apontar caminhos para solução. Trata-se de uma ciência humana, causal e estocástica. Ciência humana porque investiga a veracidade de proposições formuladas sobre o objeto investigado: o comportamento humano. É causal em razão do estudo de causa e efeito probabilístico. Estocástica porque tem como propósito controlar a incerteza, sem a pretensão de extirpá-la completamente ( GUEDES NUNES, 2020GUEDES NUNES, Marcelo. Jurimetria: como a estatística pode reinventar o direito. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020. , p. 135).

Com efeito, a jurimetria busca contribuir para uma aproximação da verdade na ordem jurídica. Não uma verdade cartesiana, baseada em modelos hipoteticamente exatos e absolutos, mas uma verdade possível, probabilística, que nunca se afaste da consciência de suas próprias limitações.

Portanto, quanto aos precedentes judiciais no Brasil, independentemente da teoria adotada, mostra-se importante investigar os resultados da aplicação das teses ou dos temas fixados pelos tribunais superiores para utilização nos mais diversos juízos. Será que esse modelo de vinculação hierárquica, de solução massiva de processos em tese similares, que vem prevalecendo no Brasil, está contribuindo para uma maior coerência decisória dentro do sistema judicial brasileiro?

O presente estudo, como já detalhado na parte introdutória, focou-se no TJCE, tribunal de médio porte, com um número intermediário de processos no cenário nacional e com fácil acesso aos dados por parte dos pesquisadores. O Tribunal mostrou-se um campo de teste adequado para a utilização da jurimetria como meio de análise da eficácia das mudanças processuais e institucionais trazidas pela legislação e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). 13 13 Desde sua criação, o Núcleo de Precedentes do TJCE revelou-se um campo fértil para investigações e interação com as universidades. Sua atuação serviu direta ou indiretamente como fonte de pesquisa para trabalhos científicos, como o livro A aplicação dos precedentes judiciais no Brasil e o novo paradigma epistemológico das ciências: um estudo a partir da experiência no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará ( SÁ, 2020 ).

No âmbito do TJCE, a busca por respostas a essa pergunta passa por dois caminhos: (i) a análise dos dados hoje existentes no sistema de gerenciamento de precedentes do tribunal – Sisnugep; (ii) a investigação específica dos processos locais atingidos por teses fixadas no modelo de julgamento repetitivo pelos tribunais superiores.

2. A ANÁLISE DOS DADOS DO SISNUGEP-CE

A Resolução CNJ n. 235 ( BRASIL, 2016BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 235, de 13 de julho de 2016. [S. l.]: CNJ, 2016. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2312. Acesso em: 7 dez. 2020.
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) determina em seu art. 6o 14 14 “Art. 6 o O STJ, o TST, o TSE, o STM, os Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais Regionais do Trabalho devem organizar, como unidade permanente, o Núcleo de Gerenciamento de Precedentes (Nugep) no âmbito de suas estruturas administrativas com as atribuições previstas no art. 7 o ” ( BRASIL, 2016 ). que os tribunais deverão ter em suas estruturas administrativas permanentes um núcleo de gerenciamento de precedentes – Nugep. No âmbito do TJCE, o referido núcleo foi criado por meio da Resolução do Plenário do TJCE, n. 07/2016.

Para organizar os trabalhos de gerenciamento dos precedentes, criou-se o Sisnugep, um sistema informatizado para consolidar os dados relativos aos precedentes no âmbito do TJCE.

Apesar de todos os esforços das Administrações do tribunal, atualmente o Sisnugep possui o registro de apenas 5.488 processos vinculados a tema ou teses. Levando em consideração que o TJCE tem 1.227.500 processos pendentes de baixa, chega-se ao resultado de que somente 0,49% dos feitos encontram-se sob a gestão efetiva do núcleo de precedentes ( Gráfico 1 ).

GRÁFICO 1
PROCESSOS VINCULADOS A TEMAS NO TJCE

Do total de processos cadastrados, somente 0,04% se refere a teses julgadas, sendo quase todo o restante, 0,45%, relativo a processos sobrestados.

Outro dado fundamental é que desses 5.488 processos cadastrados, 5.319, 96,9%, tramitam no segundo grau de jurisdição, havendo apenas 169 processos, 3,1%, relativos aos processos de primeiro grau de jurisdição.

As conclusões relativas a esses dados são bastante evidentes: o sistema de gerência de precedentes não atinge uma parcela minimamente relevante dos processos em trâmite, e, ainda, os que se encontram cadastrados, em regra, estão no segundo grau de jurisdição, em fase de sobrestamento. O TJCE, inclusive, vem buscando soluções alternativas para esse problema, como o programa “Leia”, que utiliza inteligência artificial para identificar palavras-chave em processos repetitivos, fazendo referências nesses feitos para que os julgadores possam ter ciência de que aquele determinado processo pode ter relações com os julgados pelos tribunais superiores na sistemática dos repetitivos ( CEARÁ, 2019CEARÁ. Tribunal de Justiça. Vice-Presidência executa programa de inteligência artificial no TJCE. [S. l.]: TJCE, 2019. Disponível em: https://www.tjce.jus.br/noticias/vice-presidencia-executa-programa-de-inteligencia-artificial-no-tjce/. Acesso em: 31 mar. 2021.
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).

Entende-se que os resultados apresentados são consequência de um modelo nacional que, apesar de buscar uma verticalização e hierarquização, não considera que os tribunais no país ainda possuem sistemas diversos de informática, em fases distintas no processo de digitalização.

É fato que os dados aqui apresentados representam um achado importante, pois demonstram o tamanho do desafio que ainda precisa ser vencido. Contudo, do ponto de vista desta pesquisa, fica bastante claro que uma investigação efetiva do funcionamento do modelo nacional de precedentes, no âmbito do TJCE, não pode ser feita apenas com foco no sistema oficial de gerenciamento.

Dessa forma, optou-se por verificar os processos em concreto e analisar efetivamente qual o comportamento desses feitos quando um processo representativo da controvérsia é afetado ou julgado em âmbito nacional.

3. A ANÁLISE DOS DADOS PROCESSUAIS NOS TEMAS 766 E 1038 DO STJ

O questionamento fundamental desta pesquisa consiste em analisar se, no âmbito do TJCE, o sistema consolidado pelo CPC/2015 relativo à gestão de precedentes vem contribuindo para uma maior coerência no ordenamento jurídico. Portanto, diante da insuficiência de dados do Sisnugep vista na seção anterior, tornou-se indispensável investigar o próprio conteúdo das decisões judiciais e fazer um cotejo entre o decidido em casos concretos e a tese correspondente fixada em caráter vinculante pelo STJ. A metodologia empregada já foi detalhada na introdução deste artigo, sendo importante relembrar, contudo, que para o estudo foram selecionados os temas 766 e 1038, ambos já definitivamente julgados como recursos repetitivos e fixados a partir de processos originários do TJCE, 15 15 Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp . Acesso em: 23 jun. 2022. por provocação seja da corte local, seja do próprio STJ. 16 16 Com efeito, se a questão principal é investigar se as teses vinculantes estão concretamente produzindo efeitos práticos nos tribunais locais, o fato de os temas terem sido estabelecidos por discussões originárias no próprio TJCE facilitaria, em tese, o conhecimento das questões debatidas. Ressalte-se que apenas esses dois temas aparecem como originários do Ceará no âmbito da pesquisa de recursos repetitivos no STJ.

Selecionados os temas, solicitou-se ao TJCE a lista de todos os processos que tramitaram naquela corte desde a data da ordem de suspensão nacional, para cada uma das teses fixadas, até o dia 19 de outubro de 2020, data de fechamento da coleta dos dados da pesquisa. Posteriormente, esses dados foram encaminhados para a ABJ (2020)ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE JURIMETRIA (ABJ). Amostra de Pesquisa Aleatória. [S. l.]: [s. n.], 2020. Disponível em: https://gist.github.com/jtrecenti/f63f2a56a883edd04a1acc495a534c94. Acesso em: 31 mar. 2021.
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, que calculou uma amostra 17 17 O código que criou essa amostra – feito na linguagem de programação estatística R – pode ser acessado neste link: https://gist.github.com/f63f2a56a883edd04a1acc495a534c94 . aleatória de pesquisa. Cada processo selecionado foi aberto e foi verificado se a ordem de sobrestamento foi observada e, além disso, se no julgamento do processo citou-se, ainda que para distinguir, a tese ou o tema julgado pelo STJ. 18 18 Para mais informações sobre a metodologia empregada na pesquisa, consultar a introdução.

O objetivo dessa análise é, portanto, verificar se após a ordem de sobrestamento nacional e/ou o julgamento do tema pelo STJ o sistema apresentou ganhos em termos de integridade e coerência. O estudo de decisões judiciais em concreto possibilitará extrair reflexões sobre o modelo brasileiro de precedentes. Assim, passa-se agora à análise desses dados, separadamente para cada tema.

3.1. ANÁLISE DO GRUPO DE PROCESSOS RELATIVOS AO TEMA 766

O tema 766 19 19 “O Ministério Público é parte legítima para pleitear tratamento médico ou entrega de medicamentos nas demandas de saúde propostas contra os entes federativos, mesmo quando se tratar de feitos contendo beneficiários individualizados, porque se refere a direitos individuais indisponíveis, na forma do art. 1 o da Lei n. 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público)” ( BRASIL, 2018 ). aborda a questão jurídica sobre a legitimidade de o Ministério Público (MP) requerer medicamentos ou tratamento médico para beneficiários específicos. A ordem de sobrestamento nacional ocorreu em 7 de novembro de 2017 e o julgamento favorável à legitimidade do MP, em 25 de abril de 2018.

O processo paradigma submetido ao STJ, originário do Ceará, acabou não sendo o recurso efetivamente julgado na sistemática do repetitivo, pois aquela corte entendeu que outro, advindo de São Paulo, estava mais apropriado para fins de fixação da tese. Isso não retira a justificativa do recorte aqui definido, porquanto o que foi adotado como critério foi exatamente haver referência expressa no sítio do STJ de que, na temática repetitiva, o TJCE possuiria processos sobre o assunto. 20 20 Como também já mencionado na introdução, ao vincular a origem do Tribunal cearense nos processos repetitivos, apenas aparecem os dois temas aqui pesquisados.

No banco de dados do TJCE, extraiu-se uma lista dos processos relacionados ao tema 21 21 É importante informar que não há no banco de dados do TJCE um cadastro de processos relativos aos temas. Portanto, foi necessário estabelecer critérios de busca com foco na classe processual e nos assuntos, além do polo ativo do processo – no caso restrita ao MP. Assim, foram extraídos os dados com os seguintes parâmetros: Relação de processos julgados no período de 7 de novembro de 2017 até 19 de outubro de 2020 – SAJPG, SAJSG. Polo ativo (requerente, promovente, impetrante, etc.): Ministério Público, MP, etc. Assuntos: Assistência à saúde/Direito da Saúde/Fornecimento de medicamentos/Medicamento/tratamento/cirurgia de eficácia não comprovada/Medicamento em desacordo com receita médica/Tratamento médico-hospitalar e/ou fornecimentos de medicamentos/Tratamento médico-hospitalar/Requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime/hospitalar ou ambulatorial. desde a data de sobrestamento nacional até o dia 19 de outubro de 2020, fechamento desta pesquisa, exatamente para que fosse possível analisar se os processos foram efetivamente sobrestados e se as decisões ou sentenças fizeram alguma referência ao tema objeto de análise.

No total, foram identificados 430 processos, tendo a ABJ apontado a necessidade de análise mínima de 30 casos para fins de amostragem 22 22 Código pesquisável da amostragem: https://gist.github.com/f63f2a56a883edd04a1acc495a534c94 . e criado uma ordem de aleatoriedade nesses processos. Assim, a análise seguiu rigorosamente a sequência da lista encaminhada e excluiu apenas os processos que ainda não estavam digitalizados (processos físicos), já que espalhados por diversas comarcas distantes. Nesse caso, seguiu-se a sequência da lista para o processo imediatamente posterior.

Foram analisados em detalhes 35 processos relacionados ao tema 766. Em todos eles, os assuntos tratados coincidiram exatamente com a temática abordada pelo tema, obtendo-se os seguintes resultados: (i) quanto à ordem de sobrestamento nacional, 33 processos continuaram tramitando normalmente, sem paralisação para espera do julgado do STJ, tendo apenas dois processos sido devidamente sobrestados, o que resulta em um percentual de 5,7% de acolhimento da ordem nacional ( Gráfico 2 ); (ii) quanto às decisões, sentenças ou acórdãos proferidos, em 34 processos nada foi ventilado sobre o tema em estudo, tendo isso ocorrido em apenas um processo, que fez expressa citação, resultando em um percentual de 2,8% ( Gráfico 3 ).

GRÁFICO 2
PROCESSOS EFETIVAMENTE SOBRESTADOS

GRÁFICO 3
PROCESSOS COM REFERÊNCIA AO TEMA 766

Para uma adequada compreensão da questão aqui suscitada, pode-se resgatar o Processo n. 0014907-66.2017.8.06.0090, que tramitou na comarca de Icó-CE. A petição inicial foi protocolada em 12 de dezembro de 2017 pelo MP do estado do Ceará em desfavor do município. O objeto da ação era o fornecimento de medicamento para uma pessoa específica.

Em dezembro de 2017, já havia ordem de sobrestamento nacional determinada pelo STJ, em decorrência da afetação do tema 766. Nada foi levantado pelo MP sobre esse ponto, que se resumiu a citar uma jurisprudência favorável à sua legitimidade, mas sem nenhuma referência ao tema.

A decisão interlocutória, por sua vez, foi proferida em janeiro de 2018, durante o período de suspensão nacional, também sem nenhuma referência a esse aspecto. A matéria foi julgada em 25 de abril de 2018 pelo STJ e, no caso em análise, a sentença proferida em julho de 2018, sem referência ao tema 766, agora, já julgado. Ou seja, o processo foi protocolado, tramitou sem suspensão, nenhuma das partes suscitou a discussão e o julgamento foi realizado sem que a apreciação do recurso repetitivo tenha gerado ganho argumentativo. Tal problemática se repetiu em 97,2% dos processos aqui pesquisados de forma aleatória.

O que se constata, portanto, em relação ao tema 766 do STJ é uma quase absoluta falta de citação nas decisões analisadas – o que somente ocorreu em um processo pesquisado –, além do grave problema da ausência de sobrestamento, pois somente dois processos foram suspensos. Com efeito, na quase totalidade dos casos, os legitimados ativos ou passivos, ou mesmo os julgadores, não tomaram conhecimento da tramitação do processo paradigma no STJ, não tendo havido consequentemente efeitos efetivos da fixação da tese nos processos pesquisados.

A lógica por trás da sistemática de julgamento dos processos repetitivos é que, em temas de controvérsia relevante sobre o Direito, essas matérias sejam levadas ao tribunal superior respectivo para a fixação de uma tese vinculante em todo o país. Havendo sobrestamento, os processos em todos os tribunais brasileiros devem permanecer suspensos, a fim de evitar decisões conflitantes. Uma vez julgado o repetitivo, todos os juízes no Brasil teriam a questão de direito esclarecida para fins de aplicação nos casos concretos, o que possibilitaria ainda discussões sobre eventuais distinções ou superações de precedentes, sempre com um almejado ganho argumentativo.

Contudo, o que os dados analisados demonstram é que em 97,2% dos processos pesquisados de forma aleatória isso não ocorreu. Ainda que os participantes discordassem da incidência do precedente ao caso em concreto – o que seria estranho em razão da semelhança da matéria de Direito –, no mínimo uma mera referência ao tema 766 deveria ter ocorrido, mesmo que para afastar sua aplicação.

Em resumo, praticamente todos os processos analisados tramitaram sem sobrestamento, e, o que é mais grave, o modelo de julgamento verticalizado não produziu nenhum ganho argumentativo no conteúdo das decisões judiciais investigadas.

3.2. ANÁLISE DO GRUPO DE PROCESSOS RELATIVOS AO TEMA 1038

Quanto ao tema 1038, 23 23 “Os editais de licitação ou pregão não podem conter cláusula prevendo percentual mínimo referente à taxa de administração, sob pena de ofensa ao artigo 40, inciso X, da Lei n. 8.666/1993” (BRASIL, 2020a). discute-se sobre possibilidade de o ente público estipular cláusula editalícia em licitação prevendo percentual mínimo referente à taxa de administração para evitar propostas inexequíveis. A ordem de sobrestamento nacional ocorreu em 3 de dezembro de 2019 e o julgamento, em 23 de setembro de 2020, no sentido da ilegalidade de imposição de percentual mínimo, sob pena de ofensa ao art. 40, X, da Lei n. 8.666/1993.

No banco de dados do TJCE, foi extraída uma lista dos processos relacionados ao tema 24 24 Destaque-se mais uma vez a inexistência de campos próprios na base de dados do TJCE relativos ao tema relacionado, o que torna a pesquisa possível apenas por meio dos critérios de busca com foco na classe processual e nos assuntos. Assim, para o tema 1038, foram extraídos os dados com os seguintes parâmetros: Relação de processos julgados no período de 3 de dezembro de 2019 até 19 de outubro de 2020 – SAJPG e SAJSG. Assuntos: Taxa de Administração. Edital. Licitações. da data de sobrestamento nacional até o dia 19 de outubro de 2020, para a já destacada análise sobre efetivo sobrestamento e referências mínimas ao tema julgado nas decisões, sentenças e acórdãos examinados.

No total, foram identificados 589 processos, tendo a ABJ apontado a necessidade de análise mínima de 30 processos para fins de amostragem, 25 25 Código pesquisável da amostragem: https://gist.github.com/f63f2a56a883edd04a1acc495a534c94 . seguindo uma ordem de aleatoriedade. Assim, a análise seguiu rigorosamente a sequência da lista encaminhada e excluiu apenas os processos que, embora correspondessem ao assunto de licitação, não tinham discussão específica sobre taxa de administração. Quando tal hipótese foi identificada no processo, passou-se, na sequência, para o processo imediatamente posterior.

Em relação ao tema 1038, também foram examinados minuciosamente 35 processos extraídos da amostra aleatória, pertencentes às mais diversas unidades judiciais, envolvendo primeiro e segundo graus de jurisdição. Aqui, os resultados encontrados foram os seguintes: (i) dos 35 processos, a ordem de sobrestamento nacional somente foi observada em dois feitos, resultando em um percentual de apenas 5,7% ( Gráfico 4 ); (ii) quanto ao conteúdo das decisões, somente sete processos expressamente mencionaram a ocorrência do tema 1038 em algum dos seus julgados, ou seja, em 20% dos processos analisados os julgadores de alguma forma citaram o tema 1038 ( Gráfico 5 ). Ressalte-se que, desses sete processos, em cinco deles os magistrados fizeram a distinção e decidiram não seguir o tema 1038, e, nos outros dois feitos, o tema foi acolhido. Em 80% dos processos não houve nenhuma referência ao tema em análise, embora em todos os editais juntados ao processo constasse expressamente um percentual mínimo referente à taxa de administração.

GRÁFICO 4
PROCESSOS EFETIVAMENTE SOBRESTADOS

GRÁFICO 5
PROCESSOS COM REFERÊNCIA AO TEMA 1038

Para tornar as conclusões dos dados citados mais fáceis de serem compreendidas, explicita-se aqui o ocorrido no Processo n. 0630251-46.2019.8.06.0000 (Proc. Originário 0169848-76.2019): a petição inicial foi protocolada em 5 de setembro de 2019, e deferida liminar em 9 de setembro de 2019. Em 3 de dezembro de 2019, houve a ordem de sobrestamento nacional, e o julgamento pelo STJ ocorreu em 23 de setembro de 2020. O parecer do MP, datado de novembro de 2020, ou seja, posterior ao julgamento pelo STJ, não fez nenhuma referência ao tema. Consta até uma argumentação no sentido de distinguir os casos de taxa de administração mínima e os casos relativos à comprovação alternativa, aqui denominada cláusula de exceção, mas nada é dito sobre o tema 1038. A sentença, por sua vez, apesar de ter concedido a segurança, entendendo ser possível comprovar a exequibilidade da proposta por outros meios, em seu bojo chega a externar o entendimento de ser “plausível a exigência de taxa mínima de administração no valor de um por cento”. Ocorre que o tema 1038, em novembro de 2020, já havia sido julgado exatamente no sentido contrário ao externado na sentença.

Em outras palavras, não houve suspensão processual, não houve expressa distinção das hipóteses para prosseguimento do feito, as partes não citaram o tema 1038 e, finalmente, a sentença, apesar de ter concedido a segurança por outro argumento, ainda externou entendimento contrário ao tema, sem nenhuma referência a ele.

Os casos analisados relativos à taxa de administração, além de demonstrarem os resultados apresentados, também expuseram outro achado importantíssimo. Isso porque o Recurso Especial (REsp) 1.840.154/CE e o REsp 1.840.113/CE, remetidos pelo TJCE e aceitos pelo STJ como representativos de controvérsia, tinham como objeto de discussão única e exclusivamente a legalidade ou não do percentual mínimo de taxa de administração. Ocorre que, quando esses processos foram remetidos e aceitos para início do procedimento inerente aos repetitivos, a realidade já se modificara, o que tornou a discussão inicial do tema 1038, pelo menos no Ceará, de certa forma incompleta.

Explica-se: todos os processos analisados nesta pesquisa sobre o tema 1038 eram dos anos de 2017 em diante, pois foram adotados como marco de corte julgamentos ocorridos após a data de suspensão nacional, em 3 de dezembro de 2019. Ou seja, como o recorte foi do momento da citada decisão de sobrestamento nacional, naturalmente os processos que apareceram na lista de extração tinham como data de protocolo inicial, no máximo, um ou dois anos pretéritos, tempo médio de julgamento dessa espécie processual.

Nesses processos, os editais objeto de discussão já traziam, além do percentual mínimo de taxa de administração – matéria específica do tema 1038 –, uma cláusula de exceção que passou a permitir aos licitantes que tivessem percentuais inferiores a 1% comprovar a viabilidade de suas operações por outros meios. Manteve-se a taxa mínima, mas as administrações públicas passaram a contornar o problema inserindo nos editais uma possibilidade de comprovação extraordinária para os licitantes que não a observassem, com certeza, em decorrência das decisões judiciais que já decretavam a ilegalidade da chamada taxa mínima.

Em outras palavras, apesar de os processos mais antigos tratarem apenas da taxa de administração, os mais recentes continham a mesma taxa mínima, mas com uma excepcionalidade de comprovação alternativa da viabilidade econômica do negócio. Essa mudança editalícia fez com que, na prática forense, quando aberto o procedimento dos repetitivos no STJ por suscitação do próprio TJCE, o problema jurídico concreto já fosse outro, diferente do submetido a análise.

Buscando enfrentar tal problemática, o TJCE, por meio do Ofício Circular n. 31, de 25 de setembro de 2019, esclareceu aos magistrados cearenses que o objeto da suspensão – nessa época ainda meramente estadual, pois sem apreciação do STJ – dizia respeito apenas aos casos que tratassem exclusivamente de percentual mínimo de taxa de administração, não devendo envolver os processos que discutissem editais com a já destacada cláusula de exceção – também chamada de comprovação alternativa da viabilidade econômica do negócio. Ocorre que nessa época, meados de 2019, como destacado anteriormente, os novos processos já estavam sendo protocolados para discutir exatamente a cláusula de exceção. Com efeito, todos os 35 processos analisados na amostra, alguns ainda de 2017, já não tratavam apenas da discussão da taxa mínima.

No âmbito do STJ, a ordem de sobrestamento nacional – aqui adotada para fins da pesquisa –, em 3 de dezembro de 2019, nada esclareceu sobre a abrangência da suspensividade. 26 26 “Processual civil. Proposta de afetação. Recurso especial. Rito dos recursos especiais repetitivos. Art. 256-I, c/c o art. 256-E do RISTJ, na redação da Emenda Regimental 24, de 28/9/2016. Licitação e pregão. Cláusula editalícia prevendo percentual mínimo referente à taxa de administração. Alegação de ofensa ao inciso x do artigo 40 da Lei n. 8.666/1993. Multiplicidade de processos e divergência de interpretação nos tribunais. Abrangência da suspensão. Art. 1.037, inc. II, do CPC. Proposta de afetação acolhida. 1. Delimitação da controvérsia: ‘Possibilidade de o ente público estipular cláusula editalícia em licitação/pregão prevendo percentual mínimo referente à taxa de administração, como forma de resguardar-se de eventuais propostas, em tese, inexequíveis.’ […] 3. Determinada a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem acerca da questão delimitada e tramitem no território nacional (art. 1.037, II, do CPC). […]” (REsp 1.840.154/CE, rel. Min. Og Fernandes, julgado em 26.11.2019, Primeira Seção, DJe 03.12.2019). No mesmo sentido, ou seja, de forma genérica, foi a tese fixada quando do julgamento definitivo pelo STJ, em 23 de setembro de 2020. 27 27 “Administrativo. Recurso especial sob o rito dos recursos repetitivos. Arts. 40, inc. X, e 48, §§ 1 o e 2 o , da Lei n o 8.666/93. Cláusula editalícia em licitação/pregão. Fixação de percentual mínimo referente à taxa de administração. Intuito de obstar eventuais propostas, em tese, inexequíveis. Descabimento. Busca da proposta mais vantajosa para a administração. Caráter competitivo do certame. Entendimento consolidado no TCU. Existência de outras garantias contra as propostas inexequíveis na legislação. Recurso especial conhecido e provido. Recurso julgado sob a sistemática do art. 1.036 e seguintes do CPC/2015 c/c art. 256-N e seguintes do Regimento Interno do STJ. 1. O objeto da presente demanda é definir se o ente público pode estipular cláusula editalícia em licitação/pregão prevendo percentual mínimo referente à taxa de administração, como forma de resguardar-se de eventuais propostas, em tese, inexequíveis. […] 4. A fixação de percentual mínimo de taxa de administração em edital de licitação/pregão fere expressamente a norma contida no inciso X do art. 40 da Lei n o 8.666/93, que veda ‘a fixação de preços mínimos, critérios estatísticos ou faixas de variação em relação a preços de referência’. […] 6. Sendo o objetivo da licitação selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração – consoante expressamente previsto no art. 3 o da Lei n o 8.666/93 –, a fixação de um preço mínimo atenta contra esse objetivo, especialmente considerando que um determinado valor pode ser inexequível para um licitante, porém exequível para outro. Precedente do TCU. 7. Deve a Administração, portanto, buscar a proposta mais vantajosa; em caso de dúvida sobre a exequibilidade, ouvir o respectivo licitante; e, sendo o caso, exigir-lhe a prestação de garantia. Súmula n o 262/TCU. Precedentes do STJ e do TCU. […] 10. Tese jurídica firmada: ‘Os editais de licitação ou pregão não podem conter cláusula prevendo percentual mínimo referente à taxa de administração, sob pena de ofensa ao artigo 40, inciso X, da Lei n o 8.666/1993 […]’” (REsp 1.840.154/CE, rel. Min. Og Fernandes, julgado em 26.11.2019, Primeira Seção, DJe 03.12.2019).

Em razão do objeto deste artigo, não cabe aqui uma discussão aprofundada sobre o alcance da decisão do STJ, se envolveria ou não os editais com a denominada cláusula de exceção, mas o que se pode afirmar, com base nos dados pesquisados, é que em 80% dos casos não houve discussão sobre esse ponto. Nos outros 20%, os magistrados fizeram distinção adentrando exatamente nessa polêmica, seja para decidir pela aplicabilidade da suspensão e do tema aos editais com cláusula de exceção, seja para afastar a incidência, à luz do Ofício Circular n. 31/2019.

Ademais, é importante mencionar que, em um dos processos analisados 28 28 Processo n. 0170281-17.2018.8.06.0001. em 14 de julho de 2020, o TJCE suspendeu um recurso especial, com base no tema 1038, embora o edital trouxesse expressamente a possibilidade alternativa de comprovação da viabilidade da proposta se esta não observasse o percentual mínimo da taxa de administração, o que contraria o próprio Ofício Circular n. 31/2019.

Constata-se assim que a questão da aplicabilidade ou não do tema 1038 aos processos que continham a cláusula de exceção não era de fácil solução, exigia, em tese, pelo menos uma abordagem nas decisões relacionadas às matérias, o que somente ocorreu em 20% dos casos estudados.

Tais resultados se harmonizam com os demais dados aqui pesquisados, e demonstram, do ponto de vista da jurimetria, que estatisticamente o modelo idealizado de precedentes vem apresentando graves problemas.

É imperioso mencionar que as disfuncionalidades encontradas aqui no âmbito do Poder Judiciário também se estendem para as outras instituições de justiça. Com efeito, no tema 766, não se constatou nenhum ganho argumentativo na defesa dos interesses do MP, embora a discussão do tema fosse exatamente sobre a sua legitimidade. Isso não ocorreu nem mesmo após a fixação da tese pelo STJ, favoravelmente ao MP. As Fazendas Públicas também não suscitaram, na amostra analisada, a suspensão dos processos, apesar da ordem nacional de sobrestamento em matéria de seu indiscutível interesse. Quanto ao tema 1038, a mesma ausência de referências foi identificada, inexistindo ganho argumentativo nas manifestações da advocacia.

Os resultados apresentados neste trabalho em relação ao TJCE acendem um sinal de alerta sobre o real avanço da coerência e da integridade do Direito no ordenamento jurídico brasileiro com a introdução do modelo de precedentes chamados de vinculantes pelos tribunais de vértice. Isso porque, quando os problemas são identificados em decisões judiciais concretamente analisadas, tanto de primeiro quanto de segundo graus, ainda que apenas em um tribunal, as falhas são do próprio sistema judicial brasileiro, não representam uma mera questão administrativa local, de possível responsabilidade exclusiva do órgão julgador estudado. Com efeito, quando juízes não citam em suas decisões teses vinculantes fixadas pelos tribunais superiores, ainda que para fins de distinção, o problema aponta para o próprio modelo de precedentes adotado no Brasil.

4. ESTUDOS FUTUROS POSSÍVEIS DE DESENVOLVIMENTO

A metodologia de pesquisa aqui desenvolvida pode ser replicada em outros locais da federação. Basta verificar os temas originários desses estados e analisar o banco de dados dos seus tribunais em busca da correta identificação dos processos, cumprimento das ordens de sobrestamento e análise de eventuais ganhos argumentativos no bojo das decisões judiciais proferidas. Ao empregar essa metodologia, o que se constatou aqui foi uma falha do modelo idealizado de precedentes ou de replicação das teses vinculantes estabelecidas em sede de julgamento de processos repetitivos, tendo em vista a ausência extremamente relevante de menção aos temas analisados.

Essa falha diagnosticada pode ter, pelo menos, duas causas principais: o desconhecimento da existência dessas teses vinculantes ou um problema de como trabalhar adequadamente com precedentes no ordenamento jurídico brasileiro.

A primeira hipótese é mais fácil de ser superada, pois pode contar com todo o aparato tecnológico disponível para auxílio de identificação dos temas nos processos, como já é feito, por exemplo, no âmbito do projeto “Victor” ( BRASIL, 2018BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteligência artificial vai agilizar a tramitação de processos no STF. [S. l.]: STF, 2018. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/584499448/inteligencia-artificial-vai-agilizar-a-tramitacao-de-processos-no-stf#:~:text=Intelig%C3%AAncia%20artificial%20vai%20agilizar%20a%20tramita%C3%A7%C3%A3o%20de%20processos%20no%20STF,-Salvar&text=Batizado%20de%20VICTOR%2C%20a%20ferramenta,aplica%C3%A7%C3%B5es%20de%20IA%20no%20Judici%C3%A1rio. Acesso em: 31 mar. 2021.
https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/58...
), do STF. Ferramentas de tecnologia e de inteligência artificial, sem dúvida, podem auxiliar bastante as partes e os julgadores no amplo conhecimento do que está tramitando em sede de repetitivo nos tribunais superiores, se há ordens de sobrestamento ou se a matéria já foi julgada em caráter vinculante.

A segunda possibilidade sobre as razões da ausência de citação dos temas nos processos investigados exige, contudo, mais cuidados. Com efeito, não basta ter ciência de que determinada matéria de Direito já foi objeto de apreciação pelo Poder Judiciário, inclusive – como vigente no sistema brasileiro – com caráter de vinculação. O trabalho com precedentes exige uma verdadeira cultura jurídica diferenciada que valorize, como destaca Dworkin (2017DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2017. , p. 176), uma força gravitacional de aplicação decorrente de um apelo principiológico para que casos semelhantes recebam tratamentos similares, e não meramente em razão de determinações legislativas de vinculação.

Pesquisas futuras podem adicionar outras metodologias de investigação, como entrevistas com os profissionais identificados nos processos observados ou uma análise mais qualitativa das decisões que façam referência às teses vinculantes, para buscar entender por quais motivos esses julgados não foram citados nos casos estudados ou, se foram, como é a cultura jurídica brasileira no trabalho concreto com precedentes.

Nesse sentido, entrevistas poderiam aprofundar o grau de conhecimento ou desconhecimento das teses fixadas pelos tribunais superiores. Outrossim, estudos com foco nas decisões que citaram os precedentes seriam importantes para um detalhamento sobre qual a concepção de precedentes que os magistrados brasileiros têm e como compreendem a força de vinculação do sistema.

Sem dúvida, o presente trabalho pode servir como ponto de partida para a continuidade de outras investigações, de outros questionamentos, capazes de fornecer mais respostas para aperfeiçoar o sistema judicial brasileiro, torná-lo mais eficiente, célere e coerente, e, consequentemente, fortalecer o Estado Democrático de Direito no Brasil.

CONCLUSÃO

O modelo de precedentes consolidado pelo CPC/2015 parte do pressuposto de que caberia aos tribunais de vértice fixar suas teses vinculantes nos mais diversos assuntos, e, como consequência, os milhares de casos tidos como semelhantes sofreriam um processo de aplicação quase automática por parte do Poder Judiciário nacional, o que traria coerência e integridade ao ordenamento jurídico.

A presente pesquisa mostrou, contudo, que, em relação aos dois temas do STJ – 766 e 1038 –, reconhecidos como originários do TJCE, os processos continuaram, nesse tribunal, tramitando praticamente desconectados do julgamento dos processos paradigmas.

O problema foi primeiro identificado a partir dos próprios dados insuficientes do Núcleo de Gerenciamento de Precedentes do TJCE, que possui ciência e controle de apenas 0,49% da totalidade de processos do tribunal.

Outro achado importante foi em relação à obediência das ordens de sobrestamento nacional. Como se constatou, em ambos os temas pesquisados, apenas 5,7% dos processos que compuseram a amostra calculada pela ABJ foram devidamente sobrestados.

Finalmente, a análise das decisões, das sentenças e dos acórdãos relativos aos citados temas consolidou o diagnóstico de uma disfunção no funcionamento do sistema de precedentes, pelo menos no âmbito do TJCE. Com efeito, quanto ao tema 766, em 97,2% dos casos pesquisados nada foi dito nos autos sobre a decisão do STJ. Em relação ao tema 1038, em 80% dos casos não houve nenhuma discussão sobre a aplicabilidade ou não da tese fixada pelo STJ.

Os temas aqui pesquisados são simples e de fácil memorização e envolvem matérias altamente conhecidas nas lides judiciárias, expressamente reconhecidas pelo STJ como objeto de discussão no TJCE, o que torna o problema ainda mais evidente. Se a insuficiência de sobrestamento e de referência nos julgados ocorre com temas de tais características, revela-se bastante provável que em outros menos conhecidos e mais complexos a situação seja ainda pior.

Do ponto de vista da jurimetria, as análises aqui realizadas não são voltadas para um estudo das normas que regulamentam o uso de precedentes no Brasil, mas, efetivamente, para qual tem sido o efeito concreto, o comportamento humano, no uso e na aplicação dessas normas.

Nesse sentido, os dados coletados no TJCE apontam para uma realidade descompassada do modelo proposto pelo CPC/2015, problema esse, ressalte-se, que não fica restrito ao Poder Judiciário, replica-se em diversas instituições do sistema de justiça. Com efeito, nos processos estudados sobre a legitimidade do MP para requerer benefícios no campo da saúde para pessoas específicas, verificou-se que nem o MP suscitou a aplicabilidade do tema, mesmo após seu julgamento pelo STJ, como forma de argumentar em defesa de sua pretensão. Da mesma forma, não houve suscitações para fins de suspensividade por parte das Fazendas Públicas quando do sobrestamento nacional. No debate sobre a problemática da taxa de administração, esse fenômeno também se repetiu, sendo praticamente inexistente a suscitação do tema 1038 pela advocacia nos processos analisados no Ceará.

Conclui-se pelos dados coletados que o problema é grave, envolve principalmente o Poder Judiciário, mas também as demais instituições do sistema de justiça, e trata-se, na verdade, de uma disfunção do próprio modelo de gerenciamento de precedentes no Brasil. Há um inegável desconhecimento de muitos dos temas já fixados, os quais já superam a ordem das mil teses, seja no STF, seja no STJ.

A constatação é de que qualquer discussão jurídica, ainda que simplória, atualmente tem o potencial para vir a ser uma tese vinculante, ainda que na essência essa matéria já poderia ter sido resolvida pela ratio decidendi resultante de outros julgados já deliberados. O achado relativo ao tema 1038 comprova essa afirmação. Como visto, quando a matéria foi suscitada ao STJ pelo próprio TJCE, em meados de 2019, os processos que estavam sendo distribuídos nas varas de Fazenda Pública já traziam uma peculiaridade não pensada quando da análise primeira do problema.

Em casos como esse, a solução não deve passar por outra suscitação da matéria ao STJ, ou ainda por uma mera distinção dos casos. Para o adequado funcionamento do modelo de precedentes, conclui-se ser imprescindível que todos os componentes do sistema de justiça conheçam as matérias objeto de discussão dentro da sistemática dos repetitivos. Mas não apenas isso, é preciso que saibam extrair a ratio decidendi do que efetivamente já foi trabalhado em outros casos semelhantes para a solução dos casos presentes. Sem dúvida, isso evitaria a multiplicidade de temas e teses e, consequentemente, também facilitaria o conhecimento dessas matérias.

Programas como “Leia”, de iniciativa do TJCE ( CEARÁ, 2019CEARÁ. Tribunal de Justiça. Vice-Presidência executa programa de inteligência artificial no TJCE. [S. l.]: TJCE, 2019. Disponível em: https://www.tjce.jus.br/noticias/vice-presidencia-executa-programa-de-inteligencia-artificial-no-tjce/. Acesso em: 31 mar. 2021.
https://www.tjce.jus.br/noticias/vice-pr...
), ou como o “Victor” ( BRASIL, 2018BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteligência artificial vai agilizar a tramitação de processos no STF. [S. l.]: STF, 2018. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/584499448/inteligencia-artificial-vai-agilizar-a-tramitacao-de-processos-no-stf#:~:text=Intelig%C3%AAncia%20artificial%20vai%20agilizar%20a%20tramita%C3%A7%C3%A3o%20de%20processos%20no%20STF,-Salvar&text=Batizado%20de%20VICTOR%2C%20a%20ferramenta,aplica%C3%A7%C3%B5es%20de%20IA%20no%20Judici%C3%A1rio. Acesso em: 31 mar. 2021.
https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/58...
), do STF, os quais utilizam a inteligência artificial para identificar palavras-chave em processos repetitivos, são importantíssimos e devem ser cada vez mais consolidados. Apesar de fundamentais, eles por si sós não resolverão os problemas aqui identificados quanto ao modelo brasileiro de precedentes consolidado pelo CPC/2015. É imprescindível um treinamento de todos que trabalham no sistema de justiça para que possam ter uma visão mais aprofundada do trabalho com precedentes. Como destaca Streck (2018STRECK, Lenio Luiz. Precedentes judiciais e hermenêutica: o sentido da vinculação no CPC/2015. Salvador: JusPodivm, 2018. , p. 50), é preciso romper com o atrelamento antigo do esquema sujeito-objeto, que resulta na insuficiência das deduções fundadas na subsunção.

A pesquisa jurimétrica aplicada neste estudo, com foco no TJCE, oferece um ponto de partida importante para o desenvolvimento de uma metodologia de análise acerca do modelo de precedentes judiciais em execução no Brasil. Deve-se investigar se os milhares de processos que correm nas mais diversas instâncias judiciais brasileiras estão sendo minimamente identificados e, em caso positivo, se estão recebendo algum tipo de tratamento diferenciado, do ponto de vista argumentativo, quando seus paradigmas são apreciados pelas cortes de vértice. Os resultados da pesquisa no âmbito do TJCE colocam em dúvida a efetividade do modelo de precedentes preconizado pelo CPC/2015, principalmente em seus ideais de integridade e coerência.

REFERÊNCIAS

  • 1
    “Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” ( BRASIL, 2015BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 7 dez. 2020.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
    ).
  • 2
    “Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados” ( BRASIL, 2015BRASIL. Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 7 dez. 2020.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
    ).
  • 3
    Nesse sentido, pode-se verificar esta notícia da época: CÓDIGO de Processo Civil entra em vigor com a promessa de agilizar ações. Agência Brasil , 18 mar. 2016. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-03/novo-codigo-civil-entra-em-vigor-com-promessa-de-agilizar-acoes-na-justica . Acesso em: 23 jun. 2022.
  • 4
    Esses estudos resultaram na publicação da obra A aplicação dos precedentes judiciais no Brasil e o novo paradigma epistemológico das ciências: um estudo a partir da experiência no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará ( SÁ, 2020SÁ, Alexandre Santos Bezerra. A aplicação dos precedentes judiciais no Brasil e o novo paradigma epistemológico das ciências: um estudo a partir da experiência no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. São Paulo: Dialética, 2020. ).
  • 5
    “O Ministério Público é parte legítima para pleitear tratamento médico ou entrega de medicamentos nas demandas de saúde propostas contra os entes federativos, mesmo quando se tratar de feitos contendo beneficiários individualizados, porque se refere a direitos individuais indisponíveis, na forma do art. 1 o da Lei n. 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público)” ( BRASIL, 2018BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteligência artificial vai agilizar a tramitação de processos no STF. [S. l.]: STF, 2018. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/584499448/inteligencia-artificial-vai-agilizar-a-tramitacao-de-processos-no-stf#:~:text=Intelig%C3%AAncia%20artificial%20vai%20agilizar%20a%20tramita%C3%A7%C3%A3o%20de%20processos%20no%20STF,-Salvar&text=Batizado%20de%20VICTOR%2C%20a%20ferramenta,aplica%C3%A7%C3%B5es%20de%20IA%20no%20Judici%C3%A1rio. Acesso em: 31 mar. 2021.
    https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/58...
    ).
  • 6
    Quanto ao tema 766, embora tenha sido julgado como representativo da controvérsia um processo do estado de São Paulo, e não do Ceará, a suscitação da necessidade de julgamento no rito dos repetitivos incluiu um processo do TJCE, o que satisfaz para fins desta pesquisa a pergunta se o tema ou a tese possui aplicabilidade no âmbito do tribunal local.
  • 7
    “Os editais de licitação ou pregão não podem conter cláusula prevendo percentual mínimo referente à taxa de administração, sob pena de ofensa ao artigo 40, inciso X, da Lei n. 8.666/1993” (BRASIL, 2020a).
  • 8
    O código que criou essa amostra – feito na linguagem de programação estatística R – pode ser acessado neste link: https://gist.github.com/f63f2a56a883edd04a1acc495a534c94 .
  • 9
    O número mínimo foi fixado em 30 processos para cada tema. O código gerado pela ABJ, que cria essa amostra (feito na linguagem de programação estatística R), pode ser acessado neste link: https://gist.github.com/f63f2a56a883edd04a1acc495a534c94 .
  • 10
    “É preciso distinguir entre as funções das Cortes de Justiça – exercer controle retrospectivo sobre as causas decididas em primeira instância e uniformizar a jurisprudência – e as Cortes de Precedentes – outorgar uma interpretação prospectiva e dar unidade ao direito” ( MITIDIERO, 2018MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018. , p. 80-81).
  • 11
    Essa temática pode ser vista com maior profundidade em Lopes Filho (2016)LOPES FILHO, Juraci Mourão. Os precedentes judiciais no constitucionalismo brasileiro contemporâneo. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2016. .
  • 12
    A discussão sobre a natureza dos precedentes pode ser aprofundada em Duxbury (2008)DUXBURY, Neil. The Nature and the Authority of Precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. .
  • 13
    Desde sua criação, o Núcleo de Precedentes do TJCE revelou-se um campo fértil para investigações e interação com as universidades. Sua atuação serviu direta ou indiretamente como fonte de pesquisa para trabalhos científicos, como o livro A aplicação dos precedentes judiciais no Brasil e o novo paradigma epistemológico das ciências: um estudo a partir da experiência no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará ( SÁ, 2020SÁ, Alexandre Santos Bezerra. A aplicação dos precedentes judiciais no Brasil e o novo paradigma epistemológico das ciências: um estudo a partir da experiência no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará. São Paulo: Dialética, 2020. ).
  • 14
    “Art. 6 o O STJ, o TST, o TSE, o STM, os Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, os Tribunais Regionais Federais e os Tribunais Regionais do Trabalho devem organizar, como unidade permanente, o Núcleo de Gerenciamento de Precedentes (Nugep) no âmbito de suas estruturas administrativas com as atribuições previstas no art. 7 o ” ( BRASIL, 2016BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução n. 235, de 13 de julho de 2016. [S. l.]: CNJ, 2016. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/2312. Acesso em: 7 dez. 2020.
    https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/23...
    ).
  • 15
  • 16
    Com efeito, se a questão principal é investigar se as teses vinculantes estão concretamente produzindo efeitos práticos nos tribunais locais, o fato de os temas terem sido estabelecidos por discussões originárias no próprio TJCE facilitaria, em tese, o conhecimento das questões debatidas. Ressalte-se que apenas esses dois temas aparecem como originários do Ceará no âmbito da pesquisa de recursos repetitivos no STJ.
  • 17
    O código que criou essa amostra – feito na linguagem de programação estatística R – pode ser acessado neste link: https://gist.github.com/f63f2a56a883edd04a1acc495a534c94 .
  • 18
    Para mais informações sobre a metodologia empregada na pesquisa, consultar a introdução.
  • 19
    “O Ministério Público é parte legítima para pleitear tratamento médico ou entrega de medicamentos nas demandas de saúde propostas contra os entes federativos, mesmo quando se tratar de feitos contendo beneficiários individualizados, porque se refere a direitos individuais indisponíveis, na forma do art. 1 o da Lei n. 8.625/1993 (Lei Orgânica Nacional do Ministério Público)” ( BRASIL, 2018BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inteligência artificial vai agilizar a tramitação de processos no STF. [S. l.]: STF, 2018. Disponível em: https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/584499448/inteligencia-artificial-vai-agilizar-a-tramitacao-de-processos-no-stf#:~:text=Intelig%C3%AAncia%20artificial%20vai%20agilizar%20a%20tramita%C3%A7%C3%A3o%20de%20processos%20no%20STF,-Salvar&text=Batizado%20de%20VICTOR%2C%20a%20ferramenta,aplica%C3%A7%C3%B5es%20de%20IA%20no%20Judici%C3%A1rio. Acesso em: 31 mar. 2021.
    https://stf.jusbrasil.com.br/noticias/58...
    ).
  • 20
    Como também já mencionado na introdução, ao vincular a origem do Tribunal cearense nos processos repetitivos, apenas aparecem os dois temas aqui pesquisados.
  • 21
    É importante informar que não há no banco de dados do TJCE um cadastro de processos relativos aos temas. Portanto, foi necessário estabelecer critérios de busca com foco na classe processual e nos assuntos, além do polo ativo do processo – no caso restrita ao MP. Assim, foram extraídos os dados com os seguintes parâmetros: Relação de processos julgados no período de 7 de novembro de 2017 até 19 de outubro de 2020 – SAJPG, SAJSG. Polo ativo (requerente, promovente, impetrante, etc.): Ministério Público, MP, etc. Assuntos: Assistência à saúde/Direito da Saúde/Fornecimento de medicamentos/Medicamento/tratamento/cirurgia de eficácia não comprovada/Medicamento em desacordo com receita médica/Tratamento médico-hospitalar e/ou fornecimentos de medicamentos/Tratamento médico-hospitalar/Requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime/hospitalar ou ambulatorial.
  • 22
    Código pesquisável da amostragem: https://gist.github.com/f63f2a56a883edd04a1acc495a534c94 .
  • 23
    “Os editais de licitação ou pregão não podem conter cláusula prevendo percentual mínimo referente à taxa de administração, sob pena de ofensa ao artigo 40, inciso X, da Lei n. 8.666/1993” (BRASIL, 2020a).
  • 24
    Destaque-se mais uma vez a inexistência de campos próprios na base de dados do TJCE relativos ao tema relacionado, o que torna a pesquisa possível apenas por meio dos critérios de busca com foco na classe processual e nos assuntos. Assim, para o tema 1038, foram extraídos os dados com os seguintes parâmetros: Relação de processos julgados no período de 3 de dezembro de 2019 até 19 de outubro de 2020 – SAJPG e SAJSG. Assuntos: Taxa de Administração. Edital. Licitações.
  • 25
    Código pesquisável da amostragem: https://gist.github.com/f63f2a56a883edd04a1acc495a534c94 .
  • 26
    “Processual civil. Proposta de afetação. Recurso especial. Rito dos recursos especiais repetitivos. Art. 256-I, c/c o art. 256-E do RISTJ, na redação da Emenda Regimental 24, de 28/9/2016. Licitação e pregão. Cláusula editalícia prevendo percentual mínimo referente à taxa de administração. Alegação de ofensa ao inciso x do artigo 40 da Lei n. 8.666/1993. Multiplicidade de processos e divergência de interpretação nos tribunais. Abrangência da suspensão. Art. 1.037, inc. II, do CPC. Proposta de afetação acolhida. 1. Delimitação da controvérsia: ‘Possibilidade de o ente público estipular cláusula editalícia em licitação/pregão prevendo percentual mínimo referente à taxa de administração, como forma de resguardar-se de eventuais propostas, em tese, inexequíveis.’ […] 3. Determinada a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem acerca da questão delimitada e tramitem no território nacional (art. 1.037, II, do CPC). […]” (REsp 1.840.154/CE, rel. Min. Og Fernandes, julgado em 26.11.2019, Primeira Seção, DJe 03.12.2019).
  • 27
    “Administrativo. Recurso especial sob o rito dos recursos repetitivos. Arts. 40, inc. X, e 48, §§ 1 o e 2 o , da Lei n o 8.666/93. Cláusula editalícia em licitação/pregão. Fixação de percentual mínimo referente à taxa de administração. Intuito de obstar eventuais propostas, em tese, inexequíveis. Descabimento. Busca da proposta mais vantajosa para a administração. Caráter competitivo do certame. Entendimento consolidado no TCU. Existência de outras garantias contra as propostas inexequíveis na legislação. Recurso especial conhecido e provido. Recurso julgado sob a sistemática do art. 1.036 e seguintes do CPC/2015 c/c art. 256-N e seguintes do Regimento Interno do STJ. 1. O objeto da presente demanda é definir se o ente público pode estipular cláusula editalícia em licitação/pregão prevendo percentual mínimo referente à taxa de administração, como forma de resguardar-se de eventuais propostas, em tese, inexequíveis. […] 4. A fixação de percentual mínimo de taxa de administração em edital de licitação/pregão fere expressamente a norma contida no inciso X do art. 40 da Lei n o 8.666/93, que veda ‘a fixação de preços mínimos, critérios estatísticos ou faixas de variação em relação a preços de referência’. […] 6. Sendo o objetivo da licitação selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração – consoante expressamente previsto no art. 3 o da Lei n o 8.666/93 –, a fixação de um preço mínimo atenta contra esse objetivo, especialmente considerando que um determinado valor pode ser inexequível para um licitante, porém exequível para outro. Precedente do TCU. 7. Deve a Administração, portanto, buscar a proposta mais vantajosa; em caso de dúvida sobre a exequibilidade, ouvir o respectivo licitante; e, sendo o caso, exigir-lhe a prestação de garantia. Súmula n o 262/TCU. Precedentes do STJ e do TCU. […] 10. Tese jurídica firmada: ‘Os editais de licitação ou pregão não podem conter cláusula prevendo percentual mínimo referente à taxa de administração, sob pena de ofensa ao artigo 40, inciso X, da Lei n o 8.666/1993 […]’” (REsp 1.840.154/CE, rel. Min. Og Fernandes, julgado em 26.11.2019, Primeira Seção, DJe 03.12.2019).
  • 28
    Processo n. 0170281-17.2018.8.06.0001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    28 Maio 2021
  • Aceito
    12 Maio 2022
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