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Espiritualidade e dor

A Organização Mundial de Saúde (OMS), nos últimos anos, vem induzindo transformações nas formas de abordagem do processo saúde-doença. Perpassou do modelo biomédico para o biopsicossocial na década de 1980 e, há pouco mais de uma década, vem impulsionando um novo deslocamento para a abordagem biopsicossocial-espiritual11 Siddall PJ, Lovell M, MacLeod R. Spirituality: what is its role in pain medicine? Pain Med. 2015;16(1):51-60.. O cuidado paliativo de pacientes terminais nas comunidades demonstra que altos níveis de bem-estar espiritual facilitam a morte digna e natural, além de reduzir o sofrimento22 Santos RC, Miranda FA. Articulação ensino-serviço na perspectiva dos profissionais de saúde da família. Revista de APS. 2016;19(1):7-13.,33 Viswanath V. A lesson in spirituality. J Pain Palliat Care Pharmacother. 2015;29(4):406-7.. Embora a morte esteja no fim do processo de adoecimento, as doenças degenerativas crônicas também causam grande sofrimento e podem ser beneficiadas por esta abordagem mais ampla da saúde.

Recentes estudos tentam relacionar espiritualidade e saúde em pessoas com diversas condições crônicas, devido ao potencial de prevenir progressão de doenças e de favorecer o desenvolvimento de melhores estratégias para o enfrentamento da doença, com impacto positivo na qualidade de vida44 Sloan RP, Bagiella E. Claims about religious involvement and health outcomes. Ann Behav Med. 2002;24(1):14-21.,55 Büssing A, Michalsen A, Balzat HJ, Grünther RA, Ostermann T, Neugebauer EA, et al. Are spirituality and religiosity resources for patients with chronic pain conditions? Pain Med. 2009;10(2):327-39.. Este aspecto tem sido também explorado por pesquisadores e profissionais das equipes multidisciplinares das clínicas de dor55 Büssing A, Michalsen A, Balzat HJ, Grünther RA, Ostermann T, Neugebauer EA, et al. Are spirituality and religiosity resources for patients with chronic pain conditions? Pain Med. 2009;10(2):327-39.

6 Lago-Rizzardi CD, de Siqueira JT, de Siqueira SR. Spirituality of chronic orofacial pain patients: case-control study. J Relig Health. 2014;53(4):1236-48.
-77 Büssing A, Ostermann T, Koenig HG. Relevance of religion and spirituality in German patients with chronic diseases. Int J Psychiatry Med. 2007;37(1):39-57.. Na Web of Science, uma busca na literatura cruzando as palavras "pain" e "spirituality" encontrou 50 publicações em 2011, enquanto que em 2013, foram 1.000 publicações11 Siddall PJ, Lovell M, MacLeod R. Spirituality: what is its role in pain medicine? Pain Med. 2015;16(1):51-60.. Este dado confirma o crescimento da atenção que tem sido dada ao tema. Um consenso recente recomenda que a história espiritual seja colhida como parte da avaliação integral de pessoas88 Puchalski C, Ferrell B, Virani R, Otis-Green S, Baird P, Bull J, et al. Improving the quality of spiritual care as a dimension of palliative care: the report of the Consensus Conference. J Palliat Med. 2009;12(1):885-904..

Diferentes idéias e pensamentos permeiam as mentes dos sujeitos que sofrem com dor aguda ou crônica. Algumas pessoas acreditam que Deus pode curá-los, outros que seu problema é um castigo de Deus por erros cometidos, outros que energias vitais impalpáveis podem melhorar sintomas, entre outros fenômenos, que envolvem crenças e costumes. É indiscutível destas que estas ideias influenciam diretamente a mente humana, as expectativas de cura, o agravamento dos sintomas, a freqüência de ansiedade e depressão, interferindo no processo doloroso, seja agudo ou crônico.

Para Siddall et al.11 Siddall PJ, Lovell M, MacLeod R. Spirituality: what is its role in pain medicine? Pain Med. 2015;16(1):51-60., a espiritualidade pode ser definida como "uma experiência que incorpora uma relação com o transcendente e o sagrado, que provê um forte senso de identidade ou direção, e que influencia não somente crenças pessoais, mas atitudes, emoções e comportamentos, dando um senso de integralidade e sentido à vida". Apesar de ser um conceito difícil de gerar consenso, este conceito transpõe a ideia simples de religiosidade relacionada a instituições formais.

A espiritualidade, vista como uma relação entre forças superiores e às capacidades humanas, para além das religiões e de seus específicos credos, é uma variável que vem demonstrando, tanto com dados objetivos como subjetivos, que visões positivas e de esperança têm impacto significativo em melhorar sintomas, favorecer adesão aos tratamentos convencionais e em desenvolver estratégias efetivas para controle de crises álgicas e de outras manifestações clínicas. Do mesmo modo que ideias negativas e deterministas agravam sintomas. Fortes correlações e associações vêm evidenciando que pessoas mais espiritualizadas percebem a dor crônica como uma oportunidade de desenvolvimento humano e espiritual55 Büssing A, Michalsen A, Balzat HJ, Grünther RA, Ostermann T, Neugebauer EA, et al. Are spirituality and religiosity resources for patients with chronic pain conditions? Pain Med. 2009;10(2):327-39.. Também, de modo indireto, a espiritualidade pode melhorar a condição dolorosa por meio do impacto em quadros depressivos e ansiosos11 Siddall PJ, Lovell M, MacLeod R. Spirituality: what is its role in pain medicine? Pain Med. 2015;16(1):51-60..

Deste modo, tem ficado cada vez mais evidente que espiritualidade/religiosidade tem um significado relevante para pacientes que sofrem por dor crônica e que esta variável influencia estratégias de enfrentamento e auto manuseio da dor55 Büssing A, Michalsen A, Balzat HJ, Grünther RA, Ostermann T, Neugebauer EA, et al. Are spirituality and religiosity resources for patients with chronic pain conditions? Pain Med. 2009;10(2):327-39..

Sugere-se, portanto, aos pesquisadores e aos profissionais das equipes interdisciplinares que cuidam de pessoas com dor crônica que incorporem no seu arsenal investigativo instrumentos de avaliação da condição espiritual99 Monod S, Brennan M, Rochat E, Martin E, Rochat S, Büla CJ. Instruments measuring spirituality in clinical research: a systematic review. J Gen Intern Med. 2011;26(11):1345-57.,1010 Marques LF, Dell'Agio DD, Sarriera JC. Adaptação e Validação da Escala de Bem-estar Espiritual (EBE). Aval Psicol. 2009;8(2):179-86.. Do mesmo modo, o manuseio dos aspectos espirituais na perspectiva dos sujeitos deve ser incentivado cada vez mais nos diferentes níveis de atenção à saúde como mais um recurso de efeito terapêutico. Ainda que não seja possível desenvolver ensaios clínicos randomizados e os estudos sejam observacionais e com poucos indivíduos acometidos por dor crônica, o incentivo para seguir as aspirações da alma, nos modelos preferidos por cada pessoa, deve ser impulsionado pelos profissionais das equipes que cuidam dos que sofrem de dor.

Pelos motivos apresentados, profissionais de saúde que lidam com pessoas com dor crônica devem avaliar sistematicamente este aspecto e estimular o bem-estar biopsicossocial-espiritual por meio de diferentes estratégias que façam sentido para cada paciente e familiares. Sejam por práticas religiosas, meditação, exercícios físicos, filosofias de vida, grupos de autoajuda, entre outros, o tratamento centrado no paciente e baseado em suas preferências, deve ser contextualizado na sua vida real e não em ideologias científicas ou religiosas de cada profissional que cuida dos que sofrem com o fenômeno doloroso.

Katia Nunes Sá Fisioterapeuta Doutora em Medicina e Saúde Humana,
Professora Adjunta da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública

REFERENCES

  • 1
    Siddall PJ, Lovell M, MacLeod R. Spirituality: what is its role in pain medicine? Pain Med. 2015;16(1):51-60.
  • 2
    Santos RC, Miranda FA. Articulação ensino-serviço na perspectiva dos profissionais de saúde da família. Revista de APS. 2016;19(1):7-13.
  • 3
    Viswanath V. A lesson in spirituality. J Pain Palliat Care Pharmacother. 2015;29(4):406-7.
  • 4
    Sloan RP, Bagiella E. Claims about religious involvement and health outcomes. Ann Behav Med. 2002;24(1):14-21.
  • 5
    Büssing A, Michalsen A, Balzat HJ, Grünther RA, Ostermann T, Neugebauer EA, et al. Are spirituality and religiosity resources for patients with chronic pain conditions? Pain Med. 2009;10(2):327-39.
  • 6
    Lago-Rizzardi CD, de Siqueira JT, de Siqueira SR. Spirituality of chronic orofacial pain patients: case-control study. J Relig Health. 2014;53(4):1236-48.
  • 7
    Büssing A, Ostermann T, Koenig HG. Relevance of religion and spirituality in German patients with chronic diseases. Int J Psychiatry Med. 2007;37(1):39-57.
  • 8
    Puchalski C, Ferrell B, Virani R, Otis-Green S, Baird P, Bull J, et al. Improving the quality of spiritual care as a dimension of palliative care: the report of the Consensus Conference. J Palliat Med. 2009;12(1):885-904.
  • 9
    Monod S, Brennan M, Rochat E, Martin E, Rochat S, Büla CJ. Instruments measuring spirituality in clinical research: a systematic review. J Gen Intern Med. 2011;26(11):1345-57.
  • 10
    Marques LF, Dell'Agio DD, Sarriera JC. Adaptação e Validação da Escala de Bem-estar Espiritual (EBE). Aval Psicol. 2009;8(2):179-86.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017
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