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As origens latino-americanas do controle concentrado de constitucionalidade

THE LATIN-AMERICAN ORIGINS OF CONCENTRATED CONTROL OF CONSTITUTIONALITY

Resumo

O presente artigo tem por objetivo propor uma reflexão e desfazer alguns mitos sobre as origens do controle concentrado de constitucionalidade, avaliando também como a colonização cultural se faz presente no Direito. Para isso, são feitas algumas considerações iniciais sobre o tema, seguidas de uma crítica sobre o problema das evoluções históricas e a colonização, e uma apresentação sobre o conceito de habitus e outros conceitos relacionados, como engrama e atitude, mostrando como os esquemas mentais de percepção e ação contribuem para uma visão de mundo eurocêntrica colonizada. Em seguida, é revisitada a versão “oficial” sobre Kelsen ter criado o controle concentrado na Áustria, e como isso faz parte do habitus jurídico, quando, na realidade, o referido controle concentrado surgiu na América Latina, em diversas experiências constitucionais ocorridas em Cundinamarca (hoje Colômbia), Venezuela e Bolívia. Ao final são feitas breves reflexões sobre a socioanálise, em seu potencial como instrumento de transformação do habitus e libertação da consciência.

Palavras-chave
Origem; controle de constitucionalidade; socioanálise; habitus; colonização

Abstract

This paper proposes a reflection and dispels some myths about the origins of the concentrated control of constitutionality, also evaluating how cultural colonization is present in Law. For this, some initial considerations are made on the subject, followed by a critique of the problem of historical evolutions and colonization, and a presentation on concept of habitus and other related concepts such as engram and attitude, showing how the mental schemes of perception and action contribute to a colonized eurocentric worldview. Then, the “official” version about Kelsen having created concentrated control in Austria is revisited, and how this is part of the juridical habitus, when, in fact, the aforementioned concentrated control emerged in Latin America, in several constitutional experiences that took place in Cundinamarca (today Colombia), Venezuela and Bolivia. At the end, some brief reflections are made about socioanalysis, on its potential as an instrument for transforming habitus and liberating consciousness.

Keywords
Origin; concentrated control of constitutionality; socioanalysis; habitus; colonization

“Même lorsqu’elle paraît prendre la suite d’une évolution historique, la culture surveillée que nous envisageons refait par récurrence une histoire bien ordonnée qui ne correspond nullement à l’histoire effective”1 1 Tradução livre: “Mesmo quando parece assumir a continuidade de uma evolução histórica, a cultura supervisionada que avaliamos refaz, por recorrência, uma história bem ordenada que não corresponde em nada à história real”.
(BACHELARD, 1966BACHELARD, Gaston. Le rationalisme appliqué. Paris: Presses Universitaires de France, 1966., p. 80)

Introdução e alguns aspectos teóricos

O presente artigo tem por objetivo propor uma reflexão e desfazer alguns mitos sobre as origens do controle concentrado de constitucionalidade, sobretudo no que se refere à sua realização efetiva: previsão constitucional e instalação de um órgão de controle. Para a consecução desse objetivo, foi realizada uma pesquisa bibliográfica e documental, que buscou confrontar as origens de tal controle na América Latina com os lugares-comuns sobre as origens europeias do controle de constitucionalidade, e como eles integram o habitus dos juristas.

O tema é relevante porquanto a jurisdição constitucional, compreendida como “todo procedimento judicial que aplica e concretiza a Constituição”2 2 Essa definição, breve e precisa, atende bem aos propósitos deste artigo e é condizente com o que a dogmática jurídica chama de jurisdição constitucional em sentido amplo. José Afonso da Silva (2004, p. 276), por exemplo, entende que “a jurisdição constitucional, assim, consiste na entrega aos órgãos do Poder Judiciário da missão de solucionar os conflitos entre os atos, procedimentos e órgãos públicos e a constituição. Ou, em sentido mais abrangente: entrega ao Poder Judiciário da missão de solucionar conflitos constitucionais”. José Frederico Marques (1979, p. 34) observa que “se encontra imanente a toda e qualquer atividade jurisdicional da justiça ordinária e das justiças especiais a jurisdição constitucional, pois que assim deve ser denominada a aplicação de normas constitucionais pelo Judiciário, a fim de compor conflitos litigiosos de interesses”. (LEITE, 2007LEITE, Glauco Salomão. Súmula vinculante e jurisdição constitucional brasileira. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2007., p. 73), está no centro da tensão entre Constituição e democracia, pois pressupõe um controle dos atos do legislador democraticamente eleito por órgãos do Judiciário. A referida tensão e o próprio papel de destaque que a jurisdição constitucional assume progressivamente ao longo do seu desenvolvimento se relacionam com a crise do Estado legislativo e a mudança no papel da Constituição, que se desloca das normas de organização do Estado para as normas declaradoras de direitos fundamentais, o que potencializa a intervenção judicial (SANTOS, 2004SANTOS, Gustavo Ferreira. Origens federalistas do controle de constitucionalidade das leis. Anuário dos Cursos de Pós-Graduação em Direito (UFPE), Recife, v. 14, p. 139-149, 2004., 2006SANTOS, Gustavo Ferreira. Constituição e democracia: reflexões sobre permanência e mudança da decisão constitucional. A&C: Revista de Direito Administrativo e Constitucional, [s.l.], ano 6, n. 24, p. 163-174, abr./jun. 2006. Disponível em: Disponível em: http://www.revistaaec.com/index.php/revistaaec/article/view/664 . Acesso em: 25 set. 2021.
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e 2010SANTOS, Gustavo Ferreira. Jurisdição constitucional e princípio da proporcionalidade no Brasil. Novos Estudos Jurídicos, Itajaí, v. 15, n. 1, p. 75-84, jan./abr. 2010. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.univali.br/index.php/nej/article/view/2302 . Acesso em: 25 set. 2021.
https://periodicos.univali.br/index.php/...
).

Todo esse contexto se relaciona também com o que Paulo Bonavides chama de “revolução constitucional”, que nasce a partir do momento em que as declarações de direitos deixam de ter um caráter meramente filosófico e tornam-se vinculantes, o que, ainda de acordo com Bonavides, cria o segundo Estado de direito, o Estado constitucional, em substituição ao Estado legal (BONAVIDES, 2004BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros, 2004., p. 400, et passim).

Ainda que possa haver divergências de conteúdo quanto ao que a Constituição deveria conter, ou como o seu texto deve ser interpretado, por um lado, a maioria dos estudiosos parece simpatizar com a ideia da Constituição em si e também dos direitos fundamentais, mas, por outro lado, invariavelmente pairam dúvidas quanto à legitimidade da jurisdição constitucional e parece haver certa desconfiança em relação ao papel que o Judiciário vem desempenhando a pretexto de, supostamente, concretizar a Constituição. No Brasil especificamente, a centralidade da jurisdição constitucional vem acompanhada de diversas mazelas, uma das mais conhecidas seria o famigerado voluntarismo judicial, que vem recebendo críticas de juristas consagrados.3 3 Um bom exemplo disso são as críticas de Lenio Streck, amplamente conhecidas, que lhe rendem bastante notoriedade no campo jurídico e que parecem orientar a sua própria carreira acadêmica, pois, segundo Danilo Lima (2013, p. 50), “Streck defende a elaboração de uma nova teoria capaz de responder aos problemas derivados de sua interpretação e, ao mesmo tempo, impedir que o direito seja fragilizado pelo voluntarismo judicial”. Não há espaço aqui para fazer uma análise mais detalhada da proposta de Streck, mas é necessário observar que o problema maior não é falta de teoria. Os juízes não são voluntaristas por falta de hermenêutica, e é provável que muitos dos magistrados voluntaristas conheçam o próprio Lenio Streck e sua obra. O problema é muito mais profundo e envolve, entre outros fatores, o papel histórico do Judiciário no Brasil, a cultura patrimonialista, a falta de accountability, etc. Como já advertia Thomas Jefferson (1854, p. 178), os juízes não são mais ou menos honestos que os outros homens, eles têm as mesmas paixões pelo poder e pelo privilégio da sua corporação. Magistrados, em suma, são produtos e são produtores da sociedade em que estão inseridos. De todo modo, é perfeitamente compreensível que o ilustre hermeneuta gaúcho, falando a partir da sua posição no campo jurídico, não se dê conta de tais questões, ou delas não possa falar abertamente em seus escritos.

Nesse contexto, parece oportuno e necessário retomar e desmistificar alguns lugares-comuns quanto à origem da jurisdição constitucional, em especial no que se refere ao controle concentrado de constitucionalidade. Não se trata - é necessário advertir desde já - de traçar uma evolução histórica do controle de constitucionalidade, o que é muito frequente em manuais e trabalhos acadêmicos, e que é uma prática que já recebeu críticas severas (OLIVEIRA, 2004OLIVEIRA, Luciano. Sua excelência o comissário e outros ensaios de sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004.; GONÇALVES e TEIXEIRA, 2015GONÇALVES, Francysco Pablo Feitosa; TEIXEIRA, João Paulo Allain. As evoluções históricas e a “historiografia” dos juristas: reflexões sobre o surgimento do judicial review. Revista de Informação Legislativa, [s.l.], v. 52, n. 206, p. 137-164, abr./jun. 2015.), pois mais das vezes desconsidera o fato de que a relação que se tem com o passado é condicionada pelo presente (SALDANHA, 1967SALDANHA, Nelson Nogueira. Consciência histórica. Revista Symposium, Recife, v. 9, n. 2, p. 81-96, jul./dez. 1967.), visto que tanto o conhecimento quanto o comprometimento do historiador são socialmente condicionados (SCHAFF, 1995SCHAFF, Adam. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.).

É oportuno retomar a passagem de Bachelard transcrita na epígrafe. Quando se analisa uma cultura, a aparência de uma evolução histórica pode surgir, mas isso não necessariamente corresponde à história real (BACHELARD, 1966BACHELARD, Gaston. Le rationalisme appliqué. Paris: Presses Universitaires de France, 1966., p. 80), e esse raciocínio se aplica, claro, a qualquer tentativa de se escrever sobre a história das instituições jurídicas, mas isso será retomado oportunamente; por ora, é necessário explicar como se dará a consecução do objetivo do artigo - revisitar e desmistificar lugares-comuns do controle concentrado de constitucionalidade - nas linhas que se seguem.

O presente artigo aborda de forma breve, em um primeiro momento, a questão das evoluções históricas e da colonização cultural, tendo em vista um importante pressuposto: não basta identificar a existência da colonização ou enfatizar a necessidade de desconstruí-la, é preciso compreender os mecanismos da colonização em sua dupla existência, nas coisas e nos corpos das pessoas, em seus esquemas mentais de percepção, apreciação e ação no mundo. Em seguida, é feita uma breve revisão dos conceitos de atitude, engrama e habitus, o que permite compreender como a colonização se enraíza e permanece existindo na forma como se entende o Direito brasileiro. A partir daí, é possível ter uma visão mais clara das razões pelas quais se repete com tanta frequência que o controle concentrado nasceu na Áustria, quando, na realidade, ele surgiu na América Latina. As três seções seguintes abordam, respectivamente: a versão oficial, que retrata Kelsen como o criador do controle concentrado; o surgimento do controle de constitucionalidade na América Latina com mais de um século de antecedência em relação ao seu surgimento na Áustria; qual a efetiva importância de Kelsen para o controle de constitucionalidade. Ao final, são apresentadas as considerações finais.

1. Acerca das evoluções históricas e da colonização cultural

A própria ideia de evolução histórica, no sentido de que uma instituição jurídica sai de um aspecto rudimentar e desenvolve-se até assumir a forma em que se encontra hoje, é um procedimento homólogo ao modo de pensar do século XIX, que faz com que os juristas ecoem, mesmo sem saber, as ideias do antropólogo Lewis Henry Morgan, que, em sua célebre4 4 Não se trata de reverencialismo, as ideias de Morgan influenciaram muitos autores relevantes da época. Segundo Hunter Howe Cates (2019, p. 91), “Morgan was the only American social theorist to be cited by Karl Marx, Charles Darwin, and Sigmund Freud”. Tradução livre: “Morgan foi o único teórico social americano que foi citado por Karl Marx, Charles Darwin e Sigmund Freud”. obra Ancient Society, originalmente publicada em 1877, defendeu a existência de três estágios evolutivos para as sociedades humanas: selvageria, barbárie e civilização (MORGAN, 1907MORGAN, Lewis H. Ancient Society: Or Researches in the Lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization. Nova York: Henry Holt Company, 1907. Disponível em: Disponível em: https://play.google.com/books/reader?id=V2hURbcPp0YC&pg=GBS.PA2 . Acesso em: 26 set. 2021.
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). A Antropologia superou esse equívoco evolucionista pelo menos desde Boas, Malinowski e Lévi-Strauss - esse último, aliás, demonstrou em La pensée sauvage (1962)LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée sauvage. Paris: Plon, 1962. que as sociedades tribais possuíam sistemas lógicos notáveis, com racionalidade tão sofisticada quanto a das sociedades civilizadas, mas em outras áreas do conhecimento, e no Direito em especial, as evoluções históricas continuam presentes.

Em relação ao evolucionismo, é necessário fazer uma autocrítica: o próprio problema das origens de determinado instituto jurídico, aliás, pode ser historicamente situado e relaciona-se à forma evolucionista de pensar. Como observa Nelson Saldanha (2008SALDANHA, Nelson Nogueira. Sociologia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 2008., p. 98), os esquemas referentes à evolução exigem um começo, e é por isso que a ideia de origem ganha especial prestígio no século XIX: “[...] com o evolucionismo deu-se ao problema um sentido concreto. Quando um homem da geração de Spencer falava de origens, não falava de fundamentos metafísicos, falava de origens mesmo: os fatos iniciais, os determinantes, as formas primeiras de uma instituição”. É necessário reconhecer então que, ainda que se rejeite qualquer pretensão de construção de uma história evolucionista, não deixa de ser possível associar, em alguma medida, a preocupação do presente artigo com as origens latino-americanas do controle concentrado ao evolucionismo, que ainda se faz tão presente no Direito.

Quando o jurista busca a origem de algo, às vezes na antiguidade, e constrói a sua evolução até os dias atuais, e frequentemente com base em manuais,5 5 “Normalmente isso é apresentado como se se tratasse de uma perspectiva interdisciplinar. Mas termina sendo nada mais nada menos do que uma confusão. Aliás, talvez mais propriamente falando, frequentemente sequer chega a se tratar de uma autêntica con-fusão, ou seja, a justaposição, num mesmo trabalho, de capítulos que pertenceriam a mais de uma ciência, pois o que muitas vezes aparece como tal resume-se a alguns lugares-comuns extraídos daqui e dali - muitas vezes, repetindo o vezo já conhecido, de simples manuais - sem maior consistência. O que acontece com as habituais incursões históricas que via de regra antecedem a abordagem do tema no presente é, a esse respeito, exemplar. Seguramente a maioria dos trabalhos que tenho examinado não dispensa uma incursão desse tipo, muitas vezes apresentada sob a fórmula ‘Evolução Histórica do(a) […]’, seguindo-se a menção ao objeto que está sendo examinado” (OLIVEIRA, 2004, p. 148; OLIVEIRA, 2015). o que ele está fazendo, na realidade, é reproduzir um modo de pensar do século XIX, construindo um discurso que não corresponde inteiramente ao real, e cujo efeito - questionável - é tentar legitimar as teses que defende, e na maioria das vezes isso é feito de forma enviesada, em uma perspectiva eurocêntrica.6 6 O fenômeno não é exclusivo do Brasil. Michel Miaille (1976, p. 57) observa que “[i]l est intéressant de noter, au passage, l’européocentrisme dont font preuve nos juristes. En effet, sauf exception, c’est à partir du droit moderne et occidental que sont appréciées les institutions juridiques des autres systèmes”. Tradução livre: “[É] interessante notar, a propósito, o eurocentrismo demonstrado pelos juristas. Com efeito, com algumas exceções, as instituições jurídicas de outros sistemas são avaliadas com base no direito moderno e ocidental”.

Com isso não queremos dizer - é necessário esclarecer desde já - que fatos sociais e instituições surgem ex nihilo; ao contrário, na maioria das vezes, as coisas são o produto de processos históricos complexos, inclusive, teremos a oportunidade de mencionar algumas experiências europeias, como o Consistório do Reino de Aragão, o instrument of government de Cromwell e o jurie constitutionaire de Sieyès. Essas experiências podem ter influenciado os constitucionalismos estadunidense e latino-americano. A questão é que evoluções históricas não existem, ao menos não no sentido de que as coisas invariavelmente saem de uma forma rudimentar e evoluem para algo melhor.

O que representa uma evolução para um progressista pode ser um retrocesso para um conservador, e vice-versa. Além disso, quando se analisa com mais atenção, é fácil perceber que é muito raro o processo de transformação das instituições ser algo linear e uniforme, muitas vezes ocorrem rupturas, descontinuidades, avanços intercalados com retrocessos, etc., e tudo isso ainda é permeado, evidentemente, pela perspectiva de quem se propõe a narrar a história.7 7 Um exemplo que ilustra bem o problema das evoluções históricas está presente em muitos trabalhos sobre a delação premiada, que rastreiam a origem do instituto até a antiguidade, e falam na traição de Jesus por Judas. Ora, por mais que muitos parlamentares brasileiros mereçam críticas, é no mínimo inusitado acreditar que o Congresso Nacional se inspirou em Judas para introduzir a delação premiada no direito brasileiro e que, desde que Judas recebeu as 30 moedas de prata, vem havendo uma evolução linear da delação premiada através dos milênios.

Isso tudo se relaciona a habitus/atitudes. Mais das vezes, o jurista não reflete criticamente sobre essas questões, não se trata de uma opção consciente e intencional por reproduzir um modo de pensar do século XIX, ou uma postura eurocêntrica pouco condizente com a realidade. Isso é produto de algo não refletido, um senso prático, decorrência do formalismo, do tradicionalismo e da colonização cultural do campo em que está inserido.

Muito já foi dito sobre a colonização cultural no direito brasileiro - e latino-americano em geral -, e nos últimos anos vem aumentando o número de estudos que defendem a necessidade de repensar o Direito e as relações sociais em outras perspectivas, valorizando as experiências latino-americanas e defendendo a adoção de outras racionalidades, diversas da razão instrumental europeia. A proposta desses trabalhos certamente é válida, ainda mais considerando os já conhecidos problemas decorrentes da adoção irrestrita da racionalidade ocidental,8 8 É vasta a quantidade de autores e obras que direta ou indiretamente critica a racionalidade e seus problemas, inclusive dentro das tradições intelectuais do próprio Ocidente. Os problemas são conhecidos pelo menos desde Max Weber, que mostra, por exemplo, que o objetivo da racionalidade ocidental era a “rationale Beherrschung der Welt” (WEBER, 2012, tradução livre: “dominação racional do mundo”) e que aqueles que são considerados selvagens conhecem infinitamente mais as condições econômicas e sociais de sua própria existência do que aqueles que são considerados civilizados (WEBER, 1965). Essas críticas aparecem, também, na Teoria Crítica (por exemplo, HORKHEIMER, 1991; HORKHEIMER e ADORNO, 1947) e na obra de Foucault, que insurge justamente contra essa “racionalidade que é tão compatível com a violência” (FOUCAULT, 2006, p. 319). Com menor repercussão no Brasil, mas também dignos de nota, são os trabalhos de George Mosse (1975 e 1981), que mostram como as massas são constituídas em uma nação, e como o fascismo pode ser uma versão extremada de valores coletivos que também existem nas sociedades democráticas. mas muitos desses estudos não consideram quão profundas podem ser as raízes da colonização, não apenas nas estruturas sociais, mas no inconsciente das pessoas. É isso, aliás, o que permite compreender a eficácia da colonização, ela pode até se estabelecer pela força, mas a eficiência da sua continuidade reside na cumplicidade dos colonizados. A colonização pode ser estabelecida pela violência, mas dificilmente pode ser mantida apenas com base nela. Conforme Roger Chartier:

Não se deve pensar que se instala uma dominação sem violência. Há um ato fundador da violência que é a conquista dos territórios, a dominação dos corpos, o controle dos indivíduos. Mas para reproduzir-se este tipo de dominação não há a necessidade de se manter o mesmo nível de violência explícita, mas há de se instaurar um mecanismo mais sutil que é o da incorporação da legitimidade pelos dominados da desigualdade ou da dominação. (CHARTIER, 2002CHARTIER, Roger. Pierre Bourdieu e a história. Debate com José Sérgio Leite Lopes. Topoi, Rio de Janeiro, v. 3, n. 4, p. 139-182, mar. 2002. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/topoi/a/ySBnkYQ8HFqq9PMSbc68Cyn/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 23 maio 2021.
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, p. 154)

A colonização depende de formas simbólicas de dominação, que são, aliás, condição para maior efetividade da própria violência material. Dito de outra forma, o colonizador pode usar o seu poderio militar para dominar os nativos e estabelecer a colônia, mas seu domínio será tanto mais eficiente quanto os dominados o incorporem, ou seja, tenham dentro de si a dominação como algo legítimo, em suas disposições, em sua forma de ver e agir no mundo. O social tem dupla existência: nas coisas e nos corpos (GUTIERREZ, 2012GUTIÉRREZ, Alicia Beatriz. Las prácticas sociales: una introducción a Pierre Bourdieu. Villa María: Eduvim, 2012.), e a existência nas estruturas de compreensão e ação muitas vezes é a mais difícil de ser desfeita.

Para entender a incorporação da dominação, é preciso lembrar que muito do que as pessoas são e fazem ao longo da vida se deve à forma como foram socializadas. Se alguém nasceu e cresceu no Brasil, é extremamente provável que fale português, que conheça preceitos cristãos, que em algum momento assista a uma partida de futebol e tenha experimentado alguma bebida alcoólica, provavelmente cachaça ou cerveja,9 9 Segundo Pinhoni (2014), estudo divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que o consumo de bebidas alcoólicas no Brasil é maior que a média mundial, e a cerveja seria a bebida favorita dos brasileiros. Entre as bebidas destiladas, a cachaça seria a mais consumida no Brasil, e uma das quatro mais consumidas no mundo (SEBRAE, 2019, p. 19). especialmente se essa pessoa nasceu no meio da década de 1990.10 10 Em 2009, 70% dos jovens de 13 a 15 anos já haviam experimentado bebida alcoólica (LIMA, 2009). Já é um percentual considerável e, desde então, os 30% restantes tiveram mais de duas décadas e meia para terem, em algum momento, ao menos experimentado alguma bebida alcoólica.

Esse tipo de afirmação pode provocar reações opostas: tanto é possível uma pessoa aceitá-la, achar que faz todo sentido, como é possível outra pessoa ser reativa, não conseguir concordar com ela, talvez porque ela própria, ou alguém que ela conhece, professa outra religião, não gosta de futebol, não ingere bebidas alcoólicas, etc. É preciso atentar para o fato de que não está sendo dito que todas as pessoas são assim, mas que quem se enquadra na situação descrita - nasceu e viveu no Brasil - muito provavelmente fala português, conhece valores cristãos, etc., ou ao menos conhece muitas pessoas assim e sabe que a cultura brasileira propicia isso.

Não se trata aqui de negar a liberdade, o sujeito pode mudar de religião ou decidir que nunca mais assistirá a nenhuma partida de futebol; também não se trata de negar as exceções, um indígena em uma tribo isolada pode não saber falar português ou beber álcool, ou sequer saber o que é futebol na vida. As questões aqui são duas: a probabilidade e o fato de que as estruturas de percepção, compreensão e ação no mundo são duráveis.

Em outras palavras, ainda que existam pessoas no Brasil que sejam fluentes em japonês, apreciem saquê e professem o xintoísmo ou o budismo, convenhamos, é muito mais provável que alguém que nasceu e cresceu no Brasil fale português, aprecie uma boa cachaça e seja adepto do cristianismo, do que alguém nascido e criado no Japão. Contudo, o idioma que falamos, certos valores e gostos que temos são duráveis, ou seja, tendem a permanecer conosco por muito tempo, às vezes por toda a vida. Você pode aprender um novo idioma, mas não é capaz de deletar totalmente o português para instalar algum outro, e, se gosta muito de determinada bebida, pode até decidir não a tomar nunca mais, mas isso não significa que ela deixará de ser agradável ao seu paladar.

Ao longo da vida as pessoas adquirem atitudes/habitus/engramas, condicionamentos para a forma como agem em sociedade.11 11 A relação entre habitus, atitudes e engramas também é discutida por Gonçalves (2022). Entender isso é de fundamental importância para compreender - e, talvez, desconstruir - a colonialidade.

2. Habitus, atitudes e engramas: em que consistem afinal?

A Neurociência vem mostrando que as decisões humanas são muito mais não conscientes do que propriamente decisões conscientes e racionais. Estima-se que 95% das decisões são inconscientes:

Tice and Baumeister concluded after their series of eight such experiments that because even minor acts of self-control, such as making a simple choice, use up this limited self-regulatory resource, such conscious acts of self-regulation can occur only rarely in the course of one’s day. Even as they were defending the importance of the conscious self for guiding behavior, Baumeister et al. (1998, p. 1252; also Baumeister & Sommer, 1997) concluded it plays a causal role only 5% or so of the time.12 12 Tradução livre: “Tice e Baumeister concluíram, depois de sua série de oito experimentos, que mesmo pequenos atos de autocontrole, como fazer uma escolha simples, usam esse recurso autorregulatório limitado, por isso tais atos conscientes de autorregulação podem ocorrer apenas raramente no curso do dia. Mesmo defendendo a importância do self consciente para orientar o comportamento, Baumeister et al. (1998, p. 1252; também Baumeister & Sommer, 1997) concluíram que a consciência desempenha um papel causal de apenas cerca de 5% do tempo”. No mesmo sentido: “Conscious thought is the tip of an enormous iceberg. It is the rule of thumb among cognitive scientists that unconscious thought is 95 percent of all thought - and that may be a serious underestimate. Moreover, the 95 percent below the surface of conscious awareness shapes and structures all conscious thought. If the cognitive unconscious were not there doing this shaping, there could be no conscious thought” (LAKOFF e JOHNSON, 1999). Tradução livre: “O pensamento consciente é a ponta de um enorme iceberg. É regra geral entre os cientistas cognitivos que o pensamento inconsciente é 95% de todo o pensamento - e esse percentual pode estar sendo seriamente subestimado. Além disso, os 95% abaixo da superfície da percepção consciente moldam e estruturam todos os pensamentos conscientes. Se o inconsciente cognitivo não estivesse realizando essa modelagem, não poderia haver pensamento consciente”. (BARGH e CHARTRAND, 1999BARGH, John A.; CHARTRAND, Tanya L. The Unbearable Automaticity of Being. American Psychologist, Nova York, v. 54, n. 7, p. 462-479, jul. 1999. Disponível em: Disponível em: https://acmelab.yale.edu/sites/default/files/1999_the_unbearable_automaticity_of_being.pdf . Acesso em: 21 nov. 2021.
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, p. 464)

Ainda que não seja tanto assim, não há dúvidas de que parte dos comportamentos humanos é, de fato, inconsciente ou, ao menos, não reflexiva, no sentido de que não exige uma ponderação prévia. Nas ciências da saúde e da educação, o conceito de engrama, proposto por Richard Wolfgang Semon (1908SEMON, Richard Wolfgang. Die Mneme: als erhaltendes Prinzip im Wechsel des organischen Geschehens. Leipzig: W. Engelmann, 1908. Disponível em: Disponível em: https://archive.org/details/diemnemealserha00semo/ . Acesso em: 1o jan. 2022.
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) para explicar o armazenamento da memória no cérebro, ajuda a compreender a existência e o funcionamento de diversas ações. Hoje em dia, o termo é bastante utilizado para se referir a padrões de movimento que se convertem “en automatismos” (CASTILLO, 2014CASTILLO, Francisco Gallego del. Esquerma corporal y praxia: bases conceptuales. Sevilha: Wanceulen, 2014., p. 31). Ramón Leiguarda (2003LEIGUARDA, Ramón. Apraxia. In: MICHELI, Federico E. et al. (orgs.). Tratado de neurología clínica. Buenos Aires: Editorial Médica Panamericana, 2003., p. 260) observa que o lóbulo parietal parece ter uma grande importância no armazenamento dos engramas motores visuocinestésicos, ou seja, no armazenamento dos movimentos conhecidos. A palavra “engrama” é bastante utilizada, portanto, para se referir a movimentos que são realizados sem a necessidade de uma ponderação prévia, ou seja, de forma automática: “Una vez que los programas motores se aprenden pueden llegar a ser automáticos y se puede desarrollar una habilidad motriz”13 13 Tradução livre: “Uma vez que os programas motores são aprendidos, eles podem se tornar automáticos e as habilidades motoras podem ser desenvolvidas”. (ESPINO, 2009ESPINO, Yamisel Chong. Evaluación comparativa de la función práxica en pacientes con enfermedad de Alzheimer versus pacientes con enfermedad de Parkinson. 2009. Tese (Doutorado em Neuropsicologia Clínica) - Faculdade de Medicina, Universidad de Salamanca, Salamanca, 2009., p. 10-11).

De toda forma, os engramas se referem principalmente aos movimentos corporais. O que dizer então de comportamentos que parecem revestidos de um maior grau de reflexão? Nesse ponto, é extremamente valiosa a noção de atitude, que ganha aceitação na Psicologia Social14 14 Obviamente, a palavra “atitude” já existia e já havia sido usada na Psicologia. Gordon Allport (1935) observa que Herbert Spencer já havia empregado o termo em 1862, mas, ainda de acordo com Allport, foram Thomas e Znaniecki que instituíram o conceito de atitude como uma categoria permanente e central nas ciências sociais, e foram pioneiros em definir a psicologia social como o estudo científico das atitudes (ALLPORT, 1935). e na Sociologia a partir do trabalho de William Thomas e Florian Znaniecki para quem atitude se refere ao “process of individual consciousness which determines real or possible activity of the individual in the social world”15 15 Tradução livre: “[...] processo de consciência individual que determina atividades reais ou possíveis do indivíduo no mundo social”. (THOMAS e ZNANIECKI, 1918THOMAS, William Isaac; ZNANIECKI, Florian Witold. The Polish Peasant in Europe and America: Monograph of an Immigrant Group. Boston: The Gorham Press, 1918. (Volume I). Disponível em: Disponível em: https://archive.org/details/cu31924082469507/mode/2up . Acesso em: 8 maio 2021.
https://archive.org/details/cu3192408246...
, p. 22). As pesquisas de Thomas e Znaniecki tiveram impacto considerável nas ciências sociais e contribuíram para a formação do que viria a ser chamado de Escola de Chicago de Sociologia. Desde então, diversas pesquisas sobre o tema foram sendo desenvolvidas, e o número de definições também aumentou. Segundo Rodrigues, Assmar e Jablonski (2009RODRIGUES, Aroldo; ASSMAR, Eveline Maria Leal; JABLONSKI, Bernardo. Psicologia social. Petrópolis: Vozes, 2009., p. 81), existe mais de uma centena de definições de atitude,16 16 Albarracín et al. (2005) observam que existem centenas de definições de atitudes. que, segundo eles, pode ser compreendida como “organização duradoura de crenças e cognições em geral, dotada de carga afetiva pró ou contra um objeto social definido, que predispõe a uma ação coerente com as cognições e afetos relativos a este objeto”.

Gordon Allport (1935ALLPORT, Gordon W. Attitudes. In: MURCHISON, Carl (ed.). A Handbook of Social Psychology. Worcester: Clark University Press, 1935. Disponível em: Disponível em: https://pt.scribd.com/document/504017054/Gordon-W-Allport-Attitudes-1935-Murchison-s-handbook-of-social-psichology-chapter . Acesso em: 26 set. 2021.
https://pt.scribd.com/document/504017054...
) observa que atitude é o conceito mais distintivo e indispensável da psicologia social estadunidense. Essa importância se traduz nas incontáveis pesquisas sobre o tema que verificam que as atitudes de fato existem e são fatores determinantes do comportamento humano. Atitudes são predisposições que podem ser ativadas com esforço mínimo, “so minimal, in fact, that attitudes can be activated and can function automatically”17 17 Tradução livre: “[...] tão mínimo, de fato, que atitudes podem ser ativadas automaticamente”. (AUGOSTINOS e WALKER, 1995AUGOSTINOS, Martha; WALKER, Iain. Social Cognition: An Integrated Introduction. Londres: Sage Publications, 1995., p. 14).

Se, por um lado, não há dúvidas de que ao longo da nossa existência adquirimos atitudes e padrões de comportamento duráveis que podem ser reproduzidos por toda a vida, por outro lado, as eventuais divergências nos conceitos de atitude e a sua exata relação com os comportamentos - até onde atitudes determinam comportamentos e como estes podem moldar as atitudes - ainda são objeto de divergências. Diante disso, o presente artigo adotará um conceito em certa medida semelhante, que também tem grande aceitação nas ciências sociais e que talvez seja, em certo sentido, mais preciso: o conceito de habitus.

Os usos do conceito de habitus remontam à escolástica, nas traduções e nos comentários à obra de Aristóteles feitos por Tomás de Aquino e Boécio. Trata-se da tradução latina do conceito de hexis, que se refere à disposição para agir de determinada forma. Posteriormente, o conceito reaparece em autores como Panofsky, Weber, Husserl, Marcel Mauss, Norbert Elias e Pierre Bourdieu (HÉRAN, 1987HÉRAN, François. La seconde nature de l’habitus: tradition philosophique et sens commun dans le langage sociologique. Revue française de sociologie, [s.l.], v. 28, n. 3, p. 385-416, jul./set. 1987. Disponível em: Disponível em: https://www.persee.fr/doc/rfsoc_0035-2969_1987_num_28_3_2423 . Acesso em: 23 maio 2021.
https://www.persee.fr/doc/rfsoc_0035-296...
; VIANNA NETO, 2011VIANNA NETO, Liszt. O conceito de Habitus e a obra de Erwin Panofsky: teoria e metodologia da história da arte e da arquitetura na primeira metade do século XX. 2011. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.; BOURDIEU, 1992BOURDIEU, Pierre. Les fins de la sociologie réflexive (le séminaire de Chicago). In: BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loic. Réponses: Pour une anthropologie réflexive. Paris: Seuil, 1992. p. 43-185.).

Nas ciências sociais, o habitus passa a ter ampla utilização, sobretudo a partir da influência das obras de Norbert Elias e Pierre Bourdieu. Elias utiliza o conceito, ainda na década de 1930, em seus estudos sobre o processo civilizatório. Em Die Gesellschaft der Individuen, diz que o habitus se assemelha à ideia de estrutura social da personalidade e permite evitar a prática recorrente de tratar indivíduo e sociedade como se fossem objetos apartados. Em seguida, ele define o habitus como a composição social dos indivíduos, e explica que o habitus é como o solo de onde brotam as características pessoais de cada indivíduo:

Wenn man ihn und den ganz ähnlichen Begriff der sozialen Persönlichkeitsstruktur versteht - und zu handhaben vermag -‚ dann wird auch verständlicher, warum die alte Gepflogenheit, aufgrund deren man die Begriffe »Individuum« und »Gesellschaft« oft so gebraucht, als ob es sich um zwei getrennt existierende Gegenstände handle, in die Irre führt. Dann verschließt man nicht mehr die Augen vor der Tatsache, die ja vorwissenschaftlich bekannt genug ist, daß jeder einzelne Mensch, verschieden Wie er von allen anderen ist, ein spezifisches Gepräge an sich trägt, das er mit anderen Angehörigen seiner Gesellschaft teilt. Dieses Gepräge, also der soziale Habitus der Individuen, bildet gewissermaßen den Mutterboden, aus dern diejenigen persönlichen Merkmale herauswachsen, durch die sich ein einzelner Mensch von anderen Mitgliedern seiner Gesellschaft unterscheidet. So wächst ja etwa auch aus der gemeinsamen Sprache, die der Einzelne mit anderen teilt und die ganz gewiß einen integralen Bestandteil des sozialen Habitus bildet, ein mehr oder weniger individueller Stil heraus oder aus der sozialen Schrift eine unverkennbar individuelle Handschrift.18 18 Tradução livre: “Se alguém compreende a ele [habitus] e ao conceito muito semelhante da estrutura social da personalidade - e é capaz de o empregar - então se torna mais compreensível por que é errado o antigo e ainda frequente costume de usar os termos ‘indivíduo’ e ‘sociedade’ como se eles representassem dois objetos diferentes. Então não mais se fecha os olhos para o fato, que é muito conhecido fora do campo da ciência, de que cada pessoa é diferente de todas as outras, tem características específicas que compartilha com outros membros de sua sociedade. Esse caráter social, ou seja, o habitus social dos indivíduos, forma, por assim dizer, o solo de onde brotam as características pessoais, por meio do qual um indivíduo se difere dos outros membros de sua sociedade. Por exemplo, um estilo mais ou menos individual brota a partir da linguagem comum que o indivíduo compartilha com os demais, a qual certamente é parte integrante do habitus social, ou seja, uma caligrafia inequivocamente individual que surge a partir da escrita social”. (ELIAS, 1987ELIAS, Norbert. Die Gesellschaft der Individuen. Frankfurt: Suhrkamp, 1987., p. 244)

A metáfora é muito interessante e oportuna, pois, se do mesmo solo podem brotar plantas diferentes, da mesma forma, em uma sociedade composta de falantes de um mesmo idioma, podem surgir dialetos, socioletos e idioletos distintos. Entretanto, o desenvolvimento das plantas depende do solo, e elas poderão partilhar características comuns decorrentes das propriedades dele. Se o nível de nitrogênio, por exemplo, for baixo, o crescimento da planta poderá ser inibido e as folhas poderão ficar amareladas (BLOOM, 2017BLOOM, Arnold J. Nutrição mineral. In: TAIZ, Lincoln et al. (orgs.). Fisiologia e desenvolvimento vegetal. Porto Alegre: Artmed, 2017. p. 119-142., p. 126). Do mesmo modo, ainda que determinada região tenha o seu próprio dialeto e um grupo de pessoas o seu próprio socioleto - e uma pessoa, em particular, pode ter o seu idioleto -, ainda existirão características comuns da língua partilhada por todos. Isso permite compreender como existem padrões partilhados pelos indivíduos.

Em Bourdieu, a preocupação é semelhante, ele insurge contra as falsas dicotomias que são verdadeiros obstáculos epistemológicos quando se trata de construir uma ciência social rigorosa, por exemplo, objetivismo e subjetivismo:

Esta dicotomía básica corre pareja a series enteras de otras oposiciones como materialismo versus idealismo, economicismo versus culturalismo, mecanicismo versus finalismo, explicación causal versus comprensión interpretativa. […] Su poder estructurante es el más grande toda vez que mantienen una fuerte afinidad con las oposiciones fundamentales que organizan la percepción ordinaria del mundo social y político, tales como individuo versus sociedad (o individualismo versus socialismo). […]

Es esta dialéctica de objetividad y subjetividad la que el concepto de habitus está diseñado para captar y resumir.19 19 Tradução livre: “Essa dicotomia básica anda de mãos dadas com toda uma série de outras oposições, como materialismo versus idealismo, economicismo versus culturalismo, mecanicismo versus finalismo, explicação causal versus compreensão interpretativa. […] Seu poder estruturante é maior porque mantém forte afinidade com as oposições fundamentais que organizam a percepção ordinária do mundo social e político, como indivíduo versus sociedade (ou individualismo versus socialismo). […] É essa dialética de objetividade e subjetividade que o conceito de habitus pretende captar e resumir”. (BOURDIEU, 2000BOURDIEU, Pierre. Poder, derecho y clases sociales. Bilbao: Editorial Desclée de Brower, 2000. Não paginado (e-book Kindle).)

Para Bourdieu (1992BOURDIEU, Pierre. Les fins de la sociologie réflexive (le séminaire de Chicago). In: BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loic. Réponses: Pour une anthropologie réflexive. Paris: Seuil, 1992. p. 43-185.), o habitus é o sistema de disposições ou esquemas de percepção, apreciação e ação duráveis. Tais esquemas são socialmente adquiridos ao longo da vida das pessoas e funcionam no nível prático, atribuindo-lhes espécie de senso prático em relação aos jogos sociais e à vida em sociedade como um todo, e é aqui que o conceito de habitus se assemelha ao de atitude, mas ganha mais precisão - vide o que foi dito anteriormente sobre a existência de mais de uma centena de conceitos de atitude.

Um exemplo desse senso prático é o jogador de futebol que se antecipa aos adversários, posiciona-se no local em que a bola estará e faz o gol, em uma jogada tão dinâmica que não tem como ser racionalmente refletida (WACQUANT, 1992aWACQUANT, Loïc. Introduction. In: BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loïc. Réponses: Pour une anthropologie réflexive. Paris: Seuil, 1992a. p. 13-42., p. 21; GONÇALVES, 2017GONÇALVES, Francysco Pablo Feitosa. Possibilidades de uma ciência reflexiva no Direito: uma aproximação ao campo das Faculdades de Direito em Recife. 2017. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017., p. 343). Outro exemplo é uma sala de aula, no momento em que o professor escreve no quadro e os discentes copiam em seus cadernos; embora esse possa ser um momento em que o conteúdo esteja sendo racionalmente refletido, a escrita em si está de tal forma incorporada nas pessoas que elas não precisam refletir a respeito ou tentar lembrar das palavras, da forma das letras, como se pega na caneta, etc. Situação totalmente diferente é a da criança que está aprendendo a escrever e que precisa constantemente relembrar e refletir sobre as letras e palavras (GONÇALVES, 2017GONÇALVES, Francysco Pablo Feitosa. Possibilidades de uma ciência reflexiva no Direito: uma aproximação ao campo das Faculdades de Direito em Recife. 2017. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017., p. 344).

Les conditionnements associés à une classe particulière de conditions d’existence produisent des habitus, systèmes de dispositions durables et transposables, structures structurées prédisposées à fonctionner comme structures structurantes, c’est-à-dire en tant que principes générateurs et organisateurs de pratiques et de représentations qui peuvent être objectivement adaptées à leur but sans supposer la visée consciente de fins et la maîtrise expresse des opérations nécessaires pour les atteindre, objectivement « réglées » et « régulières » sans être en rien le produit de l’obéissance à des règles, et, étant tout cela, collectivement orchestrées sans être le produit de l’action organisatrice d’un chef d’orchestre.20 20 Tradução livre: “Os condicionamentos associados a uma determinada classe de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transferíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípios que geram e organizam práticas e representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a presença consciente de objetivos ou o controle expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem ser produto da obediência de regras determinadas, e, portanto, orquestradas coletivamente sem ser produto da ação organizadora de um maestro”. (BOURDIEU, 1980BOURDIEU, Pierre. Le sens pratique. Paris: Éditions de Minuit, 1980., p. 88-89)

O habitus se refere, portanto, às predisposições incorporadas, inculcadas nas pessoas ao longo da sua vida, e que condicionam a percepção, a apreciação e a ação no mundo social. Aqui se faz necessário observar que a proximidade e a possibilidade de diálogo entre os conceitos e os estudos sobre habitus e atitude são tão grandes que chega a ser surpreendente a ausência de trabalhos que construam uma ponte entre os dois conceitos. Até mesmo Bernard Lahire, que sucedeu Bourdieu no Collège de France e desenvolve trabalhos que pretendem ir da teoria do habitus a uma sociologia psicológica (LAHIRE, 2005LAHIRE, Bernard. De la teoría del habitus a una sociología psicologíca. In: LAHIRE, Bernard (coord.). El trabajo sociológico de Pierre Bourdieu: deudas y críticas. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005. p. 143-180.), negligencia a análise efetiva dos conceitos de atitude e, principalmente, dos estudos empíricos sobre as atitudes.

Nesse ponto, seria possível achar interessante o debate sobre atitudes e habitus, mas questionar: o que, afinal, isso tem a ver com colonização cultural, controle de constitucionalidade, etc.? A resposta para tal questionamento seria bem simples: a colonização cultural vigente no Direito se situa, também, no plano das atitudes e do habitus. Não se trata apenas de decidir não ser mais colonizado ou de criar uma teoria decolonial. As predisposições, os esquemas de percepção e apreciação que operam em um nível não consciente continuam reconhecendo como legítimos e valorizando os saberes oriundos da metrópole. A própria Weltanschauung, que é defendida e propagada, é a racionalidade ocidental moderna, e, claro, a história legítima é a contada na perspectiva ocidental, e é precisamente aqui que entra a questão das origens do controle concentrado de constitucionalidade - assunto que será abordado na próxima seção -, mas não sem antes trazer uma informação importante que será retomada nas considerações finais: “[...] the possibility of an emancipation founded on awareness and knowledge of the conditionings undergone and on the imposition of new conditionings designed durably to counter their effects”21 21 Tradução livre: “[...] a possibilidade de uma emancipação fundada na consciência e no conhecimento dos condicionamentos sofridos e na imposição de novos condicionamentos concebidos de forma duradoura para contrariar os seus efeitos”. (BOURDIEU, 1999BOURDIEU, Pierre. Scattered Remarks. European Journal of Social Theory, [s.l.], v. 2, n. 3, p. 334-340, 1999. Disponível em: Disponível em: http://est.sagepub.com/content/2/3/334 . Acesso em: 5 jan. 2022.
http://est.sagepub.com/content/2/3/334...
, p. 340).

3. Kelsen e a versão “oficial” da história

Muito já foi dito e escrito sobre o que seria uma Constituição e existem várias propostas e definições do que deveria ser chamado ou não de Constituição. Nesse momento, não é tão importante falar em acepções ou sentidos, tais como sociológico, político, material, formal, jurídico, culturalista, entre outros, mas entender que ela é uma construção - e, muitos diriam, uma conquista civilizatória - ocidental moderna.

Se em todos os grupos sociais parece ter havido alguma forma de organização e a presença de normas com maior ou menor grau de importância, e por mais que possam existir discursos que situem a origem do Estado na antiguidade ou na assim chamada Idade Média, parece razoável dizer que o modelo de Estado que existe atualmente se consolida na modernidade. Nesse sentido, Paulo Bonavides (2004BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. São Paulo: Malheiros, 2004., p. 27) observa que “o Estado Moderno em verdade significa uma nova representação de poder grandemente distinta daquela que prevaleceu em passado mais remoto ou até mesmo mais próximo, como foi o largo período medievo”.

Elias foi pioneiro em demonstrar como os Estados se formaram em um processo de monopolização. Para ele, o Estado ocidental moderno foi destituindo outras instâncias de poder - como a Igreja, os senhores feudais, as corporações - dos recursos e instrumentos de poder e violência, ao mesmo tempo em que assumia o poder militar, o poder de tributar, estabelecia a língua oficial, os sistemas de medidas e, claro, uma ordem jurídica, além de concentrar processos que anteriormente eram julgados por outras instituições, como a justiça dos senhores de terras, da Igreja, etc. O Estado também passou a fornecer as condições de existência para um mercado nacional por meio da adoção de uma moeda única,22 22 Segundo Bourdieu, “l’idéal des princes féodaux, comme plus tard des rois de France, étant que l’on ne se serve, dans les territoires soumis à leur domination, que de leur monnaie, prétention qui ne sera réalisée que sous Louis XIV”. Minha interpretação: “o ideal dos príncipes feudais, e depois, dos reis da França, era que nos territórios sujeitos à sua dominação, apenas sua moeda fosse utilizada, uma pretensão que só se realizou sob Luís XIV”. de leis que regulam as relações comerciais, etc. “Erst mit der Herausbildung dieses beständigen Monopols der Zentralgewalt und dieser spezialisierten Herrschaftsapparatur nehmen die Herrschaftseinheiten den Charakter von »Staaten« an”23 23 Tradução livre: “Somente com o desenvolvimento desse monopólio permanente do poder central, e do aparato especializado de governo, é que os domínios assumem o caráter de ‘Estados’”. Em sentido análogo, Georg Jellinek (1914, p. 440), para quem “der moderne Staat ist von den antiken Staaten scharf geschieden dadurch, daß er sich anfangs von verschiedenen Seiten bestritten fand, sein Dasein sich daher erst in schwerem Kampfe erringen mußte. Drei Mächte sind es, die im Laufe des Mittelalters seine Selbständigkeit bestreiten. Zunächst die Kirche, welche den Staat zu ihrem Diener zwingen will, sodann das römische, Reich, das den Einzelstaaten nur die Geltung von Provinzen zuerkennt, endlich die großen Lehnsträger und Körperschaften im Staate, die sich als selbstberechtigte Mächte neben und gegenüber dem Staate fühlen”. Tradução livre: “O Estado moderno se diferencia radicalmente dos Estados anteriores pelo fato de que, desde o início, ele foi combatido por vários lados e, portanto, sua existência teve de ser afirmada em uma luta difícil. É o poder de três potências que, no curso da Idade Média, negaram sua independência. Primeiro a Igreja, que quis colocar o Estado a seu serviço; depois o Império Romano, que quis reconhecer aos estados apenas o valor de províncias; por fim, os nobres e as corporações que se sentiam como poderes independentes do Estado e à sua frente”. (ELIAS, 1997ELIAS, Norbert. Über den Prozeß der Zivilisation: Soziogenetische und psychogenetische Untersuchungen. Berlim: Suhrkamp, 1997., p. 152).

O Estado ocidental moderno se estrutura, portanto, a partir da necessidade de afirmar sua existência e seu poder diante de outras instituições que negavam sua independência. E o advento desse novo modelo de Estado possibilita também a noção de Constituição como é compreendida hoje.24 24 Não se trata aqui de negar a possibilidade de existência de um constitucionalismo antigo - o debate fica em aberto quanto a isso - mas de reconhecer a existência de um constitucionalismo moderno. Para Horst Dippel (2009), seriam dez os princípios que caracterizam o constitucionalismo moderno: 1) soberania popular; 2) fundamentação da Constituição em princípios universais; 3) uma declaração de direitos; 4) governo representativo, ampliando a legitimidade e prevenindo a corrupção e o governo aristocrático; 5) supremacia da Constituição; 6) separação de poderes; 7) governo limitado; 8) exigência de responsabilidade política e de um governo (dever de prestar contas); 9) independência e imparcialidade judicial; 10) o direito das pessoas de reformar a Constituição e o governo. Ainda de acordo com Dippel (2009), a Virginia Declaration of Rights de 1776 foi o primeiro documento constitucional em que esses dez princípios aparecem todos juntos. Sobre isso, sempre é válido lembrar o célebre art. 16o da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que estabelece: “Toute Société dans laquelle la garantie des Droits n’est pas assurée, ni la séparation des Pouvoirs déterminée, n’a point de Constitution”25 25 Tradução livre: “Qualquer Sociedade na qual a garantia dos Direitos não esteja assegurada, nem esteja estabelecida a separação de poderes, não tem Constituição”. (FRANCE, 1789FRANCE. Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de 1789. Légifrance. Disponível em: Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/contenu/menu/droit-national-en-vigueur/constitution/declaration-des-droits-de-l-homme-et-du-citoyen-de-1789 . Acesso em: 9 maio 2021.
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). A partir daí se consolida progressivamente a ideia moderna de Constituição como documento que contém a estruturação e a organização dos elementos fundamentais da sociedade organizada na forma de Estado,26 26 Para Canotilho (2003, p. 52, grifo do autor), “o constitucionalismo moderno legitimou o aparecimento da chamada constituição moderna. Por constituição moderna entende-se a ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político. Podemos desdobrar este conceito de forma a captarmos as dimensões fundamentais que ele incorpora: (1) ordenação jurídico-política plasmada num documento escrito; (2) declaração, nessa carta escrita, de um conjunto de direitos fundamentais e do respectivo modo de garantia; (3) organização do poder político segundo esquemas tendentes a torná-lo um poder limitado e moderado. Este conceito de Constituição converteu-se progressivamente num dos pressupostos básicos da cultura jurídica ocidental”. Ainda conforme Canotilho (2003, p. 88), “o artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 é reiteradamente citado para identificar o ‘núcleo duro’ de uma constituição em sentido moderno”. e, como já foi dito, o papel da Constituição progressivamente se desloca das normas de estrutura e organização do Estado para as de direitos fundamentais.

A modernidade e os seus desdobramentos posteriores também trazem a consubstanciação progressiva das ideias de rigidez e supremacia da Constituição. Por conter a organização fundamental da sociedade e os direitos fundamentais, a Constituição deve ser hierarquicamente superior às demais leis. Isso vem a ser representado, já no século XX, na metáfora da pirâmide normativa, erroneamente atribuída a Kelsen, pois seu criador, na realidade, teria sido Adolf Merkl (BERRÓN, 1972BERRÓN, Fausto E. Vallado. Teoría general del derecho. Cidade do México: UNAM, 1972., p. 137; OKLOPCIC, 2018OKLOPCIC, Zoran. Beyond the People: Social Imaginary and Constituent Imagination. Oxford: Oxford University Press, 2018., p. 282).

A rigidez constitucional, por sua vez, demanda a necessidade de mecanismos de controle de constitucionalidade, e aqui entra a versão mais amplamente divulgada da história: o controle de constitucionalidade teria se iniciado com o célebre caso Marbury v. Madison nos Estados Unidos, a partir do qual se estabelece o modelo difuso de controle de constitucionalidade, e Kelsen seria responsável pela criação do modelo concentrado, instalado inicialmente na Constituição da Áustria, em 1920.27 27 Quanto ao controle difuso, ainda que não seja o tema do presente artigo, é importante lembrar que Marbury v. Madison não foi o primeiro caso em que houve o controle de constitucionalidade de uma lei nos Estados Unidos (GONÇALVES e TEIXEIRA, 2015).

Essa versão “oficial” predomina na cultura jurídica brasileira. Aparece em manuais, por exemplo, no de Alexandre de Moraes (2020MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2020. Não paginado (e-book Kindle).), onde se lê que foi “Hans Kelsen, criador do controle concentrado de constitucionalidade”. É significativo, a propósito, que não se trata apenas de mais um manual, escrito por um jurista qualquer, mas de um manual escrito por alguém que lecionou na Universidade de São Paulo, em um dos cursos de Direito mais tradicionais do Brasil, e que atualmente é ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Também se faz presente na dogmática jurídica, como no livro do também ministro do STF, Luís Roberto Barroso (2012BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2012., p. 41), para quem “Hans Kelsen foi o introdutor do controle de constitucionalidade na Europa, através da Constituição da Áustria, em 1920, aperfeiçoado com a reforma constitucional de 1929”. E faz-se presente, claro, em trabalhos mais propriamente acadêmicos, em teses e dissertações, como a de Newton de Oliveira Lima (2009LIMA, Newton de Oliveira. A construction como método concretizador de direitos fundamentais: aplicação na jurisdição constitucional brasileira. 2009. 257 f. Dissertação (Mestrado em Constituição e Garantias de Direitos) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2009., p. 23) e a de Regina Tamami Hirose (2010HIROSE, Regina Tamami. Atos normativos e controle concentrado de constitucionalidade. 2010. Dissertação (Mestrado em Direito do Estado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010., p. 61), que atribuem a Kelsen a criação do controle concentrado. A mesma versão oficial é encontrada em artigos publicados em periódicos relevantes, como o estudo de Alexandre Bahia (2004BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco de Moraes. Controle concentrado de constitucionalidade: o guardião da Constituição no embate entre Hans Kelsen e Carl Schmitt. Revista de Informação Legislativa, [s.l.], v. 41, n. 164, p. 87-103, out./dez. 2004. Disponível em: Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/1009 . Acesso em: 9 maio 2021.
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, p. 88), em que se lê que “o trabalho de Kelsen é um referencial não só pela grandeza de suas teses, mas também porque foi justamente ele o criador do controle concentrado”.

Trata-se, portanto, da visão de mundo dominante, e integra o habitus jurídico (BOURDIEU, 1980BOURDIEU, Pierre. Le sens pratique. Paris: Éditions de Minuit, 1980.), faz-se presente nas atitudes (THOMAS e ZNANIECKI, 1918THOMAS, William Isaac; ZNANIECKI, Florian Witold. The Polish Peasant in Europe and America: Monograph of an Immigrant Group. Boston: The Gorham Press, 1918. (Volume I). Disponível em: Disponível em: https://archive.org/details/cu31924082469507/mode/2up . Acesso em: 8 maio 2021.
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) e nos engramas (SEMON, 1908SEMON, Richard Wolfgang. Die Mneme: als erhaltendes Prinzip im Wechsel des organischen Geschehens. Leipzig: W. Engelmann, 1908. Disponível em: Disponível em: https://archive.org/details/diemnemealserha00semo/ . Acesso em: 1o jan. 2022.
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) dos juristas. Ela condiciona, portanto, a percepção, a apreciação e a ação no mundo quando se trata de controle de constitucionalidade, mas até onde ela de fato corresponde à realidade? É certo que Kelsen teorizou sobre o controle concentrado e criou a célebre tese do legislador negativo. Para ele, a possibilidade de uma lei criada por um parlamento democraticamente eleito ser anulada era um antagonismo e uma restrição considerável ao poder daquele parlamento. Então, ele propôs a ideia de um tribunal constitucional, que poderia ter a competência exclusiva de analisar a constitucionalidade das leis e subtrair do ordenamento aquelas que fossem inconstitucionais, e, a fim de mitigar o antagonismo entre os dois órgãos, sugeriu que os membros do tribunal constitucional poderiam ser eleitos pelo próprio parlamento (KELSEN, 1949KELSEN, Hans. General Theory of Law and State. Cambridge: Harvard University Press, 1949.). Kelsen foi sensível, portanto, à tensão entre Constituição e democracia - mencionada no início do presente artigo - e buscou conceber mecanismos para minimizá-la.

Os outros tribunais, aos quais caberia aplicar a lei ao caso concreto, teriam o direito de acionar o tribunal constitucional diante de um incidente de inconstitucionalidade. Para Kelsen (1949KELSEN, Hans. General Theory of Law and State. Cambridge: Harvard University Press, 1949., p. 268), portanto, “[t]he annulment of a law is a legislative function, an act - so to speak - of negative legislation. A court which is competent to abolish laws - individually or generally - functions as a negative legislator”.28 28 Tradução livre: “A anulação da lei é uma função legislativa, um ato - por assim dizer - de legislação negativa. O tribunal que é competente para abolir as leis - de forma individual ou geral - funciona como um legislador negativo”.

Cabe aqui um parêntese. Embora a preocupação democrática seja louvável, a tese do legislador negativo é questionável. Se uma lei torna determinada conduta ilícita, isto é, estabelece que a conduta não deve ser praticada, sob pena de determinada sanção, e tal lei vem a ser anulada pelo tribunal constitucional, a conduta passa automaticamente a ser lícita, ou seja, o não foi substituído pelo sim. O próprio Kelsen pode ter feito certa concessão nesse sentido ao dizer que a função do legislador negativo se assemelha à dos demais tribunais e que, em pequena medida, ele cria o direito:

[…] i potere del legislatore negativo, dell’organo di giustizia costituzionale, sono invece completamente stabiliti dalla costituzione. E proprio per ciò questa funzione somiglia a quella di un qualunque altro tribunale; essa è principalmente applicazione e solo in misura esigua creazione del diritto, e quindi è veramente giurisdizionale.29 29 Tradução livre: “[…] os poderes do legislador negativo, do órgão da justiça constitucional, são, por sua vez, completamente estabelecidos pela constituição. E precisamente por isso essa função se assemelha à de qualquer outro tribunal; é principalmente de aplicação, e apenas em pequena medida de criação do direito e, portanto, é verdadeiramente judicial”. (KELSEN, 1981KELSEN, Hans. La giustizia costituzionale. Milão: Giuffrè Editore, 1981., p. 174)

Essa tese do legislador negativo trouxe algumas consequências intrigantes, pois, se o que o tribunal constitucional faz é retirar a lei do ordenamento, então, embora inconstitucional, ela foi válida por algum tempo; no entanto, na perspectiva da teoria pura de Kelsen, uma lei somente pode ser válida fundamentada na Constituição. O próprio Kelsen analisou essa aparente contradição, e seu entendimento sobre a questão parece ter oscilado ao longo do tempo (KELSEN, 1949KELSEN, Hans. General Theory of Law and State. Cambridge: Harvard University Press, 1949. e 1981KELSEN, Hans. La giustizia costituzionale. Milão: Giuffrè Editore, 1981.; GRANT, 1963GRANT, James Allan Clifford. El control jurisdiccional de la constitucionalidad de las leyes: una contribución de las Americas a la Ciencia Politica (tercera parte). Revista de la Facultad de Derecho de Mexico, [s.l.], tomo XIII, n. 49, p. 57-82, jan./mar. 1963.).

Essa questão será retomada oportunamente; por ora, basta observar que Kelsen teorizou sobre o tribunal constitucional, e suas ideias certamente foram influentes, mas será que ele é realmente o criador do controle concentrado de constitucionalidade? Teria ele criado o controle concentrado ex nihilo? Seria uma espécie de Demiurgo que, a partir do caos existente, teria criado um tribunal constitucional organizado, ou, pior, seria ele o responsável pelos problemas da jurisdição constitucional? Houve, na América Latina, alguma experiência constitucional que possa ser considerada precursora no controle concentrado de constitucionalidade? As linhas que se seguem pretendem lançar alguma luz sobre essas questões.

4. O surgimento do controle concentrado na América Latina

Identificar as reais origens do controle de constitucionalidade é uma tarefa difícil, até mesmo porque, eventualmente, vai haver divergência sobre o que se entende por constituição, controle, e como isso se transformou ao longo do tempo - vide o que foi mencionado anteriormente sobre as evoluções históricas. Sobre as origens do judicial review, Gonçalves e Teixeira (2015GONÇALVES, Francysco Pablo Feitosa; TEIXEIRA, João Paulo Allain. As evoluções históricas e a “historiografia” dos juristas: reflexões sobre o surgimento do judicial review. Revista de Informação Legislativa, [s.l.], v. 52, n. 206, p. 137-164, abr./jun. 2015.) identificam contradições e versões divergentes nos discursos sobre as origens da Constituição e sobre o controle nos Estados Unidos.

Mesmo a delimitação do estudo no Estado ocidental moderno - vide o que foi abordado anteriormente - não é capaz de evitar a dificuldade de identificar a pedra angular do controle concentrado. Gonçalves e Teixeira lembram que existiram propostas, como o Consistório no Reino de Aragão (na Espanha), ainda no século XIII, que já exerceria algum controle sobre as leis, e o instrument of government de Cromwell de 1653 - que Esmein (1921) considera o protótipo da Constituição estadunidense -, que já continham dispositivos que dispunham sobre a invalidação de leis que lhes contrariassem, mas que não surtiram efeitos práticos. Também não podemos olvidar a proposta de Sieyès ao constituinte de 1795 de criação de um jurie constitutionaire que julgaria as violações à Constituição, uma ideia inicialmente rejeitada. Depois, foi instituído o Sénat conservateur, cujos membros eram selecionados de acordo com a vontade de Napoleão, e que acabou sendo um “corpo sem vida” (BARROSO, 2012BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2012., p. 64; ESMEIN, 1921ESMEIN, Adhémar. Éléments de droit constitutionnel français et comparé. Paris: Librairie de la Société du Recueil J.B. Sirey et du Journal du Palais, 1909. Disponível em: Disponível em: http://archive.org/details/lmentsdedroitco02esmegoog . Acesso em: 7 set. 2022.
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, p. 536-537).

Essas - entre outras - são iniciativas que não vingaram e que não são reconhecidas como originadoras do controle concentrado. É significativo, aliás, que Barroso dedique ao jurie constitutionaire apenas uma nota de rodapé, e diga, como já foi visto, que a introdução do controle de constitucionalidade na Europa seja obra de Kelsen (BARROSO, 2012BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2012., p. 41 e 64). Isso não significa, evidentemente, que tais experiências não possam ter contribuído para a construção posterior do controle de constitucionalidade. Não seria sem sentido supor que tenham permanecido ao menos como memórias subterrâneas30 30 As “mémoires souterraines” (POLLAK, 1993, p. 18 et seq.) são aquelas que se opõem à memória oficial, são lembranças coletivas que não são ditas ou que são impossíveis de serem narradas por não possuírem reconhecimento e legitimação social. e possam ter inspirado experiências posteriores, inclusive na América Latina. Basta pensar que Simón Bolívar - de quem trataremos adiante - estudou na Espanha e dominava a língua francesa, então existe a possibilidade de que ele tenha tomado conhecimento de alguma dessas tentativas de afirmação da supremacia da Constituição.31 31 Seria possível falar, ainda, nos debates estadunidenses em torno da supremacia da Constituição e do controle de constitucionalidade, os quais certamente foram impactados pelas experiências constitucionais europeias anteriores, e exerceram influência na América Latina.

De todo modo, quando falamos de experiências efetivas de controle concentrado de constitucionalidade, precisamos olhar para a América Latina. O Estado Libre e Independiente de Cundinamarca foi uma República que existiu de 1810 a 1816 no território que hoje é correspondente ao departamento de Cundinamarca,32 32 A Colômbia é um Estado Unitário descentralizado em 32 departamentos e o distrito capital, que é Bogotá. na Colômbia (BAQUERO, 2006BAQUERO, Luis Enrique Rodríguez et al. Historia de Colombia. Bogotá: Taurus, 2006. Não paginado (e-book Kindle).; GAVIRIA, 2017GAVIRIA, José Antonio Ocampo (org.). Historia económica de Colombia. Cidade do México: Fondo de Cultura Económica, 2017. Não paginado (e-book Kindle).; MCGREEVEY, 2015MCGREEVEY, William Paul. Historia económica de Colombia, 1845-1930. Bogotá: Universidad de los Andes, 2015.). Em 4 de abril de 1811, foi promulgada a sua Constitución, que já estabelecia o Senado de censura y protección, composto de cinco membros, com a tarefa de zelar pela Constituição e pelos direitos do povo, e que poderia, ex officio ou mediante provocação de qualquer cidadão, atuar diante de qualquer ato contrário à Constituição, praticado por quaisquer dos poderes. Importante observar que, apesar de se chamar Senado, trata-se de um órgão integrante da estrutura do Judiciário,33 33 “Artículo 3. El primer Tribunal de la Provincia, preferente a todos los demás, es el Senado; después siguen los de apelación; últimamente entran los Jueces de Primera Instancia con sus municipalidades, y los pedáneos con las pequeñas municipalidades que debe haber en todo poblado por pequeño que sea” (CUNDINAMARCA, 1811). Tradução livre: “Artigo 3. O primeiro Tribunal da Província, superior a todos os outros, é o Senado; em seguida vêm os Tribunais de Apelação; por último, entram os Juízes de Primeira Instância com suas municipalidades, e os juízes de bairro com as pequenas municipalidades que devem existir em todas as localidades, por menores que sejam”. e não do Legislativo (SEGADO, 1999SEGADO, Francisco Fernández. El control de constitucionalidad en Latinoamérica: del control político a la aparición de los primeros Tribunales Constitucionales. Derecho PUCP, n. 52, p. 409-465, 1999. Disponível em: https://doi.org/10.18800/derechopucp.199901.019. Acesso em: 16 maio 2021.).

Dito de outra maneira, mais de um século34 34 Cento e nove anos e cinco meses, para ser preciso. antes da Constituição da Áustria de 1920 e cerca de 70 anos antes de Kelsen ter nascido,35 35 Kelsen nasceu em 11 de outubro de 1881. portanto, a Constitución de Cundinamarca previu uma forma de controle concentrado de constitucionalidade, inclusive a ação era direta, pública e aberta aos cidadãos. Embora a independência de Cundinamarca tenha sido breve, o controle concentrado na Colômbia não foi uma experiência fugaz, pois, como observa James Allan Clifford Grant (1963GRANT, James Allan Clifford. El control jurisdiccional de la constitucionalidad de las leyes: una contribución de las Americas a la Ciencia Politica (tercera parte). Revista de la Facultad de Derecho de Mexico, [s.l.], tomo XIII, n. 49, p. 57-82, jan./mar. 1963.), em 1850 qualquer cidadão poderia acionar a Suprema Corte visando à anulação de uma lei provincial que conflitasse com a Constituição. Sobre isso, Segado (1999SEGADO, Francisco Fernández. El control de constitucionalidad en Latinoamérica: del control político a la aparición de los primeros Tribunales Constitucionales. Derecho PUCP, n. 52, p. 409-465, 1999. Disponível em: https://doi.org/10.18800/derechopucp.199901.019. Acesso em: 16 maio 2021., p. 432-433) observa que

[l]a Ley Orgánica de la Administración y Régimen Municipal, de 22 de junio de 1850, encargaba a la Suprema Corte de Justicia de Colombia el conocimiento de las causas directas, abiertas y ciudadanas contra las normas de las cámaras provinciales y de los cabildos parroquiales, por razones de inconstitucionalidad. Los efectos del fallo declaratorio de la inconstitucionalidad se proyectaban erga omnes, pues lo que se solicitaba era la anulación de la norma inconstitucional, no su mera inaplicación.36 36 Tradução livre: “A Lei Orgânica do Regime Administrativo e Municipal, de 22 de junho de 1850, confiou ao Supremo Tribunal de Justiça da Colômbia o conhecimento de casos diretos, abertos e cidadãos, contra as normas das câmaras provinciais e juntas de freguesia, por razões de inconstitucionalidade. Os efeitos da decisão declaratória de inconstitucionalidade foram projetados erga omnes, pois o que se pedia era a anulação da norma inconstitucional, e não a sua mera não aplicação”.

Essa ação popular direta de inconstitucionalidade - não é exagero chamá-la assim - viria a ser inserida na Constituição colombiana em 1910, uma década antes, portanto, da Constituição austríaca. E o controle concentrado colombiano foi de fato empregado, pois, como observa Grant (1963GRANT, James Allan Clifford. El control jurisdiccional de la constitucionalidad de las leyes: una contribución de las Americas a la Ciencia Politica (tercera parte). Revista de la Facultad de Derecho de Mexico, [s.l.], tomo XIII, n. 49, p. 57-82, jan./mar. 1963., p. 61), em 50 anos “[l]a Corte ha conocido de casi doscientas de esas acciones y en más de una cuarta parte el actor ha logrado obtener la anulación de toda la ley impugnada, o de porciones de ella”.37 37 Tradução livre: “O Tribunal já ouviu falar de quase 200 dessas ações e em mais de um quarto o autor conseguiu obter a anulação de toda a lei impugnada, ou partes dela”.

Em 1858, a Venezuela teve sua sexta Constituição, produto da Revolución de Marzo, a qual foi, segundo Rafael Arráiz Lucca (2013LUCCA, Rafael Arráiz. Historia política de Venezuela: 1948 a nuestros días. Bogotá D.C.: Editorial Universidad del Rosario, 2013., p. 279), a primeira carta constitucional democrática do país, tendo instituído o voto direto para presidente, deputados e governadores, além de conter vedação ao nepotismo. Tal Constituição trazia, em seu art. 113, item 8, a competência da Corte Suprema para “[d]eclarar la nulidad de los actos legislativos sancionados por las Legislaturas provinciales, a pedido de cualquier ciudadano, cuando sean contrarios a la Constitución” (VENEZUELA, 1858VENEZUELA. Constitución de 1858 (31 de diciembre de 1858). Disponível em: Disponível em: https://derechodelacultura.org/wp-content/uploads/2015/02/3_1_1_ven_cn_1858.pdf . Acesso em: 23 maio 2021.
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). Trata-se, portanto, da previsão constitucional de um controle concentrado de constitucionalidade, positivado na forma de ação popular direta de inconstitucionalidade. Mais uma vez, antes do nascimento de Kelsen.

Outro país que merece lembrança é a Bolívia. A Constitución Política de 1880 incluiu uma previsão ainda mais ampla do que a ação popular venezuelana ao acrescentar nas competências da Corte Suprema “[c]onocer en única instancia de los asuntos de puro derecho, cuya decisión dependa de la constitucionalidad o inconstitucionalidad de las leyes, decretos y cualquier género de resoluciones” (BOLÍVIA, 1880BOLÍVIA. Constitución Política de 1880, 28 de octubre de 1880. Disponível em: Disponível em: https://www.lexivox.org/norms/BO-CPE-18801028.html . Acesso em: 23 maio 2021.
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). A referida Corte Suprema adotou, entretanto, uma interpretação no sentido de que sua jurisdição seria aplicável apenas quando um interessado trouxesse um incidente de inconstitucionalidade em um caso concreto (GRANT, 1963GRANT, James Allan Clifford. El control jurisdiccional de la constitucionalidad de las leyes: una contribución de las Americas a la Ciencia Politica (tercera parte). Revista de la Facultad de Derecho de Mexico, [s.l.], tomo XIII, n. 49, p. 57-82, jan./mar. 1963.; SEGADO, 1997SEGADO, Francisco Fernández. Los inicios del control de la constitucionalidad en Iberoamérica: del control político al control jurisdiccional. Revista Española de Derecho Constitucional, [s.l.], año 17, n. 49, p. 79-118, jan./abr. 1997. Disponível em: Disponível em: https://www.cepc.gob.es/sites/default/files/2021-12/25325redc049088.pdf . Acesso em: 16 maio 2021.
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e 1999). Isso fez com que houvesse concentração do controle de constitucionalidade na Corte Suprema, mas tal controle não se dava in abstracto.

Também na Bolívia, surgiu mais um importante antecedente teórico do controle concentrado. Em 25 de maio de 1826, 55 anos antes do nascimento de Kelsen - que nasceu em 11 de outubro de 1881 - Simón Bolívar, em sua mensagem ao Congresso Constituinte da Bolívia, observou a necessidade de um órgão, chamado de Cámara de Censores, que tinha, entre outras competências, a de garantir que o Governo cumpra e faça cumprir a Constituição. A proposta de Bolívar foi adotada pela Constitución Política de 1826, de 19 de novembro de 1826 (BOLÍVAR, 2009BOLÍVAR, Simón. Doctrina del libertador. Caracas: Fundación Biblioteca Ayacucho, 2009., p. 279; BOLÍVIA, 1826BOLÍVIA. Constitución Política de 1826, 19 de noviembre de 1826. Disponível em: Disponível em: https://www.lexivox.org/norms/BO-CPE-18261119-1.xhtml#idp11289840 . Acesso em: 16 maio 2021.
https://www.lexivox.org/norms/BO-CPE-182...
; QUINTEROS, 1894QUINTEROS, José S. Derecho Administrativo. Sucre: [s.n.], 1894. Disponível em: Disponível em: https://archive.org/details/derechoadminist00quingoog . Acesso em: 16 maio 2021.
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; SEGADO, 1999SEGADO, Francisco Fernández. El control de constitucionalidad en Latinoamérica: del control político a la aparición de los primeros Tribunales Constitucionales. Derecho PUCP, n. 52, p. 409-465, 1999. Disponível em: https://doi.org/10.18800/derechopucp.199901.019. Acesso em: 16 maio 2021.; URBINA, 2000URBINA, Juan Carlos Morón. Bolívar y su propuesta constitucional de 1826. Derecho PUCP, [s.l.], n. 53, p. 173-243, 2000. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.18800/derechopucp.200001.005 . Acesso em: 16 maio 2021.
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). Ainda que não possa ser considerado um legislador negativo, cuja única função seria retirar leis inconstitucionais do ordenamento, é notável que a guarda da Constituição tenha sido concentrada em um órgão específico.

Ainda na Bolívia, a Constitución Política de 1831 estabeleceu que competia ao Consejo de Estado velar pela observância da Constituição e informar ao Legislativo as infrações cometidas contra ela (BOLÍVIA, 1831BOLÍVIA. Constitución Política de 1831, 14 de agosto de 1831. Disponível em: Disponível em: https://www.lexivox.org/norms/BO-CPE-18310814.xhtml . Acesso em: 23 maio 2021.
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; SEGADO, 1999SEGADO, Francisco Fernández. El control de constitucionalidad en Latinoamérica: del control político a la aparición de los primeros Tribunales Constitucionales. Derecho PUCP, n. 52, p. 409-465, 1999. Disponível em: https://doi.org/10.18800/derechopucp.199901.019. Acesso em: 16 maio 2021.; ASBUN, 2003ASBUN, Jorge. El control de constitucionalidad en Bolivia: evolución y perspectivas. Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional, [s.l.], n. 7, p. 7-28, 2003. Disponível em: Disponível em: https://recyt.fecyt.es/index.php/AIJC/article/view/50665 . Acesso em: 23 maio 2021.
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). Não era um órgão destinado a subtrair leis inconstitucionais do ordenamento, e, sobre isso, Jorge Asbun observa que, mais do que propriamente controlar a constitucionalidade, o objetivo do Consejo era funcionar como um mecanismo de equilíbrio político entre os órgãos de governo. É digno de nota que a violação da Constituição acarretava, entre outras sanções, a perda do cargo (ASBUN, 2003ASBUN, Jorge. El control de constitucionalidad en Bolivia: evolución y perspectivas. Anuario Iberoamericano de Justicia Constitucional, [s.l.], n. 7, p. 7-28, 2003. Disponível em: Disponível em: https://recyt.fecyt.es/index.php/AIJC/article/view/50665 . Acesso em: 23 maio 2021.
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; BOLÍVIA, 1831BOLÍVIA. Constitución Política de 1831, 14 de agosto de 1831. Disponível em: Disponível em: https://www.lexivox.org/norms/BO-CPE-18310814.xhtml . Acesso em: 23 maio 2021.
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). Também é interessante observar que os membros do Consejo eram indicados pelo Legislativo, como viria a sugerir Kelsen para o tribunal constitucional.

Diante de tudo o que foi visto nas linhas anteriores, é possível afirmar que as Américas, e a América Latina em particular, pouco ou nada devem à Europa em termos de controle de constitucionalidade,38 38 Grant (1963, p. 69) faz uma afirmação semelhante: “Las Américas han tenido poco que aprender de los experimentos de Europa en los años posteriores a las dos guerras mundiales. La principal contribución de los experimentos llevados a cabo en Austria, España, etc. fue el uso de una corte constitucional especial más bien que el empleo normal de la Corte Suprema, medida de valor dudoso, que no ha logrado abrirse paso en este hemisferio”. Discordando parcialmente do que ele disse, é necessário observar, entretanto, que mesmo o estabelecimento de órgãos que concentravam a competência de controlar a constitucionalidade, ou a ideia de os membros de tais órgãos serem indicados pelo Legislativo, já haviam sido empregados na América Latina. uma vez que o controle concentrado e o controle abstrato têm antecedentes por aqui, e mesmo a ideia de um órgão especial com a atribuição de controlar a constitucionalidade das leis tem seus antecedentes na Cámara de Censores e no Consejo de Estado. Embora essas experiências de controle de constitucionalidade tenham acontecido em países - literalmente - vizinhos ao Brasil, essas informações permanecem, entretanto, como uma espécie de memória subterrânea, são desconhecidas ou não são lembradas pelos juristas, que permanecem fiéis à versão oficial. Essa questão será retomada nas considerações finais; por ora, é importante abrir um parêntese para discutir brevemente se Kelsen teve, afinal de contas, alguma importância.

5. E, afinal, qual a importância de Kelsen?

Considerando que tantas das inovações atribuídas a Kelsen já existiam aqui na América Latina, a pergunta que surge invariavelmente é: teria Kelsen copiado ou ao menos se inspirado nas experiências latino-americanas? Difícil responder. Se, por um lado, mesmo com as dificuldades decorrentes dos meios de comunicação da época, algumas dessas ideias devem ter sido noticiadas na Europa, por outro lado, há a barreira linguística. Kelsen provavelmente não era capaz de ler em castelhano, ao menos não à época em que formulou sua tese do legislador negativo.39 39 Em 1949, comentando a sua polêmica com Kelsen, Carlos Cossio (1949, p. 188-189) registrou que “[u]na de las preguntas naturales que se hicieron a Kelsen desde el primer momento, era si leía y comprendía el castellano, con objeto de apreciar la amplitud de sus lecturas egológicas. La respuesta de los primeros días fué invariablemente que, dado el interés que tenía por la Teoría Egológica, lamentaba mucho no conocer nuestro idioma, pero que ya estaba muy viejo para ponerse en la pesada tarea de comenzar a aprenderlo”.

De toda forma, não seria prudente - em verdade, seria temerário - afirmar que a teoria de Kelsen é uma cópia da jurisdição constitucional latino-americana. O que é possível afirmar é que aqui na América Latina, muitas décadas antes de Kelsen nascer, já havia ideias sofisticadas e experiências concretas sobre o controle concentrado de constitucionalidade. Mais do que isso, o controle concentrado latino-americano resolveu um dos problemas que a teoria de Kelsen viria a enfrentar: trata-se da já mencionada contradição que reside no fato de como a lei inconstitucional pode ter sido válida por algum tempo.

Segundo Grant (1963GRANT, James Allan Clifford. El control jurisdiccional de la constitucionalidad de las leyes: una contribución de las Americas a la Ciencia Politica (tercera parte). Revista de la Facultad de Derecho de Mexico, [s.l.], tomo XIII, n. 49, p. 57-82, jan./mar. 1963.), no modelo europeu proposto por Kelsen, as leis deveriam ser consideradas válidas até serem declaradas inconstitucionais pelo tribunal constitucional, uma ideia que não foi aceita nas Américas. Ainda que às vezes seja problemático dar efeito retroativo - ex tunc - às decisões que declaram inconstitucionalidade, essa é a forma adequada de proteger as garantias constitucionais, e, ainda de acordo com Grant (1963GRANT, James Allan Clifford. El control jurisdiccional de la constitucionalidad de las leyes: una contribución de las Americas a la Ciencia Politica (tercera parte). Revista de la Facultad de Derecho de Mexico, [s.l.], tomo XIII, n. 49, p. 57-82, jan./mar. 1963., p. 69-70), “Kelsen se vio obligado a abandonar esta medida profuturo para hacer su sistema practicable”.40 40 Tradução livre: “Kelsen se viu obrigado a abandonar esta medida profuturo [ex nunc] para que seu sistema fosse praticável”.

De fato, em seu estudo sobre a jurisdição constitucional na Constituição austríaca, publicado originalmente em 1923, Kelsen (1981KELSEN, Hans. La giustizia costituzionale. Milão: Giuffrè Editore, 1981.) diz que na decisão do tribunal constitucional (Verfassungsgerichtshof) os efeitos são fundamentalmente ex nunc - não retroativos - e os atos já realizados com base na lei não são afetados pela anulação, ou seja, a lei inconstitucional, que até então era válida, é anulada pelo tribunal. Por outro lado, em trabalho publicado cinco anos depois, Kelsen (1981KELSEN, Hans. La giustizia costituzionale. Milão: Giuffrè Editore, 1981., p. 195) parece repensar a questão, observando que certo efeito retroativo da anulação é uma “nécessité technique”.41 41 Ambos os trabalhos foram vertidos para o italiano e republicados conjuntamente em La giustizia costituzionale, de 1981.

A segunda edição da teoria pura do direito (Reine Rechtslehre) de 1960, entretanto, parece voltar ao entendimento inicial. Nela, Kelsen registra que dizer que uma lei válida é inconstitucional é uma contradição (“contradictio in adjecto”), visto que uma lei só pode ser válida com base na Constituição, então a declaração de inconstitucionalidade não pode ser interpretada literalmente, mas no sentido de uma revogação, e, enquanto tal declaração não acontece, a lei deve ser considerada válida: “So lange es aber nicht aufgehoben ist, muß es als gültig angesehen werden; und so lange es gültig ist, kann es nicht verfassungswidrig sein”42 42 Tradução livre: “Enquanto não for revogada, entretanto, deve ser considerada válida; e, enquanto for válida, não pode ser inconstitucional”. (KELSEN, 1992KELSEN, Hans. Reine Rechtslehre: Zweite, volistándig neu bearbeitete und erweiterte Auflage. Wien: Ósterreichische Staatsdruckerei, 1992., p. 275).

Talvez esse caráter de anulação posterior possa ser considerado, sem exagero, o rasgo distintivo entre a teoria de Kelsen e a tendência dominante na América Latina no que concerne ao controle concentrado. No restante, as principais ideias de Kelsen encontram construções homólogas prévias na história constitucional latino-americana. Dito de outro modo, ainda que tenhamos internalizado em nossos habitus/nossas atitudes que Kelsen criou o controle concentrado, isso não corresponde ao que de fato ocorreu.

De toda forma, ainda que não tenha sido de fato o primeiro a conceber o controle concentrado de constitucionalidade, isso não diminui a importância de Kelsen, que pode ser considerado o jurista mais prestigiado do século XX,43 43 João Maurício Adeodato (2006), por exemplo, considera Kelsen “o maior jurista do século XX”. e suas ideias tiveram notável influência no Brasil. Basta lembrar que foi solicitado a Kelsen um parecer legitimando a Assembleia Nacional Constituinte brasileira de 1933-1934 (TORREZAN, 2009TORREZAN, Roseli. O Governo Provisório na Constituinte de 1933/34. 2009. 292 f. Dissertação (Mestrado em Direito Político e Econômico) - Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2009.; LOSANO, 2016LOSANO, Mario G. O parecer de Hans Kelsen de 1933 sobre a Assembleia Nacional Constituinte do Brasil - Parecer em alemão, espanhol e italiano. Direito & Práxis, Rio de Janeiro, v. 7, n. 14, p. 624-648, 2016. Disponível em: Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/22957/16496 . Acesso em: 29 maio 2021.
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), inclusive, Kelsen foi citado por grande parte dos deputados, o que demonstra a presença das suas ideias na Constituinte em si (SIQUEIRA, FERREIRA e LIMA, 2016SIQUEIRA, Gustavo Silveira; FERREIRA, Bruna Mariz Bataglia; LIMA, Douglas de Lacerda de. Kelsen na Constituinte brasileira de 1933-1934. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro, n. 30, p. 248-265, 2016.) e mais uma vez confirma a sua importância, mas também pode ser visto como um atestado da colonização cultural na Constituinte.

A influência de Kelsen permanece ao longo do tempo, inclusive chega a se acentuar no Brasil, pois, conforme observa Nelson Saldanha (1998SALDANHA, Nelson Nogueira. Filosofia do direito. Rio de Janeiro: Renovar, 1998., p. 8), apesar de “a partir da década de 60 seu influxo ter decaído em todo o mundo, a presença do kelsenismo acentuou-se depois do golpe de 1964, provavelmente porque o formalismo metodológico eximia os professores de pronunciamentos politicamente comprometedores”. Tal influência permaneceu e manifestou-se, inclusive, na Constituinte de 1987-1988, quando a obra de Kelsen foi citada em matéria de controle de constitucionalidade, como se pode observar, por exemplo, nos trabalhos da Comissão da Organização Eleitoral, Partidária e Garantia das Instituições e de suas subcomissões44 44 Há registro de elogios a Kelsen e atribuição da criação do controle concentrado a ele, como nessa manifestação de Sepúlveda Pertence, que à época era Procurador-Geral da República - e que viria a ser ministro do STF - e foi convidado para ministrar uma preleção aos constituintes: “[...] o sistema concentrado do Conselho de Constitucionalidade, chamado sistema austríaco, em homenagem à Constituição da Áustria de 1920, que é a sua primeira sistematização devida ao gênio de Hans Kelsen” (BRASIL, 1987-1988). (BRASIL, 1987-1988BRASIL. Senado Federal. Anais da Assembleia Nacional Constituinte. 1987-1988. Disponível em: Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/CT_Abertura.asp . Acesso em: 30 maio 2021.
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).

Com isso, temos subsídios para compreender as razões pelas quais se repete tanto que Kelsen foi o criador do controle concentrado, isso integra a doxa do campo jurídico brasileiro. As pessoas realmente acreditam nisso, é algo que está intimamente relacionado aos seus habitus, às predisposições adquiridas ao longo de sua vida, às suas crenças e cognições, permeadas pela afeição à cultura europeia e pelo desinteresse pela história dos demais países latino-americanos. A colonização cultural, ainda hoje muito forte, produz a atitude de olhar para a Europa em detrimento dos países vizinhos.

Considerações finais: por uma socioanálise do habitus

Nas linhas anteriores, foi visto como a jurisdição constitucional se encontra no centro da tensão entre Constituição e democracia, e a importância de revisitar as origens e desmistificar lugares-comuns sobre o controle de constitucionalidade, evidenciando que, nesse percurso, não seria feita uma evolução histórica, prática que reproduz um modo de pensar antiquado e constrói um discurso sem correspondência com o real, cujo efeito concreto é legitimar determinadas teses, não raro, enviesadas e eurocêntricas. Em seguida, foi visto como esse modo de proceder não é inteiramente refletido, no sentido de que não se trata de uma decisão consciente e racional, e, para compreender como isso se dá, foram revisitados os conceitos de engrama, atitude e, principalmente, de habitus, como esquemas de percepção, apreciação e ação no mundo.

A partir daí, foi possível revisitar a versão “oficial” do surgimento do controle concentrado de constitucionalidade e demonstrar como ela faz parte do habitus jurídico, uma vez que, na realidade, o referido controle concentrado surgiu na América Latina, em diversas experiências constitucionais ocorridas em Cundinamarca (hoje Colômbia), Venezuela e Bolívia. Isso nos levou a concluir que, em termos de inovação e pioneirismo no controle de constitucionalidade, a América Latina nada deve à Europa, mas essas informações permanecem como uma memória subterrânea.

Então, o que fazer em relação a isso tudo? Também já foi mencionado que não se trata apenas de decidir romper com a colonização, porque ela está inscrita no habitus, e por essa mesma razão também pode não ser de grande valia elaborar alguma nova teoria, já que não há garantia de que ela possa ter efeitos decolonizadores, nem sequer na pessoa que a cria; mas isso não significa também que o caminho esteja na resignação, existe a possibilidade da socioanálise.

A socioanálise pode ser pensada em, ao menos, duas perspectivas interdependentes: a primeira, muito importante, relaciona-se à vigilância epistemológica e à objetivação do sujeito objetivante, no sentido de que o pesquisador não está no vácuo social, ele ocupa uma posição em um campo de saber, em um contexto social mais amplo, etc., isto é, a pessoa sempre fala de algum lugar. A segunda perspectiva refere-se ao potencial que o processo de construção do conhecimento e de desvelamento das origens e dos desenvolvimentos dos fatos sociais possui para desnaturalizar certas coisas e relações sobre as quais não se costuma refletir.

Tomando como exemplo o tema do presente artigo, pode parecer natural ao jurista que esteja redigindo um manual ou trabalho acadêmico fazer uma evolução histórica e nela escrever que o controle concentrado foi criado na Áustria, por Kelsen, quando, na realidade, esse tipo de controle já havia surgido na América Latina várias décadas antes. E para descobrir isso é necessário desenvolver a disposição para reflexionar não apenas sobre os lugares-comuns, mas sobre o próprio modo como eles parecem naturais e a própria forma como se escreve sobre os institutos no Direito, em um esforço de pesquisa voltado para a construção de um conhecimento rigoroso.

Loin de ruiner les fondements de la science sociale, la sociologie des déterminants sociaux de la pratique sociologique est le seul fondement possible d’une liberté possible par rapport à ces déterminations. Et c’est seulement à condition qu’il s’assure le plein usage de cette liberté en se soumettant continuellement à cette analyse que le sociologue peut produire une science rigoureuse du monde social qui, loin de condamner les agents à la cage de fer d’un déterminisme rigide, leur offre les moyens d’une prise de conscience potentiellement libératrice.45 45 Tradução livre: “Longe de arruinar os fundamentos da ciência social, a sociologia dos determinantes sociais da prática sociológica é a única base possível para uma possível libertação dessas determinações. E é somente com a condição de assegurar o pleno uso dessa liberdade submetendo-se continuamente a essa análise que o sociólogo pode produzir uma ciência rigorosa do mundo social que, longe de condenar os agentes à gaiola de ferro de um determinismo rígido, oferece-lhes os meios de uma consciência potencialmente libertadora”. (BOURDIEU, 1992BOURDIEU, Pierre. Les fins de la sociologie réflexive (le séminaire de Chicago). In: BOURDIEU, Pierre; WACQUANT, Loic. Réponses: Pour une anthropologie réflexive. Paris: Seuil, 1992. p. 43-185., p. 185)

Portanto, quem se propõe a fazer pesquisa precisa aplicar sobre si próprio os instrumentos de análise de que dispõe para analisar o mundo social, ou, dito de outra forma, não se trata de analisar rigorosa e criticamente apenas o objeto de pesquisa, mas também o próprio pesquisador, seus penchants, as constrições que sofre, etc., e isso, longe de ser uma postura cientificista ou de conduzir determinismo fatalista, é um instrumento de libertação.

Os esquemas de percepção, apreciação e ação são duráveis, não imutáveis, “not only can habitus be practically transformed (always within definite boudaries) by the effect of a social trajectory leading to conditions of living different from initial ones, it can also be controlles through awakening of consciousness and socioanalysis”46 46 Tradução livre: “[...] não apenas o habitus pode ser praticamente transformado (sempre dentro de limites definidos) pelo efeito de uma trajetória social que conduz a condições de vida diferentes das iniciais, como também pode ser controlado pelo despertar da consciência e pela socioanálise”. (BOURDIEU, 1990BOURDIEU, Pierre. In Other Words: Essays Towards a Reflexive Sociology. Stanford: Stanford University Press, 1990., p. 116). Ou, dito de maneira bastante direta, e parafraseando livremente47 47 Na passagem parafraseada, Bourdieu diz isso referindo-se a Pollak: “Toda la vida de Michael Pollak testimonia su convicción acerca de que el conocimiento es un instrumento privilegiado de liberación”. o próprio Bourdieu (2006BOURDIEU, Pierre. Homemage a Michael Pollak . In: POLLAK, Michael. Memoria, olvido, silencio: la producción social de identidades frente a situaciones límite. La Plata: Ediciones Al Margen, 2006. p. 113-115., p. 115) no encerramento de sua homenagem póstuma a Michael Pollak, é possível dizer que o conhecimento realmente é um instrumento privilegiado de libertação.

AGRADECIMENTOS

O autor agradece aos pareceristas anônimos da Revista Direito GV pelas valiosas contribuições para o presente artigo.

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  • WEBER, Max. Konfuzianismus und Taoismus: Die Wirtschaftsethik der Weltreligionen. Berlim: Heptagon, 2012. Não paginado (e-book Kindle).
  • WEBER, Max. Essais sur la théorie de la science (1904-1917) Paris: Librairie Plon, 1965. Disponível em: Disponível em: http://classiques.uqac.ca/classiques/Weber/essais_theorie_science/essais_theorie_science.html Acesso em: 28 set. 2021.
    » http://classiques.uqac.ca/classiques/Weber/essais_theorie_science/essais_theorie_science.html
  • 1
    Tradução livre: “Mesmo quando parece assumir a continuidade de uma evolução histórica, a cultura supervisionada que avaliamos refaz, por recorrência, uma história bem ordenada que não corresponde em nada à história real”.
  • 2
    Essa definição, breve e precisa, atende bem aos propósitos deste artigo e é condizente com o que a dogmática jurídica chama de jurisdição constitucional em sentido amplo. José Afonso da Silva (2004SILVA, José Afonso da. Teoria do conhecimento constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004., p. 276), por exemplo, entende que “a jurisdição constitucional, assim, consiste na entrega aos órgãos do Poder Judiciário da missão de solucionar os conflitos entre os atos, procedimentos e órgãos públicos e a constituição. Ou, em sentido mais abrangente: entrega ao Poder Judiciário da missão de solucionar conflitos constitucionais”. José Frederico Marques (1979MARQUES, José Frederico. A reforma do Poder Judiciário. São Paulo: Saraiva, 1979. [v. I]., p. 34) observa que “se encontra imanente a toda e qualquer atividade jurisdicional da justiça ordinária e das justiças especiais a jurisdição constitucional, pois que assim deve ser denominada a aplicação de normas constitucionais pelo Judiciário, a fim de compor conflitos litigiosos de interesses”.
  • 3
    Um bom exemplo disso são as críticas de Lenio Streck, amplamente conhecidas, que lhe rendem bastante notoriedade no campo jurídico e que parecem orientar a sua própria carreira acadêmica, pois, segundo Danilo Lima (2013LIMA, Danilo Pereira. O Poder Judiciário e a autonomia do Direito: os entraves ao controle do poder político numa sociedade estamental. 2013. 131 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2013., p. 50), “Streck defende a elaboração de uma nova teoria capaz de responder aos problemas derivados de sua interpretação e, ao mesmo tempo, impedir que o direito seja fragilizado pelo voluntarismo judicial”. Não há espaço aqui para fazer uma análise mais detalhada da proposta de Streck, mas é necessário observar que o problema maior não é falta de teoria. Os juízes não são voluntaristas por falta de hermenêutica, e é provável que muitos dos magistrados voluntaristas conheçam o próprio Lenio Streck e sua obra. O problema é muito mais profundo e envolve, entre outros fatores, o papel histórico do Judiciário no Brasil, a cultura patrimonialista, a falta de accountability, etc. Como já advertia Thomas Jefferson (1854JEFFERSON, Thomas. The Writings of Thomas Jefferson: Being his Autobiography, Corresponndence, Reports, Messages, Addresses, and Other Writings, Official and Private. Washington: Taylor & Maury, 1854. [v. 7]. Disponível em: Disponível em: https://play.google.com/store/books/details?id=1mIFAAAAQAAJ&rdid=book-1mIFAAAAQAAJ&rdot=1 . Acesso em: 10 jan. 2022.
    https://play.google.com/store/books/deta...
    , p. 178), os juízes não são mais ou menos honestos que os outros homens, eles têm as mesmas paixões pelo poder e pelo privilégio da sua corporação. Magistrados, em suma, são produtos e são produtores da sociedade em que estão inseridos. De todo modo, é perfeitamente compreensível que o ilustre hermeneuta gaúcho, falando a partir da sua posição no campo jurídico, não se dê conta de tais questões, ou delas não possa falar abertamente em seus escritos.
  • 4
    Não se trata de reverencialismo, as ideias de Morgan influenciaram muitos autores relevantes da época. Segundo Hunter Howe Cates (2019CATES, Hunter Howe. Oklahoma’s Atticus: An Innocent Man and the Lawyer Fought for Him. Lincoln: University of Nebraska Press, 2019., p. 91), “Morgan was the only American social theorist to be cited by Karl Marx, Charles Darwin, and Sigmund Freud”. Tradução livre: “Morgan foi o único teórico social americano que foi citado por Karl Marx, Charles Darwin e Sigmund Freud”.
  • 5
    “Normalmente isso é apresentado como se se tratasse de uma perspectiva interdisciplinar. Mas termina sendo nada mais nada menos do que uma confusão. Aliás, talvez mais propriamente falando, frequentemente sequer chega a se tratar de uma autêntica con-fusão, ou seja, a justaposição, num mesmo trabalho, de capítulos que pertenceriam a mais de uma ciência, pois o que muitas vezes aparece como tal resume-se a alguns lugares-comuns extraídos daqui e dali - muitas vezes, repetindo o vezo já conhecido, de simples manuais - sem maior consistência. O que acontece com as habituais incursões históricas que via de regra antecedem a abordagem do tema no presente é, a esse respeito, exemplar. Seguramente a maioria dos trabalhos que tenho examinado não dispensa uma incursão desse tipo, muitas vezes apresentada sob a fórmula ‘Evolução Histórica do(a) […]’, seguindo-se a menção ao objeto que está sendo examinado” (OLIVEIRA, 2004OLIVEIRA, Luciano. Sua excelência o comissário e outros ensaios de sociologia jurídica. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004., p. 148; OLIVEIRA, 2015OLIVEIRA, Luciano. Manual de sociologia jurídica. Petrópolis: Vozes, 2015.).
  • 6
    O fenômeno não é exclusivo do Brasil. Michel Miaille (1976MIAILLE, Michel. Une introduction critique au droit. Paris: Maspero, 1976., p. 57) observa que “[i]l est intéressant de noter, au passage, l’européocentrisme dont font preuve nos juristes. En effet, sauf exception, c’est à partir du droit moderne et occidental que sont appréciées les institutions juridiques des autres systèmes”. Tradução livre: “[É] interessante notar, a propósito, o eurocentrismo demonstrado pelos juristas. Com efeito, com algumas exceções, as instituições jurídicas de outros sistemas são avaliadas com base no direito moderno e ocidental”.
  • 7
    Um exemplo que ilustra bem o problema das evoluções históricas está presente em muitos trabalhos sobre a delação premiada, que rastreiam a origem do instituto até a antiguidade, e falam na traição de Jesus por Judas. Ora, por mais que muitos parlamentares brasileiros mereçam críticas, é no mínimo inusitado acreditar que o Congresso Nacional se inspirou em Judas para introduzir a delação premiada no direito brasileiro e que, desde que Judas recebeu as 30 moedas de prata, vem havendo uma evolução linear da delação premiada através dos milênios.
  • 8
    É vasta a quantidade de autores e obras que direta ou indiretamente critica a racionalidade e seus problemas, inclusive dentro das tradições intelectuais do próprio Ocidente. Os problemas são conhecidos pelo menos desde Max Weber, que mostra, por exemplo, que o objetivo da racionalidade ocidental era a “rationale Beherrschung der Welt” (WEBER, 2012WEBER, Max. Konfuzianismus und Taoismus: Die Wirtschaftsethik der Weltreligionen. Berlim: Heptagon, 2012. Não paginado (e-book Kindle)., tradução livre: “dominação racional do mundo”) e que aqueles que são considerados selvagens conhecem infinitamente mais as condições econômicas e sociais de sua própria existência do que aqueles que são considerados civilizados (WEBER, 1965WEBER, Max. Essais sur la théorie de la science (1904-1917). Paris: Librairie Plon, 1965. Disponível em: Disponível em: http://classiques.uqac.ca/classiques/Weber/essais_theorie_science/essais_theorie_science.html . Acesso em: 28 set. 2021.
    http://classiques.uqac.ca/classiques/Web...
    ). Essas críticas aparecem, também, na Teoria Crítica (por exemplo, HORKHEIMER, 1991HORKHEIMER, Max. Gesammelte Schriften - Band 6: Zur Kritik der instrumentellen Vernunft und Notizen 1949-1969. Frankfurt: S Fischer, 1991.; HORKHEIMER e ADORNO, 1947HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Dialektik der Aufklärung: Philosophische Fragmente. Amsterdam: Querido Verlag N. V., 1947.) e na obra de Foucault, que insurge justamente contra essa “racionalidade que é tão compatível com a violência” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel. Ditos & escritos vol. IV: estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006., p. 319). Com menor repercussão no Brasil, mas também dignos de nota, são os trabalhos de George Mosse (1975MOSSE, George L. La nazionalizzazione delle masse: simbolismo politico e movimenti di massa in Germania (1815-1933). Bolonha: Società editrice il Mulino, 1975. e 1981MOSSE, George L. The Crisis of German Ideology: Intellectual Origins of the Third Reich. Nova York: Schocken Books, 1981.), que mostram como as massas são constituídas em uma nação, e como o fascismo pode ser uma versão extremada de valores coletivos que também existem nas sociedades democráticas.
  • 9
    Segundo Pinhoni (2014PINHONI, Marina. Brasileiros bebem mais que restante do mundo; veja como. Exame, 15 jul. 2014. Disponível em: Disponível em: https://exame.com/brasil/brasil-bate-o-mundo-na-hora-de-beber-conheca-os-beberroes/ . Acesso em: 8 maio 2021.
    https://exame.com/brasil/brasil-bate-o-m...
    ), estudo divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que o consumo de bebidas alcoólicas no Brasil é maior que a média mundial, e a cerveja seria a bebida favorita dos brasileiros. Entre as bebidas destiladas, a cachaça seria a mais consumida no Brasil, e uma das quatro mais consumidas no mundo (SEBRAE, 2019SEBRAE. A cachaça de alambique: um estudo sobre os hábitos de consumo em Goiânia. [S.l.]: Sebrae, 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%20Sebrae/UFs/GO/Sebrae%20de%20A%20a%20Z/A%20Cacha%C3%A7a%20de%20Alambique%20-%20Um%20estudo%20sobre%20o%20h%C3%A1bito%20de%20Consumoi%20em%20Goi%C3%A2nia.pdf . Acesso em: 16 maio 2021.
    https://www.sebrae.com.br/Sebrae/Portal%...
    , p. 19).
  • 10
    Em 2009, 70% dos jovens de 13 a 15 anos já haviam experimentado bebida alcoólica (LIMA, 2009LIMA, Samantha. 70% dos jovens de 13 a 15 anos já beberam. Folha de S.Paulo, São Paulo, 19 dez. 2009. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff1912200920.htm . Acesso em: 25 maio 2021.
    https://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidi...
    ). Já é um percentual considerável e, desde então, os 30% restantes tiveram mais de duas décadas e meia para terem, em algum momento, ao menos experimentado alguma bebida alcoólica.
  • 11
    A relação entre habitus, atitudes e engramas também é discutida por Gonçalves (2022GONÇALVES, Francysco Pablo Feitosa. Poder e direito administrativo: repensando a administração a partir das teorias (pós)estruturalistas do poder. Itapiranga: Schreiben, 2022.).
  • 12
    Tradução livre: “Tice e Baumeister concluíram, depois de sua série de oito experimentos, que mesmo pequenos atos de autocontrole, como fazer uma escolha simples, usam esse recurso autorregulatório limitado, por isso tais atos conscientes de autorregulação podem ocorrer apenas raramente no curso do dia. Mesmo defendendo a importância do self consciente para orientar o comportamento, Baumeister et al. (1998, p. 1252; também Baumeister & Sommer, 1997) concluíram que a consciência desempenha um papel causal de apenas cerca de 5% do tempo”. No mesmo sentido: “Conscious thought is the tip of an enormous iceberg. It is the rule of thumb among cognitive scientists that unconscious thought is 95 percent of all thought - and that may be a serious underestimate. Moreover, the 95 percent below the surface of conscious awareness shapes and structures all conscious thought. If the cognitive unconscious were not there doing this shaping, there could be no conscious thought” (LAKOFF e JOHNSON, 1999LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Prolosophy in the Flesh: The Embodied Mind and its Challenge to Western Thought. Nova York: Basic Books, 1999. Não paginado (e-book Kindle).). Tradução livre: “O pensamento consciente é a ponta de um enorme iceberg. É regra geral entre os cientistas cognitivos que o pensamento inconsciente é 95% de todo o pensamento - e esse percentual pode estar sendo seriamente subestimado. Além disso, os 95% abaixo da superfície da percepção consciente moldam e estruturam todos os pensamentos conscientes. Se o inconsciente cognitivo não estivesse realizando essa modelagem, não poderia haver pensamento consciente”.
  • 13
    Tradução livre: “Uma vez que os programas motores são aprendidos, eles podem se tornar automáticos e as habilidades motoras podem ser desenvolvidas”.
  • 14
    Obviamente, a palavra “atitude” já existia e já havia sido usada na Psicologia. Gordon Allport (1935ALLPORT, Gordon W. Attitudes. In: MURCHISON, Carl (ed.). A Handbook of Social Psychology. Worcester: Clark University Press, 1935. Disponível em: Disponível em: https://pt.scribd.com/document/504017054/Gordon-W-Allport-Attitudes-1935-Murchison-s-handbook-of-social-psichology-chapter . Acesso em: 26 set. 2021.
    https://pt.scribd.com/document/504017054...
    ) observa que Herbert Spencer já havia empregado o termo em 1862, mas, ainda de acordo com Allport, foram Thomas e Znaniecki que instituíram o conceito de atitude como uma categoria permanente e central nas ciências sociais, e foram pioneiros em definir a psicologia social como o estudo científico das atitudes (ALLPORT, 1935ALLPORT, Gordon W. Attitudes. In: MURCHISON, Carl (ed.). A Handbook of Social Psychology. Worcester: Clark University Press, 1935. Disponível em: Disponível em: https://pt.scribd.com/document/504017054/Gordon-W-Allport-Attitudes-1935-Murchison-s-handbook-of-social-psichology-chapter . Acesso em: 26 set. 2021.
    https://pt.scribd.com/document/504017054...
    ).
  • 15
    Tradução livre: “[...] processo de consciência individual que determina atividades reais ou possíveis do indivíduo no mundo social”.
  • 16
    Albarracín et al. (2005ALBARRACÍN, Dolores. The Handbook of Attitudes. Mahwah: LEA, 2005.) observam que existem centenas de definições de atitudes.
  • 17
    Tradução livre: “[...] tão mínimo, de fato, que atitudes podem ser ativadas automaticamente”.
  • 18
    Tradução livre: “Se alguém compreende a ele [habitus] e ao conceito muito semelhante da estrutura social da personalidade - e é capaz de o empregar - então se torna mais compreensível por que é errado o antigo e ainda frequente costume de usar os termos ‘indivíduo’ e ‘sociedade’ como se eles representassem dois objetos diferentes. Então não mais se fecha os olhos para o fato, que é muito conhecido fora do campo da ciência, de que cada pessoa é diferente de todas as outras, tem características específicas que compartilha com outros membros de sua sociedade. Esse caráter social, ou seja, o habitus social dos indivíduos, forma, por assim dizer, o solo de onde brotam as características pessoais, por meio do qual um indivíduo se difere dos outros membros de sua sociedade. Por exemplo, um estilo mais ou menos individual brota a partir da linguagem comum que o indivíduo compartilha com os demais, a qual certamente é parte integrante do habitus social, ou seja, uma caligrafia inequivocamente individual que surge a partir da escrita social”.
  • 19
    Tradução livre: “Essa dicotomia básica anda de mãos dadas com toda uma série de outras oposições, como materialismo versus idealismo, economicismo versus culturalismo, mecanicismo versus finalismo, explicação causal versus compreensão interpretativa. […] Seu poder estruturante é maior porque mantém forte afinidade com as oposições fundamentais que organizam a percepção ordinária do mundo social e político, como indivíduo versus sociedade (ou individualismo versus socialismo). […] É essa dialética de objetividade e subjetividade que o conceito de habitus pretende captar e resumir”.
  • 20
    Tradução livre: “Os condicionamentos associados a uma determinada classe de condições de existência produzem habitus, sistemas de disposições duráveis e transferíveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípios que geram e organizam práticas e representações que podem ser objetivamente adaptadas ao seu objetivo sem supor a presença consciente de objetivos ou o controle expresso das operações necessárias para alcançá-los, objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem ser produto da obediência de regras determinadas, e, portanto, orquestradas coletivamente sem ser produto da ação organizadora de um maestro”.
  • 21
    Tradução livre: “[...] a possibilidade de uma emancipação fundada na consciência e no conhecimento dos condicionamentos sofridos e na imposição de novos condicionamentos concebidos de forma duradoura para contrariar os seus efeitos”.
  • 22
    Segundo Bourdieu, “l’idéal des princes féodaux, comme plus tard des rois de France, étant que l’on ne se serve, dans les territoires soumis à leur domination, que de leur monnaie, prétention qui ne sera réalisée que sous Louis XIV”. Minha interpretação: “o ideal dos príncipes feudais, e depois, dos reis da França, era que nos territórios sujeitos à sua dominação, apenas sua moeda fosse utilizada, uma pretensão que só se realizou sob Luís XIV”.
  • 23
    Tradução livre: “Somente com o desenvolvimento desse monopólio permanente do poder central, e do aparato especializado de governo, é que os domínios assumem o caráter de ‘Estados’”. Em sentido análogo, Georg Jellinek (1914JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. Berlim: O. Häring, 1914., p. 440), para quem “der moderne Staat ist von den antiken Staaten scharf geschieden dadurch, daß er sich anfangs von verschiedenen Seiten bestritten fand, sein Dasein sich daher erst in schwerem Kampfe erringen mußte. Drei Mächte sind es, die im Laufe des Mittelalters seine Selbständigkeit bestreiten. Zunächst die Kirche, welche den Staat zu ihrem Diener zwingen will, sodann das römische, Reich, das den Einzelstaaten nur die Geltung von Provinzen zuerkennt, endlich die großen Lehnsträger und Körperschaften im Staate, die sich als selbstberechtigte Mächte neben und gegenüber dem Staate fühlen”. Tradução livre: “O Estado moderno se diferencia radicalmente dos Estados anteriores pelo fato de que, desde o início, ele foi combatido por vários lados e, portanto, sua existência teve de ser afirmada em uma luta difícil. É o poder de três potências que, no curso da Idade Média, negaram sua independência. Primeiro a Igreja, que quis colocar o Estado a seu serviço; depois o Império Romano, que quis reconhecer aos estados apenas o valor de províncias; por fim, os nobres e as corporações que se sentiam como poderes independentes do Estado e à sua frente”.
  • 24
    Não se trata aqui de negar a possibilidade de existência de um constitucionalismo antigo - o debate fica em aberto quanto a isso - mas de reconhecer a existência de um constitucionalismo moderno. Para Horst Dippel (2009DIPPEL, Horst. Constitucionalismo moderno. Madrid: Marcial Pons, 2009.), seriam dez os princípios que caracterizam o constitucionalismo moderno: 1) soberania popular; 2) fundamentação da Constituição em princípios universais; 3) uma declaração de direitos; 4) governo representativo, ampliando a legitimidade e prevenindo a corrupção e o governo aristocrático; 5) supremacia da Constituição; 6) separação de poderes; 7) governo limitado; 8) exigência de responsabilidade política e de um governo (dever de prestar contas); 9) independência e imparcialidade judicial; 10) o direito das pessoas de reformar a Constituição e o governo. Ainda de acordo com Dippel (2009DIPPEL, Horst. Constitucionalismo moderno. Madrid: Marcial Pons, 2009.), a Virginia Declaration of Rights de 1776 foi o primeiro documento constitucional em que esses dez princípios aparecem todos juntos.
  • 25
    Tradução livre: “Qualquer Sociedade na qual a garantia dos Direitos não esteja assegurada, nem esteja estabelecida a separação de poderes, não tem Constituição”.
  • 26
    Para Canotilho (2003CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003., p. 52, grifo do autor), “o constitucionalismo moderno legitimou o aparecimento da chamada constituição moderna. Por constituição moderna entende-se a ordenação sistemática e racional da comunidade política através de um documento escrito no qual se declaram as liberdades e os direitos e se fixam os limites do poder político. Podemos desdobrar este conceito de forma a captarmos as dimensões fundamentais que ele incorpora: (1) ordenação jurídico-política plasmada num documento escrito; (2) declaração, nessa carta escrita, de um conjunto de direitos fundamentais e do respectivo modo de garantia; (3) organização do poder político segundo esquemas tendentes a torná-lo um poder limitado e moderado. Este conceito de Constituição converteu-se progressivamente num dos pressupostos básicos da cultura jurídica ocidental”. Ainda conforme Canotilho (2003CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2003., p. 88), “o artigo 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 é reiteradamente citado para identificar o ‘núcleo duro’ de uma constituição em sentido moderno”.
  • 27
    Quanto ao controle difuso, ainda que não seja o tema do presente artigo, é importante lembrar que Marbury v. Madison não foi o primeiro caso em que houve o controle de constitucionalidade de uma lei nos Estados Unidos (GONÇALVES e TEIXEIRA, 2015GONÇALVES, Francysco Pablo Feitosa; TEIXEIRA, João Paulo Allain. As evoluções históricas e a “historiografia” dos juristas: reflexões sobre o surgimento do judicial review. Revista de Informação Legislativa, [s.l.], v. 52, n. 206, p. 137-164, abr./jun. 2015.).
  • 28
    Tradução livre: “A anulação da lei é uma função legislativa, um ato - por assim dizer - de legislação negativa. O tribunal que é competente para abolir as leis - de forma individual ou geral - funciona como um legislador negativo”.
  • 29
    Tradução livre: “[…] os poderes do legislador negativo, do órgão da justiça constitucional, são, por sua vez, completamente estabelecidos pela constituição. E precisamente por isso essa função se assemelha à de qualquer outro tribunal; é principalmente de aplicação, e apenas em pequena medida de criação do direito e, portanto, é verdadeiramente judicial”.
  • 30
    As “mémoires souterraines” (POLLAK, 1993POLLAK, Michael. Une identité blessée: etudes de sociologie et d’histoire. Paris: Métailié, 1993., p. 18 et seq.) são aquelas que se opõem à memória oficial, são lembranças coletivas que não são ditas ou que são impossíveis de serem narradas por não possuírem reconhecimento e legitimação social.
  • 31
    Seria possível falar, ainda, nos debates estadunidenses em torno da supremacia da Constituição e do controle de constitucionalidade, os quais certamente foram impactados pelas experiências constitucionais europeias anteriores, e exerceram influência na América Latina.
  • 32
    A Colômbia é um Estado Unitário descentralizado em 32 departamentos e o distrito capital, que é Bogotá.
  • 33
    “Artículo 3. El primer Tribunal de la Provincia, preferente a todos los demás, es el Senado; después siguen los de apelación; últimamente entran los Jueces de Primera Instancia con sus municipalidades, y los pedáneos con las pequeñas municipalidades que debe haber en todo poblado por pequeño que sea” (CUNDINAMARCA, 1811CUNDINAMARCA. Constitución Política 1811 (Constitución de Cundinamarca) . Sistema Único de Información Normativa. Disponível em: Disponível em: https://www.suin-juriscol.gov.co/viewDocument.asp?ruta=Constitucion/30020108 . Acesso em: 10 out. 2021.
    https://www.suin-juriscol.gov.co/viewDoc...
    ). Tradução livre: “Artigo 3. O primeiro Tribunal da Província, superior a todos os outros, é o Senado; em seguida vêm os Tribunais de Apelação; por último, entram os Juízes de Primeira Instância com suas municipalidades, e os juízes de bairro com as pequenas municipalidades que devem existir em todas as localidades, por menores que sejam”.
  • 34
    Cento e nove anos e cinco meses, para ser preciso.
  • 35
    Kelsen nasceu em 11 de outubro de 1881.
  • 36
    Tradução livre: “A Lei Orgânica do Regime Administrativo e Municipal, de 22 de junho de 1850, confiou ao Supremo Tribunal de Justiça da Colômbia o conhecimento de casos diretos, abertos e cidadãos, contra as normas das câmaras provinciais e juntas de freguesia, por razões de inconstitucionalidade. Os efeitos da decisão declaratória de inconstitucionalidade foram projetados erga omnes, pois o que se pedia era a anulação da norma inconstitucional, e não a sua mera não aplicação”.
  • 37
    Tradução livre: “O Tribunal já ouviu falar de quase 200 dessas ações e em mais de um quarto o autor conseguiu obter a anulação de toda a lei impugnada, ou partes dela”.
  • 38
    Grant (1963GRANT, James Allan Clifford. El control jurisdiccional de la constitucionalidad de las leyes: una contribución de las Americas a la Ciencia Politica (tercera parte). Revista de la Facultad de Derecho de Mexico, [s.l.], tomo XIII, n. 49, p. 57-82, jan./mar. 1963., p. 69) faz uma afirmação semelhante: “Las Américas han tenido poco que aprender de los experimentos de Europa en los años posteriores a las dos guerras mundiales. La principal contribución de los experimentos llevados a cabo en Austria, España, etc. fue el uso de una corte constitucional especial más bien que el empleo normal de la Corte Suprema, medida de valor dudoso, que no ha logrado abrirse paso en este hemisferio”. Discordando parcialmente do que ele disse, é necessário observar, entretanto, que mesmo o estabelecimento de órgãos que concentravam a competência de controlar a constitucionalidade, ou a ideia de os membros de tais órgãos serem indicados pelo Legislativo, já haviam sido empregados na América Latina.
  • 39
    Em 1949, comentando a sua polêmica com Kelsen, Carlos Cossio (1949COSSIO, Carlos. Teoría egológica y teoría pura (Balance provisional de la visita de Kelsen a la Argentina). Revista Jurídica Argentina La Ley, Buenos Aires, tomo 56, p. 835-861, 1949. Disponível em: Disponível em: http://www.carloscossio.com.ar/1949-teoria-egologica-y-teoria-pura-balance-provisional-de-la-visita-de-kelsen-a-la-argentina/ . Acesso em: 23 maio 2021.
    http://www.carloscossio.com.ar/1949-teor...
    , p. 188-189) registrou que “[u]na de las preguntas naturales que se hicieron a Kelsen desde el primer momento, era si leía y comprendía el castellano, con objeto de apreciar la amplitud de sus lecturas egológicas. La respuesta de los primeros días fué invariablemente que, dado el interés que tenía por la Teoría Egológica, lamentaba mucho no conocer nuestro idioma, pero que ya estaba muy viejo para ponerse en la pesada tarea de comenzar a aprenderlo”.
  • 40
    Tradução livre: “Kelsen se viu obrigado a abandonar esta medida profuturo [ex nunc] para que seu sistema fosse praticável”.
  • 41
    Ambos os trabalhos foram vertidos para o italiano e republicados conjuntamente em La giustizia costituzionale, de 1981.
  • 42
    Tradução livre: “Enquanto não for revogada, entretanto, deve ser considerada válida; e, enquanto for válida, não pode ser inconstitucional”.
  • 43
    João Maurício Adeodato (2006ADEODATO, João Maurício. Interpretação do Direito na Escola Retórica do Recife. In: CONGRESSO NACIONAL DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS, 3, 2006. Disponível em: Disponível em: https://youtu.be/vA23rpGRcxo . Acesso em: 10 out. 2021.
    https://youtu.be/vA23rpGRcxo...
    ), por exemplo, considera Kelsen “o maior jurista do século XX”.
  • 44
    Há registro de elogios a Kelsen e atribuição da criação do controle concentrado a ele, como nessa manifestação de Sepúlveda Pertence, que à época era Procurador-Geral da República - e que viria a ser ministro do STF - e foi convidado para ministrar uma preleção aos constituintes: “[...] o sistema concentrado do Conselho de Constitucionalidade, chamado sistema austríaco, em homenagem à Constituição da Áustria de 1920, que é a sua primeira sistematização devida ao gênio de Hans Kelsen” (BRASIL, 1987-1988BRASIL. Senado Federal. Anais da Assembleia Nacional Constituinte. 1987-1988. Disponível em: Disponível em: https://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/CT_Abertura.asp . Acesso em: 30 maio 2021.
    https://www.senado.leg.br/publicacoes/an...
    ).
  • 45
    Tradução livre: “Longe de arruinar os fundamentos da ciência social, a sociologia dos determinantes sociais da prática sociológica é a única base possível para uma possível libertação dessas determinações. E é somente com a condição de assegurar o pleno uso dessa liberdade submetendo-se continuamente a essa análise que o sociólogo pode produzir uma ciência rigorosa do mundo social que, longe de condenar os agentes à gaiola de ferro de um determinismo rígido, oferece-lhes os meios de uma consciência potencialmente libertadora”.
  • 46
    Tradução livre: “[...] não apenas o habitus pode ser praticamente transformado (sempre dentro de limites definidos) pelo efeito de uma trajetória social que conduz a condições de vida diferentes das iniciais, como também pode ser controlado pelo despertar da consciência e pela socioanálise”.
  • 47
    Na passagem parafraseada, Bourdieu diz isso referindo-se a Pollak: “Toda la vida de Michael Pollak testimonia su convicción acerca de que el conocimiento es un instrumento privilegiado de liberación”.
  • Como citar este artigo:

    GONÇALVES, Francysco Pablo Feitosa. As origens latino-americanas do controle concentrado de constitucionalidade. Revista Direito GV, São Paulo, v. 19, e2339, 2023. https://doi.org/10.1590/2317-6172202339

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2022
  • Aceito
    04 Maio 2023
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