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Crits e crips: conectando estudos críticos de deficiência e estudos jurídicos críticos

Crits and crips: connecting critical disability studies and critical legal studies

Resumo

Busco, nesta investigação, entroncar os estudos críticos jurídicos e de deficiência a partir da convergência entre os conceitos de trashing e cripping. Minha hipótese é a de que to trash law também consiste em to crip law – “cripficar” e “trashissizar” são meios desestabilizatórios dos cenários que representam norma e deficiência como conceitos pacíficos e não-conflituosos. A “formulação-teste” aqui iniciada é a de que o intuito de ambas as ferramentas se finca em um interesse comum, cuja aparência disruptiva guarda uma possibilidade latente de atualização permanente dos ímpetos revolucionários prospectivos.

Palavras-chaves:
Deficiência; Estudos Críticos; Desconstrução; Crip; Trashing

Abstract:

I herein seek to entrench critical legal and disability studies through a convergence between the concepts of trashing and cripping. My hypothesis is that to trash law also consists in to crip law - cripping and trashing are destabilizing means of the scenarios that represent norm and disability as peaceful and non-conflicting concepts. The “test formulation” initiated here is that the intent of both tools is based on a common interest, which disruptive appearance holds a latent possibility of permanent actualization of prospective revolutionary intents.

Keywords:
Disability; Critical Studies; Deconstruction; Crip; Trashing

Era briluz. As lesmolisas touvas

Roldavam e relviam nos gramilvos.

Estavam mimsicais as pintalouvas,

E os momirratos davam grilvos1 1 CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice: Alice no país das maravilhas; através do espelho e o que Alice encontrou lá. Tradução de Augusto de Campos (poemas). São Paulo: Summus, 1980. --- (CARROLL, 1980) .

Introdução22Este escrito só é possível em virtude do financiamento de minha pesquisa pela CAPES, por meio do Programa de Demanda Social. Agradeço, ainda, ao Professor Philippe Oliveira de Almeida, que me encorajou a acreditar na potência do programa de pesquisa em amadurecimento neste texto e que fez uma leitura atenta, com sugestões integralmente incorporadas.

Enquanto atravessa a “Casa dos Espelhos”, Alice encontra o tabuleiro, o Rei e a Rainha. Em um mundo invertido, a personagem auxilia a subida do Rei à mesa, que, assustado com as mãos invisíveis que o elevam, tudo registra à busca de sentido – embora o lápis escreva, afinal, sensações que não são do Rei, autoradas por uma Alice que apenas o narrador-externo sabe existir. É então que encontra ela o poema invertido, considerado uma das obras de mais difícil tradução da poesia moderna: “Jabberwocky” – tupinicamente apelidado “Jaguadarte”. Seu sentido assenta-se em uma sonoridade interna, inteligível apenas quando suspensa a busca de individualização dos conceitos específicos de cada palavra. Permeado por neologismos e portmanteaus, Jaguardate somente revela seu sentido para quem segura o espelho e, na sua tentativa de invisibilidade, buscar ler, no ritmo refletido, o âmago de uma lógica típica do paradigma tradicional3 3 As dificuldades de tradução e a originalidade de canalização da “alma” do poema em suas respectivas versões estrangeiras são testemunhas da não-neutralidade da estrutura original. Nesse sentido, ainda quando o esforço tradutor é de fidelidade, há sempre uma traição. Cf. ARGENTA, Marinice; MAGGIO, Sandra Sirangelo. O enigma de “Jabberwocky” na tradução de Augusto de Campos para o português brasileiro. Letrônica. Porto Alegre, RS. Vol. 12, n. 1 (jan./mar. 2019), e32027, 2019. . Embora sem apreendê-lo completamente no nível semântico – porque o faz, mas nunca totalmente4 4 A relação signo-significado, enquanto corporificada do substrato que a emula, pode tomar duas formas. A primeira analisa a formatação da estrutura dos signos, a qual torna seus signos significativos – a partir dela, se desenrolam as teorias estruturalistas. Por outra via, a redescoberta de Nietzsche no seio do estruturalismo faz surgir o questionamento do modo como as formatações dos signos vieram a adquirir aparência de “estrutura”. Daí decorre a suspensão, à nível semântico, da possibilidade de linguagens naturais e a confissão de parcialidade da compreensão por Alice. Cf. cap. III de PETERS, Michael. Pós-estruturalismo e Filosofia da Diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. --- (PETERS, 2001) –, Alice descobre-o em sua beleza mortal. É à letalidade de uma semântica atribuída por Alice – emergente, situada e material – que os crits perfazem sua crítica da teoria jurídica tradicional, que pretende imputar à estrutura sintática do direito uma semântica natural, neutra e imparcial. Se pretendem, pois, os crits a serem leitores da leitura de Alice, colocando-a, junto com o poema que investiga, através do espelho, na situação de materialidade da entidade invisível que escreve o registro do Rei, que interpreta com segurança o Jaguadarte com uma técnica-meio magicamente natural e que lhe delimita o relevante. Os crits desconfiam de Alice: a que servirá o registro dos fatos, que, correspondam ou não ao real, terão assinatura do Rei? Por que o meio da Casa de Espelhos, embora inusitado, parece tão oportunamente natural para desvendar o sentido do poema invertido encontrado? E o que, no poema, lhe indica a clareza não apenas da ocorrência de um fato (a morte de algo, provocada por alguém), mas também de sua relevância?

Da desconfiança das respostas fáceis do formalismo, os crits nascem em linha de descendência dos realistas jurídicos americanos5 5 Aqui, podemos apenas fazer uma caricatura do que vem a ser um grupo de crits. Colocado de outra forma, a CLS e seus praticantes dificilmente podem ser delimitados por uma suposta uniformidade de ideias. A melhor definição do “movimento” continua sendo a vaga descrição de Kennedy: “(...) critical legal studies has two aspects. It's a scholarly literature and it has also been a network of people who were thinking of themselves as activists in law school politics. Initially, the scholarly literature was produced by the same people who were doing the law school activism. Critical legal studies is not a theory. It's basically this literature produced by this network of people”. CLARK, Gerard J. A conversation with Duncan Kennedy. The Advocate, v. 56, 1994. (Tradução minha: “(...) a abordagem estudos jurídicos críticos tem duas vertentes. É uma literatura acadêmica e também uma rede de pessoas que se consideravam ativistas na política das faculdades de direito. Inicialmente, a literatura acadêmica foi produzida pelas mesmas pessoas que estavam fazendo o ativismo nas faculdades de direito. A abordagem dos estudos jurídicos críticos não é uma teoria. É, basicamente, a literatura produzida por essa rede de ativistas”). De todas as maneiras, a recorrência entre os crits da alegação de que a CLS não é uma teoria pode ser um sintoma de medo da perda dogmática que poderiam sofrer caso se tornassem “escola”. Fato é que toda definição nominalista de linhas de pensamentos – que frequentemente não surgem de uma confabulação intencional – tende a caricaturar seus defensores. Não poderia ser diferente com os crits. Este é o motivo pelo qual ainda não estou certa se a insistência em dizer-se “movimento” ou “estudos” (e não “escola” ou “teoria”) é ou não mais performática que substantiva. Afinal, não são sempre as escolas de pensamento contra hegemônicas “noivados perturbadores em circunstâncias particulares”? UNGER, Roberto Mangabeira. The Critical Legal Studies Movement: Another Time, A Greather Task. Londres: Verso, 2015, e-book. --- (CLARK, 1994) . Embora pareça haver um propósito único na denominação de grupo “crits”, estes estudiosos formam uma coalização heterogênea, que tem em comum a busca da desmistificação da “legalidade dogmática tradicional” e da introdução de “análises sociopolíticas do fenômeno jurídico”6 6 WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. São Paulo: Saraiva, 2002. --- (WOLKMER, 2002) . Pautado pela negação do imparcial, do neutro e do a-político, a Critical Legal Studies (CLS) tem seu significado epigrafado no título de um de seus eminentes trabalhos: “Roll Over Beethoven” – um diálogo de 1984 entre Peter Gabel e Ducan Kennedy7 7 GABEL, Peter; KENNEDY, Duncan. Roll Over Beethoven. Stan. L. Rev., v. 36, p. 1, 1984. --- (GABEL, KENNEDY, 1984) . Nele, os interlocutores discutem o papel da CLS e a possibilidade de conceituá-la, que, para Kennedy, significaria uma traição do propósito do movimento, que não deveria fixar intentos prospectivos. Nesse sentido, há uma implícita defesa de que boa parte da tarefa – ou toda ela – da CLS consistiria em possibilitar o exorcismo do mito da legalidade, operado por dispositivos como o “trashing”.

Assim como a CLS, a Critical Disability Studies (CDS) nasce da perda de uma fé, do desmascaramento de mitos. Para Tremain, desde o surgimento do modelo social de deficiência, nos anos 1970, os estudos de deficiência têm depositado uma grande confiança nos sistemas legais, deixando de problematizar o papel desempenhado pela lei na manutenção de significados anormalizados de deficiência8 8 SHELLEY, Tremain. Foucault and the Government of Disability. The University of Michingan Press, 2005. --- (TREMAIN, 2005) . Na contracorrente (e em suposta descendência dos movimentos críticos jurídicos e raciais9 9 MEEKOSHA, Helen; SHUTTLEWORTH, Russell. What's so ‘critical’ about critical disability studies?. Australian Journal of Human Rights, v. 15, n. 1, p. 47-75, 2009. Cf. também o nosso ALMEIDA, Philippe Oliveira de; ARAÚJO, Luana Adriano. DisCrit: os limites da interseccionalidade para pensar sobre a pessoa negra com deficiência. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 2, 2020. --- (MEEKOSHA, SHUTTLEWORTH, 2009; ALMEIDA, ARAÚJO, 2020) ), a CDS se imbrica em uma convergência de teóricos e ativistas de deficiência, tendo sido definida como: uma metodologia que “envolve escrutinizar (...) as normas sociais que definem determinados atributos como incapacitantes, assim como as condições sociais que concentram determinados atributos em sujeitos específicos”10 10 SCHALK, Sami. Critical disability studies as methodology. Lateral, v. 6, n. 1, p. 6-1, 2017. --- (SCHALK, 2017) ; uma perspectiva que “constrói a deficiência como uma experiência informada pela minoração e pelo subjugo” de determinadas condições11 11 BAGLIERI, Andrea. Toward Unity in School Reform. In: CONNOR, David J.; FERRI, Beth A.; ANNAMMA, Subini A. (Eds.) DisCrit. Columbia University Press, 2016. --- (BAGLIERI, 2016) ; e um campo que questiona nossas noções existentes de deficiência e que pergunta como elas se padronizaram academicamente12 12 VEHMAS, Simo; WATSON, Nick. Moral wrongs, disadvantages, and disability: a critique of critical disability studies. Disability & Society, v. 29, n. 4, p. 638-650, 2014, p. 639.13 Nesse ponto, ressalvo que a proposta do artigo pode ser questionada preliminarmente pela denúncia de que definir o trashing e o cripping significa inscrevê-los em uma ordem racionalista. Rejeito parcialmente essa possibilidade tentando reinscrever minha subjetividade na conceituação – o que é feito a partir de notas como essa. Rejeito, por outro lado, integralmente essa possibilidade a partir da reinscrição dos termos na indesconstrutibilidade da justiça Derridiana. --- (VEHMAS, WATSON, 2014) .

Tendo em vista uma possibilidade de bifurcação entre a CLS e a CDS, esse trabalho busca entroncá-los a partir da definição13 de dois dispositivos de cada movimento: na CLS, estudaremos a noção de trashing14 14 No restante do trabalho, mantenho os termos “trashing” e “cripping”, sem traduzi-los ou grafá-los com itálico. ; na CDS, a proposta do cripping. Nossa hipótese é a de que to trash law também consiste em to crip law – “cripficar” e “trashissizar” são meios desestabilizatórios, cujo intuito é destruir cenários que representam norma e deficiência como conceitos pacíficos e não-conflituosos. A “formulação-teste”15 15 Inspiração livre na descrição metodológica de Franzoni. FRANZONI, Julia Ávila. Geografia jurídica tropicalista: a crítica do materialismo jurídico-espacial / Tropicalist legal geography: the critique of legal-spatial materialism. Revista Direito e Práxis, [S.l.], v. 10, n. 4, p. 2923-2967, dez. 2019. --- (FRANZONI, 2019) aqui iniciada é a de que o intuito de ambas as ferramentas se finca em um interesse comum, cuja aparência disruptiva guarda uma possibilidade latente de atualização permanente dos ímpetos revolucionários prospectivos. Para articulá-la, usamos metodologia descritiva, de natureza hipotética, com aportes na revisão das literaturas da CDS e da CLS.

1. Trashing: construir a desconstrução do legalismo

O trashing consiste na desconstrução de ideais jurídicos de pureza científica e de neutralidade decisória16 16 KELMAN, Mark G. Trashing. Stan. L. Rev., v. 36, p. 293, 1984. . É em Kelman – cuja definição tomo por base – que esta prática é explorada e racionalizada, embora, de acordo com Almeida, se trate ela mesma de uma “tática para desestabilizar racionalizações”17 17 ALMEIDA, Philippe Oliveira de. O neoliberalismo e a crise dos Critical Legal Studies. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 2229-2250, Oct. 2018. --- (ALMEIDA, 2018) . Para o primeiro, é possível distinguir como a racionalização jurídica opera retrospectivamente, conferindo um sentido legal adequado a escolhas semânticas não racionais18 18 KELMAN, Mark. Interpretive construction in the substantive criminal law. Stanford Law Review, p. 591-673, 1981. --- (KELMAN, 1981) . Nesse sentido, há um “primeiro passo não reconhecido”19 19 FISH, Stanley. Doing what comes naturally: Change, rhetoric, and the practice of theory in literary & legal studies. Duke University Press, 1989. --- (FISH, 1989) , condicionado por estruturas conscientes e inconscientes, que modula determinantemente o caminho interpretativo da norma cujo mapa se intenta traçar até a origem racional. Este intento, que chama ele de “retoricismo racional”20 20 KELMAN, Mark. op. cit., 1981, p. 592. , arma o palco para a necessidade do trashing. Seu objetivo é colocar em suspensão a leitura legalista-dedutiva e o logro da “resposta única”, pondo a olhos nus a indeterminação dos preceitos jurídicos. Por outra via, para Freeman, o trashing também poderia ser compreendido como uma alcunha menos requintada para projetos de “deslegitimação” ou “desmistificação”21 21 FREEMAN, Alan D. Truth and mystification in legal scholarship. Yale Lj, v. 90, 1980, p. 1230. --- (FREEMAN, 1980) – deste modo, há, igualmente, um desiderato de revisão epistemológico-política, a partir da qual se visualizam as estruturas hierárquicas que amparam a neutralização operada pelo legalismo enquanto uma “ciência dedutiva e autônoma” que “serve de máscara para a exploração e para a injustiça”22 22 ALMEIDA, Philippe de. op. cit., 2018, p. 2238. .

Frequentemente imputado como projeto de excessivo extermínio – e em parte legitimando o medo de que os críticos não deixem pedra sobre pedra23 23 Unger fala não somente de um medo de que as críticas do objetivismo e do formalismo “não deixem nada de pé” (UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 2015), mas também de medo de humanizar-se a criação do direito, percebendo-o como autorado por um “nós” situado. –, o trashing esteve associado ao programa negativo da CLS24 24 O programa negativo da CLS busca demonstrar que os atuais arranjos institucionais e de distribuição de poder não são necessários, nem naturais e desafiar “euromitos” (DELGADO, Richard. The ethereal scholar: Does critical legal studies have what minorities want. Harv. CR-CLL Rev., v. 22, 1987). --- (DELGADO, 1987) . Na contramão dessa imputação – e reafirmando a relevância do trashing para um projeto genuinamente crítico –, desafiamos, preliminarmente, dois pressupostos que críticos anti (ou pós) trashers repetem de forma similar aos conservadores que pretendem condenar: a) a de que a inspiração construcionista derridiana resigna o trashing à destruição, deflacionando a (pro)positividade dos movimentos de esquerda; e b) a de que trashers prejudicam a manutenção de concepções tanto utópicas quanto reformistas25 25 Cf. CRENSHAW, Kimberlé Williams. Race, reform, and retrenchment: Transformation and legitimation in antidiscrimination law. Harvard Law Review, p. 1331-1387, 1988. p. 1366-1369. Os trashers também foram acusados de não ter nada a dizer sobre justiça – questão também colocada por Derrida em relação à desconstrução. Ele salva, contudo, a justiça da desconstrução ao reservar “uma possibilidade de uma justiça que não apenas exceda ou contradiga o direito, mas que talvez não tenha relação com o direito, ou mantenha com ele uma relação tão estranha que pode tanto exigir o direito quanto excluí-lo”. A desconstrução crit trasher ocorre, assim, no “intervalo entre a indesconstrutibilidade da justiça e a desconstrutibilidade do direito”, e sua possível versão utópica está nos momentos aporéticos de tomada da regra para a decisão entre o justo e o injusto. DERRIDA, Jacques. Força da Lei. Trad. de Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018, p. 8, 27, 30. --- (CRENSHAW, 1988) , na medida que unem interesses exclusivamente cínicos e derreificantes quanto à análise da estrutura jurídica de inspiração liberal. Se intenta firmar, pois, uma afirmação de positividade na desconstrução proposta, pautada em uma nova consciência emergente da exposição, por exemplo, das escolhas conflitantes que margeiam as aparentemente objetivas normas legais26 26 Explorando diferentes formas de trashing (“trashing as a process of theoretical analysis [and] (…) as a real-world renunciation of the current legal machinery”), cf. HARDWICK, John. The schism between minorities and the critical legal studies movement. BC Third World LJ, v. 11, p. 137, 1991, p. 159. . Ainda que o trashing buscasse tão somente derrubar cenários – consistindo o to trash law em tornar visíveis as estruturas27 27 HARRISON, Jeffrey L.; MASHBURN, Amy R. Jean-Luc Godard and critical legal studies (Because we need the eggs). Michigan Law Review, v. 87, n. 7, p. 1924-1944, 1989. sociais, políticas e culturais da lei, expondo-as ao escrutínio legitimador –, sua tarefa, se cumprida, possuiria maior proficuidade na manutenção da possibilidade de criação de realidades alternativas e futuridades do que os crits utópicos jamais obtiveram28 28 Não são poucas as críticas sobre o elitismo do trashing – aqui consideradas apenas parcialmente quando se trata dos desideratos reformistas. De acordo com Hardwick: “(…) the Minority Scholars argue that the trashing of rights discourse is plausible for CLS scholars because they reside in privileged positions in our society. These are positions from which theoretically disposing of rights and creating an informal community premised upon good will and sharing carries no threat of harm. Implicit in this criticism is the suspicion that CLS simply does not take itself or its proposed agenda seriously. What is missing, Minority Scholars argue, is a measure of reality” (HARDWICK, John. op. cit. 1991. p. 155). (Tradução minha: “: “(…) os acadêmicos pertencentes a minorias argumentam que o discurso de destruição dos direitos é plausível para os estudiosos da CLS porque eles residem em posições privilegiadas em nossa sociedade. Essas são posições a partir das quais, teoricamente, dispor de direitos e criar uma comunidade informal com base na boa vontade e no compartilhamento não acarreta ameaça de dano. Implícita nessa crítica está a suspeita de que a CLS simplesmente não leva a sério a si mesma ou sua agenda proposta. O que está faltando, argumentam os estudiosos da minoria, é uma medida da realidade”). Para uma resposta dos trashers ao elitismo, cf. FREEMAN, Alan. Racism, rights and the quest for equality of opportunity: a critical legal essay. Harv. CR-CLL Rev., v. 23, p. 295, 1988. Hardwick coloca ainda a crítica do “enquanto isso”; é dizer, ainda que o trashing e a desconstrução sejam efetivos o suficiente para gerar novas consciências, como satisfazer interesses sobrevivenciais de curto prazo de minorias que têm de se valer das estruturas jurídicas para chegar ao mínimo? Id. p. 161. Cf. ainda DELGADO, 1987, p. 307. . Diga-se de passagem: reconhecer uma natureza programática no trashing deve, por si só, ser um ato-proposição capaz de redimensionar sua proposta de fundo como a de uma vigilância autoconsciente de qualquer alternativa29 29 Essa ideia é parcialmente proposta, ainda que em nota de rodapé, por DALTON, Harlon L. The clouded prism. Harv. CR-CLL Rev., v. 22, 1987, p. 436. Ainda está por se escrever uma investigação profunda que entenda o trashing como programa negativo da CLS, considerando-o como contraparte da vertente positiva. .

Para tratar do potencial construtivo do trashing, tomo a sugestão-definição de Kelman. Nele, é possível delimitar o trashing, sumariamente, como uma técnica de interpretação do conteúdo legal típica da CLS que norteia a tarefa de desmascaramento do direito enquanto objeto de categorizações social e politicamente neutras. Paradoxalmente conceituado a partir de um comando de des-conceituações, o “trashing” se parametriza segundo a missão: “Take specific arguments very seriously in their own terms; discover they are actually foolish ([tragi]-comic); and then look for some (external observer's) order (not the germ of truth) in the internally contradictory, incoherent chaos we've exposed”30 30 KELMAN, Mark. op.cit., 1984, p. 293. Tradução minha: “Leve muito à sério os argumentos específicos, segundo seus próprios termos; descubra que eles são realmente tolos ([tragi]-cómicos); e então procure por alguma ordem (de observador externo) (não o germe da verdade) no caos internamente contraditório e incoerente que nós expusemos”. -31 31 Não são poucos os estranhamentos causados pela leitura do comando “kelmaniano”. Uso excessivo do itálico e a dupla supressão do pronome “that” (aquilo) são dois fatores que indicam uma mensagem de propósito na implícita traição ao que se convencionou como norma culta; assim, expõe-se, desde já, a informalização como ferramenta de combate. . Dessa forma, o trashing propositalmente incomoda por deslocamento, por despacificação dos incômodos tradicionais. Se, nessa empreitada, a “linguagem parece bizarra, é uma estranheza proposital”32 32 HARRISON, Jeffrey L.; MASHBURN, Amy R., op. cit., 1989, p. 1937. ; isso porque a própria linguagem, de acordo com os crits, é uma estrutura conceitual de falsas necessidades.

A uma primeira leitura, se coloca a pergunta: há algo a interpretar nesse comando interpretativo? Imputar autoevidência ao conceito de “trashing” significaria usurpá-lo de sua criticidade; assim, o próprio trashing, caso estabilizado, demandaria, por sua vez, a trashissização. Nesse sentido, a definição de Kelman – que, de início, não quer delimitar arestas conceituais, buscando tão somente orientar uma conduta – precisa ser, como ela mesma sugere, levada a sério em seus próprios termos. Tentando fazê-lo, investigamos, nessa seção, a localidade de cada palavra do conceito de Kelman; é no trashing que encontraremos, penso, a atualização da crítica que deve perseguir qualquer reificação de propostas afirmativas – motivo pelo qual o trashing deve compor o “construir” tanto quanto as propostas utópicas.

1.1 “Take arguments very seriously in their own terms”…: mistificar para reconstituir

Na sua ávida necessidade de mitos destinados a fundamentar o seu poder, o hemisfério ocidental considerava-se o centro do globo, o país natal da razão, da vida universal e da verdade da humanidade. Só o bairro mais civilizado do mundo, só o Ocidente inventou um “direito das gentes”. Só ele conseguiu edificar uma sociedade civil das nações compreendidas como um espaço público de reciprocidade do direito. Só ele deu origem a uma ideia de ser humano com direitos civis e políticos, permitindo-lhe desenvolver os seus poderes privados e públicos como pessoa, como cidadão que pertence ao gênero humano e, enquanto tal, preocupado com tudo o que é humano (...)33 33 MBEMBE, Achille. Crítica a Razão Negra. Trad. de Marta Lança. 2. ed. Lisboa: Antígona, 2013, p. 28. --- (MBEMBE, 2013) .

O que significa levar argumentos à sério? Falta de seriedade parece ser um dos diagnósticos mais comuns aos que pretendem remendar a incorreção interpretativa no campo jurídico. Há, ainda que incógnita ao olhar superficial, uma estrutura normativa doutrinariamente sustentável, que se atualiza a partir dos próprios instrumentos – sejam eles cientificamente puros ou axiologicamente determinados por uma cultura. Contudo, apenas os que seriamente se dedicam a “descobri-la” podem adentrar o império da lei. Dessa forma, os crits tomam, paradoxalmente, um primeiro passo análogo a seus colegas liberais, para, em seguida, “minar a teoria liberal da doutrina jurídica, demonstrando que, em seus próprios termos, o desenvolvimento doutrinário é essencialmente incoerente, ilógico e irracional”34 34 MUNGER, Frank; SERON, Carroll. Critical legal studies versus critical legal theory: A comment on method. Law & Policy, v. 6, n. 3, p. 257-297, 1984. --- (MUNGER, SERON, 1984) . Isso envolve andar pelo terreno teórico que se pretende desmistificar, suspendendo qualquer pressuposto de autossuficiência doutrinária. O caminho traçado levará ao mapeamento dos percalços, desvios, quedas e buracos de uma história legal autoproclamada linear, de modo que o caminhante crítico chegará, inevitavelmente, por um lado, a uma rejeição de explicações lógicas ou naturais no âmbito do desenvolvimento da teoria jurídica e, por outro lado, uma revisão das concepções instrumentalistas do fenômeno jurídico. Essa dupla chegada se espelha na topografia dos dois temas primariamente tratados na CLS: o (mito do) objetivismo e o (mito do) formalismo35 35 HARWICK, John. op. cit., 1991, p. 144. -36 36 De fato, a linguagem do “mito” povoa não apenas a crítica trasher. Entendemos que a mitificação dos trashers assemelha-se à mitificação de Barthes, na segunda parte de Mitologias. Ao questionar o que é hoje o mito, o autor entende que sua maior função é a de naturalizar crenças e conceitos a partir da abolição das complexidades. A mitificação permite recapturar as intenções comunicativas de conceitos jurídicos, como a objetividade e o formalismo. Entendê-los como mitos envolve tanto nomeá-los (retirando-os de sua ex-nominação) quanto repolitizá-los em seu contexto de produção. BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. de Rita Buongermino; Pedro de Souza. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. --- (BARTHES, 2001) .

Por que os críticos estão tão interessados em identificar mitos e desmitificá-los, quando o primeiro comando do trashing é “levar à sério”? Não estaria embutida na própria tentativa de mapeamento mitológico um ceticismo quanto à sua veracidade? Mitos, em seus próprios termos, são levados a sério - para desmistificar, é preciso, primeiro, descobrir a ordem interna, a gênese de criação do mito, “devolvendo-o ao zero”37 37 Essa devolução ao zero, seguindo Derrida, não é nem fundamentalista nem anti-fundamentalista, ocorrendo mesmo de ela findar por direcionar-se a questões de autoridade, que são sobrepostas – e não subjacentes – a questões de origem, “pois existe uma autoridade (...) a respeito da qual podemos nos perguntar de onde ela tira uma força tão grande em nossa tradição.” DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 12. Por isso, o tomar seriamente os argumentos é ato que desemboca na busca por seu momento prévio, sua gênese mística, na qual os argumentos jurídicos não são justos nem injustos – sendo justamente isso o que abre a possibilidade de sua desconstrução. , a um estado de liberdade pré-convencional38 38 HARRISON, Jeffrey; MASHBURN, Amy. op. cit., 1989, p. 1927. --- (HARRISON, MASHBURN, 1989) - ainda quando o ad infinitum nos obrigue a, eventualmente, nos satisfazermos tão somente com a delimitação das escolhas conflitantes visíveis. Essa redução da narrativa do mito à escolha do narrador tenta identificar uma pluralidade de “linhas de Ariadne”, que conduziriam razoavelmente a saídas diversas do labirinto legal. O trashing permite, nesse primeiro momento, segurar as pontas de cada meada, buscando descrever porque o sucesso de uma empreitada específica dentre uma pluralidade de possibilidades alçou a alegação de necessidade. Há, nessa etapa, um intuito descritivo e mapeador com sentido libertador39 39 Nesse ponto, Cf. Matsuda: “This descriptive work of critical legal scholars is liberating. To those who believe that law is a cage within which radical social transformation is impossible, the critical legal scholar can respond with the sophisticated confidence born of a significant body of scholarship. This is why we read Duncan Kennedy as well as Frederick Douglass. CLS is a legitimation process for outsiders”. MATSUDA, Mari J. Looking to the bottom: Critical legal studies and reparations. HaRv. cR-cll Rev., v. 22, p. 323, 1987, p. 329. Tradução minha: “Este trabalho descritivo de estudiosos jurídicos críticos é libertador. Para aqueles que acreditam que o direito é uma gaiola dentro da qual a transformação social radical é impossível, o estudioso jurídico crítico pode responder com a confiança sofisticada nascida de um corpo acadêmico significativo. É por isso que lemos Duncan Kennedy, bem como Frederick Douglass. CLS é um processo de legitimação para outsiders”. --- (MATSUDA, 1987) , que permite penetrar-se nos textos legais apócrifos tomando-os como resultado de uma escolha restritiva de escolhas e de renovação dialógica40 40 WILLIAMS JR, Robert A. Taking Rights Aggressively: The Perils and Promise of Critical Legal Theory for Peoples of Color. Law & Ineq., v. 5, p. 103, 1987. --- (WILLIAMS JR, 1987) .

Des-mistificar, exige, portanto, mitificar, buscando entender o sentido da ligação entre a ordem jurídica e a cosmologia das propostas transcendentes – ligação esta que, de acordo com Unger é sugerida pelo próprio conceito de direito. A ideia de regularidades na natureza e na vida social é parte integrante da crença de que há um plano sagrado se desenrolando abaixo do caos do mundo41 41 UNGER, Roberto Mangabeira. Law in Modern Society: Toward a Criticism of Social Theory. New York: Free Press, 1977, p. 78. --- (UNGER, 1977) . A ordem instaurada, seja ela secular ou não, revela o caráter místico da estrutura normativa, motivo pelo qual Derrida supõe que a própria admissão de um momento fundador e justificante do direito implica em “uma força performativa, isto é, sempre uma força interpretadora e um apelo à crença”, que, nesse ponto intangível, não é uma força “justa nem injusta (...) [.N]enhuma justiça, nenhum direito prévio e anteriormente fundador, nenhuma fundação pré-existente, por definição, poderia nem garantir nem contradizer ou invalidar”42 42 DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 24. . Não por outra razão, Derrida chama este momento de “fundamento místico do direito”43 43 Id. p. 25. , cuja descrição, em vez de reinvestir o legal de sua autoridade infalível, descobre, justamente, na possibilidade de desmonte a chance de desconstrução, dado que “seu fundamento último, por definição, não é fundado”44 44 Id. p. 27. . Esse é, pois, o significado de “levar a sério os argumentos [jurídicos] em seus próprios termos”: buscar-lhe, descritivamente, a fundação, descobrindo-a que apenas misticamente ela se torna tangível por meio de um discurso que “encontra ali seu limite: nele mesmo”45 45 Id. p. 25. .

1.2. …”discover they are actually foolish ([tragi]-comic)”…: o império do bufão4646A definição de “bufão” da qual me valho advém de seu conceito cênico, como figura-limite que, ao rir e fazer rir, coloca-se na marginalidade de uma racionalidade. Puvis compara a posição do bufão ao louco, ambos marginais. “Este estatuto de exterioriedade o autoriza a comentar os acontecimentos impunemente, ao modo de uma espécie de paródia do coro da tragédia. Sua fala, como a do louco, é, ao mesmo tempo, ouvida e proibida”. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 35. A crítica interna dos crits contra os trashers parece já tê-los pintados de bufões (mascarados, que sempre revelam o outro e que nunca assumem o papel sério dos outros sem incorrer em sua própria perda). Não vejo por que não celebrar essa adequada crítica, encontrando nela uma oportunidade de autoafirmação. --- (PAVIS, 2008)

(...) a função do grotesco é liberar o homem das formas de necessidade inumana em que se baseiam as ideias dominantes sobre o mundo. O grotesco derruba essa necessidade e descobre seu caráter relativo e limitado. A necessidade apresenta-se num determinado momento como algo sério, incondicional e peremptório. Mas historicamente as ideias de necessidade são sempre relativas e versáteis. O riso e a visão carnavalesca do mundo, que estão na base do grotesco, destroem a seriedade unilateral e as pretensões de significado incondicional e intemporal e liberam a consciência e a imaginação humana, que ficam assim disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades47 47 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi. Brasília: Editora da UnB; São Paulo: Hucitec, 1987, p. 43. --- (BAKHTIN, 1987) .

Em sequência ao convite à seriedade – que incentiva imparcialidade na descrição da ordem interna dos argumentos jurídicos –, Kelman, em tom de auto-chacota, “descobre” sua natureza tola, (tragi-)cómica. Sua intenção é deixar que os próprios argumentos se traiam em sua insensatez. Por exemplo, ao mencionar a acusação de que não há sustento da missão trashing diante da concretude, do detalhamento e do fundamento empírico do ordenamento48 48 KELMAN, Mark. op. cit. 1985, p. 305. – não cabendo, assim, desmascará-lo –, a resposta de Kelman lembra que não é necessário ridicularizar quando o escândalo está armado; por esse motivo, argumentar que os parâmetros dos argumentos legais são vagos, não empíricos e retoricamente vazios “simplesmente não vale a pena”49 49 Id., 320. . Esse é o sentido do ato de descoberta da insensatez: não precisar dizê-la.

O escândalo tragicômico da tolice do argumento jurídico remonta ao chamado de identificação do grotesco presente nos discursos de verdade que fazem rir50 50 Foucault retoma o tema do riso na produção do conhecimento ao comentar o parágrafo 333 de Gaia Ciência. Nele, Nietzsche contesta que seja preciso reduzir paixões para poder conhecer: “compreender não é nada mais que um certo jogo, ou melhor, o resultado de um certo jogo, de uma certa composição ou compensação entre ridere, rir, lugere, deplorar, e detestari, detestar”. FOUCAULT, Michel. A verdade as formas jurídicas. 4. ed., Rio de janeiro: Nau Editora, 2013, p. 29. Acredito que seria possível levantar a hipótese de que a renúncia ascética ao encontro com o tragicômico compõe o imaginário do formalismo jurídico (segundo mito de ataque dos crits). No segundo passo trasher, o tragicômico retoma a “maldade radical do conhecimento”. Ironias, piadas, esquetes (e as versões correntes desses dispositivos): o que Kelman recomenda como crítica “não-intelectual” é, em verdade, a própria radicalização da inteligência trasher. --- (FOUCAULT, 2013) e que têm o poder institucional de matar51 51 FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 8. --- (FOUCAULT, 2003) . Em Foucault, o grotesco é o fato, o discurso ou o indivíduo que detém por estatuto efeitos de poder de que sua qualidade intrínseca deveria privá-los. Não é, especificamente, uma desqualificação acidental do discurso – um erro em sua imperfeição, mas sim uma “das engrenagens que são partes inerente dos mecanismos de poder”52 52 Id., p. 15. .

A descoberta do grotesco – que faz rir e chorar, é trágico e cômico – não retira, por si só, a força do argumento legal; em verdade, é possível que esse se torne ainda mais incontornável e inevitável, visto que “pode precisamente funcionar com todo o seu rigor e na ponta extrema de sua racionalidade violenta, mesmo quando está nas mãos de alguém efetivamente desqualificado”53 53 Id., p. 17. . Por esse motivo, discursos incontornáveis – e tanto mais quanto mais simplificadores – sobre capacidade jurídica mostraram-se tão eficazes na perpetuação da marginalização das deficiências a partir de adágios repetidos em tom de oração – como: “a capacidade é a medida da personalidade” ou “o discernimento é a medida da qualidade da vontade” ou ainda “ter discernimento é ter capacidade de entender e querer”54 54 Essa é a definição de Bodin, para quem “se o indivíduo for dotado desta capacidade, dela decorrem a autodeterminação e a imputabilidade (isto é, a responsabilidade)” BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2018, p. 192). --- (BODIN DE MORAES, 2018) . Embora esse discurso de verdade pareça mais sofisticado que o anterior adágio da incapacidade absoluta dos “loucos de todos os gêneros”55 55 Em seu art. 5º, previa os “os loucos de todo o gênero” como “absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil”. , “discernimento”, “personalidade”, “vontade”, “querer” e “entender” não perdem sua complexidade porque o direito decide cimentar as milenares discussões sobre seus significados. Ainda assim, configura-se como um qasi ritual do civilista constitucional/contemporâneo reclamar uma ojeriza pública ao anterior “loucos de todos os gêneros”, declarando, não raro, a certeza de que o “discernimento” foi uma categoria clara, limpa e ademais expurgada de preconceitos.

A única forma de manter-se um sistema de classificações que sequer são ambíguas – porque não podem ter n sentidos, mantendo para cada um sua validade –, mas tão somente vagas e abertas a qualquer interpretação56 56 Nesse ponto, falo em “abertura a qualquer interpretação”, porque é esse o intuito do passo de descoberta da tragicomicidade dos argumentos. Contudo, não é toda e qualquer interpretação que se fixará, pois o trashing tem por norte fixar na malha social das relações de poder o sentido atribuído ao conceito de “capacidade”. Oportunamente, sublinho que Freeman (op. cit., 1981, p. 1235), ao criticar a estrutura das leis antidiscriminação, expõe como elas serviram para sustentar uma “ilusão de mudança” – da mesma forma que o CC/2002, com o “discernimento” pareceu fazê-lo. Nesse sentido, leis antidiscriminação apresentam a prática de discriminação racial como ocorrendo em um reino virtualmente a-histórico onde indivíduos atomísticos ‘intencionalmente’ ‘causam’ danos a outros indivíduos, em suma, reduzindo o problema a um delito – a atuação do direito é, portanto, a de impor a reparação pelo dano causado, não a de tentar imbuir a prática discriminatória em um contexto social de racialização opressiva. Não nos assombra que Freeman diga, logo em sequência, que a mesma lógica se encontra nos conceitos de igualdade de oportunidades, promoção de acordo com o mérito, critérios objetivos de capacidade e a santidade dos direitos adquiridos. é por meio da manutenção de um secto que “imagina acreditar em si mesmo”, encenando a queda do “loucos de todo gênero” do Código Civil de 1916 como uma comédia, numa declaração de separação do passado57 57 Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. Boitempo Editorial, 2015. --- (ŽIŽEK, 2015) . Por isso, o CC/1916 precisa frequentemente morrer mais uma vez, sempre que uma defesa do discernimento do CC/2002 é levantada contra as alterações propostas pela Lei Nº 13.146/2015 (chamada de “Lei Brasileira de Inclusão” - LBI)58 58 O sistema de capacidades civis reformado não trata do discernimento, mantendo a incapacidade absoluta apenas dos menores de 16 anos (art. 3º do CC/2002) e a incapacidade relativa dos maiores de dezesseis e menores de dezoito; dos ébrios habituais e viciados em tóxico; e daqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade. Apesar de parecer uma reforma positiva e progressista, alinhada com o art. 12 da Convenção de Direitos das Pessoas com Deficiência, um crit mantém sua desconfiança em relação à possibilidade de esta ser uma conquista radical e revolucionária para pessoas anormalizadas, considerando que a) as avaliações psiquiátricas continuam, em sua ambiguidade, sendo as maiores balizas da aferição judicial de capacidade; b) os auspícios de interdisciplinarização da perícia por meio da avaliação biopsicossocial continua um sonho distante e, mesmo quando realizado, carente de padronização; c) há previsões legais aparentemente – e apenas aparentemente – antinômicas que mantêm a referência à incapacidade absoluta como aval para práticas de intervenção corporal (e.g. art. 10, parágrafo 6º, da Lei de Planejamento Familiar, que autoriza a esterilização involuntária). De forma ainda mais radical, um crit trasher questiona se sequer é possível avaliar, de maneira objetiva, a capacidade de ação de um sujeito a partir de sistemas civis essencialmente patrimonialistas. . O autoengano, que impede a real separação do passado, está na ausência de qualquer classificação em saberes psicológicos, assistenciais e – até mesmo – médico-psiquiátricos que meça o discernimento contingente ou não de um sujeito, o que coloca a pergunta: “será o discernimento uma categoria epistemológica?”. Colocada por um crit, a questão poderia, por outro lado, ser: “a que serviu e serve a ausência de objetividade da categoria ‘discernimento’?”.

1.3. …”look for some (external observer’s) order”…: o ponto de vista de lugar nenhum

Oh! Blessed rage for order, pale Ramon,

The maker's rage to order words of the sea,

Words of the fragrant portals, dimly-starred,

And of ourselves and of our origins,

In ghostlier demarcations, keener sounds59 59 STEVENS, Wallace. The idea of order at Key West. The Collected Poems of Wallace Stevens. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1988, p. 128-130. --- (STEVENS, 1988) .

Pautada pela busca por uma abordagem epistemológico-metodológica subjacente dos argumentos jurídicos analisados – e já entendidos como tragicômicos –, o terceiro passo do trashing consiste em uma missão de resgate e de alteridade. Aqui, admite-se ser possível que haja alguma superestrutura jurídica autônoma, mesmo que apenas inteligível do “ponto de vista de lugar nenhum”60 60 Bordo descreve o ponto de vista de lugar nenhum (View from Nowhere) como o lugar autorizativo que valida uma compreensão universal, objetiva e racional do mundo, que plana sobre o mundo e não se conspurca materialmente, sempre desligada de uma geografia corpóreo-cultural. Cf. BORDO, Susan. Unbearable weight: Feminism, Western culture, and the body. University of California Press, 2004. --- (BORDO, 2004) , apta a fornecer uma sistematização ordenadora. Nesse sentido, toda busca por ordem, seja ela de um formalismo ingênuo ou cético, deve imaginar o direito como “coisa” com uma estrutura de referência objetiva61 61 FREEMAN, Alan. op. cit., 1981, p. 1232. .

Nessa etapa, é preciso, pois, se pôr na perspectiva de um suposto observador externo, compreendida como a postura de um observador pragmaticamente desengajado, movido apenas teoricamente. Seu lugar não é, necessariamente, o do sujeito integralmente desinteressado, mas sim o daquele que embarreira suas próprias compreensões epistêmicas quando da análise do fenômeno jurídico. Nesse sentido, há um interesse puramente causal-explicativo que confere neutralidade e imparcialidade quando da execução da tarefa de mapeamento da ordem jurídica, cuja identidade e unidade devem ser compreendidas como tão persistentes como a identidade e a unidade de uma entidade como um prédio. O observador externo se engaja com o ordenamento, portanto, como um engenheiro tecnicamente preparado para notar causas e funções de uma construção terminada62 62 Talvez, um prédio não completo, mas quase completo, segundo seu projeto ideal inicial. Vejamos o resultado quando trocamos “juiz” por “engenheiro” e “direito” por “prédio” na frase de Unger: “Era necessário, portanto, alegar que o elemento ideal do prédio só estava expresso de forma incompleta no prédio estabelecido. O engenheiro devia completar este elemento ideal mediante o exercício adequado de sua responsabilidade de fazer avançar a elaboração fundamentada do prédio”. UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 2015, e-book. Do ponto de vista do observador externo, contudo, há uma expectativa de suposição desse acabamento feito pelo engenheiro-intérprete do projeto original, o que garante a higidez e completude da ordem. , podendo, quando muito, aprimorá-la desde que mantenha suas concepções norteadoras latentes.

É o argumento da manutenção das concepções latentes fundadas que garante a competência do observador externo para visualizar uma ordem. É ele capaz de uma “língua em geral”63 63 DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 32. , a partir da qual codifica uma isomorfia no exterior do sistema jurídico, encontrando a especialização dessa sistema na formação de pares binários de categorias epistemológicas (legal/ilegal; justo/injusto; legítimo/ilegítimo; de fato/de direito, etc.). Quando algo desafia esses pares, os mecanismos da interpretação jurídica esforçam-se para racionalizar a marginalização do caso desafiante, de forma que o próprio sistema pareça autorregular-se em uma cooptação do excedente, do que sobra na curva.

O momento da unidade da ordem jurídica é, pois, o momento de normalização do acordo institucional e ideológico firmado. Nele, o observador externo esforça-se para caracterizar a ordem como “um sistema de um tipo peculiar, que expressa o casamento de arranjos institucionais com crenças normativas sobre o que as pessoas têm o direito de esperar umas das outras em diferentes departamentos de vida social”64 64 UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 2015, e-book. . Metanarrando a ordem jurídica, o observador externo promove uma continuidade com o pensamento jurídico que nega o conflito irreprimível supostamente sintetizado por comandos normativos parciais e neutros, no contexto dos quais a divergência é não mais que um rastro de uma fundação democrática65 65 Os manejadores do pensamento jurídico – praticantes do método da elaboração racional orientada pela linguagem das políticas e dos princípios – contra o qual os crits se voltaram performavam uma continuação dos manejadores do “formalismo doutrinário” cujo óbito declaravam. Trata-se da farsa, da necessidade de desacreditar, repetidamente, uma forma de pensamento jurídico pintada como dedutivista e conceitualista – que, no entanto, continuavam com outra linguagem, que supostamente representaria o caminho do meio, expurgado de discricionariedade. Para ambos, a ordem institucional e ideológica estabelecida, expressa na lei, é um sistema indivisível, com substância jurídica inerente, e não apenas um amálgama frouxo e contingente de compromissos, imposições e acidentes. UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 2015, e-book. .

Por que Kelman pede, então, para que nos coloquemos no lugar de busca da ordem? Para que o trasher possa frustrar-se furiosamente, percebendo que o direito não é um sistema66 66 Ibid. , sendo a doutrina que o sistematiza passível de ser contestada e desestabilizada. Um crit trasher prospectivo poderá somente falar em sistema jurídico caso condicione-o a duas qualificações: que sua unidade consiste em um conjunto de contradições ou contracorrentes e que sua estabilidade precária, ou instabilidade latente, repousa na contenção parcial e na interrupção temporária da luta prática e visionária67 67 Ibid. . À revelia da hipótese de ausência de sistematicidade, Kelman mantém o comando de busca da ordem para que se exponham detalhadamente os arranjos e representações fundamentais à defesa da neutralidade da análise jurídica. Sob esse esqueleto, pode o trasher se dar conta, no lugar do observador externo, de que “tais acordos institucionais ou ideológicos não são sistemas. São construções em ruínas”68 68 Ibid. .

1.4. …(not the germ of truth)…: ordem sem verdade

That trashing may reveal truth seems significant if one's mission as a scholar is to tell the truth. If telling the truth requires one to engage in delegitimation, then that is what one ought to be doing69 69 FREEMAN, Alan D. op. cit., 1980, p. 1230. .

Ao buscar o trasher a ordem, pretende ele avaliar sua verdade? Existe uma busca por uma ordem verdadeira, que retire sua força de sua verdade? De acordo com Freeman, o objetivo do trashing – se assim decidido pelos trashers – deve ser o de “expor possibilidades de expressar a realidade de maneira mais verdadeira, possibilidades de modelar um futuro que possa, pelo menos parcialmente, realizar uma ação substantiva da justiça”70 70 Id., p. 1230-1231. [grifos meus]. Ainda que a função do trasher seja buscar uma realidade mais verdadeira, há uma diferença entre atingi-la afirmativamente, a partir da apresentação positiva de fatores de validação melhores, ou obliquamente, a partir de uma crítica negativa. O caso trasher é o último; veja-se que é a expressão de uma realidade mais verdadeira o que o trasher deve buscar, e não a verdade em si. Por esse motivo, o destaque, entre parêntesis, sorrateiro e enigmático, de que não se busque, na procura da ordem, o germe da verdade.

O problema crit com a verdade tem seu antecessor na discussão levantada pelo realismo jurídico, cujos membros propõem a verdade do direito como tangencial ao fato social do direito, que se manifesta no law in action. Essa resposta é um sinal de tempos, isto é, da substituição operada no contexto do século XX da epistemologia tradicional por uma “nova epistemologia”, que se apoia num ceticismo na teoria para afirmar a objetividade dos fatos – nesse sentido, a força de reificação que as proposições de verdade transcendental tiveram transmutou-se para uma crença na eficácia social como régua de validade. Com isso, admite-se a objetividade do fato como uma “ficção legítima” necessária para fundar a justiça – o que, no direito, para Derrida, dimensiona a conta cobrada pelo direito natural sobre o direito histórico ou positivo71 71 DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 22. .

Como herdam os trashers a questão da verdade? Resposta: assumindo a premissa da desconstrução, de que todo texto, independemente de clamar ou não pela verdade transcendental ou pela verdade dos fatos, crê que manifesta uma verdade objetivamente. A função do trasher é assumir-se na destruição da metafísica contida, revelando a contingência do significado do texto e os artifícios pelos quais ele se propõe verdadeiro. Da mesma forma, Foucault, em sua genealogia, estivera interessado não precisamente na verdade, mas “nas condições do aparecimento, da construção, do uso regrado de um conceito, no interior de uma formação discursiva”72 72 FOUCAULT, Michel. op. cit., 2002, p. 165. que se pretende verdadeira. A questão da verdade é herdada pelos trashers, portanto, como um fantasma, uma lembrança de que atribuir aos textos legais uma ausência de verdade objetiva significaria uma traição da própria contraposição do movimento a descobertas metafísicas, sejam elas da verdade ou de uma verdade.

Neste ponto, é preciso que se ressalve que, para Kelman, há uma contra-revolução anti-trashing, que atua na contramão da própria missão de objetividade do preceito legal ao propor que os argumentos jurídicos, embora não contenham a verdade, contém alguma verdade, sendo eles humanamente imperfeitos73 73 KELMAN, Mark. op. cit., 1984, p. 295-296. . É nesse sentido que a tradição ocidental cria e se satisfaz com os chamados “termos jurídicos indeterminados” e as “cláusulas abertas”74 74 Realço que, na aceitação integral dessas categorias, se torna preciso admitir que há apenas específicos conceitos abertos e indeterminados, o que é uma forma de garantir o comando de determinabilidade dos demais conceitos. Os conceitos jurídicos indeterminados e as cláusulas abertas são, assim, uma maneira de reforçar a autonomia e o formalismo do sistema jurídico, e não de flexibilizá-los. , que não pretendem conter, objetivamente, a amplitude do significado de verdade das palavras, mas entende que a palavra legal é dela um indício; haveria, portanto, um canal de possibilidade de verdade, que é cruzado a partir da interpretação jurídica75 75 À essa altura, é importante destacar que as filosofias do indeterminismo não desembocam, necessariamente, no absurdismo do tudo-pode-ser-qualquer-coisa (como Unger as eventualmente descreve em UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 2015). Como aponta Freeman, sugerir uma total verdade do modelo radicalmente subjetivo coloca, por si só, a pressuposição de um agente jurídico não social individualista. A implicação do trashing não é esta. Pelo contrário, é a de que o próprio julgamento jurídico é uma prática social que, como tal, deve estar enraizada nas relações reais de poder (FREEMAN, Alan. op. cit., 1981). Admito, contudo, que determinadas chaves conceituais crits da indeterminação (dentre elas, a “falsa consciência”, a “consciência legal” e o “inconsciente coletivo”) se valiam de uma psicologização institucionalizadora da subjetividade do intérprete – e ainda que compreendido como um sujeito social – como via de determinação dos verdadeiros símbolos escondidos na interpretação. Em trashers como Kelman e Freeman, as relações de poder júri-reificadas são o alvo, e não os agentes jurídicos subjetivamente considerados. . Contra a busca de um vestígio da passagem do verme original da verdade também deve o trasher se opor.

A verdade que Kelman sugere não seguir e Freeman sugere ser, obliquamente, resultado da expressão de outras possibilidades de realidade são, portanto, verdades com histórias diferentes, análogas respectivamente ao que Foucault chamara de história interna e história externa da verdade76 76 FOUCAULT, Michel. op. cit., 2013, p. 20. . A história interna é própria das ciências naturais que fixam objetivos dados, e a história externa implanta a verdade em relações de poder, tentando traçar uma história política (ou politizável) da verdade. A primeira (o germe da verdade) não deve ser buscada pelo trasher, enquanto a segunda (os resultados dinâmicos de uma sociedade de vermes, produzindo inúmeras micro-verdades a partir de operações hierárquicas e formando nichos de saber soterrados, apenas visíveis parcialmente – e nunca em sua completude – mesmo ao escavador mais atento) pode ser atingida obliquamente. Nesse sentido, uma das críticas ao trashing (a de que a verdade não importaria para a prática) parece ignorar que as verdades, mais do que nunca, importam – apenas não seu germe. A verdade de Freeman, de Foucault – e, queremos crer, Kelman – é a verdade produto da história e da constituição das relações de poder: o trashing quer pô-las a nu, pressupondo que “as condições políticas e econômicas de existência não são um véu ou um obstáculo para o sujeito de conhecimento, mas aquilo através do que se formam os sujeitos de conhecimento, e, por conseguinte, as relações de verdade”77 77 Id., p. 34. .

1.5. …”in the internally contradictory, incoherent chaos we’ve exposed”…: o chamado final-inicial da desconstrução

Que Nirvana genial há de engolir tudo isto, mundos de Inferno e Céu, de Judas e de Cristo, luas, chagas do sol e turbilhões do Mar?!78 78 SOUSA, Cruz e. Broquéis, Faróis, Últimos Sonetos. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 173. --- (SOUSA, 2006)

A exposição das contradições internas e do “caos incoerente” – hipérbole redundante proposital – constitui o último passo trashing. Uma vez que já se notou a tragicomicidade e a ausência de ordem, o trasher deve se questionar pela circularidade desse processo expositório, que redunda em uma parametrização de critérios que possibilitem constatar a contradição; ou seja, critérios que deverão, por sua vez, ser levados a sério, como no primeiro passo. Nesse sentido, mesmo o trashing desconstrutivo terá que, em algum momento, munir-se das mesmas ferramentas que criticou e racionalizar-se. Contudo, uma interpretação contraintuitiva nos pode sugerir que a derradeira etapa descrita é justamente o que pode inscrever o trashing em uma prospectividade. Essa interpretação aponta para uma futuridade do trashing, que permanece latente como “monstro arrivant” de qualquer institucionalidade jurídica.

Em uma primeira leitura, o chamado à exposição parece ser uma radicalização da indeterminação jurídica, que, para Unger, sempre enxerga a doutrina como uma “declaração de uma visão particular da sociedade, ao mesmo tempo em que (...) [enfatiza] o caráter contraditório do argumento doutrinário e sua suscetibilidade à manipulação doutrinária”79 79 UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 2015, e-book. . Com efeito, Kelman menciona que o traço distintivo da CLS “especialmente em comparação com movimentos acadêmicos de esquerda do passado, é seu foco na ambiguidade, sua recusa resoluta em ver uma síntese em cada conjunto de contradições”80 80 KELMAN, Mark. op. cit., 1984, p. 296. , motivo pelo qual a descoberta da contradição interna dos argumentos jurídicos, não sintetizável, parece ser uma pista do conflito supostamente pacificado pela fundação do direito. Em sua versão cínica, a contradição como contrapeso da análise jurídica é proposital e compõe a própria estrutura da análise liberal, em que a institucionalização de uma interpretação dita neutra e imparcial serve de máscara para o ocultamento das relações de poder impressas na estrutura normativa. Enquanto a contradição é percebida liberalmente como um acidente de um sistema imperfeito, cujas ambiguidades são colaterais para um crit, se trata da manifestação de uma indeterminabilidade essencial, que macula qualquer estrutura de saber necessariamente hierarquizada.

Os crits não detêm, contudo, a origem da crítica da contradição: os realistas81 81 Assim como o enquadramento dos crits é uma categorização da heterogeneidade, os realistas americanos do início do século XX só podem ser unificados se caricaturados. De acordo com Llewellyn, é possível, contudo, chamá-los de “movimento” dos realistas identificando pelos mesmos métodos de ataque. LLEWELLYN, Karl N. Some realism about realism: Responding to Dean Pound. Harvard Law Review, v. 44, n. 8, p. 1222-1264, 1931, p. 1234. a tinham visualizado e tocado. Contudo, se o que estivera em jogo, para o realismo jurídico americano, consistiu no desvelamento da indeterminação inerente a todo e qualquer sistema legal – ainda quando proclamadamente objetivo e imparcial –, para os crits, há uma missão específica, atribuída a referida indeterminação. Nesse sentido, a indeterminabilidade da norma, lato senso, compõe o próprio desiderato da sociedade liberal, sendo um sintoma de sua pulsão82 82 Unger relata que é relevante que a lei pareça plural, dado que o empreendimento da sociedade liberal não é excluir, mas sim incluir a possibilidade de consideração de valores destoantes. Dessa forma, “torna-se importante conceber um sistema de lei cujo conteúdo de alguma forma acomoda interesses antagônicos e cujos procedimentos são tais que quase todos podem achar que é do seu próprio interesse subscrevê-los, independentemente dos fins que procuram”. UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 1977, p. 69. . Se, aos realistas, o empirismo da pesquisa acuradamente científica parecera a estratégia salvadora do legal diante da sina da indeterminação, os crits colocaram em cheque mesmo os mecanismos científicos geradores de dados supostamente objetivos, parciais e neutros. Enquanto, aos realistas, a resposta para a indeterminação consiste no incremento da determinabilidade por meio do empirismo científico, ao crit, a desconfiança da própria possibilidade de determinação se dá pela identificação da paisagem liberal, que co-constrói os parâmetros de objetividade.

Mora na acusação de indeterminação radical parte relevante da negação dos crits à crítica negativa trasher83 83 Cf. FISCHL, Michael. op. cit., 1987, p. 513. --- (FISCHL, 1986) . Unger o coloca de forma categórica em sua mais na edição mais recente de sua obra seminal (The Critical Legal Studies Movement): “os proponentes da indeterminação radical pareciam erroneamente inferir a conclusão de que qualquer interpretação habilmente argumentada era tão boa quanto qualquer outra”84 84 UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 2015, e-book. --- (UNGER, 2015) . Além disso, os acusará, igualmente, de, no exercício de sua sedução, levarem a crítica [a] um deserto intelectual e político, abandonando-a ali sem recurso ou perspectiva, sem armas de combate aos defensores da elaboração racional, que facilmente se colocaram como agentes sensatos de um meio-termo entre o conceitualismo mecânico e a desconstrução.

Podemos repensar essa acusação apontando que a indeterminação não convalida qualquer resposta jurídica – isso porque não é qualquer resposta jurídica que as estruturas desconstruídas estão reiteradamente dando. Além da mera identificação de contradição, a tarefa trasher também é a de identificação de pressupostos, de maneira a se mapear as estruturas implícitas do discurso jurídico – Kelman nos pede para fazer isso, quando manda buscar a ordem. Ao encontrarmos dissonância e lacunas – especialmente nos mitos fundacionais –, se rasga o tecido da autonomia da análise legal, que se pretendia completa para explicar fenômenos pacificáveis. Nesse sentido, reinstaurar o conflito radical latente em toda norma significa dizer que a norma, para se tornar norma, teve de retirar sua força de algum lugar. A ordem é, então, desconstruída para que suas funções mais verdadeiras – isto é, suas relações de poder mais ocultas – sejam visualizadas em seus cálculos.

Diante da ordem desfabricada, a pergunta de Freeman lateja: “o que acontece se alguém simplesmente não pressupõe o mundo da harmonia e dos interesses compartilhados e o substitui por um mundo de conflito, dominação e hierarquia?”85 85 FREEMAN, Alan. op. cit., 1981, p. 1234. . Sobretudo quando se respeita a proposta derridiana a partir da qual toda fundação do direito é uma violência primordial de uma justiça que nunca chega, por-vir, a desconstrução pode significar uma perda de sentido. No entanto, a reinvidicação do conflito radical inerente a toda decisão normativa não é paralisante; isto porque a justiça “por mais inapresentável que permaneça, (...) [e]la não deve esperar”86 86 DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 51. . Ela não deve, igualmente “servir como álibi para ausentar-se das lutas jurídico-políticas, no interior de uma instituição ou de um Estado”87 87 Id. p. 55. ; tal inércia a vulnerabiliza para cálculos mais perversos que os atuais. Nesse sentido, palavras de Derrida: “a desconstrução não corresponderia de nenhum modo a uma abdicação quase niilista diante da questão ético-política-jurídica da justiça e diante da oposição do justo ao injusto”88 88 Ibid. p. 36. . Essa justiça que não chega, mas para a qual sempre apela de maneira ferida, corresponde a um duplo movimento: o incremento do sentido de responsabilidade, que deve ser sem limites diante da memória – colocando a urgência da tarefa de lembrar a história, a origem e o sentido, isto é, os limites de conceitos como o de lei e o de direito; e o incremento de uma responsabilidade diante do próprio conceito de responsabilidade que regula a justiça e a justeza de nossos comportamentos, de nossas decisões teóricas, práticas e ético-políticas89 89 Ibid. p. 36-39. .

A crítica da imobilização e do bandono desarmado no deserto parece não condizer com o trashing prospectivo derridiano e kelmanino. Ao contrário do que o nome literalmente indica, o trashing não significa “relegar ao lixo textos de doutrina jurídica e excertos de julgados forenses”90 90 GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Introdução ao Movimento Critical Legal Studies (CLS). SA Fabris Editor, 2005. --- (GODOY, 2005) . Por mais que “toda desconstrução dessa rede de conceitos, em seu estado atual ou dominante, possa assemelhar-se a uma irresponsabilização, (...) [trata-se] pelo contrário, de um acréscimo de responsabilidade”91 91 DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 38. pelo futuro e pelo passado desses textos. Esses permanentes incremento e metaincremento da responsabilização sustentam o “ímpeto para a transformação coletiva”92 92 KELMAN, Mark. op. cit., 1984, p. 329. , que deve sempre admitir um mundo imperfeito. Desbloqueado o reconhecimento da imperfeição, se torna não apenas possível, mas necessário conciliar o trashing com o trabalho de imaginação institucional – admitindo-se, ainda que o caráter instável e contestado do instrumento o torna mais e não menos útil para pensar outros mundos.

Se o apontamento da contradição inerente ao fenômeno jurídico reinstala no foco da pesquisa jurídica as relações de poder, é preciso admitir uma tensão permanente entre os dispositivos desestabilizadores trashing e a assunção de sua própria pacificação como instrumento de politização. Assim é que “cada avanço da politização obriga a reconsiderar, portanto a reinterpretar, os próprios fundamentos do direito, tais como eles haviam sido previamente calculados e delimitados”93 93 DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 56. . Mesmo que o trabalho utópico trasher seja estritamente anti ou não-intelectual94 94 KELMAN, Mark. op. cit., 1984, p. 336. --- (KELMAN, 1984) , é a permanência de sua possibilidade estrutural no exercício de toda responsabilidade o que previne o abandono desta ao sono dogmático, de maneira que possa renegar-se a si mesma95 95 DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 38. --- (DERRIDA, 2018) . Nesse sentido, “a crítica negativa e o programa positivo são, ou pelo menos podem ser, simbióticos; o primeiro lança o último e o mantém no curso, enquanto o último salva o primeiro da petulância e da autoparódia”96 96 DALTON, Harlon L. The clouded prism. Harv. CR-CLL Rev., v. 22, 1987, p. 436. --- (DALTON, 1987) .

2. Cripping: construir a desconstrução da deficiência

Bebendo da fonte queer, uma das vertentes atualmente crescentes da CDS consiste no crip97 97 SCHALK, Sami. Coming to claim crip. Disability Studies Quarterly, v. 33, n. 2, 2013. --- (SCHALK, 2013) . Originalmente, o crip nasce como abreviatura de “cripple”98 98 Para conferir a história do termo, provavelmente originada, em seu sentido radical, durante a segunda metade do século XX, em grupos americanos racializados, v. KAFER, Alison. Feminist Queer Crip. Bloomington e Indianápolis: Indiana University Press, 2013, e MCRUER, Robert. Crip Theory: Cultural Signs of Queerness and Disability. Nova Iorque, Londres: New York University Press, 2006. , uma denominação pejorativa para designar pessoas entendidas como anormais ou com deficiência. O cripping, enquanto prática dos estudos de deficiência, reapropria-se do termo e o utiliza como sinônimo de empoderamento99 99 Id., on-line. - o que nunca é, como toda reclamação coletiva de um termo, uma reversão simplística100 100 MCRUER, Robert. Crip. In: FRITSCH, Kelly; O'CONNOR, Clare; THOMPSON, Andrew Kieran (Ed.). Keywords for radicals: The contested vocabulary of late-capitalist struggle. AK Press, 2016. --- (MCRUER, 2016) . Embora corrente, o termo ainda causa controvérsia dentro e fora dos estudos de deficiência – controvérsia esta que parece ser parte importante de seu apelo intelectual101 101 KAFER, Alison. op. cit., 2013. . O estremecimento provocado diante do uso da expressão crip é, para Kafer, consequência da necessidade de se “sacudir as coisas, de tirar as pessoas de sua compreensão cotidiana de corpos e mentes, de normalidade e desvio”102 102 Id., p. 15. .

Conquanto já se haja sugerido que os “crip studies” poderiam substituir os estudos em deficiência103 103 SANDAHL, Carrie. Queering the crip or cripping the queer? GLQ: a journal of lesbian and gay studies, v. 9, n. 1, p. 25-56, 2003, , subsiste a defesa de que não há uma coincidência total entre seus âmbitos de atuação. McRuer entende que há, entre os crip studies e os estudos de deficiência, um paralelo similar ao existente entre os estudos queer e os estudos identitários LGBT104 104 Aqui, é útil sua alegoria do pedaço de concreto jogado na calçada das teorias tradicionais. Para McRuer, o pedaço de concreto desalojado pelos teóricos crip na rua - simultaneamente sólido e desintegrado, fixo e deslocado - pode destacar esses paradoxos entre a teoria crip/de deficiência e os estudos queer/LGBT. Se de uma perspectiva esse pedaço de concreto marca uma barreira material e aparentemente intransponível, de outra marca a vontade de refazer o mundo material. O corte do meio-fio, por sua vez, marca uma abertura necessária para as culturas públicas acessíveis que ainda podemos habitar. A teoria crip questiona - ou ataca com uma marreta - aquilo que foi tido como concreto; pode, consequentemente, ser compreendida como um corte em rampa no meio-fio para os estudos de deficiência e para a teoria crítica de forma mais geral. MCRUER, Robert. op. cit., 2006, p. 35. – inevitavelmente, o dissenso identitário tem intuito pragmático. Quem pode clamar o crip, buscando exorcizar binariedades, enquanto nega a estabilidade da deficiência? A desidentificação é uma opção viável diante das conquistas agregatórias e prospectivas dos movimentos identitários? Enquanto as políticas de identidades têm sido fundamentais para a sobrevivência e para a ação coletiva, qual o intuito da estafada tarefa intelectual de revertê-las ao seu ponto original para descobrir suas fundações normalizadoras?105 105 Com efeito, em Delgado, o discurso de conquista de direitos atrelados ao processo de identificação de minorias oprimidas se mantém essencial para a sobrevivência dos sujeitos marcados – motivo pelo qual “jogar fora” ou derrocar as estruturas de reafirmação das prerrogativas mínimas não é um ato que privilegia a todos os normatizados. DELGADO, Richard. op. cit., 1987. Em Williams, apenas um sujeito imbuído de um corpo lido socialmente como homem branco pode se dar ao luxo de “abrir mão de uma identidade”. WILLIAMS, Patricia J. The alchemy of race and rights. Harvard University Press, 1991. Cf. também MATSUDA, Mari J. op. cit., 1987. Atendo-se aos processos de afirmação da identidade, estudiosos queer étnicorraciais mantém o mesmo posicionamento, reafirmando a desidentificação como uma prática não-estratégica para a sobrevivência. Cf. LA FOUNTAIN-STOKES, Lawrence Martin. Queer Ricans: cultures and sexualities in the diaspora. U of Minnesota Press, 2009; COHEN, Cathy J. Punks, bulldaggers, and welfare queens: The radical potential of queer politics?. GLQ: A journal of lesbian and gay studies, v. 3, n. 4, p. 437-465, 1997. --- (WILLIAMS, 1991; LA FOUNTAIN-STOKES, 2009; COHEN, 1997)

Assim como sua nave-mãe, o cripping é entendido como metodologia, como perspectiva e como campo106 106 Assim como o trashing, não há unicidade no cripping. Paralelamente às propostas divergentes de conciliação do trashing com o programa positivo da CLS, a conciliação do cripping com as políticas de identidade também é um tópico intelectualmente contestado. Em Schalk, o cripping é uma arma da desidentificação, conforme pensada por Muñoz e Ferguson. A desidentificação é “uma estratégia alternativa de resistência política que trabalha com e contra a ideologia dominante ao mesmo tempo para fins performativos e políticos de sujeitos minoritários”; é, portanto “uma forma de localizar-se dentro de si, assumir e (re)utilizar representações e teorias de maneiras que não foram originalmente pretendidas”. SCHALK, Sami. op. cit., 2013, on-line. McRuer, por outro lado, entende o cripping (equivalente a crippin’ ou coming out crip) como uma prática de reivindicação da deficiência nas políticas de identidade, concomitante ao necessário amadurecimento de relações contestatórias à política de identidades. MCRUER, Robert. op. cit., 2006, p. 71. . Da mesma forma que o queer, não é um nome nem um adjetivo: é um verbo. “To crip” significa refocalizar “representações ou práticas dominantes para revelar suposições capacitistas ​​e provocadoras de exclusão, (...) [para] expor a delimitação arbitrária entre normal e defeituoso e as ramificações sociais negativas das tentativas de homogeneizar a humanidade”107 107 SANDAHL, Carrie. op. cit., 2003, p. 37. . O cripping, assim como o trashing, não pretende substituir modelos ou criar novas normas e normalidades a partir de uma reciclagem do anteriormente instituído. Seus intuitos se sobrepõem na busca de destruição prospectiva – dado que há, no desmonte, uma tentativa de elucidação das estruturas de montagem, das motivações do instituído enquanto norma ou normal. Acima de tudo, o cripping – assim como o trashing – se recusa a continuar ou estender os legados teóricos e práticos do racismo, do sexismo e da homofobia108 108 Nesse ponto, lembre-se que o cripping e o trashing não são as únicas – e nem sempre as mais apropriadas – maneiras de se recusar legados excludentes. Nesse sentido, os crits raciais que se colocaram favoravelmente a reformas normativas atestam a multiplicidade de maneiras de levar a proposta de disjunção às sendas antirracistas. Além disso, a crítica ao cripping, similarmente à destinada ao trashing, acusa-o de ser elitista, emanada por sujeitos privilegiados que mascaram suas próprias prerrogativas com a segurança da academia. Cf.; MCRUER, Robert. JOHNSON, Merri Lisa. Introduction: Cripistemologies and the Masturbating Girl. Journal of Literary & Cultural Disability Studies, v. 8, n. 3, p. 245-255, 2014. --- (MCRUER, JOHNSON, 2014) .

Além de notarmos, entre o cripping e o trashing, uma semelhança desconstrutiva109 109 Mantenho que é premente perceber a possibilidade de interligação entre a CLS e a CDS, especialmente quando se está diante da afirmação de que, embora crits e crips possam partilhar do ceticismo político, jurídico e social, a matriz da CLS endereça apenas tardiamente problemas tipicamente considerados como relativos a “minorias”. Em sendo a contradição interna aquilo que preclui a aproximação da CLS a demandas minoritárias – dentre elas, as demandas da deficiência –, traschissizar a própria CLS para aproximá-lo da deficiência (identitária ou não) a partir de seus próprios instrumentos é uma via de cripificação do trashing. , é possível fazer a ambos as mesmas perguntas: a busca de desmonte dos binários (deficiência/não-deficiência, normativo/não-normativo, legal/ilegal) tem, de fato, um potencial disruptivo revolucionário110 110 Cf. MCRUER, Robert. Crip Theory: Cultural Signs of Queerness and Disability. Nova Iorque, Londres: New York University Press, 2006, p. 36-37. Vejo ainda que, em Shildrick, uma outra semelhança entre trashers e crips pode ser destacada, quando se trata da desconfiança da necessidade das estruturas jurídicas de direitos: “Qualquer consideração séria dos direitos precisará reconhecer as múltiplas complexidades que informam as diferenças entre direitos positivos e negativos e sua relação com as diversas formas de justiça; a questão dos direitos conflitantes; o problema do acesso diferenciado à lei; e até mesmo a questão de se os direitos devem ser preferidos a valores alternativos”. SHILDRICK, Margrit. Dangerous discourses of disability, subjectivity and sexuality. Springer, 2009, p. 114.Embora não trate diretamente da desconfiança como postura cético-prospectiva, a pressuponho na crítica. --- (MCRUER, 2006) ? Quando uma mesma norma pode fornecer interpretações opostas (ser deficiente e não ser ao mesmo tempo; ter um direito e não ter), questionar integralmente a normatividade é uma atitude com potencial construtivo-prospectivo – e não apenas destrutivo-retrospectivo? É possível questionar a norma/a normalidade, ao mesmo tempo que se reivindica a posição de opressão como conferidora de titularidades contra-normativas? Reconhecendo a sobreposição questionadora, tentamos entender como o cripping, atitude de destruição de estabilidades, também pode ser pensado nos mesmos termos do trashing – e definido, em sua insuficiência urgente, como uma ferramenta revolucionária prospectiva.

2.1 “Take arguments very seriously in their own terms”…: o mito da normalidade

Em algum lugar, no limite da consciência, existe o que eu chamo de norma mítica, que todas sabemos em nosso coração que “não somos nós”111 111 LORDE, Audre. Irmã Outsider. Trad. de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019, e-book. --- (LORDE, 2019) .

Se o trashing busca exorcizar os mitos do objetivismo e do formalismo a partir do desvelamento de suas estruturas contingentes e situadas, o cripping tem uma outra desmitificação em mente – que também demanda um primeiro passo de mitificação: a normalidade. A mitificação da normalidade permite ver a deficiência como um dispositivo, que traz a própria deficiência à leitura de naturalidade e materialidade112 112 TREMAIN, Shelley. Foucault and Feminist Philosophy of Disability. Ann Arbor: University of Michingan Press, 2017. --- (TREMAIN, 2017) . Há, pois, uma reversão da normalidade ao seu “estado zero”, ao momento-espaço em que a divisão normal/anormal pareceu estar imbuída de determinismo e ahistoricidade. A indispensabilidade da palavra e sua seriedade se aloca na criação de uma maneira de se ser “objetivo” sobre seres humanos. Para Hacking, a normalidade é “um retentor fiel, uma voz do passado. Ela usa um poder tão antigo quanto Aristóteles para unir a distinção fato/valor, sussurrando em seu ouvido que o que é normal também está certo”113 113 HACKING, Ian. The Taming of Chance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 160. --- (HACKING, 1990) . Assim, transformar o normal em mito exige levar a sério a normalidade – só depois disso é possível se perceber as aspas em torno do “normal”.

Assim como a objetividade da norma jurídica atacada pelos crits, a normalidade opera a partir de mecanismos que imbuem determinados padrões de imparcialidade. Dessa forma, assim como a objetividade da norma jurídica – ou seu fantasma –, a normalidade tem “uma história, um conjunto de investimentos, toda uma gama de suportes e suposições que a trazem à existência, a sustentam e a alteram quando as condições assim o exigem”114 114 MCWORTHER, Ladelle. Foreword. In: TREMAIN, Shelley. Foucault and the Government of disability. Ann Arbor: University of Michingan Press, 2015. --- (MCWORTHER, 2015) . Tanto a objetividade quanto a normalidade não são acidentes da modernidade: são os apogeus de sua utopia, cujos contornos são traçados pelo formalismo que as convalida ritualisticamente. Portanto, os pontos de fúria dos crits e dos crips – que exigem, primeiro, uma despresentificação dos julgamentos115 115 FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 53. --- (FOUCAULT, 2008) – coincidem em seu enraizamento na sociedade disciplinar, na qual se estabelecem tecnologias positivas de poder mediante a normalização, mecanismos produtivos de controle116 116 FOUCAULT, Michel. Os anormais. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 60-64. , cuja análise resta essencial em um contexto de entendimento do funcionamento das engrenagens do poder117 117 FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In: Microfísica do poder. Trad. de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979, p. 6. --- (FOUCAULT, 1979) .

A normalização é uma estratégia central de gestão da vida na biopolítica foucaultiana, na qual se propaga o controle permanente dos movimentos e a fixação dos indivíduos em locais nos quais possam ser constantemente vigiados – com o intuito de constante rotulação e categorização. O entranhamento do poder nas mais íntimas esferas de agência individual confere uma ambiguidade às hierarquias, dado que há uma continuidade do exercício do poder que liga o centro às periferias mais periféricas. Por esse motivo, a normalidade, como mecanismo disciplinar, se engendra nas menores partículas de vida do sujeito disciplinado – seja ele tido por normal ou anormal.

O modo como as sociedades têm segmentado os corpos normais e anormais é fundamental à produção e à sustentação do que significa ser humano em sociedade, definindo, então, como se dá o acesso a nações e comunidades e a escolha e participação na vida cívica, a partir da fixação do que se constitui como ser racional118 118 MEEKOSHA, Helen. SHUTTLEWORTH, Russel. op. cit., 2009. p. 66. --- (MEEKOSHA, SHUTTLEWORTH, 2009) . Conforme apontado por Foucault, a “norma traz consigo ao mesmo tempo um princípio de qualificação e um princípio de correção”119 119 FOUCAULT, Michel. op. cit., 2002, p. 62 associado a um panorama de poder normativo. A existência de um processo de normalização associa-se, pois, a trazer o violador da norma para o cumprimento da norma, corrigindo-o. No caso da deficiência, a presença do anormal marca a ratificação da norma: é o resíduo da diferença, o que não é normalizado, que afirma, para o padrão-normal, a inteireza de sua cumplicidade com a normalidade. Visto que a impossibilidade de correção compõe o próprio julgamento de anormalidade, o fechamento das fronteiras com o normal proscreve, ao indivíduo irrecuperável, suas chances de encaixamento.

Um dos mitos derivados da normalidade liberal exposto pelos crits – e onde percebemos uma especial entrância com os estudos críticos de deficiência – é, ambivalentemente, o de igualdade de oportunidades. Os estudiosos da CLS desconstroem esse conceito revelando as contradições subjacentes às definições de habilidade e talento120 120 HARDWICK, John. op. cit., 1991, p. 159. --- (HARDWICK, 1991) . Um exemplo importante da standardização das capacidades consiste no segundo princípio lexical da concepção igual de justiça de Rawls – que engloba a igualdade de oportunidades e seu remédio: o princípio das diferença. Para o autor, a partir desse panorama, se faz a reparação das desigualdades imerecidas, mencionando especificamente as desigualdades “de nascimento e de dotes naturais”, as quais devem ser compensadas. Nesse sentido, Rawls aponta que “desigualdades inatas” devem ser aplainadas. O trato de uma pessoa com deficiência intelectual cujo nascimento é encarado como um fato natural, por exemplo, deve ser alocado no campo do “desvio das contingências em direção da igualdade”. Rawls chega a citar que maiores recursos devem ser gastos com a educação dos “menos inteligentes”121 121 RALWS, John. Uma teoria de Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenitta M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 107. --- (RALWS, 1997) . Não há, portanto, um questionamento dos motivos pelos quais determinadas habilidades são tidas como desejáveis ou uma dúvida acerca da imparcialidade de testes padronizados de inteligência122 122 Similarmente, Gordon exemplifica como, mesmo aos auspícios da inclusão, o intuito da normalização como busca natural se instaura: “A Black applicant to professional school, whose test scores are lower than those of a competing white applicant, asks for admission on grounds of 'affirmative action.' Everybody in that interaction (including the applicant) momentarily submits to the spell of the worldview promoted in that discourse, that the scores measure an 'objective' merit (though nobody really has the foggiest idea what they measure besides standardized test-taking ability) that would have to be set aside to let him in”. GORDON, Robert. Law and Ideology. Tikkun., v. 3, n. 1, p. 16. --- (GORDON, 1988) . To crip a teoria das igualdades, se torna necessário entender como as habilidades são estratificadas em contextos sociais e historicamente contingentes, trashing, nesse sentido, concepções liberais de loterias da vida, a partir das quais é justo garantir apenas o mínimo para que o mérito próprio entre em cena. Se os indivíduos falham, contudo, em demonstrar a potência de terem méritos próprios, depois de aplainadas suas desigualdades naturais, findam proscritos de participação no empreendimento cooperativo da sociedade – são, portanto, os monstros no sentido foucaultiano cuja obliteração consiste em um mecanismo estratégico, não acidental, de controle das fronteiras sociais e legais da ordem e da identidade do sujeito de direito123 123 BEAUDRY, Jonas-Sébastien. Welcoming Monsters: Disability as a Liminal Legal Concept. Yale JL & Human., v. 29, p. 291, 2017, p. 309. .

2.2…”discover they are actually foolish ([tragi]-comic)”…: o monstro jurídico

The monster wanders in the dream and in the imaginary of folly: he is a nightmare for those who are “beautiful and good”: it can exist only as catastrophic destiny that must be atoned, or as divine event.124 124 CASARINO, Cesare. NEGRI, Antonio. In Praise of the Common: A Conversation on Philosophy and Politics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008. --- (CASARINO; NEGRI, 2008)

Uma das estratégias de Foucault para questionar a objetividade da psiquiatria jurídica consiste na leitura, em suas aulas, de relatórios de exame psiquiátrico em matéria penal125 125 Cf. FOUCAULT, Michel. op. cit., 2002. Cf. também FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: um caso de parricídio do século XIX. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003. . Com esse artifício, buscava expor os discursos parapatológicos-morais que, apesar de desqualificados, são estatutários e funcionam tanto melhor quanto mais fracos forem epistemologicamente126 126 FOUCAULT, Michel. op. cit., 2002, p. 42. . São eles os “discursos que podem matar, discursos de verdade e discursos (...) que fazem rir”127 127 Id., p. 8. , as paródias às quais o Ocidente “conferiu um poder incontrolado, em seu aparelho de justiça”128 128 Id. p. 18. . São esses os discursos que criam os monstros jurídicos – em particular, o monstro humano, cujo contexto de referência é a lei. Nesse sentido, a noção de monstro humano, em Foucault, é essencialmente jurídica, dado que, o que define o monstro é o fato de que ele “constitui, em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violação das leis da sociedade, mas uma violação das leis da natureza. Ele é, num registro duplo, infração às leis em sua existência mesma”129 129 Id. p. 69. . O monstro jurídico moderno desfaz o misticismo em torno do desviante como objeto de ojeriza, trazendo-a para análise de uma visão organizadora do mundo – portanto, a deficiência como categoria nasce também de uma tentativa de racionalização. Daí se convolar em objeto de pesquisa, como um ponto fixo de matriz orgânica, a ser analisado e observado de perto, permeado por um interesse específico nos padrões que se ligam ao desvio da regra.

A análise do monstro a partir do discurso da psiquiatria moreliana configura a continuação e a estabilização da crença do ser humano enquanto pertencente à humanidade, devolvendo-se para aquele que contempla a monstruosidade uma imagem estável de si próprio. O monstro por seu resíduo de não-diferença – semelhança, portanto – com o humano, qualifica-se como uma figura limite, de forma que contém não só o que o sujeito tido por normal não é, mas também o que ele pode vir a ser130 130 GIL, José. Metafenomenologia da monstruosidade: o devir-monstro. In: DONALD, James et al (org.) Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 169-170. --- (GIL, 2000) . A deficiência enquanto uma variação da normalidade, no campo afeto à monstruosidade, é uma infração da lei que, contudo, não deflagra uma resposta legal. Dessa ambiguidade, nasce a capacidade de inquietação do monstro jurídico: “ao mesmo tempo que viola a lei, ele a deixa sem voz. Ele arma uma arapuca para a lei que está infringindo”131 131 FOUCAULT, Michel. op. cit., 2002, p. 70. . Monstrificando, por outro lado, a lei compreende: apenas juridificando um discurso psiquiátrico, com aparência de objetividade e cientificidade, a lei entende. Dessa forma, o “monstro é, paradoxalmente – apesar da posição-limite que ocupa, embora seja ao mesmo tempo o impossível e o proibido –, um princípio de inteligibilidade”132 132 Id. p. 71. . Confiamos que, seguindo o segundo passo do trashing-criping, virá dos monstrificados, dos degenerados, dos lumpificados a exposição das estruturas necessitaristas da norma, que precisa cravar no próprio indivíduo sua competência para lê-lo, naturalizando sua compreensão juridificante a partir da psicologia moral e transformando-o – o sujeito lido – integralmente no Outro-monstro, que permanentemente assombra a identidade juridicamente hegemônica133 133 SILVA, Tomaz Tadeu da Silva. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da Silva. HALL, Stuart. WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p. 84. --- (SILVA, 2008) .

Essa compreensão do “monstro” como uma entidade que transgride ou desafia os parâmetros da ordem jurídica é a que anima nosso segundo passo cripping, da descoberta da tragicomicidade. Isso porque a monstruosidade opera onde a lei falha e se fragiliza. Para que falibilize a lei, a monstruosidade deve transgredir a lei-quadro, questionando certa suspensão da lei civil, religiosa ou divina, de maneira que “o direito não consegue funcionar. O direito é obrigado a se interrogar sobre seus fundamentos, ou sobre suas práticas, ou a se calar, ou a renunciar, ou a apelar para outro sistema de referência, ou inventar uma casuística”134 134 FOUCAULT, Michel. op. cit., 2002, p. 80. . Nesse sentido, não é toda a deficiência que será capaz de expor a futilidade do ordenamento – visto que aquelas lidas como meras enfermidades poderão ser lidos e previstos pelo direito. Assim, para Beaudry, a construção teórica de “monstros” e o escancaramento da incompetência legal para lê-los ocorre: a) quando há a definição psicologizante da personalidade moral e jurídica, que avalia o indivíduo em termos de ser um sujeito capaz de responsabilidade, de ter um projeto de vida, de ter uma narrativa de vida ou de ser um agente moral; b) quando se define patologicamente o que conta como ofensas ou ameaças de ofensas a delimitação dessa personalidade jurídica135 135 BEAUDRY, Jonas-Sébastien. op. cit., 2017, p. 310. .

O monstro crip performa uma recusa à interpelação jurídica hegemônica, dissolvendo “qualquer ideia ou projeto de desenvolvimento capitalista e da ordem (antiga e nova) que o organiza”136 136 CASARINO, Cesare. NEGRI, Antonio. op. cit., 2008, p. 203. --- (CASARINO; NEGRI, 2008) . Não há, para ele, redenção no retorno à norma; é ela, em sua incapacidade de interpretá-lo, que o monstrifica. O monstro crip constitui uma “região de indiscernibilidade jurídica”137 137 FOUCAULT, Michel. op. cit., 2002, p. 26. , que a lei demarcará como perigo ou ameaça, produzindo um “discurso cuja organização epistemológica, toda ela comandada pelo medo e pela moralização, não pode deixar de ser ridícula, mesmo em relação à loucura”138 138 Id., p. 44. . O monstro crip é o “monstro de baixo”, antropófago, não é resultado do modelo médico ou do modelo social – ambos normalizadores139 139 Cf. BEAUDRY, Jonas-Sébastien. op. cit., 2017, p. 317 e ss. –; é, outrossim, o monstro da política regenerativa, que recusa legados sem prometer futuros.

2.3…”look for some (external observer’s) order”...: ambiguidade da deficiência metanarrada

Uma generalização sobre o seu fundo pecaria pela base. Choques morais, deficiência de inteligência, educação, instrução, vícios, todas essas causas determinam formas variadas e desencontradas de loucura; e, às vezes, nenhuma delas o é140 140 BARRETO, Lima. Diário do Hospício: o cemitério dos vivos. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1993, p. 148. --- (BARRETO, 1993) .

A busca da ordem a partir da posicionalidade do observador externo é o terceiro passo do cripping lido segundo o trashing. Do ponto de vista da teoria crit, a ordem do observador externo é atributiva, na medida em que é, a partir dela, que se delimitam as fronteiras dos binários deficiência/não-deficiência, dependência/independência, normalidade/anormalidade141 141 SHILDRICK, Margrit. op. cit., 2009. . Dessa forma, um dos alvos da CDS, de acordo com Kafer, seria quebrar as assunções de autoevidência da deficiência, explorando os interstícios em que ela “falha em se manter”142 142 KAFER, Alison. op. cit., 2013, p. 10. . É nessa suspensão da ordem que dicotomiza que um duplo movimento se realiza: em primeiro lugar, há uma ruptura da estabilidade das expectativas normativas; e, em segundo lugar, há um teste da doxa que tradicionalmente direcionou a política da deficiência para a reforma de uma estrutura social externa143 143 Id. p. 6. . É na segunda faceta do movimento que se localiza o passo de busca da ordem, que coloca em suspensão as grandes metanarrativas da deficiência – dentre elas, o modelo social e o modelo médico –, predicando que há nelas, essencialmente, um claro senso de demarcação de definições. Nesse sentido, ainda o conceito dinâmico da Convenção de Direitos das Pessoas com Deficiência – que assume a interação da condição orgânica com as barreiras do meio que geram desigualdades de oportunidades e direitos – exige que haja material e objetivamente algo como o “impedimento”, que não precisa ser lido para se tornar o que é144 144 Cf. TREMAIN, Shelley. op. cit., 2017, p. 115-116. Destaque-se: não se trata de negar a materialidade ou as existências materiais, mas sim de perceber sua materialidade como engendrada a partir de antecedentes culturais – se se trata de uma entidade material categorizada, se trata da materialidade como sentença discursiva. Explicitamente, em Shelley: “the materiality of the body is not the antecedent a priori of the body’s categorization; rather, in this historical context, the materiality of the body is its regulative consequent”. TREMAIN, Shelley. op. cit., 2017, p. 120. Tradução minha: “A materialidade do corpo não é o antecedente a priori da categorização do corpo; antes, neste contexto histórico, a materialidade do corpo é o seu consequente regulador”. --- (TREMAIN, 2017) . Estabelecendo uma divisão entre o impedimento – que comporta a limitação funcional – e a deficiência – que é integral ou parcialmente construída socialmente –, o modelo social finda por não colocar uma série de questões relevantes para os crips, dentre as quais: por que determinadas limitações funcionais são percebidas como suficientemente indesejáveis para convolar-se em impedimento?

Nesse sentido, essa busca da ordem binária da deficiência/não-deficiência é, igualmente, uma busca por encontrar o que foi reprimido a fim de se alcançar a ordem e quais formas de subjetividade corporificada não são toleradas pela ordem alcançada145 145 SHILDRICK, Margrit. op. cit., 2009, p. 12. --- (SHILDRICK, 2009) . Trata-se de um exercício reflexivo, que tenta enxergar (ou descobrir) as categorias organizadoras e classificatórias do mundo, por meio do olhar de um super observador externo. Ele pode “escapar do tecido de conexões do qual emerge”, de forma similar à jurisprudência que “reclama autoridade precisamente acobertando os contextos confusos e incertos que constituem suas condições de possibilidade”146 146 Id. 105-106. . Ele pode, ainda, esquematizar o totemismo das diferentes condições corporais que, menos ou mais estaticamente, serão entendidas como deficiências.

Essa esquematização é sobretudo autorizativa quando jurídico-legal, especialmente quando é ao direito que o modelo social de deficiência recorre na busca por justiça. Essa extensão dos direitos e atribuição de titularidade aos que possuem deficiência é sempre feita em um contexto normativo externamente ordenado, que paradoxalmente também constrói, confirma e reitera a categoria identitária oprimida. Dessa forma, o modelo social busca e acha a ordem externa, buscando no reconhecimento de direitos e na confirmação da opressão normativa uma integração contra-normativa. Por esse motivo, para Shildrick, reclamar a lei como pessoa com deficiência dificilmente é um desafio aos padrões corporais normativo-capacitistas que tacitamente fundamentam a noção humanista liberal de um sujeito jurídico - isto é, aquele que exerce agência independente – servindo, ao contrário, para consolidar inevitavelmente o poder do sistema que constitui e sustenta os binários deficiência/não-deficiência, independência/dependência, capacidade/incapacidade147 147 Id., p. 115-116. .

Ao tentar encontrar a ordem externa, o monstro jurídico crip sempre transgride a lei, tendo sua subjetividade legalmente transgredida. Esse “monstro a chegar”, que vê o crip sobrar na curva do perfeito arco jurídico148 148 Shildrick, partindo de Derrida, lembra: “(...) a imbricação do ‘monstruoso arrivant’ e do direito – aqui entendido como uma justiça que sempre está por vir - evoca um radical transgressividade que finalmente está além do alcance disciplinar dos paradigmas normativos”. Id., 2009, p. 13. --- (Shildrick, 2009) , é um escancaramento da indecidibilidade da ordem para o observador, que percebe não ser possível abstrair-se de sua contingência para tocar, de maneira pura, o fenômeno que investiga. O cripping, em seu terceiro passo, em sua busca frustrada, desnuda a desordem de uma sociedade investida em parecer ordeira, completa e analiticamente coerente.

2.4 …(not the germ of truth)…: tensões crips com a verdade

(...) verdade, mentira, certeza, incerteza o que são?/O cego pára na estrada,/Desliguei as mãos de cima do joelho./Verdade, mentira, certeza, incerteza são as mesmas?/Qualquer coisa mudou numa parte da realidade — os meus joelhos e as minhas mãos./Qual é a ciência que tem conhecimento para isto?/O cego continua o seu caminho e eu não faço mais gestos./Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual./Ser real é isto.149 149 PESSOA, Fernando. Poemas Inconjuntos. In: Poesia Completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 132. --- (PESSOA, 2005)

Assim como o trashing, o cripping – e mecanismos pós-modernos macro-desestrututurantes, como a desconstrução e a desmistificação – é combatido como um instrumento derrogatório da verdade. Uma pista de que a crítica está em relação de oposição à verdade se encontra na definição de Vehmas e Watson, segundo o qual a CDS “visa contestar ‘verdades’ e ideias aceitas de deficiência e de impedimento e, por meio disso, dos próprios estudos sobre deficiência”150 150 VEHMAS, Simo; WATSON, Nick. op. cit., 2014, p. 640. (VEHMAS, WATSON, 2014) . Entendo que o atrito da crítica da deficiência com a verdade se localiza em um triplo predicado: o de que historicizar significa relativizar – i.e., todo historicismo contém pelo menos alguma proposta relativista151 151 TREMAIN, Shelley. This is what a historicist and relativist feminist philosophy of disability looks like. Foucault Studies, p. 7-42, 2015. --- (TREMAIN, 2015) ; o de que há verdades vitais que a crítica não consegue explicar, como a de que todos nós seremos, em algum momento de nossas vidas, pessoas com deficiência152 152 Essa ideia é quantitativamente determinada (por exemplo: de acordo com o relatório produzido pela OMS em 2011, 15% da população terá alguma deficiência, permanente ou transitória, em algum ponto de sua vida - WHO. World report on disability 2011. World Health Organization, 2011) e diversa daquela constante em Garland-Thomson: “Human variation, in other words, is seldom neutral. ‘Abominations of the body’ are in the eye of the well-acculturated beholder. Modern culture’s erasure of mortality and its harbinger, bodily vulnerability, make disabled bodies seem extraordinary rather than ordinary, abnormal instead of mundane - even though in fact the changes in our function and form that we think of as disabilities are the common effects of living and are fundamental to the human condition. What Goffman describes as ‘abominations’ come to most ordinary lives eventually. If we live long enough, we will all become disabled”. GARLAND-THOMSON, Rosemarie. GARLAND-THOMSON, Rosemarie. Staring: How we look. Oxford University Press, 2009, p. 44-46. Tradução minha: “A variação humana, em outras palavras, raramente é neutra. ‘Abominações do corpo’ estão nos olhos do observador bem aculturado. O apagamento da mortalidade pela cultura moderna e seu precursor, a vulnerabilidade corporal, faz os corpos deficientes parecerem extraordinários em vez de comuns, anormais em vez de mundanos - embora, na verdade, as mudanças em nossa função e forma que consideramos deficiências sejam os efeitos comuns da vida e são fundamentais para a condição humana. O que Goffman descreve como ‘abominações’ chega à maioria das vidas comuns eventualmente. Se vivermos o suficiente, todos ficaremos deficientes”. ; e a de que a crítica não endereça fatos socialmente aferíveis quantitativamente, como o da interligação entre deficiência e pobreza153 153 Cf. WHO. op. cit., 2011. .

O primeiro perigo associado à derrogação da verdade – que toma por base a metodologia relativista e historicista – considera que a) o valores e crenças não se desenvolvem de maneira universal; b) referidos valores e crenças são consequências dos eventos e das circunstâncias históricas. A ameaça do crip à estabilidade conceitual da verdade da deficiência moraria na afirmação de que a deficiência possa passar a marcar qualquer corpo, desde que o sujeito dele imbuído acredite-se identitariamente cripficado154 154 De acordo com Sandahl, é possível que o cripping permita que um sujeito imbuído de corpo lido como sem deficiência acredite-se crip – e faz parte da proposta cripping que seja possível: “Though I have never heard a nondisabled person seriously claim to be crip (as heterosexuals have claimed to be queer), I would not be surprised by this practice. The fluidity of both terms makes it likely that their boundaries will dissolve”. SANDAHL, Carrie. op. cit., 2003, p. 27. Tradução minha: “Embora eu nunca tenha ouvido uma pessoa sem deficiência alegar seriamente ser aleijada (como heterossexuais afirmam ser queer), eu não ficaria surpreso com essa prática. A fluidez de ambos os termos torna provável que suas fronteiras se dissolvam”. --- (SANDAHL, 2003) . Dessa maneira, um dos temores dos modelistas sociais tradicionais consiste no fato de que o desafio da própria noção de “pessoa com deficiência” como um verdade identitária poderia prejudicar seu uso político, que até agora se provou relevante na luta por direitos155 155 BEAUDRY, Jonas-Sebastien. op. cit., 2018, p. 297-298. . Não é este o ponto de Tremain quando se diz, contudo, historicista e relativista; sua proposta é a de que a deficiência não é, como o universalismo dos modelos fazem crer, trans-histórica. Além disso, busca ela situar a produção do saber sobre deficiência, tentando desvelar como o estilo diagnóstico se tornou o árbitro da verdade na temática156 156 TREMAIN, Shelley. op. cit. 2015, p. 40-41. --- (TREMAIN, 2015) . Nesse sentido, o ponto da crítica crip é que, mesmo no contexto da luta por direitos, quando liberais (sejam eles teóricos anti-discriminação ou ativistas dos direitos humanos) promovem mudanças institucionais concretas, o fazem por concessões – frequentemente pautadas por interesses convergentes – que não problematizam desigualdades “cuidadosamente escondidas ou naturalizadas em quadros legais” e que se valem de “formas problemáticas de normalização”157 157 BEAUDRY, Jonas-Sebastien. op. cit., 2018, p. 310. .

Os dois pontos remanescentes entendem que o cripping não é satisfatório pragmaticamente – nem como modelo de explicação do fenômeno da deficiência, nem como modelo de atuação na luta de classes. Localiza-se a tensão exposta no primeiro princípio da CDS, que entende a deficiência como um fator “irredutível aos fatos”158 158 MEEKOSHA, Helen; SHUTTLEWORTH, Russell. op. cit., 2009, p. 52. , o que leva os crips a: primeiro, relativizarem o papel do argumento quantitativo no avanço de seus interesses; segundo, desconfiar de resultados empíricos assimilacionistas. Essa tensão recusa, ainda, a utilização da linguagem das necessidades dos arranjos sociais, dado que são as possibilidades e uma inspiração em futuros outros – em promessas de monstros – que animam os crips159 159 Nesse sentido, quando a deficiência é entendida necessariamente como a tragédia de uma opressão, os únicos futuros que podem ser desejados consistem naqueles expurgados de deficiências. Cf. KAFER, Alison. op. cit., 2013. .

A ausência de preocupação com a origem da verdade, contudo, não necessariamente endereça os fatores de tensão entre a crítica e a verdade. Isso porque os crips, como os trashers, não estão necessariamente preocupados com a ontologia da verdade – por isso, não se procure o “germe da verdade” –, mas com os discursos de verdade, que se pretendem canais da realidade. A preocupação é, portanto, para os crips, com os regimes de verdade que são centrais para a governabilidade de corpos de sujeitos interpretados como infratores da normalidade160 160 TREMAIN, Shelley. op. cit., 2017, p. 118. Sobre discursos normativos de verdade, repito Tremain: “Though a truth discourse may seem to innocently describe the phenomena of the human body (its constraints, com-position, vulnerabilities, and so on), it significantly contributes to the constitution of that body, its materiality, bodily constraints, corporeal vulnerabilities, and so on. In other words, the redescription and transformation of bodies are not determined by their putatively “prediscursive” material constraints per se; rather, the extent to which, in what ways, and even whether redescription and transformation of material bodies can take place is always already circumscribed and delimited by the historically contingent conception of the body (and the style of reasoning from which that conception emerged) that effectively brings into being the facts, laws, and norms about its material constraints, restrictions, strengths, and so on in the first place.” Id., p. 120. Tradução minha: “Embora um discurso de verdade possa parecer descrever inocentemente os fenômenos do corpo humano (suas restrições, composição, vulnerabilidades e assim por diante), ele contribui significativamente para a constituição desse corpo, sua materialidade, restrições corporais, vulnerabilidades corporais, e assim por diante. Em outras palavras, a redescrição e transformação dos corpos não são determinadas por suas supostas restrições materiais ‘pré-discursivas’ per se; em vez disso, até que ponto, de que maneiras e até mesmo se a redescrição e transformação dos corpos materiais podem ocorrer é sempre algo já circunscrito e delimitado pela concepção historicamente contingente do corpo (e o estilo de raciocínio do qual essa concepção emergiu) que efetivamente traz à existência fatos, leis e normas sobre suas limitações materiais, restrições, pontos fortes e assim por diante”. --- (TREMAIN, 2017) . Não se preocupar com a verdade, dentro da crítica, não significa dizer que não haja verdades; significa, por outro lado, repetir a dúvida de Pessoa – “Qual a ciência que têm conhecimento para isso?” –, ciente de que o jurista e o médico responderiam, sem titubear e respectivamente: o saber jurídico e o saber médico. São os rituais de convalidação do conhecimento como verdadeiro – e não sua real verdade – que estão em jogo para crips e crits trashers.

2.5 …”in the internally contradictory, incoherent chaos we’ve exposed”…:

Mas deveras estariam eles doido, e foram curados por mim, ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta do perfeito desequilíbrio do cérebro?161 161 ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Biblioteca do Estudante, 1984, p. 245. --- (ASSIS, 1984)

Para crips, o pensamento binário (deficiência/não-deficiência, etc.) que apaga contradições, antagonismos e diferenças, tentando simplificar complexidades e categorizar o mundo, ajuda e estimula a manutenção de um sistema que limita possibilidades de corporificação. O problema desse pensamento identitário é, de acordo com Fritsch, específico da sociedade moderna, sendo desafiado pelos objetos que excedem a imposição de limites conceituais – é assim que os rastros caóticos do objeto excedente ameaçam os sistemas binários de classificação, de maneira que o “sujeito moderno é intolerante com a contradição, a não identidade e a diferença no objeto e se esforça para compreender a complexidade do objeto por meio da familiaridade do pensamento conceitual homogeneizante”162 162 FRITSCH, Kelly. On the negative possibility of suffering: Adorno, feminist philosophy, and the transfigured crip to come. Disability Studies Quarterly, v. 33, n. 4, 2013. --- (FRITSCH, 2013) .

É nessa perspectiva que o conflito, para o crip, antes de alvo a ser eliminado pela busca de convergências e falsas consciências, é esfera de atuação intersubjetiva. Mesmo o uso da palavra “deficiência” – e o léxico a ela associado no direito, como “competência”, “autonomia” e “vida independente” – deve ser colocado em suspensão, dado que também é fruto de uma atenuação de divergências. Por isso, o cripping é o uso do conceito de deficiência “como uma ferramenta crítica na periferia do direito, ou seja, antes de ser operacionalizado em normas exequíveis e inevitavelmente correr o risco de perder o contato com sua raison d’être163 163 BEAUDRY, Jonas-Sebastién. op. cit., 2017, p. 293. .

Se a deficiência é, por outro lado, o que excede a normalização e o que trai o mito do normal, a resposta utópica do sistema classificatório é configurá-la como um alvo de correção categórica, mas não de erradicação164 164 Dessa forma, a resposta não é exatamente a cura, mas a capitalização da(s) cura(s) dos corpos sempre possivelmente deficientes. Ressalto que o movimento anticura, que rejeita a possibilidade de se buscar modificações que signifiquem o fim da deficiência, não deixa de ser ambíguo ao reclamar uma naturalidade do corpo com deficiência – normalização, portanto. De acordo com Bailey, “essa crítica pode parecer contraintuitiva, visto que a política anticura rejeita explicitamente a transcendência oferecida pela cura médica e reformula a deficiência em termos de variação humana, adaptabilidade e modos alternativos de ser. No entanto, desmente o desejo do “ponto de vista de lugar nenhum”, um espaço fora e acima das influências contaminantes da cultura e da medicina dominantes, um espaço onde as pessoas com deficiência são livres para serem suas próprias deficiências naturais”. BAILEY, Courtney W. On the Impossible: Disability Studies, Queer Theory, and the Surviving Crip. Disability Studies Quarterly, v. 39, n. 4, 2019. . É dessa maneira que, de forma ambígua, os discursos de expansão por direitos de pessoas com deficiência acompanham um de aprimoramento humano no contexto do biocapitalismo neoliberal165 165 Cf. FRITSCH, Kelly. Gradations of debility and capacity: biocapitalism and the neoliberalization of disability relations. Canadian Journal of Disability Studies, v. 4, n. 2, p. 12-48, 2015. . Nele, a vida e todos os seus aspectos se torna o centro do cálculo político, havendo uma coprodução das ciências da vida e da financeirização das subjetividades. Por essa via, há uma ambígua e contraditória conciliação entre políticas de tolerância às identidades e práticas materiais-discursivas de incremento biotecnológico das capacidades padronizadas – especialmente intelectuais e estéticas166 166 Nesse sentido, no embate entre o modelo médico e o modelo social, Fritsch expõe que, enquanto os movimentos afirmadores da identidade positiva pedem por “rampas, não curas”, falham em perceber que o biocapitalismo neoliberal mobiliza tanto rampas quanto curas, também exortando afetivamente as pessoas com deficiência a participarem do biocapitalismo de maneiras frequentemente contraditórias e ambivalentes. Id., p. 26. . A resposta para um futuro sem deficiência não é, portanto, eliminá-la identitariamente, mas comodificá-la na medida em que o corpo marcado pode ou não ser corpo consumidor167 167 Cf. Rajan, quando diz: “(...) todo indivíduo, por causa de seu perfil de risco genômico, é um alvo potencial para intervenção terapêutica. Nesse cálculo, todo indivíduo é um paciente em espera e, simultaneamente, um consumidor em espera”. RAJAN, Kaushik Sunder. Biocapital: The constitution of postgenomic life. Duke University Press, 2006, p. 281. ou produtor168 168 Sobre a inclusão laboral, Fritsch denuncia os discursos paradoxais embutidos em afirmações como: “a inclusão é lucrativa”. Copio: “Corpos deficientes que são lucrativos, que podem ser comercializados, podem ser aprimorados ou incorporados à força de trabalho são corpos debilitados que o neoliberalismo considera dignos. Esses corpos com deficiência física são incluídos porque podem se tornar produtivos sob o neoliberalismo de maneiras específicas e, como tal, são recompensados ​​e alardeados como evidência de uma sociedade inclusiva.”. FRITSCH, Kelly. op. cit., 2015, p. 29. .

Assim, o cripping leva a perceber que binário deficiência/não-deficiência se sustenta por um interesse não necessariamente médico ou jurídico, mas fundamentalmente político-financeiro. A aparência de linearidade e pacificidade do binário, que o sistema médico-jurídico garante por meio de seus discursos de verdade, fixa opostos que não se sustentam nem mesmo ao longo de uma vida vivida por um sujeito cujas capacidades são permanentemente financeirizadas. Mesmo em se admitindo a objetividade das estruturas que endossam o binário, é preciso reconhecer que ninguém será completamente sem deficiência ao longo de uma vida169 169 Em McRuer, o fantasma da deficiência sempre espreita em virtude do capacitismo corporal compulsório, combatido pela deficiência como posicionalidade crítica. MCRUER, Robert. op. cit., 2006, p. 30-31. --- (MCRUER, 2006) . Uma das formas de colocar o caos identificado está na contradição: apesar de a deficiência, enquanto identidade, ser mantida, preservada e reforçada pela expansão de direitos de solidariedade, a não-deficiência é mantida, preservada e reforçada pela expansão de direitos bioéticos. Nesse sentido, adverte Puar: não podemos ver essa produção binária como específica apenas para a distinção entre sujeitos com deficiência e sem deficiência; todos os corpos estão sendo avaliados em relação ao seu sucesso ou fracasso em termos de saúde, riqueza, produtividade progressiva, mobilidade ascendente, aumento de capacidade170 170 PUAR, Jasbir K. Coda: The cost of getting better: Suicide, sensation, switchpoints. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, v. 18, n. 1, p. 149-158, 2012, p. 155. --- (PUAR, 2012) .

Tendo em vista essa contradição, Sothern nos lembra que o corpo com deficiência pode ser interpretado como o espaço paradoxical que é tanto a matéria-prima quanto o produto da visão utópica de sociedade que nega as figuras a partir do qual é produzido. Assim, este corpo pode ser pensado como espaço de elaboração intersubjetiva acerca das contradições do neoliberalismo – visto que é, concomitantemente, privilegiado como um lócus de inclusão no qual está embutida uma promessa de exclusão171 171 SOTHERN, Matthew. You could truly be yourself if you just weren't you: Sexuality, disabled body space, and the (neo) liberal politics of self-help. Environment and Planning D: Society and Space, v. 25, n. 1, p. 144-159, 2007, p. 146. . É a exposição dessas contradições o alvo do último passo cripping – lido paralelamente ao trashing –, cuja busca de deslegitimação é, como lembra Freeman abordando seu ato-irmão, pautada por uma “exposição (...) das possibilidades de modelagem de um futuro que pode, pelo menos parcialmente, realizar uma noção substantiva de justiça, em vez das noções abstratas, corretas, tradicionais e burguesas de justiça que geram tantos estudos contraditórios”172 172 FREEMAN, Alan. op. cit., 1981, p. 1231. . É esse crip transfigurado que rasga o tecido cobrindo possibilidades de futuros, que assombra as promessas de futuros sem deficiências e que dá a tonalidade de futuridade-anti-futurista dos estudos crips173 173 Sobre o tom de futuridade, cf. KAFER, Alison. op. cit., 2013. --- (KAFER, 2013) . Portanto, enquanto a deficiência é convencionalmente posicionada como a antítese do progresso do desenvolvimento, a teoria crip aponta para um modo diferente de futuridade174 174 SHILDRICK, Margrit. Neoliberalism and embodied precarity: Some crip responses. South Atlantic Quarterly, v. 118, n. 3, p. 595-613, 2019. --- (SHILDRICK, 2019) , para uma ruptura das estruturas necessitaristas de eterno aprimoramento das capacidades.

Conclusão

Acredito que é imperativo reunir, nutrir e fertilizar esforços acadêmicos adequados ao propósito quando se trata da necessidade urgente de reconhecer, rastrear, examinar criticamente e transformar as relações entre lei, deficiência, anormalidade e normalidade. Com essa fé, sugiro que os motivos para cruzar a definição de trashing e cripping não são poucos, mas, em sendo três, são os seguintes ataques: o de elitismo; o de dificuldade da linguagem; e o de ausência de prospectividade. Ambos sofrem, ainda, acusações de renúncia do mundo real e de excessiva destruição de estruturas tradicionalmente relevantes para a sobrevivência de minorias. Assim como não é possível ter certeza da potencialidade do trashing e do cripping para renunciar ou destruir algo – qualquer coisa –, também não podemos saber com precisão se o Jabberwocky de Carroll nos diz o que parece dizer. Intuímos, contudo – do poema e do trashing/cripping –, uma morte. Se esse extermínio é capaz de conviver com o monstro que tenta matar, pedindo dele uma concessão institucional, essa não é, nesse ponto, tarefa nossa.

Cada uma das críticas destinadas ao trashing e ao cripping, bem como seu encontro na crítica geral à desconstrução, mereceriam, por si sós, investigações próprias. Meu objetivo esteve, contudo, fincado em um primeiro passo no âmbito de um diálogo ainda não traçado. Seguindo a pista de Kelman, contudo, sumarizo a proposta, traindo o “leitor imaginativo” que poderia tê-la intuito sozinho: busquei, aqui, fundar o cripping e o trashing a partir da mesma estratégia descontrutiva. Sua relevância se norteou pela tentativa de exorcismo do termo “desconstrução” – atualmente maculada por sua suposta falta de concretude a posteriori. Levo em consideração o problema de que, assim os como os estudos jurídicos críticos, valendo-se da polivalência da interdisciplinaridade, se recusam a aceitar qualquer verdade pacífica sobre o que a lei “é”, os estudos críticos de deficiência igualmente negam o engessamento do que a deficiência “é” ou “deixa de ser”. Por outro lado, assim como Goodley nos diz que “os estudos críticos sobre a deficiência começam com a deficiência, mas nunca terminam com ela, [porque] a deficiência é o espaço a partir do qual se pode pensar em uma série de questões políticas, teóricas e práticas que são relevantes para todos”175 175 GOODLEY, Dan. Disability Studies: An Interdisciplinary Introduction. Sage Publication, 2011. --- (GOODLEY, 2011) , também é possível dizer que a CLS parte da lei posta, parte dos conceitos jurídicos, mas nunca termina com eles.

Tal é a crítica jurídica/da deficiência do entre, que dissocia as coisas e as palavras e refaz – permanentemente – o caminho de sua união, para entender que amálgama de força-poder as convolou unas. Cabe ao crit e ao crip se fixar no interstício entre os cálculos condicionantes da norma e da normalidade e sua(s) performance(s) encenada(s), para aí, então, alojar seu olhar autoenganado, combatendo, assim, a ausência de intriga. Manter-se jurista, embora firmemente cético do legalismo: esta é a missão dos estudiosos juristas críticos. Manter-se estudioso da deficiência, embora firmemente cético do binário deficiência/não-deficiência: esta é a missão dos estudiosos críticos da deficiência. Em oração, repetimos e parafraseamos Derrida: “que o direito/a deficiência seja desconstruível, não é uma infelicidade. Pode-se mesmo encontrar nisso a chance política de todo progresso histórico”176 176 DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 26. --- (DERRIDA, 2018) .

  • 1
    CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice: Alice no país das maravilhas; através do espelho e o que Alice encontrou lá. Tradução de Augusto de Campos (poemas). São Paulo: Summus, 1980. --- (CARROLL, 1980CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice: Alice no país das maravilhas; através do espelho e o que Alice encontrou lá. Tradução de Augusto de Campos (poemas). São Paulo: Summus, 1980.)
  • 3
    As dificuldades de tradução e a originalidade de canalização da “alma” do poema em suas respectivas versões estrangeiras são testemunhas da não-neutralidade da estrutura original. Nesse sentido, ainda quando o esforço tradutor é de fidelidade, há sempre uma traição. Cf. ARGENTA, Marinice; MAGGIO, Sandra Sirangelo. O enigma de “Jabberwocky” na tradução de Augusto de Campos para o português brasileiro. Letrônica. Porto Alegre, RS. Vol. 12, n. 1 (jan./mar. 2019), e32027, 2019.
  • 4
    A relação signo-significado, enquanto corporificada do substrato que a emula, pode tomar duas formas. A primeira analisa a formatação da estrutura dos signos, a qual torna seus signos significativos – a partir dela, se desenrolam as teorias estruturalistas. Por outra via, a redescoberta de Nietzsche no seio do estruturalismo faz surgir o questionamento do modo como as formatações dos signos vieram a adquirir aparência de “estrutura”. Daí decorre a suspensão, à nível semântico, da possibilidade de linguagens naturais e a confissão de parcialidade da compreensão por Alice. Cf. cap. III de PETERS, Michael. Pós-estruturalismo e Filosofia da Diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. --- (PETERS, 2001PETERS, Michael. Pós-estruturalismo e Filosofia da Diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.)
  • 5
    Aqui, podemos apenas fazer uma caricatura do que vem a ser um grupo de crits. Colocado de outra forma, a CLS e seus praticantes dificilmente podem ser delimitados por uma suposta uniformidade de ideias. A melhor definição do “movimento” continua sendo a vaga descrição de Kennedy: “(...) critical legal studies has two aspects. It's a scholarly literature and it has also been a network of people who were thinking of themselves as activists in law school politics. Initially, the scholarly literature was produced by the same people who were doing the law school activism. Critical legal studies is not a theory. It's basically this literature produced by this network of people”. CLARK, Gerard J. A conversation with Duncan Kennedy. The Advocate, v. 56, 1994. (Tradução minha: “(...) a abordagem estudos jurídicos críticos tem duas vertentes. É uma literatura acadêmica e também uma rede de pessoas que se consideravam ativistas na política das faculdades de direito. Inicialmente, a literatura acadêmica foi produzida pelas mesmas pessoas que estavam fazendo o ativismo nas faculdades de direito. A abordagem dos estudos jurídicos críticos não é uma teoria. É, basicamente, a literatura produzida por essa rede de ativistas”). De todas as maneiras, a recorrência entre os crits da alegação de que a CLS não é uma teoria pode ser um sintoma de medo da perda dogmática que poderiam sofrer caso se tornassem “escola”. Fato é que toda definição nominalista de linhas de pensamentos – que frequentemente não surgem de uma confabulação intencional – tende a caricaturar seus defensores. Não poderia ser diferente com os crits. Este é o motivo pelo qual ainda não estou certa se a insistência em dizer-se “movimento” ou “estudos” (e não “escola” ou “teoria”) é ou não mais performática que substantiva. Afinal, não são sempre as escolas de pensamento contra hegemônicas “noivados perturbadores em circunstâncias particulares”? UNGER, Roberto Mangabeira. The Critical Legal Studies Movement: Another Time, A Greather Task. Londres: Verso, 2015, e-book. --- (CLARK, 1994CLARK, Gerard J. A conversation with Duncan Kennedy. The Advocate, v. 56, 1994.)
  • 6
    WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. São Paulo: Saraiva, 2002. --- (WOLKMER, 2002WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao Pensamento Jurídico Crítico. São Paulo: Saraiva, 2002.)
  • 7
    GABEL, Peter; KENNEDY, Duncan. Roll Over Beethoven. Stan. L. Rev., v. 36, p. 1, 1984. --- (GABEL, KENNEDY, 1984GABEL, Peter; KENNEDY, Duncan. Roll Over Beethoven. Stan. L. Rev., v. 36, p. 1, 1984.)
  • 8
    SHELLEY, Tremain. Foucault and the Government of Disability. The University of Michingan Press, 2005. --- (TREMAIN, 2005TREMAIN, Shelley. Foucault and the Government of Disability. The University of Michingan Press, 2005.)
  • 9
    MEEKOSHA, Helen; SHUTTLEWORTH, Russell. What's so ‘critical’ about critical disability studies?. Australian Journal of Human Rights, v. 15, n. 1, p. 47-75, 2009. Cf. também o nosso ALMEIDA, Philippe Oliveira de; ARAÚJO, Luana Adriano. DisCrit: os limites da interseccionalidade para pensar sobre a pessoa negra com deficiência. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 2, 2020. --- (MEEKOSHA, SHUTTLEWORTH, 2009MEEKOSHA, Helen; SHUTTLEWORTH, Russell. What's so ‘critical’about critical disability studies?. Australian Journal of Human Rights, v. 15, n. 1, p. 47-75, 2009.; ALMEIDA, ARAÚJO, 2020ALMEIDA, Philippe Oliveira de; ARAÚJO, Luana Adriano. DisCrit: os limites da interseccionalidade para pensar sobre a pessoa negra com deficiência. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 10, n. 2, 2020.)
  • 10
    SCHALK, Sami. Critical disability studies as methodology. Lateral, v. 6, n. 1, p. 6-1, 2017. --- (SCHALK, 2017SCHALK, Sami. Critical disability studies as methodology. Lateral, v. 6, n. 1, p. 6-1, 2017.)
  • 11
    BAGLIERI, Andrea. Toward Unity in School Reform. In: CONNOR, David J.; FERRI, Beth A.; ANNAMMA, Subini A. (Eds.) DisCrit. Columbia University Press, 2016. --- (BAGLIERI, 2016BAGLIERI, Andrea. Toward Unity in School Reform. In: CONNOR, David J.; FERRI, Beth A.; ANNAMMA, Subini A. (Eds.) DisCrit. Columbia University Press, 2016.)
  • 12
    VEHMAS, Simo; WATSON, Nick. Moral wrongs, disadvantages, and disability: a critique of critical disability studies. Disability & Society, v. 29, n. 4, p. 638-650, 2014, p. 639.13 Nesse ponto, ressalvo que a proposta do artigo pode ser questionada preliminarmente pela denúncia de que definir o trashing e o cripping significa inscrevê-los em uma ordem racionalista. Rejeito parcialmente essa possibilidade tentando reinscrever minha subjetividade na conceituação – o que é feito a partir de notas como essa. Rejeito, por outro lado, integralmente essa possibilidade a partir da reinscrição dos termos na indesconstrutibilidade da justiça Derridiana. --- (VEHMAS, WATSON, 2014VEHMAS, Simo; WATSON, Nick. Moral wrongs, disadvantages, and disability: a critique of critical disability studies. Disability & Society, v. 29, n. 4, p. 638-650, 2014.)
  • 14
    No restante do trabalho, mantenho os termos “trashing” e “cripping”, sem traduzi-los ou grafá-los com itálico.
  • 15
    Inspiração livre na descrição metodológica de Franzoni. FRANZONI, Julia Ávila. Geografia jurídica tropicalista: a crítica do materialismo jurídico-espacial / Tropicalist legal geography: the critique of legal-spatial materialism. Revista Direito e Práxis, [S.l.], v. 10, n. 4, p. 2923-2967, dez. 2019. --- (FRANZONI, 2019FRANZONI, Julia Ávila. Geografia jurídica tropicalista: a crítica do materialismo jurídico-espacial / Tropicalist legal geography: the critique of legal-spatial materialism. Revista Direito e Práxis, v. 10, n. 4, p. 2923-2967, dez. 2019.)
  • 16
    KELMAN, Mark G. Trashing. Stan. L. Rev., v. 36, p. 293, 1984.
  • 17
    ALMEIDA, Philippe Oliveira de. O neoliberalismo e a crise dos Critical Legal Studies. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 2229-2250, Oct. 2018. --- (ALMEIDA, 2018ALMEIDA, Philippe Oliveira de. O neoliberalismo e a crise dos Critical Legal Studies. Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, v. 9, n. 4, p. 2229-2250, Oct. 2018.)
  • 18
    KELMAN, Mark. Interpretive construction in the substantive criminal law. Stanford Law Review, p. 591-673, 1981. --- (KELMAN, 1981KELMAN, Mark. Interpretive construction in the substantive criminal law. Stanford Law Review, p. 591-673, 1981.)
  • 19
    FISH, Stanley. Doing what comes naturally: Change, rhetoric, and the practice of theory in literary & legal studies. Duke University Press, 1989. --- (FISH, 1989FISH, Stanley. Doing what comes naturally: Change, rhetoric, and the practice of theory in literary & legal studies. Duke University Press, 1989.)
  • 20
    KELMAN, Mark. op. cit., 1981, p. 592.
  • 21
    FREEMAN, Alan D. Truth and mystification in legal scholarship. Yale Lj, v. 90, 1980, p. 1230. --- (FREEMAN, 1980FREEMAN, Alan D. Truth and mystification in legal scholarship. Yale Lj, v. 90, p. 1229, 1980.)
  • 22
    ALMEIDA, Philippe de. op. cit., 2018, p. 2238.
  • 23
    Unger fala não somente de um medo de que as críticas do objetivismo e do formalismo “não deixem nada de pé” (UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 2015), mas também de medo de humanizar-se a criação do direito, percebendo-o como autorado por um “nós” situado.
  • 24
    O programa negativo da CLS busca demonstrar que os atuais arranjos institucionais e de distribuição de poder não são necessários, nem naturais e desafiar “euromitos” (DELGADO, Richard. The ethereal scholar: Does critical legal studies have what minorities want. Harv. CR-CLL Rev., v. 22, 1987). --- (DELGADO, 1987DELGADO, Richard. The ethereal scholar: Does critical legal studies have what minorities want. Harv. CR-CLL Rev., v. 22, p. 301, 1987.)
  • 25
    Cf. CRENSHAW, Kimberlé Williams. Race, reform, and retrenchment: Transformation and legitimation in antidiscrimination law. Harvard Law Review, p. 1331-1387, 1988. p. 1366-1369. Os trashers também foram acusados de não ter nada a dizer sobre justiça – questão também colocada por Derrida em relação à desconstrução. Ele salva, contudo, a justiça da desconstrução ao reservar “uma possibilidade de uma justiça que não apenas exceda ou contradiga o direito, mas que talvez não tenha relação com o direito, ou mantenha com ele uma relação tão estranha que pode tanto exigir o direito quanto excluí-lo”. A desconstrução crit trasher ocorre, assim, no “intervalo entre a indesconstrutibilidade da justiça e a desconstrutibilidade do direito”, e sua possível versão utópica está nos momentos aporéticos de tomada da regra para a decisão entre o justo e o injusto. DERRIDA, Jacques. Força da Lei. Trad. de Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018, p. 8, 27, 30. --- (CRENSHAW, 1988CRENSHAW, Kimberlé Williams. Race, reform, and retrenchment: Transformation and legitimation in antidiscrimination law. Harvard Law Review, p. 1331-1387, 1988.)
  • 26
    Explorando diferentes formas de trashing (“trashing as a process of theoretical analysis [and] (…) as a real-world renunciation of the current legal machinery”), cf. HARDWICK, John. The schism between minorities and the critical legal studies movement. BC Third World LJ, v. 11, p. 137, 1991, p. 159.
  • 27
    HARRISON, Jeffrey L.; MASHBURN, Amy R. Jean-Luc Godard and critical legal studies (Because we need the eggs). Michigan Law Review, v. 87, n. 7, p. 1924-1944, 1989.
  • 28
    Não são poucas as críticas sobre o elitismo do trashing – aqui consideradas apenas parcialmente quando se trata dos desideratos reformistas. De acordo com Hardwick: “(…) the Minority Scholars argue that the trashing of rights discourse is plausible for CLS scholars because they reside in privileged positions in our society. These are positions from which theoretically disposing of rights and creating an informal community premised upon good will and sharing carries no threat of harm. Implicit in this criticism is the suspicion that CLS simply does not take itself or its proposed agenda seriously. What is missing, Minority Scholars argue, is a measure of reality” (HARDWICK, John. op. cit. 1991. p. 155). (Tradução minha: “: “(…) os acadêmicos pertencentes a minorias argumentam que o discurso de destruição dos direitos é plausível para os estudiosos da CLS porque eles residem em posições privilegiadas em nossa sociedade. Essas são posições a partir das quais, teoricamente, dispor de direitos e criar uma comunidade informal com base na boa vontade e no compartilhamento não acarreta ameaça de dano. Implícita nessa crítica está a suspeita de que a CLS simplesmente não leva a sério a si mesma ou sua agenda proposta. O que está faltando, argumentam os estudiosos da minoria, é uma medida da realidade”). Para uma resposta dos trashers ao elitismo, cf. FREEMAN, Alan. Racism, rights and the quest for equality of opportunity: a critical legal essay. Harv. CR-CLL Rev., v. 23, p. 295, 1988. Hardwick coloca ainda a crítica do “enquanto isso”; é dizer, ainda que o trashing e a desconstrução sejam efetivos o suficiente para gerar novas consciências, como satisfazer interesses sobrevivenciais de curto prazo de minorias que têm de se valer das estruturas jurídicas para chegar ao mínimo? Id. p. 161. Cf. ainda DELGADO, 1987, p. 307.
  • 29
    Essa ideia é parcialmente proposta, ainda que em nota de rodapé, por DALTON, Harlon L. The clouded prism. Harv. CR-CLL Rev., v. 22, 1987, p. 436. Ainda está por se escrever uma investigação profunda que entenda o trashing como programa negativo da CLS, considerando-o como contraparte da vertente positiva.
  • 30
    KELMAN, Mark. op.cit., 1984, p. 293. Tradução minha: “Leve muito à sério os argumentos específicos, segundo seus próprios termos; descubra que eles são realmente tolos ([tragi]-cómicos); e então procure por alguma ordem (de observador externo) (não o germe da verdade) no caos internamente contraditório e incoerente que nós expusemos”.
  • 31
    Não são poucos os estranhamentos causados pela leitura do comando “kelmaniano”. Uso excessivo do itálico e a dupla supressão do pronome “that” (aquilo) são dois fatores que indicam uma mensagem de propósito na implícita traição ao que se convencionou como norma culta; assim, expõe-se, desde já, a informalização como ferramenta de combate.
  • 32
    HARRISON, Jeffrey L.; MASHBURN, Amy R., op. cit., 1989, p. 1937.
  • 33
    MBEMBE, Achille. Crítica a Razão Negra. Trad. de Marta Lança. 2. ed. Lisboa: Antígona, 2013, p. 28. --- (MBEMBE, 2013MBEMBE, Achille. Crítica a Razão Negra. Trad. de Marta Lança. 2. ed. Lisboa: Antígona, 2013.)
  • 34
    MUNGER, Frank; SERON, Carroll. Critical legal studies versus critical legal theory: A comment on method. Law & Policy, v. 6, n. 3, p. 257-297, 1984. --- (MUNGER, SERON, 1984MUNGER, Frank; SERON, Carroll. Critical legal studies versus critical legal theory: A comment on method. Law & Policy, v. 6, n. 3, p. 257-297, 1984.)
  • 35
    HARWICK, John. op. cit., 1991, p. 144.
  • 36
    De fato, a linguagem do “mito” povoa não apenas a crítica trasher. Entendemos que a mitificação dos trashers assemelha-se à mitificação de Barthes, na segunda parte de Mitologias. Ao questionar o que é hoje o mito, o autor entende que sua maior função é a de naturalizar crenças e conceitos a partir da abolição das complexidades. A mitificação permite recapturar as intenções comunicativas de conceitos jurídicos, como a objetividade e o formalismo. Entendê-los como mitos envolve tanto nomeá-los (retirando-os de sua ex-nominação) quanto repolitizá-los em seu contexto de produção. BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. de Rita Buongermino; Pedro de Souza. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. --- (BARTHES, 2001BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. de Rita Buongermino; Pedro de Souza. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.)
  • 37
    Essa devolução ao zero, seguindo Derrida, não é nem fundamentalista nem anti-fundamentalista, ocorrendo mesmo de ela findar por direcionar-se a questões de autoridade, que são sobrepostas – e não subjacentes – a questões de origem, “pois existe uma autoridade (...) a respeito da qual podemos nos perguntar de onde ela tira uma força tão grande em nossa tradição.” DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 12. Por isso, o tomar seriamente os argumentos é ato que desemboca na busca por seu momento prévio, sua gênese mística, na qual os argumentos jurídicos não são justos nem injustos – sendo justamente isso o que abre a possibilidade de sua desconstrução.
  • 38
    HARRISON, Jeffrey; MASHBURN, Amy. op. cit., 1989, p. 1927. --- (HARRISON, MASHBURN, 1989HARRISON, Jeffrey L.; MASHBURN, Amy R. Jean-Luc Godard and critical legal studies (Because we need the eggs). Michigan Law Review, v. 87, n. 7, p. 1924-1944, 1989.)
  • 39
    Nesse ponto, Cf. Matsuda: “This descriptive work of critical legal scholars is liberating. To those who believe that law is a cage within which radical social transformation is impossible, the critical legal scholar can respond with the sophisticated confidence born of a significant body of scholarship. This is why we read Duncan Kennedy as well as Frederick Douglass. CLS is a legitimation process for outsiders”. MATSUDA, Mari J. Looking to the bottom: Critical legal studies and reparations. HaRv. cR-cll Rev., v. 22, p. 323, 1987, p. 329. Tradução minha: “Este trabalho descritivo de estudiosos jurídicos críticos é libertador. Para aqueles que acreditam que o direito é uma gaiola dentro da qual a transformação social radical é impossível, o estudioso jurídico crítico pode responder com a confiança sofisticada nascida de um corpo acadêmico significativo. É por isso que lemos Duncan Kennedy, bem como Frederick Douglass. CLS é um processo de legitimação para outsiders”. --- (MATSUDA, 1987MATSUDA, Mari J. Looking to the bottom: Critical legal studies and reparations. HaRv. cR-cll Rev., v. 22, p. 323, 1987.)
  • 40
    WILLIAMS JR, Robert A. Taking Rights Aggressively: The Perils and Promise of Critical Legal Theory for Peoples of Color. Law & Ineq., v. 5, p. 103, 1987. --- (WILLIAMS JR, 1987WILLIAMS JR, Robert A. Taking Rights Aggressively: The Perils and Promise of Critical Legal Theory for Peoples of Color. Law & Ineq., v. 5, p. 103, 1987.)
  • 41
    UNGER, Roberto Mangabeira. Law in Modern Society: Toward a Criticism of Social Theory. New York: Free Press, 1977, p. 78. --- (UNGER, 1977UNGER, Roberto Mangabeira. Law in Modern Society: Toward a Criticism of Social Theory. New York: Free Press, 1977)
  • 42
    DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 24.
  • 43
    Id. p. 25.
  • 44
    Id. p. 27.
  • 45
    Id. p. 25.
  • 47
    BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi. Brasília: Editora da UnB; São Paulo: Hucitec, 1987, p. 43. --- (BAKHTIN, 1987BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi. Brasília: Editora da UnB; São Paulo: Hucitec, 1987.)
  • 48
    KELMAN, Mark. op. cit. 1985, p. 305.
  • 49
    Id., 320.
  • 50
    Foucault retoma o tema do riso na produção do conhecimento ao comentar o parágrafo 333 de Gaia Ciência. Nele, Nietzsche contesta que seja preciso reduzir paixões para poder conhecer: “compreender não é nada mais que um certo jogo, ou melhor, o resultado de um certo jogo, de uma certa composição ou compensação entre ridere, rir, lugere, deplorar, e detestari, detestar”. FOUCAULT, Michel. A verdade as formas jurídicas. 4. ed., Rio de janeiro: Nau Editora, 2013, p. 29. Acredito que seria possível levantar a hipótese de que a renúncia ascética ao encontro com o tragicômico compõe o imaginário do formalismo jurídico (segundo mito de ataque dos crits). No segundo passo trasher, o tragicômico retoma a “maldade radical do conhecimento”. Ironias, piadas, esquetes (e as versões correntes desses dispositivos): o que Kelman recomenda como crítica “não-intelectual” é, em verdade, a própria radicalização da inteligência trasher. --- (FOUCAULT, 2013FOUCAULT, Michel. A verdade as formas jurídicas. 4. ed., Rio de janeiro: Nau Editora, 2013.)
  • 51
    FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 8. --- (FOUCAULT, 2003FOUCAULT, Michel. Os Anormais. São Paulo: Martins Fontes, 2003.)
  • 52
    Id., p. 15.
  • 53
    Id., p. 17.
  • 54
    Essa é a definição de Bodin, para quem “se o indivíduo for dotado desta capacidade, dela decorrem a autodeterminação e a imputabilidade (isto é, a responsabilidade)” BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2018, p. 192). --- (BODIN DE MORAES, 2018BODIN DE MORAES, Maria Celina. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2018.)
  • 55
    Em seu art. 5º, previa os “os loucos de todo o gênero” como “absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil”.
  • 56
    Nesse ponto, falo em “abertura a qualquer interpretação”, porque é esse o intuito do passo de descoberta da tragicomicidade dos argumentos. Contudo, não é toda e qualquer interpretação que se fixará, pois o trashing tem por norte fixar na malha social das relações de poder o sentido atribuído ao conceito de “capacidade”. Oportunamente, sublinho que Freeman (op. cit., 1981, p. 1235), ao criticar a estrutura das leis antidiscriminação, expõe como elas serviram para sustentar uma “ilusão de mudança” – da mesma forma que o CC/2002, com o “discernimento” pareceu fazê-lo. Nesse sentido, leis antidiscriminação apresentam a prática de discriminação racial como ocorrendo em um reino virtualmente a-histórico onde indivíduos atomísticos ‘intencionalmente’ ‘causam’ danos a outros indivíduos, em suma, reduzindo o problema a um delito – a atuação do direito é, portanto, a de impor a reparação pelo dano causado, não a de tentar imbuir a prática discriminatória em um contexto social de racialização opressiva. Não nos assombra que Freeman diga, logo em sequência, que a mesma lógica se encontra nos conceitos de igualdade de oportunidades, promoção de acordo com o mérito, critérios objetivos de capacidade e a santidade dos direitos adquiridos.
  • 57
    Cf. ŽIŽEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. Boitempo Editorial, 2015. --- (ŽIŽEK, 2015ŽIŽEK, Slavoj. Primeiro como tragédia, depois como farsa. Boitempo Editorial, 2015.)
  • 58
    O sistema de capacidades civis reformado não trata do discernimento, mantendo a incapacidade absoluta apenas dos menores de 16 anos (art. 3º do CC/2002) e a incapacidade relativa dos maiores de dezesseis e menores de dezoito; dos ébrios habituais e viciados em tóxico; e daqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade. Apesar de parecer uma reforma positiva e progressista, alinhada com o art. 12 da Convenção de Direitos das Pessoas com Deficiência, um crit mantém sua desconfiança em relação à possibilidade de esta ser uma conquista radical e revolucionária para pessoas anormalizadas, considerando que a) as avaliações psiquiátricas continuam, em sua ambiguidade, sendo as maiores balizas da aferição judicial de capacidade; b) os auspícios de interdisciplinarização da perícia por meio da avaliação biopsicossocial continua um sonho distante e, mesmo quando realizado, carente de padronização; c) há previsões legais aparentemente – e apenas aparentemente – antinômicas que mantêm a referência à incapacidade absoluta como aval para práticas de intervenção corporal (e.g. art. 10, parágrafo 6º, da Lei de Planejamento Familiar, que autoriza a esterilização involuntária). De forma ainda mais radical, um crit trasher questiona se sequer é possível avaliar, de maneira objetiva, a capacidade de ação de um sujeito a partir de sistemas civis essencialmente patrimonialistas.
  • 59
    STEVENS, Wallace. The idea of order at Key West. The Collected Poems of Wallace Stevens. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1988, p. 128-130. --- (STEVENS, 1988STEVENS, Wallace. The idea of order at Key West. The Collected Poems of Wallace Stevens. Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1988.)
  • 60
    Bordo descreve o ponto de vista de lugar nenhum (View from Nowhere) como o lugar autorizativo que valida uma compreensão universal, objetiva e racional do mundo, que plana sobre o mundo e não se conspurca materialmente, sempre desligada de uma geografia corpóreo-cultural. Cf. BORDO, Susan. Unbearable weight: Feminism, Western culture, and the body. University of California Press, 2004. --- (BORDO, 2004BORDO, Susan. Unbearable weight: Feminism, Western culture, and the body. University of California Press, 2004.)
  • 61
    FREEMAN, Alan. op. cit., 1981, p. 1232.
  • 62
    Talvez, um prédio não completo, mas quase completo, segundo seu projeto ideal inicial. Vejamos o resultado quando trocamos “juiz” por “engenheiro” e “direito” por “prédio” na frase de Unger: “Era necessário, portanto, alegar que o elemento ideal do prédio só estava expresso de forma incompleta no prédio estabelecido. O engenheiro devia completar este elemento ideal mediante o exercício adequado de sua responsabilidade de fazer avançar a elaboração fundamentada do prédio”. UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 2015, e-book. Do ponto de vista do observador externo, contudo, há uma expectativa de suposição desse acabamento feito pelo engenheiro-intérprete do projeto original, o que garante a higidez e completude da ordem.
  • 63
    DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 32.
  • 64
    UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 2015, e-book.
  • 65
    Os manejadores do pensamento jurídico – praticantes do método da elaboração racional orientada pela linguagem das políticas e dos princípios – contra o qual os crits se voltaram performavam uma continuação dos manejadores do “formalismo doutrinário” cujo óbito declaravam. Trata-se da farsa, da necessidade de desacreditar, repetidamente, uma forma de pensamento jurídico pintada como dedutivista e conceitualista – que, no entanto, continuavam com outra linguagem, que supostamente representaria o caminho do meio, expurgado de discricionariedade. Para ambos, a ordem institucional e ideológica estabelecida, expressa na lei, é um sistema indivisível, com substância jurídica inerente, e não apenas um amálgama frouxo e contingente de compromissos, imposições e acidentes. UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 2015, e-book.
  • 66
    Ibid.
  • 67
    Ibid.
  • 68
    Ibid.
  • 69
    FREEMAN, Alan D. op. cit., 1980, p. 1230.
  • 70
    Id., p. 1230-1231.
  • 71
    DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 22.
  • 72
    FOUCAULT, Michel. op. cit., 2002, p. 165.
  • 73
    KELMAN, Mark. op. cit., 1984, p. 295-296.
  • 74
    Realço que, na aceitação integral dessas categorias, se torna preciso admitir que há apenas específicos conceitos abertos e indeterminados, o que é uma forma de garantir o comando de determinabilidade dos demais conceitos. Os conceitos jurídicos indeterminados e as cláusulas abertas são, assim, uma maneira de reforçar a autonomia e o formalismo do sistema jurídico, e não de flexibilizá-los.
  • 75
    À essa altura, é importante destacar que as filosofias do indeterminismo não desembocam, necessariamente, no absurdismo do tudo-pode-ser-qualquer-coisa (como Unger as eventualmente descreve em UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 2015). Como aponta Freeman, sugerir uma total verdade do modelo radicalmente subjetivo coloca, por si só, a pressuposição de um agente jurídico não social individualista. A implicação do trashing não é esta. Pelo contrário, é a de que o próprio julgamento jurídico é uma prática social que, como tal, deve estar enraizada nas relações reais de poder (FREEMAN, Alan. op. cit., 1981). Admito, contudo, que determinadas chaves conceituais crits da indeterminação (dentre elas, a “falsa consciência”, a “consciência legal” e o “inconsciente coletivo”) se valiam de uma psicologização institucionalizadora da subjetividade do intérprete – e ainda que compreendido como um sujeito social – como via de determinação dos verdadeiros símbolos escondidos na interpretação. Em trashers como Kelman e Freeman, as relações de poder júri-reificadas são o alvo, e não os agentes jurídicos subjetivamente considerados.
  • 76
    FOUCAULT, Michel. op. cit., 2013, p. 20.
  • 77
    Id., p. 34.
  • 78
    SOUSA, Cruz e. Broquéis, Faróis, Últimos Sonetos. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 173. --- (SOUSA, 2006SOUSA, Cruz e. Broquéis, Faróis, Últimos Sonetos. São Paulo: Martin Claret, 2006)
  • 79
    UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 2015, e-book.
  • 80
    KELMAN, Mark. op. cit., 1984, p. 296.
  • 81
    Assim como o enquadramento dos crits é uma categorização da heterogeneidade, os realistas americanos do início do século XX só podem ser unificados se caricaturados. De acordo com Llewellyn, é possível, contudo, chamá-los de “movimento” dos realistas identificando pelos mesmos métodos de ataque. LLEWELLYN, Karl N. Some realism about realism: Responding to Dean Pound. Harvard Law Review, v. 44, n. 8, p. 1222-1264, 1931, p. 1234.
  • 82
    Unger relata que é relevante que a lei pareça plural, dado que o empreendimento da sociedade liberal não é excluir, mas sim incluir a possibilidade de consideração de valores destoantes. Dessa forma, “torna-se importante conceber um sistema de lei cujo conteúdo de alguma forma acomoda interesses antagônicos e cujos procedimentos são tais que quase todos podem achar que é do seu próprio interesse subscrevê-los, independentemente dos fins que procuram”. UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 1977, p. 69.
  • 83
    Cf. FISCHL, Michael. op. cit., 1987, p. 513. --- (FISCHL, 1986FISCHL, Richard Michael. Some realism about critical legal studies. U. Miami L. Rev., v. 41, p. 505, 1986.)
  • 84
    UNGER, Roberto Mangabeira. op. cit., 2015, e-book. --- (UNGER, 2015UNGER, Roberto Mangabeira. The Critical Legal Studies Movement: Another Time, A Greather Task. Londres: Verso, 2015.)
  • 85
    FREEMAN, Alan. op. cit., 1981, p. 1234.
  • 86
    DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 51.
  • 87
    Id. p. 55.
  • 88
    Ibid. p. 36.
  • 89
    Ibid. p. 36-39.
  • 90
    GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Introdução ao Movimento Critical Legal Studies (CLS). SA Fabris Editor, 2005. --- (GODOY, 2005GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Introdução ao Movimento Critical Legal Studies (CLS). SA Fabris Editor, 2005.)
  • 91
    DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 38.
  • 92
    KELMAN, Mark. op. cit., 1984, p. 329.
  • 93
    DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 56.
  • 94
    KELMAN, Mark. op. cit., 1984, p. 336. --- (KELMAN, 1984KELMAN, Mark. Trashing. Stan. L. Rev., v. 36, p. 293, 1984.)
  • 95
    DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 38. --- (DERRIDA, 2018DERRIDA, Jacques. Força da Lei. Trad. de Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.)
  • 96
    DALTON, Harlon L. The clouded prism. Harv. CR-CLL Rev., v. 22, 1987, p. 436. --- (DALTON, 1987DALTON, Harlon L. The clouded prism. Harv. CR-CLL Rev., v. 22, 1987.)
  • 97
    SCHALK, Sami. Coming to claim crip. Disability Studies Quarterly, v. 33, n. 2, 2013. --- (SCHALK, 2013SCHALK, Sami. Coming to claim crip. Disability Studies Quarterly, v. 33, n. 2, 2013.)
  • 98
    Para conferir a história do termo, provavelmente originada, em seu sentido radical, durante a segunda metade do século XX, em grupos americanos racializados, v. KAFER, Alison. Feminist Queer Crip. Bloomington e Indianápolis: Indiana University Press, 2013, e MCRUER, Robert. Crip Theory: Cultural Signs of Queerness and Disability. Nova Iorque, Londres: New York University Press, 2006.
  • 99
    Id., on-line.
  • 100
    MCRUER, Robert. Crip. In: FRITSCH, Kelly; O'CONNOR, Clare; THOMPSON, Andrew Kieran (Ed.). Keywords for radicals: The contested vocabulary of late-capitalist struggle. AK Press, 2016. --- (MCRUER, 2016MCRUER, Robert. Crip. In: FRITSCH, Kelly; O'CONNOR, Clare; THOMPSON, Andrew Kieran (Ed.). Keywords for radicals: The contested vocabulary of late-capitalist struggle. AK Press, 2016.)
  • 101
    KAFER, Alison. op. cit., 2013.
  • 102
    Id., p. 15.
  • 103
    SANDAHL, Carrie. Queering the crip or cripping the queer? GLQ: a journal of lesbian and gay studies, v. 9, n. 1, p. 25-56, 2003,
  • 104
    Aqui, é útil sua alegoria do pedaço de concreto jogado na calçada das teorias tradicionais. Para McRuer, o pedaço de concreto desalojado pelos teóricos crip na rua - simultaneamente sólido e desintegrado, fixo e deslocado - pode destacar esses paradoxos entre a teoria crip/de deficiência e os estudos queer/LGBT. Se de uma perspectiva esse pedaço de concreto marca uma barreira material e aparentemente intransponível, de outra marca a vontade de refazer o mundo material. O corte do meio-fio, por sua vez, marca uma abertura necessária para as culturas públicas acessíveis que ainda podemos habitar. A teoria crip questiona - ou ataca com uma marreta - aquilo que foi tido como concreto; pode, consequentemente, ser compreendida como um corte em rampa no meio-fio para os estudos de deficiência e para a teoria crítica de forma mais geral. MCRUER, Robert. op. cit., 2006, p. 35.
  • 105
    Com efeito, em Delgado, o discurso de conquista de direitos atrelados ao processo de identificação de minorias oprimidas se mantém essencial para a sobrevivência dos sujeitos marcados – motivo pelo qual “jogar fora” ou derrocar as estruturas de reafirmação das prerrogativas mínimas não é um ato que privilegia a todos os normatizados. DELGADO, Richard. op. cit., 1987. Em Williams, apenas um sujeito imbuído de um corpo lido socialmente como homem branco pode se dar ao luxo de “abrir mão de uma identidade”. WILLIAMS, Patricia J. The alchemy of race and rights. Harvard University Press, 1991. Cf. também MATSUDA, Mari J. op. cit., 1987. Atendo-se aos processos de afirmação da identidade, estudiosos queer étnicorraciais mantém o mesmo posicionamento, reafirmando a desidentificação como uma prática não-estratégica para a sobrevivência. Cf. LA FOUNTAIN-STOKES, Lawrence Martin. Queer Ricans: cultures and sexualities in the diaspora. U of Minnesota Press, 2009; COHEN, Cathy J. Punks, bulldaggers, and welfare queens: The radical potential of queer politics?. GLQ: A journal of lesbian and gay studies, v. 3, n. 4, p. 437-465, 1997. --- (WILLIAMS, 1991WILLIAMS, Patricia J. The alchemy of race and rights. Harvard University Press, 1991.; LA FOUNTAIN-STOKES, 2009LA FOUNTAIN-STOKES, Lawrence Martin. Queer Ricans: cultures and sexualities in the diaspora. University of Minnesota Press, 2009.; COHEN, 1997COHEN, Cathy J. Punks, bulldaggers, and welfare queens: The radical potential of queer politics?. GLQ: A journal of lesbian and gay studies, v. 3, n. 4, p. 437-465, 1997.)
  • 106
    Assim como o trashing, não há unicidade no cripping. Paralelamente às propostas divergentes de conciliação do trashing com o programa positivo da CLS, a conciliação do cripping com as políticas de identidade também é um tópico intelectualmente contestado. Em Schalk, o cripping é uma arma da desidentificação, conforme pensada por Muñoz e Ferguson. A desidentificação é “uma estratégia alternativa de resistência política que trabalha com e contra a ideologia dominante ao mesmo tempo para fins performativos e políticos de sujeitos minoritários”; é, portanto “uma forma de localizar-se dentro de si, assumir e (re)utilizar representações e teorias de maneiras que não foram originalmente pretendidas”. SCHALK, Sami. op. cit., 2013, on-line. McRuer, por outro lado, entende o cripping (equivalente a crippin’ ou coming out crip) como uma prática de reivindicação da deficiência nas políticas de identidade, concomitante ao necessário amadurecimento de relações contestatórias à política de identidades. MCRUER, Robert. op. cit., 2006, p. 71.
  • 107
    SANDAHL, Carrie. op. cit., 2003, p. 37.
  • 108
    Nesse ponto, lembre-se que o cripping e o trashing não são as únicas – e nem sempre as mais apropriadas – maneiras de se recusar legados excludentes. Nesse sentido, os crits raciais que se colocaram favoravelmente a reformas normativas atestam a multiplicidade de maneiras de levar a proposta de disjunção às sendas antirracistas. Além disso, a crítica ao cripping, similarmente à destinada ao trashing, acusa-o de ser elitista, emanada por sujeitos privilegiados que mascaram suas próprias prerrogativas com a segurança da academia. Cf.; MCRUER, Robert. JOHNSON, Merri Lisa. Introduction: Cripistemologies and the Masturbating Girl. Journal of Literary & Cultural Disability Studies, v. 8, n. 3, p. 245-255, 2014. --- (MCRUER, JOHNSON, 2014MCRUER, Robert. JOHNSON, Merri Lisa. Introduction: Cripistemologies and the Masturbating Girl. Journal of Literary & Cultural Disability Studies, v. 8, n. 3, p. 245-255, 2014.)
  • 109
    Mantenho que é premente perceber a possibilidade de interligação entre a CLS e a CDS, especialmente quando se está diante da afirmação de que, embora crits e crips possam partilhar do ceticismo político, jurídico e social, a matriz da CLS endereça apenas tardiamente problemas tipicamente considerados como relativos a “minorias”. Em sendo a contradição interna aquilo que preclui a aproximação da CLS a demandas minoritárias – dentre elas, as demandas da deficiência –, traschissizar a própria CLS para aproximá-lo da deficiência (identitária ou não) a partir de seus próprios instrumentos é uma via de cripificação do trashing.
  • 110
    Cf. MCRUER, Robert. Crip Theory: Cultural Signs of Queerness and Disability. Nova Iorque, Londres: New York University Press, 2006, p. 36-37. Vejo ainda que, em Shildrick, uma outra semelhança entre trashers e crips pode ser destacada, quando se trata da desconfiança da necessidade das estruturas jurídicas de direitos: “Qualquer consideração séria dos direitos precisará reconhecer as múltiplas complexidades que informam as diferenças entre direitos positivos e negativos e sua relação com as diversas formas de justiça; a questão dos direitos conflitantes; o problema do acesso diferenciado à lei; e até mesmo a questão de se os direitos devem ser preferidos a valores alternativos”. SHILDRICK, Margrit. Dangerous discourses of disability, subjectivity and sexuality. Springer, 2009, p. 114.Embora não trate diretamente da desconfiança como postura cético-prospectiva, a pressuponho na crítica. --- (MCRUER, 2006MCRUER, Robert. Crip Theory: Cultural Signs of Queerness and Disability. Nova Iorque, Londres: New York University Press, 2006.)
  • 111
    LORDE, Audre. Irmã Outsider. Trad. de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019, e-book. --- (LORDE, 2019LORDE, Audre. Irmã Outsider. Trad. de Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.)
  • 112
    TREMAIN, Shelley. Foucault and Feminist Philosophy of Disability. Ann Arbor: University of Michingan Press, 2017. --- (TREMAIN, 2017TREMAIN, Shelley. Foucault and Feminist Philosophy of Disability. Ann Arbor: University of Michingan Press, 2017.)
  • 113
    HACKING, Ian. The Taming of Chance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 160. --- (HACKING, 1990HACKING, Ian. The Taming of Chance. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.)
  • 114
    MCWORTHER, Ladelle. Foreword. In: TREMAIN, Shelley. Foucault and the Government of disability. Ann Arbor: University of Michingan Press, 2015. --- (MCWORTHER, 2015MCWORTHER, Ladelle. Foreword. In: TREMAIN, Shelley. Foucault and the Government of disability. Ann Arbor: University of Michingan Press, 2015.)
  • 115
    FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 53. --- (FOUCAULT, 2008FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. de Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008)
  • 116
    FOUCAULT, Michel. Os anormais. Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 60-64.
  • 117
    FOUCAULT, Michel. Verdade e Poder. In: Microfísica do poder. Trad. de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979, p. 6. --- (FOUCAULT, 1979FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979.)
  • 118
    MEEKOSHA, Helen. SHUTTLEWORTH, Russel. op. cit., 2009. p. 66. --- (MEEKOSHA, SHUTTLEWORTH, 2009MEEKOSHA, Helen; SHUTTLEWORTH, Russell. What's so ‘critical’about critical disability studies?. Australian Journal of Human Rights, v. 15, n. 1, p. 47-75, 2009.)
  • 119
    FOUCAULT, Michel. op. cit., 2002, p. 62
  • 120
    HARDWICK, John. op. cit., 1991, p. 159. --- (HARDWICK, 1991HARDWICK, John. The schism between minorities and the critical legal studies movement. BC Third World LJ, v. 11, p. 137, 1991.)
  • 121
    RALWS, John. Uma teoria de Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenitta M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 107. --- (RALWS, 1997RALWS, John. Uma teoria de Justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenitta M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes. 1997.)
  • 122
    Similarmente, Gordon exemplifica como, mesmo aos auspícios da inclusão, o intuito da normalização como busca natural se instaura: “A Black applicant to professional school, whose test scores are lower than those of a competing white applicant, asks for admission on grounds of 'affirmative action.' Everybody in that interaction (including the applicant) momentarily submits to the spell of the worldview promoted in that discourse, that the scores measure an 'objective' merit (though nobody really has the foggiest idea what they measure besides standardized test-taking ability) that would have to be set aside to let him in”. GORDON, Robert. Law and Ideology. Tikkun., v. 3, n. 1, p. 16. --- (GORDON, 1988GORDON, Robert W. Law and ideology. Tikkun, v. 3, n. 1, p. 14-18, 1988.)
  • 123
    BEAUDRY, Jonas-Sébastien. Welcoming Monsters: Disability as a Liminal Legal Concept. Yale JL & Human., v. 29, p. 291, 2017, p. 309.
  • 124
    CASARINO, Cesare. NEGRI, Antonio. In Praise of the Common: A Conversation on Philosophy and Politics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008. --- (CASARINO; NEGRI, 2008CASARINO, Cesare. NEGRI, Antonio. In Praise of the Common: A Conversation on Philosophy and Politics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008.)
  • 125
    Cf. FOUCAULT, Michel. op. cit., 2002. Cf. também FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Riviere, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão: um caso de parricídio do século XIX. 7. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.
  • 126
    FOUCAULT, Michel. op. cit., 2002, p. 42.
  • 127
    Id., p. 8.
  • 128
    Id. p. 18.
  • 129
    Id. p. 69.
  • 130
    GIL, José. Metafenomenologia da monstruosidade: o devir-monstro. In: DONALD, James et al (org.) Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 169-170. --- (GIL, 2000GIL, José. Metafenomenologia da monstruosidade: o devir-monstro. In: DONALD, James et al (org.) Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.)
  • 131
    FOUCAULT, Michel. op. cit., 2002, p. 70.
  • 132
    Id. p. 71.
  • 133
    SILVA, Tomaz Tadeu da Silva. A produção social da identidade e da diferença. In: SILVA, Tomaz Tadeu da Silva. HALL, Stuart. WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p. 84. --- (SILVA, 2008SILVA, Tomaz Tadeu da Silva. A produção social da identidade e da diferença. In: Identidade e Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.)
  • 134
    FOUCAULT, Michel. op. cit., 2002, p. 80.
  • 135
    BEAUDRY, Jonas-Sébastien. op. cit., 2017, p. 310.
  • 136
    CASARINO, Cesare. NEGRI, Antonio. op. cit., 2008, p. 203. --- (CASARINO; NEGRI, 2008CASARINO, Cesare. NEGRI, Antonio. In Praise of the Common: A Conversation on Philosophy and Politics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008.)
  • 137
    FOUCAULT, Michel. op. cit., 2002, p. 26.
  • 138
    Id., p. 44.
  • 139
    Cf. BEAUDRY, Jonas-Sébastien. op. cit., 2017, p. 317 e ss.
  • 140
    BARRETO, Lima. Diário do Hospício: o cemitério dos vivos. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1993, p. 148. --- (BARRETO, 1993BARRETO, Lima. Diário do Hospício: o cemitério dos vivos. Rio de Janeiro: Biblioteca Carioca, 1993.)
  • 141
    SHILDRICK, Margrit. op. cit., 2009.
  • 142
    KAFER, Alison. op. cit., 2013, p. 10.
  • 143
    Id. p. 6.
  • 144
    Cf. TREMAIN, Shelley. op. cit., 2017, p. 115-116. Destaque-se: não se trata de negar a materialidade ou as existências materiais, mas sim de perceber sua materialidade como engendrada a partir de antecedentes culturais – se se trata de uma entidade material categorizada, se trata da materialidade como sentença discursiva. Explicitamente, em Shelley: “the materiality of the body is not the antecedent a priori of the body’s categorization; rather, in this historical context, the materiality of the body is its regulative consequent”. TREMAIN, Shelley. op. cit., 2017, p. 120. Tradução minha: “A materialidade do corpo não é o antecedente a priori da categorização do corpo; antes, neste contexto histórico, a materialidade do corpo é o seu consequente regulador”. --- (TREMAIN, 2017TREMAIN, Shelley. Foucault and Feminist Philosophy of Disability. Ann Arbor: University of Michingan Press, 2017.)
  • 145
    SHILDRICK, Margrit. op. cit., 2009, p. 12. --- (SHILDRICK, 2009SHILDRICK, Margrit. Dangerous discourses of disability, subjectivity and sexuality. Springer, 2009.)
  • 146
    Id. 105-106.
  • 147
    Id., p. 115-116.
  • 148
    Shildrick, partindo de Derrida, lembra: “(...) a imbricação do ‘monstruoso arrivant’ e do direito – aqui entendido como uma justiça que sempre está por vir - evoca um radical transgressividade que finalmente está além do alcance disciplinar dos paradigmas normativos”. Id., 2009, p. 13. --- (Shildrick, 2009SHILDRICK, Margrit. Dangerous discourses of disability, subjectivity and sexuality. Springer, 2009.)
  • 149
    PESSOA, Fernando. Poemas Inconjuntos. In: Poesia Completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 132. --- (PESSOA, 2005PESSOA, Fernando. Poemas Inconjuntos. In: Poesia Completa de Alberto Caeiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.)
  • 150
    VEHMAS, Simo; WATSON, Nick. op. cit., 2014, p. 640. (VEHMAS, WATSON, 2014VEHMAS, Simo; WATSON, Nick. Moral wrongs, disadvantages, and disability: a critique of critical disability studies. Disability & Society, v. 29, n. 4, p. 638-650, 2014.)
  • 151
    TREMAIN, Shelley. This is what a historicist and relativist feminist philosophy of disability looks like. Foucault Studies, p. 7-42, 2015. --- (TREMAIN, 2015TREMAIN, Shelley. This is what a historicist and relativist feminist philosophy of disability looks like. Foucault Studies, p. 7-42, 2015.)
  • 152
    Essa ideia é quantitativamente determinada (por exemplo: de acordo com o relatório produzido pela OMS em 2011, 15% da população terá alguma deficiência, permanente ou transitória, em algum ponto de sua vida - WHO. World report on disability 2011. World Health Organization, 2011) e diversa daquela constante em Garland-Thomson: “Human variation, in other words, is seldom neutral. ‘Abominations of the body’ are in the eye of the well-acculturated beholder. Modern culture’s erasure of mortality and its harbinger, bodily vulnerability, make disabled bodies seem extraordinary rather than ordinary, abnormal instead of mundane - even though in fact the changes in our function and form that we think of as disabilities are the common effects of living and are fundamental to the human condition. What Goffman describes as ‘abominations’ come to most ordinary lives eventually. If we live long enough, we will all become disabled”. GARLAND-THOMSON, Rosemarie. GARLAND-THOMSON, Rosemarie. Staring: How we look. Oxford University Press, 2009, p. 44-46. Tradução minha: “A variação humana, em outras palavras, raramente é neutra. ‘Abominações do corpo’ estão nos olhos do observador bem aculturado. O apagamento da mortalidade pela cultura moderna e seu precursor, a vulnerabilidade corporal, faz os corpos deficientes parecerem extraordinários em vez de comuns, anormais em vez de mundanos - embora, na verdade, as mudanças em nossa função e forma que consideramos deficiências sejam os efeitos comuns da vida e são fundamentais para a condição humana. O que Goffman descreve como ‘abominações’ chega à maioria das vidas comuns eventualmente. Se vivermos o suficiente, todos ficaremos deficientes”.
  • 153
    Cf. WHO. op. cit., 2011.
  • 154
    De acordo com Sandahl, é possível que o cripping permita que um sujeito imbuído de corpo lido como sem deficiência acredite-se crip – e faz parte da proposta cripping que seja possível: “Though I have never heard a nondisabled person seriously claim to be crip (as heterosexuals have claimed to be queer), I would not be surprised by this practice. The fluidity of both terms makes it likely that their boundaries will dissolve”. SANDAHL, Carrie. op. cit., 2003, p. 27. Tradução minha: “Embora eu nunca tenha ouvido uma pessoa sem deficiência alegar seriamente ser aleijada (como heterossexuais afirmam ser queer), eu não ficaria surpreso com essa prática. A fluidez de ambos os termos torna provável que suas fronteiras se dissolvam”. --- (SANDAHL, 2003SANDAHL, Carrie. Queering the crip or cripping the queer? GLQ: a journal of lesbian and gay studies, v. 9, n. 1, p. 25-56, 2003.)
  • 155
    BEAUDRY, Jonas-Sebastien. op. cit., 2018, p. 297-298.
  • 156
    TREMAIN, Shelley. op. cit. 2015, p. 40-41. --- (TREMAIN, 2015TREMAIN, Shelley. This is what a historicist and relativist feminist philosophy of disability looks like. Foucault Studies, p. 7-42, 2015.)
  • 157
    BEAUDRY, Jonas-Sebastien. op. cit., 2018, p. 310.
  • 158
    MEEKOSHA, Helen; SHUTTLEWORTH, Russell. op. cit., 2009, p. 52.
  • 159
    Nesse sentido, quando a deficiência é entendida necessariamente como a tragédia de uma opressão, os únicos futuros que podem ser desejados consistem naqueles expurgados de deficiências. Cf. KAFER, Alison. op. cit., 2013.
  • 160
    TREMAIN, Shelley. op. cit., 2017, p. 118. Sobre discursos normativos de verdade, repito Tremain: “Though a truth discourse may seem to innocently describe the phenomena of the human body (its constraints, com-position, vulnerabilities, and so on), it significantly contributes to the constitution of that body, its materiality, bodily constraints, corporeal vulnerabilities, and so on. In other words, the redescription and transformation of bodies are not determined by their putatively “prediscursive” material constraints per se; rather, the extent to which, in what ways, and even whether redescription and transformation of material bodies can take place is always already circumscribed and delimited by the historically contingent conception of the body (and the style of reasoning from which that conception emerged) that effectively brings into being the facts, laws, and norms about its material constraints, restrictions, strengths, and so on in the first place.” Id., p. 120. Tradução minha: “Embora um discurso de verdade possa parecer descrever inocentemente os fenômenos do corpo humano (suas restrições, composição, vulnerabilidades e assim por diante), ele contribui significativamente para a constituição desse corpo, sua materialidade, restrições corporais, vulnerabilidades corporais, e assim por diante. Em outras palavras, a redescrição e transformação dos corpos não são determinadas por suas supostas restrições materiais ‘pré-discursivas’ per se; em vez disso, até que ponto, de que maneiras e até mesmo se a redescrição e transformação dos corpos materiais podem ocorrer é sempre algo já circunscrito e delimitado pela concepção historicamente contingente do corpo (e o estilo de raciocínio do qual essa concepção emergiu) que efetivamente traz à existência fatos, leis e normas sobre suas limitações materiais, restrições, pontos fortes e assim por diante”. --- (TREMAIN, 2017TREMAIN, Shelley. Foucault and Feminist Philosophy of Disability. Ann Arbor: University of Michingan Press, 2017.)
  • 161
    ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Biblioteca do Estudante, 1984, p. 245. --- (ASSIS, 1984ASSIS, Machado de. O alienista. São Paulo: Biblioteca do Estudante, 1984.)
  • 162
    FRITSCH, Kelly. On the negative possibility of suffering: Adorno, feminist philosophy, and the transfigured crip to come. Disability Studies Quarterly, v. 33, n. 4, 2013. --- (FRITSCH, 2013FRITSCH, Kelly. On the negative possibility of suffering: Adorno, feminist philosophy, and the transfigured crip to come. Disability Studies Quarterly, v. 33, n. 4, 2013.)
  • 163
    BEAUDRY, Jonas-Sebastién. op. cit., 2017, p. 293.
  • 164
    Dessa forma, a resposta não é exatamente a cura, mas a capitalização da(s) cura(s) dos corpos sempre possivelmente deficientes. Ressalto que o movimento anticura, que rejeita a possibilidade de se buscar modificações que signifiquem o fim da deficiência, não deixa de ser ambíguo ao reclamar uma naturalidade do corpo com deficiência – normalização, portanto. De acordo com Bailey, “essa crítica pode parecer contraintuitiva, visto que a política anticura rejeita explicitamente a transcendência oferecida pela cura médica e reformula a deficiência em termos de variação humana, adaptabilidade e modos alternativos de ser. No entanto, desmente o desejo do “ponto de vista de lugar nenhum”, um espaço fora e acima das influências contaminantes da cultura e da medicina dominantes, um espaço onde as pessoas com deficiência são livres para serem suas próprias deficiências naturais”. BAILEY, Courtney W. On the Impossible: Disability Studies, Queer Theory, and the Surviving Crip. Disability Studies Quarterly, v. 39, n. 4, 2019.
  • 165
    Cf. FRITSCH, Kelly. Gradations of debility and capacity: biocapitalism and the neoliberalization of disability relations. Canadian Journal of Disability Studies, v. 4, n. 2, p. 12-48, 2015.
  • 166
    Nesse sentido, no embate entre o modelo médico e o modelo social, Fritsch expõe que, enquanto os movimentos afirmadores da identidade positiva pedem por “rampas, não curas”, falham em perceber que o biocapitalismo neoliberal mobiliza tanto rampas quanto curas, também exortando afetivamente as pessoas com deficiência a participarem do biocapitalismo de maneiras frequentemente contraditórias e ambivalentes. Id., p. 26.
  • 167
    Cf. Rajan, quando diz: “(...) todo indivíduo, por causa de seu perfil de risco genômico, é um alvo potencial para intervenção terapêutica. Nesse cálculo, todo indivíduo é um paciente em espera e, simultaneamente, um consumidor em espera”. RAJAN, Kaushik Sunder. Biocapital: The constitution of postgenomic life. Duke University Press, 2006, p. 281.
  • 168
    Sobre a inclusão laboral, Fritsch denuncia os discursos paradoxais embutidos em afirmações como: “a inclusão é lucrativa”. Copio: “Corpos deficientes que são lucrativos, que podem ser comercializados, podem ser aprimorados ou incorporados à força de trabalho são corpos debilitados que o neoliberalismo considera dignos. Esses corpos com deficiência física são incluídos porque podem se tornar produtivos sob o neoliberalismo de maneiras específicas e, como tal, são recompensados ​​e alardeados como evidência de uma sociedade inclusiva.”. FRITSCH, Kelly. op. cit., 2015, p. 29.
  • 169
    Em McRuer, o fantasma da deficiência sempre espreita em virtude do capacitismo corporal compulsório, combatido pela deficiência como posicionalidade crítica. MCRUER, Robert. op. cit., 2006, p. 30-31. --- (MCRUER, 2006MCRUER, Robert. Crip Theory: Cultural Signs of Queerness and Disability. Nova Iorque, Londres: New York University Press, 2006.)
  • 170
    PUAR, Jasbir K. Coda: The cost of getting better: Suicide, sensation, switchpoints. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, v. 18, n. 1, p. 149-158, 2012, p. 155. --- (PUAR, 2012PUAR, Jasbir K. Coda: The cost of getting better: Suicide, sensation, switchpoints. GLQ: A Journal of Lesbian and Gay Studies, v. 18, n. 1, p. 149-158, 2012.)
  • 171
    SOTHERN, Matthew. You could truly be yourself if you just weren't you: Sexuality, disabled body space, and the (neo) liberal politics of self-help. Environment and Planning D: Society and Space, v. 25, n. 1, p. 144-159, 2007, p. 146.
  • 172
    FREEMAN, Alan. op. cit., 1981, p. 1231.
  • 173
    Sobre o tom de futuridade, cf. KAFER, Alison. op. cit., 2013. --- (KAFER, 2013KAFER, Alison. Feminist Queer Crip. Bloomington e Indianápolis: Indiana University Press, 2013.)
  • 174
    SHILDRICK, Margrit. Neoliberalism and embodied precarity: Some crip responses. South Atlantic Quarterly, v. 118, n. 3, p. 595-613, 2019. --- (SHILDRICK, 2019SHILDRICK, Margrit. Neoliberalism and embodied precarity: Some crip responses. South Atlantic Quarterly, v. 118, n. 3, p. 595-613, 2019.)
  • 175
    GOODLEY, Dan. Disability Studies: An Interdisciplinary Introduction. Sage Publication, 2011. --- (GOODLEY, 2011GOODLEY, Dan. Disability Studies: An Interdisciplinary Introduction. Sage Publication, 2011.)
  • 176
    DERRIDA, Jacques. op. cit., 2018, p. 26. --- (DERRIDA, 2018DERRIDA, Jacques. Força da Lei. Trad. de Leyla Perrone-Moysés. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2018.)

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  • 2
    Este escrito só é possível em virtude do financiamento de minha pesquisa pela CAPES, por meio do Programa de Demanda Social. Agradeço, ainda, ao Professor Philippe Oliveira de Almeida, que me encorajou a acreditar na potência do programa de pesquisa em amadurecimento neste texto e que fez uma leitura atenta, com sugestões integralmente incorporadas.
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    A definição de “bufão” da qual me valho advém de seu conceito cênico, como figura-limite que, ao rir e fazer rir, coloca-se na marginalidade de uma racionalidade. Puvis compara a posição do bufão ao louco, ambos marginais. “Este estatuto de exterioriedade o autoriza a comentar os acontecimentos impunemente, ao modo de uma espécie de paródia do coro da tragédia. Sua fala, como a do louco, é, ao mesmo tempo, ouvida e proibida”. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 35. A crítica interna dos crits contra os trashers parece já tê-los pintados de bufões (mascarados, que sempre revelam o outro e que nunca assumem o papel sério dos outros sem incorrer em sua própria perda). Não vejo por que não celebrar essa adequada crítica, encontrando nela uma oportunidade de autoafirmação. --- (PAVIS, 2008PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2008.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jun 2021
    • Data do Fascículo
      Apr-Jun 2021

    Histórico

    • Recebido
      04 Maio 2021
    • Aceito
      06 Maio 2021
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