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Constitucionalismo Digital: contradições de um conceito impreciso

Digital Constitutionalism: contradictions of a loose concept

Resumo

O presente artigo mapeia os usos da expressão constitucionalismo digital, empregada nas discussões recentes de regulação de tecnologias digitais e, em especial, plataformas de Internet. Nosso objetivo principal é indicar as contradições e riscos colocados na dilatação do termo “constitucionalismo” para englobar os fenômenos normativos que hoje correm sob o rótulo. À luz da compreensão do constitucionalismo tradicional como fenômeno político e institucional, são identificadas as teorias que precedem o constitucionalismo digital como formulações contemporâneas que visam explicar as mudanças no funcionamento dos poderes e sistemas normativos que ultrapassam ou sobrepõem o estado-nação e seus limites territoriais (i.e., pluralismo constitucional, constitucionalismo societal e constitucionalismo global). A partir das críticas da literatura a essa matriz teórica, o constitucionalismo digital é problematizado como termo epistemicamente prejudicado pela diversidade de aplicações e pelo potencial de legitimação de concentração de poderes privados.

Palavras-chave:
Constitucionalismo digital; Regulação de plataformas; Internet; Constitucionalismo societal; Pluralismo constitucional; Constitucionalismo global

Abstract

This paper maps the uses of the expression digital constitutionalism, as employed in recent debates about digital technologies regulation (in particular, digital platforms). Our goal is to highlight discrepancies and risks implied in the dilatation of the term "constitutionalism" to encompass the normative phenomena that run under this label. In light of the understanding of traditional constitutionalism as a political and institutional phenomenon, we identify the theories that precede digital constitutionalism as contemporary formulations aimed at explaining changes in the functioning of powers and normative systems that transcend or overlap the nation-state and its territorial boundaries (i.e., constitutional pluralism, societal constitutionalism, and global constitutionalism). Based on the literature's criticism of this theoretical matrix, digital constitutionalism is problematized as a term epistemically impaired by the diversity of applications and the potential to legitimize concentrations of private powers.

Keywords:
digital constitutionalism; platform regulation; Internet; societal constitutionalism; legal pluralism; global constitutionalism

Introdução

Embora gestada como um sistema e uma ideologia de organização da esfera pública estatal, a ideia de constitucionalismo tem assumido centralidade na teorização sobre as manifestações emergentes de poderes internacionais e privados. As transformações das últimas décadas, tanto no plano do exercício dos poderes estatais - progressivamente influenciados pela ordem transnacional -, quanto na ampliação e fortalecimento dos poderes privados em escala global, impulsionaram um esforço de compreensão e conceituação que parece longe de alcançar uniformidade.

Diversas formulações contemporâneas empregam os termos constituição e constitucionalismo para explicar as mudanças no funcionamento dos poderes e os sistemas normativos que ultrapassam ou sobrepõem o estado-nação e seus limites territoriais. São exemplos dessa tendência as noções de pluralismo constitucional, constitucionalismo societal, constitucionalismo global, constitucionalismo transnacional e constitucionalismo multinível. É nessa paisagem de disputa conceitual e multiplicação de teorias que se insere a expressão constitucionalismo digital, usada nos últimos tempos, sem consenso ou coesão, para descrever diversos fenômenos e práticas jurídicas relacionadas à proteção de direitos no âmbito de tecnologias digitais, e, em especial, na Internet.

Como referência dos processos de digitalização da informação, a Internet inspira releituras das relações políticas e sociais desde sua expansão para o uso civil, na década de 1990. Ao mesmo tempo em que são diagnosticadas substanciais alterações da equação dos poderes públicos e privados deflagradas por um novo contexto tecnológico, as demandas por organização política e aplicação do direito são influenciadas por categorias e conceitos clássicos, forjados pela teoria política moderna. São invocados, por exemplo, novos pactos deliberativos (BARLOW, 1996BARLOW, Joe Perry. Declaration of Independence of Cyberspace. Electronic Frontier Foundation, Davos, Suíça, 8 fev. 1996. Disponível em <https://www.eff.org/cyberspace-independence>. Acesso em: 10 out. 2022.
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), o reconhecimento de uma esfera pública digital (DE BLASIO et al, 2020DE BLASIO, Emiliana et al. The Ongoing Transformation of the Digital Public Sphere: Basic Considerations on a Moving Target. Media and Communication, v. 8, n. 4, p. 1-5, 2020.; HELDT, 2020HELDT, Amélie P. Merging the Social and the Public: How Social Media Platforms Could Be a New Public Forum. Mitchell Hamline Law Review, v. 46, n. 5, p. 997-1042, 2020.; PAPACHARISSI, 2008PAPACHARISSI, Zizi. The internet, the public sphere, and beyond. In: CHADWICK, Andrew; HOWARD, Philip N. (Eds.). Routledge Handbook of Internet Politics. London & New York: Routledge, 2008, p. 230-245.), bem como a aplicação dos princípios associados ao estado de direito (RISCH, 2018RISCH, Michael. Virtual rule of law. In: BARFIELD, Woodrow; BLITZ, Marc (Eds.). Research Handbook on the Law of Virtual and Augmented Reality. [s.l.]: Edward Elgar Publishing, 2018, p. 64-102.; REED; MURRAY, 2018REED, Chris; MURRAY, Andrew. Rethinking the Jurisprudence of Cyberspace. [s.l.]: Edward Elgar Publishing, 2018., p. 200-230; SUZOR, 2018______. Digital Constitutionalism: Using the Rule of Law to Evaluate the Legitimacy of Governance by Platforms. Social Media + Society, v. 4, n. 3, p. 1-11, 2018.).

Na confluência dos dois fenômenos - constitucionalismo e digitalização -, despontam as diversas teorias que têm empregado, com cada vez mais frequência, a expressão “constitucionalismo digital”. Apesar da reivindicação de um constitucionalismo digital transitar nos debates sobre a Internet desde o início da década de 2000, a expressão se popularizou nos últimos anos como uma moldura para diversas teorias sobre positivação e operacionalização de direitos constitucionais em ambientes digitais. Nesse amplo espectro, a literatura registra tratamentos diversos do “constitucionalismo digital”, que, como veremos, englobam desde abordagens descritivas de determinados fenômenos normativos até a ideia de uma “ideologia que adapta os valores do constitucionalismo contemporâneo à sociedade digitalizada” (CELESTE, 2019aCELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers & Technology, v. 33, n. 1, p. 76-99, 2019a., p. 77). Diante da multiplicidade de usos com objetivos distintos, o constitucionalismo digital é ainda um conceito impreciso, de valor epistêmico enfraquecido. As variadas tentativas de dar densidade à expressão têm gerado usos com sentidos ora contraditórios, ora redundantes, dificultando o avanço dos debates sobre o tema. No que se refere ao próprio uso do termo constitucionalismo, o conceito em análise carrega o risco de funcionar como mero artifício retórico que confere aparência de legitimação a sistemas normativos com funcionalidades e efeitos muito distantes dos valores que informam os sistemas constitucionais liberais.

Partindo de tal cenário, o presente artigo tem por objetivo promover uma análise crítica dos variados usos da expressão constitucionalismo digital. À luz da compreensão do constitucionalismo tradicional como fenômeno político e institucional, propomos uma discussão sobre as inconsistências e os riscos do empréstimo da carga simbólica da tradição constitucionalista para explicar e nomear fenômenos normativos transnacionais e em ambientes privados digitalizados. Tendo como ponto de partida as críticas da literatura à matriz teórica do constitucionalismo digital, discutimos também como as mesmas reverberam nesse campo, apontando inconsistências e riscos na aplicação do conceito.

Em relação ao escopo deste trabalho, a expressão “constitucionalismo digital”, em seu sentido mais amplo, refere-se à proteção de direitos constitucionais em diversas tecnologias digitais. Não se esgota, assim, no debate sobre a Internet e as plataformas digitais, também se associando a tecnologias de inteligência artificial, proteção de dados, e, mais recentemente, às tecnologias quânticas. A despeito da ênfase nas discussões em torno do constitucionalismo digital como mecanismo de normatização das relações nas - e combate ao acúmulo de poder das - plataformas digitais, o presente trabalho é informado por essa perspectiva ampla. Onde pertinentes, as abordagens focadas em debates específicos são trazidas à discussão, em especial considerando a intersecção entre matérias e tecnologias específicas e as atividades das plataformas digitais.

O trabalho se organiza da seguinte forma. Na seção 1, estabelecemos as bases conceituais para a análise do constitucionalismo digital discutindo a disputa teórica em torno dos conceitos de constituição e constitucionalismo. Notadamente, questionamos a possibilidade do uso desses termos em sentido diverso daquele que esteve na base de sua formulação pela teoria política moderna, com foco na sua instrumentalização para finalidades iliberais e transposição para dinâmicas operadas à margem do estado. Na seção 2, fazemos uma recapitulação das reivindicações dos postulados da democracia moderna - como o constitucionalismo, o estado de direito e democracia representativa - no ambiente da Internet, enquanto epítome das tecnologias digitais em rede. Com base nesse exercício, localizamos o contexto teórico em que se disputam os meios para garantia de direitos online - onde se encaixa o constitucionalismo digital - em um grupo de teorias que inclui o constitucionalismo global e o constitucionalismo societal, que se alinham ao pluralismo constitucional para reformular os conceitos de constituição e constitucionalismo. Em seguida, a seção 3 traz o mapeamento dos usos atuais do constitucionalismo digital, de forma a destacar a desordem conceitual e as contradições que comprometem o emprego atual da expressão. Por fim, na seção 4, exploramos os limites, contradições e riscos do emprego da noção de constitucionalismo digital a partir das críticas da literatura direcionadas à sua matriz teórica. O artigo é finalizado com uma breve reflexão sobre a indispensabilidade da constituição para mitigar assimetrias de poder mesmo - e principalmente - em contextos de transformação advindos da globalização e de alterações das dinâmicas do poder privado.

1. Constitucionalismo como invenção moderna e suas características

O debate sobre o conceito de constitucionalismo está diretamente conectado com o entendimento sobre o que é uma constituição. De um ponto de vista genérico, a ideia de constituição pode ser intuitivamente relacionada à forma de ser das coisas, ao modo pelo qual um conjunto de partes constituem o todo. Nesse significado, a constituição é pensada a partir do significado comum da palavra, tal como é empregada na linguagem corriqueira e descrita nos dicionários. Transposto para a perspectiva da organização política, esse emprego "constituição" alude ao arranjo social e à forma de governo de uma comunidade, ou seja, à maneira como as estruturas de poder estão organizadas e aos valores prevalentes. É com esse sentido, por exemplo, que Ferdinand Lassale (2007LASSALE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 7. Ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2007.) discute a noção de constituição como expressão dos fatores reais de poder. Em linha semelhante, enumerando os significados constantes dos dicionários e refletindo sobre estrutura e composição do poder e do governo, Charles McIlwain (1991, p. 42 e ss.) defende a existência de uma concepção antiga de constituição e do constitucionalismo, distinta da sua conotação moderna.

Na tradição da teoria política moderna, contudo, o constitucionalismo é expressão de um movimento político e jurídico que eclode no seio das revoluções liberais do século XVIII. Ele nasce, portanto, como uma doutrina particular de organização política que tem como cerne uma constituição jurídica, entendida como um instrumento normativo de instituição e regulação do governo, orientado à limitação do exercício do poder e à proteção dos indivíduos. Historicamente, a ideia de constituição é inventada como ferramenta do direito destinada a conter o arbítrio e racionalizar o exercício da autoridade, uma criação institucional que busca implementar a ideologia liberal. Nesse contexto, constituição e constitucionalismo não são construídos como conceitos neutros ou meramente descritivos da forma de existência de uma sociedade. Ao contrário, eles emergem com propósito e significado bem definidos: dotar o Estado de uma determinada constituição, ou seja, de uma estrutura normativa, distinta daquela do Estado Absoluto, que promove as liberdades cidadãs por meio do controle do poder político (OTTO, 1987OTTO, Ignacio de. Derecho constitucional: sistema de fuentes. Barcelona: Editorial Ariel, S.A., 1987.; PASQUINO, 1998PASQUINO, Pasquale. Sieyès et l’invention de la constitution en France. Paris: Editions Odile Jacob, 1998.; TROPER; JAMME, 1994TROPER, Michel; JAMME, Lucien. 1789 et l’invention de La Constitution. Paris: LGDJ, 1994.).

Duas heranças informam a construção do constitucionalismo. Na origem, a matriz europeia prioriza o conteúdo da constituição, concebida como ordem normativa que incorpora os direitos humanos e a separação de poderes1 1 Esse sentido de constituição restou cristalizado no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “Toda sociedade em que não está assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação de poderes não tem constituição”. . Esse é o sentido inicial na tradição francesa. Nos Estados Unidos, diversamente, a constituição é articulada como um documento dotado de superioridade normativa, uma ferramenta de limitação do poder que não só contempla estruturas e princípios liberais, mas assume posição hierárquica superior na ordem jurídica, com a atribuição ao poder judiciário da função de garantir sua aplicação (judicial review) (FIORAVANTI, 2000FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales: apuntes de historia de las constituciones. Madrid: Trotta, 2000., p. 97-125). Na conjugação das duas tradições, o constitucionalismo passa a pressupor não apenas a enunciação de valores liberais, mas o entendimento de constituição como norma jurídica suprema dotada de imperatividade. Ao longo do século XX, especialmente no pós-guerra, ocorre uma crescente uniformização dos sistemas constitucionais, que se tornam cada vez mais semelhantes entre si. Assim, tornou-se ínsito ao conceito de Constituição tanto a dimensão material, relacionada à regulação da estrutura do estado e dos direitos, como também o aspecto formal, que se relaciona sua supremacia, ou seja, o fato de situar-se no ápice do sistema normativo (critério hierárquico)2 2 Enquanto nos Estados Unidos, já em 1803, a ideia de supremacia constitucional veio a firmar as bases do judicial review no julgamento do célebre Marbury v. Madison pela Suprema Corte, na Europa apenas no séc. XX - e mais intensamente no pós-guerra - foram estabelecidos sistemas de controle de constitucionalidade e aceita a ideia de que as normas constitucionais têm caráter jurídico. . Sob essa perspectiva, a Constituição pode ser definida, também, como como uma metanorma, que fundamenta, limita e condiciona a criação de outras normas pelo Estado (OTTO, 1987OTTO, Ignacio de. Derecho constitucional: sistema de fuentes. Barcelona: Editorial Ariel, S.A., 1987., p. 15). Nesse contexto, a consecução do propósito do constitucionalismo de limitar o poder político provém tanto do conteúdo das normas constitucionais, como da posição singular que ocupam no sistema jurídico, operando como freio ao poder legislativo.

Ocorre que o sentido liberal clássico do constitucionalismo passou por transformações, adições e questionamentos, que resultaram no uso desse aparato conceitual com diferentes contornos e finalidades. Ao longo do tempo, os usos e sentidos da constituição se multiplicaram, criando inconsistências conceituais e disputas de significado. De um lado, a noção de constitucionalismo foi atualizada pelas adaptações e adições de conteúdo que surgem como consequência natural da historicidade dos documentos constitucionais. Exemplo emblemático da expansão dos conteúdos das normas constitucionais é o constitucionalismo social do século XX. De outro lado, o conceito passou a ser manuseado com um sentido meramente descritivo da existência de uma ordem jurídica sistematizada por meio de um documento escrito, afastando-se da finalidade original de operar como freio do poder político, que informou seu surgimento e sua definição no limiar dos movimentos liberais.

É que, ao longo século XX, ordens com projetos e arquiteturas variados autonomeiam-se constitucionais. Ocorre um processo de descolamento das formas constitucionais dos conteúdos liberais. Nesse cenário, a adoção de documentos escritos qualificados como constitucionais passa a operar como um rótulo de validação de estruturas de poder autocráticas. Sistemas iliberais adotam constituições escritas, num processo de apropriação das credenciais históricas e da aura de legitimação herdada do movimento constitucionalista. As motivações desse fenômeno são intuitivas. Quando se qualifica um regime como constitucional, fica sugerido algum grau de racionalidade e limitação. Por exemplo, ao falar em monarquia, imaginamos uma realidade. Mas se mencionamos monarquia constitucional, intuímos algum grau de controle do poder e racionalidade jurídica. Nesse contexto, a forma constitucional passa a ser instrumentalizada como um invólucro que confere aparência de legitimidade3 3 Em sentido similar, Karl Loewenstein (1970, p. 214) afirma que “uma constituição democrática reveste sempre qualquer regime de uma certa respeitabilidade” (tradução livre). .

Esse fenômeno foi captado pela teoria constitucional. Na década de 60, Karl Loewenstein abordou a subversão dos usos da forma constitucional, afirmando que os novos regimes autoritários têm considerado “conveniente disfarçar o exercício da força nua por formas pseudoconstitucionais e até constituições escritas habilmente projetadas para as necessidades políticas do verdadeiro detentor do poder” (LOEWENSTEIN, 1969LOEWENSTEIN, Karl. Constitutions and constitutional law in the West and in the East. The Indian Journal of Political Science, v. 30, n. 3, p. 203-248, jul./sept. 1969., p. 206-207). A partir desse diagnóstico o autor apresenta sua conhecida classificação ontológica, pautada no grau de conformidade das constituições com a realidade (normativas, nominais e semânticas). Giovani Sartori (1962SARTORI, Giovanni. Constitutionalism: A Preliminary Discussion. The American Political Science Review, v. 56, n. 4, p. 853-864, 1962.) elabora formulação parecida, fazendo referência às constituições garantistas, que efetivamente limitam o poder, e às de fachada, que operam como formas que ocultam realidades dissociadas dos propósitos do constitucionalismo.

Atualmente, na esteira das inúmeras experiências constitucionais contemporâneas que promovem recessão das liberdades e concentração de poderes, novas nomenclaturas são sugeridas para fazer referência ao uso do maquinário do constitucionalismo com a finalidade promover fins autoritários ou encobrir realidades divergentes das descritas nas normas. Exemplos dessas construções são as categorias constitucionalismo abusivo (LANDAU, 2013LANDAU, David. Abusive Constitutionalism. University of California, Davis, v. 47, p. 189-260, 2013.) e constitucionalismo autoritário (TUSHNET, 2015TUSHNET, Mark. Authoritarian Constitutionalism. Cornell Law Review, v. 100, n. 2, p. 391-462, 2015.).

Paralelamente, o vocabulário do constitucionalismo foi transposto para as dinâmicas de poder e normatividade que se operam à margem do estado. Nesse escopo aparecem as teorias que visam a explicar variadas estruturas jurídicas e transformações nos sistemas de fontes recorrendo ao conceito de constitucionalismo. No contexto pós-nacional surgem, por exemplo, as doutrinas do pluralismo constitucional, do constitucionalismo global e do constitucionalismo societal - abordagens influentes no âmbito dos debates sobre proteção de direitos em meios digitais e que serão tratados na próxima seção.

Vê-se, assim, que na disputa teórica acerca do significado da expressão constitucionalismo e constituição, há duas grandes oposições em jogo. De um lado, a distinção que contrasta as constituições escritas e vinculantes que efetivamente cumprem a finalidade de limitar o poder político com aquelas que, a despeito de formalizar as instituições e até mesmo enunciar direitos, não cumprem a papel de constranger o exercício da autoridade. Nesse sentido, elas podem ser entendidas como constituições semânticas ou de fachada (LOEWENSTEIN, 1970______. Teoría de la Constitución. Barcelona: Ediciones Ariel, 1970.; SARTORI, 1962SARTORI, Giovanni. Constitutionalism: A Preliminary Discussion. The American Political Science Review, v. 56, n. 4, p. 853-864, 1962.), ou seja, constituições sem constitucionalismo. De outro, a controvérsia sobre se o conceito de constitucionalismo diz respeito apenas aos sistemas políticos com constituições escritas dotadas de supremacia, que visam a regular o poder estatal e o funcionamento da sociedade, ou se, diversamente, a compreensão do fenômeno constitucional pode ser dilatada para identificá-lo em outras esferas e outras épocas. Em outras palavras, essa segunda abordagem refere-se à possibilidade de falar em constituições fora ou além do Estado, que regulam poderes privados ou supranacionais.

O problema que se apresenta é se a teoria constitucional deve empregar um conceito neutro e puramente descritivo - ou até mesmo metafórico - de constituição (e, correlatamente, de constitucionalismo) para em seguida adorná-lo com adjetivos variados. Ou seja, a questão consiste em saber se é possível falar em variações de constitucionalismo que abarcam estruturas e finalidades distintas daquelas que moldaram o ideário que informou a construção do conceito. Uma análise crítica dos empregos atuais da ideia de constitucionalismo digital demonstra que a elasticidade da expressão na seara das políticas digitais pode comprometer o próprio significado, e por conseguinte, as validações embutidas na ideia de constituição. A discussão sobre desenvolvimento das variadas formas de constitucionalismo digital fala justamente de uma busca pela legitimação simbólica das características estruturantes das democracias modernas. De fato, esses recursos acompanham há muito o desenvolvimento da literatura, e até das políticas públicas, dedicadas a fundamentação e concretização da proteção de direitos online, como se demonstra na próxima seção.

2. Pactos, Deliberações e Direito na Internet

As recentes reivindicações por um constitucionalismo digital surgem em um contexto político, social e econômico definido, em grande parte, pela ideia de “Sociedade das Plataformas” (DIJCK; POELL; WAAL, 2018______; POELL, Thomas; WAAL, Martijn de. The Platform Society. New York: Oxford University Press, 2018., p. 2). A expressão empregada por José Van Dijck, Thomas Poell e Martijn de Waal captura a pervasiva intermediação tecnológica de plataformas digitais privadas que “penetraram o coração das sociedades" (Ibid. p. 2), afetando instituições, transações econômicas e práticas sociais e culturais. Nessa conjuntura, o constitucionalismo digital se apresenta, de forma geral, como uma categoria empregada pelas teorias que buscam oferecer molduras interpretativas para medidas públicas, privadas e híbridas, fundadas no objetivo de mitigar a concentração de poder econômico e político desses agentes. Diante de empresas privadas que comandam uma infraestrutura própria e decisões que afetam bilhões de pessoas, os debates regulatórios e acadêmicos buscam soluções que garantam acesso a direitos e a realização de autodeterminação individual e coletiva nesses ambientes. Voltam-se, assim, às ideias de estado de direito (SUZOR, 2018______. Digital Constitutionalism: Using the Rule of Law to Evaluate the Legitimacy of Governance by Platforms. Social Media + Society, v. 4, n. 3, p. 1-11, 2018.), democracia representativa e constitucionalismo (CELESTE, 2019aCELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers & Technology, v. 33, n. 1, p. 76-99, 2019a., p. 76-99), como forma de reinserir, no ambiente digital, os valores que inspiraram os arranjos políticos democrático-liberais. Especificamente em relação ao constitucionalismo, Brian Fitzgerald, por exemplo, propôs em 1999FITZGERALD, Brian. Software as Discourse? A Constitutionalism for Information Society. Alternative Law Journal, v. 24, n. 3, p. 144-149, 1999. um “constitucionalismo informacional” (FITZGERALD, 1999FITZGERALD, Brian. Software as Discourse? A Constitutionalism for Information Society. Alternative Law Journal, v. 24, n. 3, p. 144-149, 1999.). Sendo a sociedade da informação um fenômeno global, intangível e descentralizado, Fitzgerald reconhecia o papel de entes privados como protagonistas de governança dotados de poder coercitivo. Assim, seu constitucionalismo informacional enfatizava o papel do direito estatal (em especial, direito autoral, contratual, da concorrência e defesa da privacidade) em delimitar a autorregulação de atores privados.

No mesmo contexto, Paul Berman (2000BERMAN, Paul Schiff. Cyberspace and the State Action Debate: The Cultural Value of Applying Constitutional Norms to “Private” Regulation. University of Colorado Law Review, v. 71, n. 4, p. 1263-1310, 2000.) recorre à noção de "constitucionalismo constitutivo", ressaltando os benefícios culturais que advém do uso da moldura constitucional para tratar de valores fundamentais na esfera pública e privada. O autor busca uma solução alternativa para contornar a doutrina americana da ação estatal4 4 A teoria da ação estatal (state action doctrine) foi formulada pela Suprema Corte dos Estados Unidos a partir dos anos 1940, no contexto da discussão sobre a possibilidade de aplicação de direitos civis nas relações jurídicas entre pessoas privadas. A Corte usa a teoria como parâmetro para afirmar que os direitos constitucionais incidem na esfera privada apenas nos casos em que há algum grau de participação do Estado na violação ao direito, ou quando os particulares desempenham papéis análogos aos estatais. A doutrina em questão é reflexo do modelo de constitucionalismo estadunidense, que tende a conceber a constituição como mero instrumento para assegurar aos indivíduos espaços livres da interferência estatal. Apesar de dominante na jurisprudência, há um amplo debate acadêmico sobre a referida doutrina. Sobre o tema, cf. PEREIRA, 2006, p. 475-483; GLENNON; NOWAK, 1976; MINOW, 2017. e submeter os atores privados ao direito constitucional nacional. Em seu modelo, as cortes exerceriam um papel educativo, formulando narrativas que integram a identidade constitucional. Conforme explica Celeste (2019aCELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers & Technology, v. 33, n. 1, p. 76-99, 2019a., p. 82-83), ao contrário de Fitzgerald, Berman considera as leis ordinárias insuficientes para limitar o poder privado em ambientes digitais, defendendo, assim, sua submissão às limitações constitucionais, incluindo nessa tarefa a atividade judicial.

A invocação dos conceitos que carregam as promessas da modernidade acompanha a evolução da infraestrutura da Internet e dos processos de interpretação e significação política em seu torno desde que a rede se expandiu para o uso civil. No início da década de 1990, a Internet se apresenta como um meio que oferece oportunidades distintas de comunicação interpessoal e coletiva, aparentemente à margem das infraestruturas tradicionais. As narrativas e decisões técnicas que moldaram a Internet na forma que se apresenta hoje são indissociáveis de outros fatores que constituíram o contexto político da “modernidade tardia”5 5 Baseada na obra de Giddens (1991), Hofmann (2019) posiciona o reconhecimento da Internet, e dos próprios computadores, como oferta de novas possibilidades, em um período referido pelo autor como “modernidade tardia” (“late modernity”, na expressão original em inglês). Em meio a outras abordagens, a narrativa de Giddens sobre os anos finais do século XX reflete o fim de um período social estável que marcou o Norte global após a Segunda Guerra Mundial. Tal modelo seria caracterizado, dentre outros aspectos, por um estado fortalecido (que assumiu a responsabilidade pela prosperidade e estabilidade da economia, pelo bem-estar de seus cidadãos, incluindo a disponibilidade universal e a qualidade de suas infraestruturas públicas) e um alto nível de organização coletiva na forma de partidos políticos, sindicatos, associações comerciais e uma estratificação social estabilizada através de normas sociais amplamente compartilhadas. Essa “modernidade organizada” teria sido substituída pela “modernidade tardia” quando “normas culturais começaram a se diversificar, as identidades coletivas na forma de classes e partidos políticos perderam coesão, os mercados se expandiram cada vez mais além do Estado-nação e desafiaram o modelo de Estado-providência paternalista. A inovação econômica, a liberdade individual e a diversidade cultural tornaram-se referências em seu próprio direito e formaram uma força concorrente contra as regras e costumes dominantes.” (Ibid., p. 7). . Ao lado da diversificação de normas sociais, identidades coletivas e do surgimento de novas formas de participação política, destaca-se a emergência de um paradigma neoliberal que impulsionou a privatização das infraestruturas públicas de telecomunicações (HOFMANN, 2019HOFMANN, Jeanette. Mediated democracy - Linking digital technology to political agency. Internet Policy Review, v. 8, n. 2, p. 1-18, 2019., p. 8). É nesse ambiente que se desenvolve a literatura de ciências sociais e da computação inicialmente dedicada à Internet, marcada por clamores em favor de novas ordens políticas, econômicas e sociais que se mostrassem mais aderentes ao paradigma tecnológico e cultural. Reivindicavam-se novos pactos, normas, processos deliberativos comunitários e meios alternativos de implementação das normas acordadas. Ícone do pensamento libertário que motivava os cientistas da computação que participaram dessa fase de desenvolvimento da rede, a “Declaração de Independência do Ciberespaço” reflete essas pretensões em tom quase ingênuo, ao afirmar, por exemplo, que

Os governos derivam seus justos poderes do consentimento dos governados. Não solicitaram nem receberam os nossos. Nós não o convidamos. Vocês não nos conhecem, nem conhecem nosso mundo. O ciberespaço não está dentro de suas fronteiras. Não pense que você pode construí-lo, como se fosse um projeto de construção pública. Você não pode. É um ato da natureza e ele cresce por si mesmo através de nossas ações coletivas. (BARLOW, 1996BARLOW, Joe Perry. Declaration of Independence of Cyberspace. Electronic Frontier Foundation, Davos, Suíça, 8 fev. 1996. Disponível em <https://www.eff.org/cyberspace-independence>. Acesso em: 10 out. 2022.
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No contexto econômico de enfraquecimento do protagonismo estatal, essas pretensões pendiam-se para a construção de arranjos deslocados da regulação direta estatal. Em referência ao trabalho de Turner (2006TURNER, F. From Counterculture to Cyberculture: Stewart Brand, the Whole Earth Network, and the Rise of Digital Utopianism. Chicago; London: University of Chicago Press, 2006.), Jeanette Hofmann (2019HOFMANN, Jeanette. Mediated democracy - Linking digital technology to political agency. Internet Policy Review, v. 8, n. 2, p. 1-18, 2019., p. 8) identifica o papel da Internet como um protótipo de “‘formas de organização econômica em rede’ que aplanariam as hierarquias burocráticas, tanto públicas quanto privadas, e proporcionariam formas de trabalho autodeterminadas”, liberando o “empresário individual”. Na síntese da autora, o ciberespaço figurava, na literatura, “como precursor de uma ordem social pós-nacional regida por códigos e consensos de baixo para cima, em vez de leis nacionais” (Ibid. p. 8).

A ideia de que o ambiente virtual estaria à margem das “forças mais longas e profundas que moldaram a história da humanidade” (WU, 2010WU, Tim. Is Internet Exceptionalism Dead? In: SZOKA, Berim e MARCUS, Adam (Eds.). The Next Digital Decade: Essays on The Future of Internet. Washington, DC: TechFreedom, 2010, p. 179-188., p. 180) era o cerne da corrente teórica conhecida como excepcionalismo. Guardadas suas variações, os autores excepcionalistas entendiam que, em última instância, as características “únicas” da Internet a tornariam uma exceção às redes de comunicação que a precederam, impedindo a aderência das formas tradicionais do direito às relações sociais virtuais6 6 Esse impedimento poderia se referir tanto à impossibilidade absoluta de aplicação do direito, quanto à necessidade de uma abordagem regulatória específica. Para estas e outras variações das teorias expecionalistas, v. KELLER, 2019, cap. 3. . Para David Post e David Johnson (1996JOHNSON, David R.; POST, David. Law and Borders - The Rise of Law in Cyberspace. Stanford Law Review, v. 48, n. 5, p. 1367-1402, 1996., 1371), por exemplo, tal impossibilidade se daria em razão da necessidade de um marco regulatório independente de jurisdições territoriais, dado que a Internet subverteria a produção de normas constritas a espaços físicos. Autores como o já citado Barlow (1996BARLOW, Joe Perry. Declaration of Independence of Cyberspace. Electronic Frontier Foundation, Davos, Suíça, 8 fev. 1996. Disponível em <https://www.eff.org/cyberspace-independence>. Acesso em: 10 out. 2022.
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), por sua vez, referiam essa singularidade à construção de um espaço supostamente além das capacidades de instituições políticas tradicionais, recusando a legitimidade dos governos e defendendo, assim, a sua organização a partir da autodeterminação da comunidade virtual. Em determinado grau, esse entendimento influenciou a gênese dos primeiros órgãos multissetoriais responsáveis por deliberar e implementar os protocolos técnicos de operação da Internet - instituições iniciadas pelos acadêmicos que protagonizaram esse desenvolvimento inicial e, por conseguinte, a literatura inicial. Por exemplo, um dos lemas da IETF - “Internet Engineering Task Force” -, inicialmente cunhado em palestra de David Clark, preconizava “Nós rejeitamos: reis, presidentes e votação. Acreditamos em: um consenso aproximado e programação” (BORSOOK, 1995BORSOOK, Paulina. How Anarchy works. Wired, [s.l], 01 oct. 1995. Disponível em: <https://www.wired.com/1995/10/ietf/>. Acesso em: 12 out. 2022.
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).

O excepcionalismo pode ser entendido como um fenômeno duradouro se considerarmos que as singularidades da Internet como rede de comunicação inspirariam não necessariamente a impertinência da intervenção estatal. Em versões alternativas, ele também figura como base teórica (ou ideológica) de soluções regulatórias particulares e distintas daquelas tradicionalmente empregadas no campo das (tele)comunicações7 7 Nesse sentido, destaca-se o trabalho de Eric Goldman (2008), que verifica três ondas de influência dessas ideias sobre a formulação de políticas públicas direcionadas à Internet. À primeira delas, identificada como “Utopia da Internet”, o autor associa as propostas regulatórias que dedicavam a ela tratamento distinto do que é aplicado a outras mídias, baseando-se na premissa de que a sua tecnologia única superaria os problemas estruturais das que a precederam. A segunda onda se referiria à “Paranoia da Internet”, um período em que a singularidade da Internet ainda é reconhecida, mas ao invés de inspirar um tratamento mais favorável, justificou proposições que tratavam os serviços prestados através dela de forma mais rigorosa (seria o caso das tecnologias de filtro de conteúdo, conhecidas por implementar mecanismos de censura privada com restrições desproporcionais a liberdade de expressão). Por fim, a terceira onda identificada seria a “Proliferação do Excepcionalismo”, quando o surgimento de cada nova tecnologia baseada na Internet inspirou regulações específicas a ela direcionadas. Aqui, ele identifica um movimento de multiplicação de quadros regulatórios específicos a serviços e enquadra as regulações direcionadas, por exemplo, a serviços de streaming e sites de redes sociais, que recebem tratamento próprio. . Contudo, a pretensão de um espaço auto-organizado fundado em deliberação comunitária não determina a forma como a infraestrutura da Internet e as relações de governança ao seu redor evoluíram. Empiricamente, os estados-nação desde sempre invocaram a sua competência para conformar o espaço virtual ao direito posto. A despeito de dificuldades de implementação aderente à realidade virtual - já que as estratégias tradicionais de implementação do direito sempre esbarraram na intermediação privada8 8 Os limites das ferramentas das democracias liberais para governar a Internet já foram reconhecidos pela literatura, principalmente em relação aos limites de atuação derivados da proteção das liberdades de comunicação e expressão. A legislação estatutária e as medidas administrativas promoveram uma série de mecanismos que têm sua legitimidade questionada (por restringirem desproporcionalmente as liberdades civis) ou se mostram pouco eficientes (pois os mecanismos implementados não são capazes de lidar com os danos que inspiraram sua implementação). Essas políticas vão desde bloqueios gerais de acesso à Internet até a filtragem mandatória de conteúdo e a atribuição de responsabilidade criminal a usuários. Além dos riscos à democracia que acompanham essas estratégias, elas também adiaram debates sobre estratégias regulatórias inovadoras que poderiam se aplicar às plataformas digitais. Por sua vez, as decisões judiciais, fóruns legítimos para a resolução de conflitos entre direitos, também se revelam limitada para conter determinados comportamentos online, por motivos diversos. Em especial, as características institucionais que moldam as competências do poder judiciário na separação democrática de poderes (como sua falta de especialização setorial e seletividade) podem resultar em decisões que não surtam os efeitos pretendidos nos espaços digitais. Nesse sentido, refere-se a KELLER, 2020. -, as leis vigentes sempre se aplicaram, ao menos em tese, ao ambiente virtual. Não poderia, por exemplo, “não haver” de todo regulação de conteúdo, visto que os arcabouços jurídicos há muito se ocupam de estabelecer regras de responsabilização civil e criminal cuja aplicação não é questionável (MARSDEN, 2011MARSDEN, Christopher T. Internet Co-regulation: European Law, Regulatory Governance and Legitimacy in Cyberspace. Cambridge: Cambridge University Press, 2011., p. 51) - ainda que a implementação das leis por meio de mecanismos tradicionais do direito tenha sido desde o início desafiadora e até problemática. No Brasil, por exemplo, os debates legislativos com esse objetivo começaram na primeira metade da década de 1990, nos primeiros estágios de desenvolvimento da Internet Brasileira. Uma das primeiras propostas relevantes, que resultou na Lei 12.735/2012 (conhecida como “Lei Azeredo”) foi iniciada na Câmara dos Deputados ainda na década de 90, com foco em aperfeiçoar a responsabilização criminal de usuários da Internet. Tendo sido aprovada em 2012, junto com outras propostas a Lei Azeredo influenciou os debates legislativos que culminaram na aprovação do Marco Civil da Internet em 2014 (Lei 12.965/2014). Movimentos legislativos semelhantes aconteceram nos Estados Unidos, onde o regime de responsabilidade de intermediários9 9 Sobre os regimes de responsabilidade de intermediários, ver KELLER, 2019, cap. 4 e KELLER, 2020. até hoje vigente foi aprovado em 1996, na forma do artigo 230 do CDA - Communications Decency Act. No ano de 2011, o país debateu propostas legislativas na mesma linha da Lei Azeredo, que ficaram internacionalmente conhecidas como SOPA/PIPA. A possibilidade de criminalização da conduta de usuários da Internet iniciou uma intensa disputa, protagonizada principalmente pela sociedade civil, e as propostas SOPA/PIPA deram lugar a táticas menos transparentes de coação de empresas digitais em prol da proteção de direito autoral10 10 Para uma análise detalhada dessas práticas e desse cenário, v. TUSIKOV, 2017. . Também na experiência europeia, no ano 2000 foi adotada a Diretiva de E-commerce, que estabeleceu o regime de responsabilidade de intermediários da Comunidade e outros fundamentos da regulação da Internet, então centrado na regulamentação em práticas de comércio digital. Dentre tantos, esses exemplos mostram que a atenção legislativa em diferentes contextos nacionais se volta para a Internet há pelo menos duas décadas, ainda que tenha sido insuficiente para deter a atual concentração de poder das plataformas digitais. Em propostas legislativas mais recentes, observa-se uma tendência a ampliar os instrumentos regulatórios já utilizados. É o caso, por exemplo, do Regulamento Europeu de Serviços Digitais (SERVIÇOS, 2022), e de algumas propostas legislativas em curso no parlamento brasileiro11 11 Ao tempo de encerramento deste texto, tais propostas são debatidas sob a tramitação do PL 2.630/2020. . Além de delimitação de regimes de responsabilização por danos, essas iniciativas propõem que as plataformas estejam sujeitas a deveres de cuidado imbuídos em suas práticas. Trata-se de obrigações que visam, por exemplo, à promoção maior transparência em sentido amplo (englobando desde o volume de decisões de retirada de conteúdo, até bibliotecas de anúncio e parcerias comerciais), à edição de regras que incrementem a segurança jurídica de práticas de moderação de conteúdo, e até mesmo à apresentação de propostas limitando o uso de dados pelas plataformas para determinados fins.

Na teoria, observa-se a construção de uma literatura, a princípio representada por Joel Reidenberg (1998REIDENBERG, Joel R. Lex Informatica: The Formulation of Information Policy Rules Through Technology. Texas Law Review, vol. 76, n. 3, p. 553-593, 1998.) e Lawrence Lessig (2006LESSIG, Lawrence. Code: and Other Laws of Cyberspace, Version 2.0. New York: Basic Books, 2006.), baseada na ideia de regulação por arquitetura de código, que contribuiu para a consolidação de uma epistemologia segundo a qual a Internet, além de submissa às diversas justificativas tradicionais para a intervenção estatal, é um ambiente regulado em si. Reidenberg introduziu a ideia de regulação por arquitetura, da qual se depreende que as capacidades tecnológicas e a forma como os sistemas são desenhados impõem regras aos seus usuários. Nesse sentido, a criação e implementação de políticas de informação seriam inerentes ao desenho das redes e suas configurações. Lessig, por sua vez, constrói sua teoria a partir do reconhecimento de quatro modalidades de regulação - leis, normas sociais, mercados e arquitetura. Aplicando essa classificação à Internet, o autor conclui que a modalidade de regulação “arquitetura” (LESSIG, 2006LESSIG, Lawrence. Code: and Other Laws of Cyberspace, Version 2.0. New York: Basic Books, 2006., p. 568), equivalente à programação por código que dá forma aos ambientes digitais, tem destaque em sua eficácia, enquanto as outras formas de influenciar ou determinar comportamentos seriam mais limitadas por dinâmicas do ambiente digital, inclusive o próprio código. A percepção da Internet como um espaço regulado e regulável também marcava o trabalho produzido à época por Cass Sunstein (2002SUNSTEIN, Cass. Republic.com. Princeton: Princeton University Press, 2002., p. 174). Além de identificar a necessidade de endereçar, no ambiente virtual, os mesmos males que ameaçam o convívio político-social no mundo físico, o autor destaca a impossibilidade de governança da Internet construída a partir de um consenso entre seus próprios usuários e paralela a demais formas de regulação.

Nessa conjuntura, academia e setores diversos da sociedade conduziram o debate sobre a conformação da Internet ao direito como uma questão sobre quais seriam os meios adequados para aplicar normas jurídicas em um ambiente definido pela arquitetura das redes. Sendo essas discussões orientadas pelo contexto político e econômico calcado nas limitações da burocracia estatal, é possível dizer que a regulação da Internet acaba anexada a um conjunto de teorias já existentes, dedicadas a legitimar as alternativas à insuficiência do direito estatal. Refere-se, aqui, às abordagens dedicadas a um debate maior sobre funções, modos e estratégias relevantes para a regulação de ambientes globalizados, complexos e marcados pela incerteza de conhecimento. As dificuldades de aplicação do direito pelas vias estatais, somada ao surgimento de subsistemas híbridos de governança, figuram como um fenômeno comum subjacente, que desencadeia consequências teóricas e empíricas segmentadas, expressas a partir de teorias diferentes e não necessariamente ancorados no conceito de constituição ou de constitucionalismo.

Constituem exemplos dessa tendência as teorias do “Direito Administrativo Global”, que se definem pela criação de regras de direito administrativo de alcance global por uma rede de agentes públicos e privados que não se confundem com a figura do Estado (DIMITROPOULOS, 2012DIMITROPOULOS, Georgios. Global Administrative Law as 'Enabling Law': How to Monitor and Evaluate Indicator-Based Performance of Global Actors. IRPA Working Paper GAL Series n. 7/2012, 20 oct. 2012. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2167405>. Acesso em: 28 nov. 2018.
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). O ICANN, entidade responsável pela administração de endereços de protocolo IP e de nomes domínio, é um dos exemplos habituais de entidade privada dotada de competências regulatórias com escopo global (BINENBOJM, 2016BINENBOJM, Gustavo. Poder de Polícia, Ordenação, Regulação: Transformações Político-Jurídicas, Econômicas e Institucionais do Direito Administrativo Ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2016., p. 311). A partir da observação de transformações teóricas e empíricas que “desafiam a ideia de que a regulação seria orientada para as capacidades do Estado”, Colin Scott (2004SCOTT, Colin. Regulation in the Age of Governance: the rise of the post-regulatory state. In: JORDANA, Jacin; LEVI-FAUR, David (Eds.). The Politics of Regulation: Institutions and Regulatory Reform for the Age of Governance. Cheltenham: Edward Elgar, 2004., p. 146) cunha a expressão “Estado Pós-Regulatório”, que figuraria como o estágio posterior ao Estado Regulatório. Ao contrário deste último, onde a centralidade da atividade regulatória é reconhecida na máquina estado, Scott entende que o “Estado Pós-Regulatório” seria marcado por fronteiras, antes distintas, ora borradas, entre os Estados e os Mercados, entre o que é público e privado. Toma forma, assim, através de uma variedade além-Estado de normas, de mecanismos de controle, controladores e até de controlados (Ibid., p. 166). A teoria de Scott foi adaptada para a Internet por Andrew Murray (2008MURRAY, Andrew. Conceptualising the Post-Regulatory (Cyber)state. In: BROWNSWORD, Roger; YEUNG, Karen (Org). Regulating technologies: legal futures, regulatory frames and technological fixes. Oxford: Hart, 2008., p. 301), que se refere ao “Ciberestado pós-regulatório” como um paradigma de regulação da Internet marcado pela pertinência de formas indiretas e híbridas de regulação. Segundo Murray, a teorização de um “Ciberestado Pós Regulatório” sucederia as doutrinas que defendem a aplicação das formas tradicionais de regulação ao mundo virtual. Defende, assim, a construção de um marco teórico próprio, ao invés do transplante do direito tradicional sem uma avaliação da matriz regulatória desse ambiente complexo, global e interconectado.

Também no âmbito do constitucionalismo há teorias que foram absorvidas pelo debate de regulação digital, que buscam explicar as metamorfoses nas relações jurídicas por meio reformulações do conceito de constituição. Elas inspiram algumas aplicações do “constitucionalismo digital”, apoiando-se no diagnóstico de que há novos espaços normativos que ultrapassam os Estados-nação. Os exemplos mais representativos são as teorias que sustentam a existência do constitucionalismo global (PETERS, 2009______. The Merits of Global Constitutionalism. Indiana Journal of Global Legal Studies, v. 16, n. 2, p. 397-411, 2009.; FASSBENDER, 2009FASSBENDER, Bardo. The United Nations Charter as the Constitution of the International Community. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2009.; KUMM, 2018KUMM, Mattias. On the History and Theory of Global Constitutionalism. In: SUAMI, T. et al. (Eds.). Global Constitutionalism from European and East Asian Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 2018, p. 168-200.) e do constitucionalismo societal (SCIULLI, 1992SCIULLI, David. Theory of Societal Constitutionalism: Foundations of a Non-Marxist Critical Theory. Cambridge, NY: Cambridge University Press, 1992.; TEUBNER, 2014TEUBNER, Gunther. Constitutional fragments: societal constitutionalism and globalization. Oxford: Oxford University Press, 2014.) como categorias explicativas do fenômeno de transnacionalização e privatização da esfera política. Diversamente da narrativa relacionada à ampliação do escopo dos poderes regulatórios em escala transnacional (como as abordagens anteriormente citadas), essas teorias buscam interpretar a nova correlação de poderes normativos recorrendo aos conceitos de constituição e de constitucionalismo. Todavia, elas contestam os pilares definidores do constitucionalismo concebido pela teoria política moderna, ao rejeitar a ideia de que o conceito de constituição pressupõe um sistema normativo institucional dotado de supremacia, orientado à organização das forças sociopolíticas e que protege os indivíduos por meio de um conjunto de metanormas que fundamentam a validade do ordenamento.

Em linhas gerais, tais correntes são desenvolvimentos da perspectiva pluralista do fenômeno jurídico, abarcando uma série de variantes que se encaixam na escola de pensamento qualificada como pluralismo constitucional. O termo pluralismo constitucional aparece na literatura jurídica na esteira da decisão da Corte Constitucional Alemã a respeito do Tratado de Maastricht (MACCORMICK, 1995MACCORMICK, Neil. The Maastricht Urteil: Sovereignty Now. European Law Journal, v. 1, n. 3, p. 259-266, 1995.; LOUGHLIN, 2014LOUGHLIN, Martin. Constitutional pluralism: An oxymoron? Global Constitutionalism, v. 3, n. 1, p. 9-30, 2014.; WALKER, 2002WALKER, Neil. The Idea of Constitutional Pluralism. The Modern Law Review, v. 65, n. 3, p. 317-359, 2002.), servindo como ponto de partida para diversas discussões relacionadas à configuração da ordem jurídica internacional. A ideia subjacente é de que, onde há várias ordens jurídicas simultaneamente em ação, que funcionam de acordo com uma “constituição” própria e que invocam legitimidade autônoma, sem que haja hierarquia formal entre elas, está presente o pluralismo constitucional (LOUGHLIN, 2014). Nessa moldura teórica, a questão relativa à existência de uma norma suprema é relativizada pela noção de que há várias ordens constitucionais parciais, institucionais ou privadas, que não estão submetidas umas às outras (TEUBNER, 2014TEUBNER, Gunther. Constitutional fragments: societal constitutionalism and globalization. Oxford: Oxford University Press, 2014., passim), ou, em outras perspectivas pluralistas, de estas ordens são integradas entre si por princípios constitucionais transnacionais (KUMM, 2018KUMM, Mattias. On the History and Theory of Global Constitutionalism. In: SUAMI, T. et al. (Eds.). Global Constitutionalism from European and East Asian Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press, 2018, p. 168-200.).

Constitucionalismo global é um conceito empregado pela matriz teórica que preconiza a adaptação de princípios tradicionalmente constitucionais para as relações entre estados (internacionais) e além dos estados (transnacionais), visando a incrementar a legitimidade e justiça na esfera jurídica global. Alguns defensores da constitucionalização da ordem internacional a entendem como manifestação do arranjo político que surge no contexto pós-guerra, especialmente com o advento da Carta das Nações Unidas (FASSBENDER, 2009FASSBENDER, Bardo. The United Nations Charter as the Constitution of the International Community. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2009.); outros, a relacionam à progressiva fragmentação do direito internacional que começa no final do século XX (PETERS, 2012PETERS, Anne. Are we Moving towards Constitutionalization of the World Community? In: CASSESE, Antonio (Ed.). Realizing Utopia: The Future of International Law. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 118-35., p. 118-135). Em termos mais amplos, o constitucionalismo global se apresenta como uma “agenda acadêmica e política que advoga a aplicação de princípios constitucionais na esfera jurídica internacional, de forma a aperfeiçoar a efetividade e equidade da ordem legal” (PETERS, 2009, p. 397). Volta-se, assim, para a promoção de princípios constitucionais no que toca a coordenação de soluções para problemas essencialmente globais, como a crise climática, terrorismo internacional, regulação do sistema financeiro internacional e as relações de governança na Internet. Para Ingolf Pernice, o marco constitucional global deve ser entendido como uma forma de constitucionalismo multinível, em que a primazia do indivíduo exigiria a consideração de ordens constitucionais públicas e privadas nos planos subestatal, estatal, regional (como é o caso da UE) e global (PERNICE, 2015PERNICE, Ingolf. Global Constitutionalism and the Internet. Taking People Seriously. HIIG Discussion Paper Series, Discussion Paper Number, 2015-01, 2015. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2576697>. Acesso em: 10 out. 2022.
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). Como destaca Celeste, a leitura em questão envolve uma dupla abordagem da Internet (CELESTE, 2023______. Digital Constitutionalism: The Role of Internet Bills of Rights. New York: Routledge, 2023.), que opera tanto como catalisador do constitucionalismo global multinível (PERNICE, 2015, p. 6) - incrementando sua legitimidade ao conectar indivíduos e permitir participação democrática nessa esfera mais ampla - quanto como objeto do modelo global de governança. Assim, o próprio alcance mundial da Internet inspiraria um constitucionalismo conduzido por atores além do Estado, o qual, última instância, figuraria como um dos vários constitucionalismos que integram o mosaico multinível do constitucionalismo global (CELESTE, 2023).

Enquanto o constitucionalismo global enfatiza as engrenagens institucionais da ordem internacional, o constitucionalismo societal coloca também em perspectiva a dimensão privada da globalização. Para essa escola, processos constitucionais não acontecem apenas em sistemas jurídicos estatais, mas também em sistemas privados e híbridos (GOLIA; TEUBNER, 2021______. Beyond Oversight: Advancing Societal Constitutionalism in the Age of Surveillance Capitalism. Papers SSRN, 26 mar. 2021. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/abstract=3793219>. Acesso em: 20 out. 2022.
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). O conceito tem sido empregado como ferramenta explicativa das ordens normativas que operam fora do Estado, sobretudo nas relações econômicas transnacionais e no domínio digital. Trata-se de uma forma radical de pluralismo jurídico, que concebe a existência de constituições parciais nos mais variados campos regulatórios. Ao argumentar em favor da teoria do constitucionalismo societal, Gunther Teubner fala na necessidade de “abandonar a falsa premissa de que a constitucionalização significa a transformação de um grupo de indivíduos em um ator coletivo”, e admitir a função constitucional das iniciativas autorregulatórias de atores privados. O autor identifica, como manifestações do fenômeno, a emergência de normas constitucionais de alta hierarquia em organizações internacionais como a Organização Mundial do Comércio. Indo além, aponta a existência de diversas “constituições parciais” na sociedade civil e na esfera transnacional, em domínios variados como o da economia, ciência, cultura, esportes e tecnologia, e faz alusão, até mesmo a um “constitucionalismo corporativo”, como expressão da atividade autorregulatória das empresas transnacionais. Como as demais teorias citadas até aqui, o constitucionalismo societal pauta a busca por soluções teóricas e normativas para a proteção de direitos online. Mais uma vez, o ICANN figura como exemplo paradigmático. Na obra de Teubner, a instituição aparece como uma das expressões do próprio constitucionalismo societal, enquanto organização privada marcada por um processo de constitucionalização. Notadamente, pelo desenvolvimento gradual de representação funcional e territorial, surgem formas de separação de poderes a partir de uma jurisdição efetiva sobre a alocação de nomes de domínio (TEUBNER, 2014, p. 55).

Além disso, o constitucionalismo societal aparece, isoladamente ou em conjunto com outras teorias, como a principal moldura dos trabalhos dedicados a construir, avançar ou problematizar o conceito de constitucionalismo digital (REDEKER; GILL; GASSER, 2018REDEKER, Dennis; GILL, Lex; GASSER, Urs. Towards digital constitutionalism? Mapping attempts to craft an Internet Bill of Rights. The International Communication Gazette, v. 80, n. 4, p. 302-319, 2018.; PADOVAN; SANTANIELLO, 2018SANTANIELLO, Mauro et al. The language of digital constitutionalism and the role of national parliaments. The International Communication Gazette, v. 80, n. 4, p. 320-336, 2018.; CELESTE, 2019aCELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers & Technology, v. 33, n. 1, p. 76-99, 2019a.; DE GREGORIO, 2022DE GREGORIO, Giovanni, Digital Constitutionalism in Europe: Reframing Rights and Powers in the Algorithmic Society. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2022.; GOLIA, 2022GOLIA, Angelo Jr. The Critique of Digital Constitutionalism. Max Planck Institute for Comparative Public Law & International Law (MPIL), Research Paper No. 2022-13, 2021. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=4145813>. Acesso em: 18 out. 2022.
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). As premissas de legitimação de ordens privadas através de arranjos normativos e funcionais organizados fora do Estado informa uma ampla gama de teorias de constitucionalismo digital. A variedade de visões abarca desde aquelas que o veem como uma derivação “online” do constitucionalismo societal - como expressão máxima em um determinado tipo de documento, conforme se vê a seguir -, até as que o apresentam como mero rótulo para descrever ações privadas e estatais que têm por objetivo dirimir a concentração de poder de plataformas digitais.

Como demonstrado, todas essas teorias apontam para a Internet como amostra empírica representativa dos seus preceitos. Apesar de se aplicarem a campos do conhecimento distintos, a Internet de fato surge como paradigma de experimentação desses meios de conformação que estão além das capacidades do Estado. Os desafios postos pela sua natureza técnica à implementação do direito a colocam como epítome das limitações do Estado regulatório e das consequências dessas limitações para os projetos democráticos.

A reflexão sobre até que ponto cabe dilatar a moldura original do constitucionalismo para definir essa diversidade de abordagens atravessa o presente trabalho. Na próxima seção, oferecemos um apanhado das teorias mais recentes do constitucionalismo digital, justamente como forma de apontar a elasticidade da expressão e as inconsistências conceituais que inspiram nossa crítica.

3. Constitucionalismo(s) Digital(is) - variações e imprecisões

O “Constitucionalismo Digital” tem servido como rótulo para diferentes abordagens acerca da proteção de direitos nas plataformas digitais das quais decorrem consequências teóricas e empíricas distintas. Os empregos da expressão compreendem desde a descrição de documentos normativos ou soluções regulatórias privadas específicas para as plataformas, até os processos tradicionais de aplicação da lei do Estado. Instaurou-se, assim, uma desordem conceitual que compromete a integridade epistêmica do constitucionalismo digital e sua utilidade como teoria explicativa e de legitimação.

Guardados os traços que as distinguem, essas abordagens variadas podem ser reunidas em três grupos. Enquanto fenômeno normativo, o constitucionalismo digital se refere a uma “constelação de iniciativas que procuraram articular um conjunto de direitos políticos, normas e limites de governança sobre o exercício de poder no âmbito da Internet” (REDEKER; GILL; GASSER, 2018REDEKER, Dennis; GILL, Lex; GASSER, Urs. Towards digital constitutionalism? Mapping attempts to craft an Internet Bill of Rights. The International Communication Gazette, v. 80, n. 4, p. 302-319, 2018., p. 2)12 12 No mesmo sentido, v. SANTANIELLO et al, 2018. . Os primeiros trabalhos a identificar essa categoria de constitucionalismo digital tentavam dar sentido a uma ordem de instrumentos normativos, de origens pública, privada e híbrida (e por conseguinte, dotados de graus de vinculação diferentes). Para Claudia Padovani e Mauro Santaniello (2018SANTANIELLO, Mauro et al. The language of digital constitutionalism and the role of national parliaments. The International Communication Gazette, v. 80, n. 4, p. 320-336, 2018., p. 296), essas iniciativas se diferenciam substancialmente daquelas anteriormente defendidas pela comunidade científica da Internet por privilegiar a proteção da pessoa humana e seus direitos fundamentais (em oposição à consignação e proteção de uma determinada arquitetura de rede). Tendo em comum a adoção de uma linguagem constitucional, tais documentos têm por objetivo a consolidação13 13 Às vezes, até precedida de um processo deliberativo multissetorial, como é o caso, por exemplo, dos princípios acordados no âmbito da NET.Mundial. de princípios de interesse público capazes de orientar as relações no mundo virtual - como, por exemplo, a preservação e promoção da liberdade de expressão, a não-discriminação, a igualdade de acesso e a promoção da inovação. Dentre tais documentos estão cartas acordadas por representantes do terceiro setor ou multissetoriais, declarações oficiais, diretrizes, termos de serviços e outros instrumentos contratuais e até atos legislativos. O próprio Marco Civil da Internet Brasileiro pode ser considerado a epítome do constitucionalismo digital positivado. A gramática constitucional do Marco Civil (MONCAU; ARGUELHES, 2020MONCAU, Luiz Fernando Marrey; ARGUELHES, Diego Werneck. Marco Civil da Internet and Digital Constitutionalism. FROSIO, Giancarlo (Ed.). The Oxford Handbook of Intermediary Liability Online. Oxford: Oxford University Press, 2020, p. 190-213.), cuja redação “estabelece os princípios, garantias, direitos e deveres para uso da Internet no Brasil” (Lei 12.965/2014, art. 1º), rendeu ao diploma a alcunha de “Constituição da Internet” (CELESTE, 2019aCELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers & Technology, v. 33, n. 1, p. 76-99, 2019a., p. 86).

Essa abordagem do constitucionalismo digital volta sua atenção para o conteúdo das normas regulatórias, buscando identificar em que medida empregam uma linguagem tipicamente constitucional14 14 Nesse sentido é também o diagnóstico de Luiz Fernando Marrey Moncau e Diego Werneck Arguelhes (2020). . A constelação jurídica em questão não engloba apenas os documentos formalmente constitucionais, ou sequer os exclusivamente estatais. Independe, assim, de um processo constitucional ancorado na representação popular, mas presume que os processos de constitucionalização são identificados pela “emergência, criação e identificação de elementos constitucionais” (PETERS, 2006______. Compensatory Constitutionalism: The Function and Potential of Fundamental International Norms and Structures. Leiden Journal of International Law, v. 19, p. 579-610, 2006., p. 582).

Apesar de compreenderem a defesa desses direitos frente a esferas públicas e privadas de poder, os instrumentos de constitucionalismo digital podem ser associados a movimentos que ultrapassam os atos oficiais do estado, alcançando o domínio das empresas privadas e representando, substantivamente, um passo mais ousado do que o constitucionalismo tradicional permitiria (MONCAU; ARGUELHES, 2020MONCAU, Luiz Fernando Marrey; ARGUELHES, Diego Werneck. Marco Civil da Internet and Digital Constitutionalism. FROSIO, Giancarlo (Ed.). The Oxford Handbook of Intermediary Liability Online. Oxford: Oxford University Press, 2020, p. 190-213.). Ainda que alguns autores tenham voltado seus esforços de conformação dos instrumentos do constitucionalismo digital para a atuação de governança por instituições privadas ou multissetoriais, é importante notar que ele também tem papel importante perante as tentativas governamentais de regular a Internet. É o caso, por exemplo, do Marco Civil Brasileiro, que apesar de reconhecer direitos que fazem frente à atuação de poderes privados na Internet, tem o intuito claro de enquadramento de futuras regulações dentro do quadro principiológico. Em outro esteio, os instrumentos do constitucionalismo digital foram reconhecidos como referência interpretativa do Supremo Tribunal Federal Brasileiro. O Ministro Gilmar Mendes reconhece, no âmbito de seu voto na ADI 6529 MC (BRASIL, 2020, p. 78 do inteiro teor do acórdão), a

preocupação de que a interpretação de leis como o nosso Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais se oriente por princípios e valores normativos que considerem de forma harmônica os impactos que declarações de direitos, posicionamentos de organizações internacionais e propostas legislativas exercem sobre a proteção de direitos fundamentais no ciberespaço.

Um corolário imediato dessa compreensão é o reconhecimento de que as cartas jurídicas de enunciação de direitos dos usuários da internet muitas vezes contêm verdadeiras escolhas de matriz constitucional quanto ao tratamento jurídico a ser conferido às relações on-line.15 15 De fato, o voto do Ministro reconhece a importância que os documentos que compõem o universo do constitucionalismo digital em conduzir a interpretação constitucional, inclusive na via judicial. As implicações da decisão do STF na ADI 6529, contudo, serão abordadas no segundo sentido de constitucionalismo digital aqui tratado.

As objeções mais contundentes a essa forma de constitucionalismo digital orbitam em torno de seu uso retórico, rotulado pelas críticas mais severas como uma possível estratégia de marketing (CELESTE, 2019b______. Terms of service and bills of rights: new mechanisms of constitutionalisation in the social media environment? International Review of Law, Computers & Technology, v. 33, n. 2, p. 122-138, 2019b., p. 124). A falta de vinculação que eventuais “Cartas de Direitos na Internet”16 16 Tradução livre da comum referência na literatura em língua inglesa a “Internet Bills of Rights”. impõem sobre as empresas digitais é o centro da crítica de Yilma (2017YILMA, Kinfe Micheal. Digital privacy and virtues of multilateral digital constitutionalism-preliminary thoughts Get access Arrow. International Journal of Law and Information Technology, v. 25, n. 2, p. 115-138, 2017.) a essa forma de constitucionalismo digital. Reconhecendo a importância do constitucionalismo digital como um processo de constitucionalização de “novos direitos” (sentido que trataremos a seguir) no âmbito normativo, Yilma sugere, como mecanismos mais efetivo de proteção, a adoção de uma carta de direitos no âmbito da Organização das Nações Unidas (YILMA, 2017YILMA, Kinfe Micheal. Digital privacy and virtues of multilateral digital constitutionalism-preliminary thoughts Get access Arrow. International Journal of Law and Information Technology, v. 25, n. 2, p. 115-138, 2017., p. 128). Tais críticas destacam o caráter meramente descritivo dessa corrente do constitucionalismo digital, que se distingue pela enumeração de instrumentos com diferentes graus de vinculação. Define, assim, um ecossistema de fontes jurídicas que recebe o rótulo de constituição, mas que acaba com um valor simbólico mais significativo do que a sua eficácia concreta.

Em um segundo sentido, o “Constitucionalismo Digital” é empregado para se referir à reconfiguração de proteções constitucionais diante de transformações que se relacionam com processos de digitalização. Nessa toada, englobaria os processos e demandas por adaptação ou avanço da proteção de direitos ameaçados pelas estruturas, recursos e práticas que definem as possibilidades de interação em ambientes digitais. Tal possibilidade também é aventada pela teoria em outros contextos teóricos. Por exemplo, diante das mudanças da esfera pública decorrentes da ampliação das comunicações digitais17 17 Incluindo novas formas de intermediação e, por conseguinte, de influência em fluxos de informação e atenção - através, por exemplo, da curadoria algorítmica. Sobre essas transformações, cf. JUNGHERR; SCHROEDER, 2021. , é possível incentivar, por exemplo, a reformulação tanto do escopo da liberdade de expressão, quanto dos mecanismos necessários à sua proteção. No âmbito da experiência regulatória americana, marcada por uma abordagem liberal da liberdade de expressão em que a não-intervenção prepondera como mecanismo de proteção, essa transformação é abordada por Jack Balkin (2014BALKIN, Jack M. Old-School/New-School Speech Regulation. Harvard Law Review, v. 127, p. 1-45, 2014.). Analisando o que chama de “infraestrutura da liberdade de expressão” (Ibid., p. 6-7), o autor identifica um giro na abordagem regulatória a partir do novo paradigma tecnológico. Segundo aponta, a continuidade do que chama de regulação old school da liberdade de expressão (representada por sanções criminais civis direcionadas a indivíduos ou publicações) agora se vê somada a técnicas new school. Tais técnicas se diferenciam por regular

o discurso através do controle sobre redes digitais e serviços auxiliares como motores de busca, sistemas de pagamento e anunciantes; em vez disso de se concentrar diretamente nos editores e palestrantes, eles são direcionados aos proprietários da infraestrutura digital. (Ibid., p. 4)

No constitucionalismo digital, Oreste Pollicino (2021POLLICINO, Oreste. Digital Private Powers Exercising Public Functions: The Constitutional Paradox in the Digital Age and its Possible Solutions. European Court of Human Rights, 15 abr. 2021. Disponível em: <https://echr.coe.int/Documents/Intervention_20210415_Pollicino_Rule_of_Law_ENG.pdf>. Acesso em: 12 out. 2022.
https://echr.coe.int/Documents/Intervent...
, p. 10) identifica uma “nova fase do constitucionalismo digital”, para se referir a um conjunto de novos direitos necessários em face dos desafios trazidos pelas tecnologias de inteligência artificial. Dentre variadas aplicações, muitas das técnicas reunidas nesse rótulo alcançam mecanismos estruturais das plataformas digitais, como por exemplo, a moderação automatizada de conteúdo em redes sociais (GORWA; BINNS; KATZENBACH, 2020GORWA, Robert; BINNS, Reuben; KATZENBACH, Christian. Algorithmic content moderation: Technical and political challenges in the automation of platform governance. Big Data & Society, v. 7, n. 1, p. 1-15, 2020.). Alguns exemplos citados pelo autor incluem as demandas por um direito à explicação (no sentido de garantir aos indivíduos o acesso à informação sobre a forma como seus dados são processados no âmbito dos processos automatizados que afetam seus direitos) e o direito à acessibilidade (como uma prerrogativa de acesso simples e fácil a tais informações).

Ao tratar do papel do constitucionalismo digital como fonte da jurisdição constitucional, Gilmar Mendes e Victor Ferreira (2020MENDES, Gilmar Ferreira; FERNANDES, Victor Oliveira. Constitucionalismo digital e jurisdição constitucional: uma agenda de pesquisa para o caso brasileiro. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 16, n. 1, p. 1-33, jan./abr. 2020., p. 3) partem da premissa de que, dentro dos mecanismos do Estado, “os princípios e valores do constitucionalismo digital podem servir de parâmetros normativos para o controle de constitucionalidade de leis da Internet”. Nesses termos, o constitucionalismo digital inspiraria, via judicialização, a redefinição da “essência de direitos constitucionais básicos associados a liberdade de expressão, tutela de honra e da privacidade” (MENDES; OLIVEIRA, 2020MENDES, Gilmar Ferreira; FERNANDES, Victor Oliveira. Constitucionalismo digital e jurisdição constitucional: uma agenda de pesquisa para o caso brasileiro. Revista Brasileira de Direito, Passo Fundo, v. 16, n. 1, p. 1-33, jan./abr. 2020., p. 3) diante do paradigma tecnológico atual.

Essa extensão da proteção constitucional diante de um novo paradigma tecnológico também foi absorvida na fundamentação da já mencionada ADI 6529 MC (BRASIL 2020)18 18 A Medida Cautelar foi parcialmente deferida e confirmada no julgamento da ação, no ano seguinte. Cf. BRASIL, 2021. , notadamente em relação à proteção constitucional da proteção de dados19 19 Que apenas ganhou status constitucional posteriormente, a partir da Emenda Constitucional 115/2022. . Nela, o Tribunal analisou a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 4º da Lei nº 9.883/99, que prevê o fornecimento de dados dos órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência à Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Em decisão sob relatoria da Ministra Carmen Lúcia, o Tribunal conferiu interpretação conforme ao dispositivo impugnado afirmando que o fornecimento de dados deve, como está previsto na lei, ter a finalidade de integrar os dados e tornar eficiente a defesa das instituições e dos interesses nacionais. O voto do Ministro Gilmar Mendes também destacou a autonomia do direito fundamental à proteção de dados pessoais na ordem constitucional brasileira, “especialmente na forma de uma projeção alargada do direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, consagrado no art. 5º, inciso X, da CF” (BRASIL, 2020, p. 78 do inteiro teor do acórdão). Essa “projeção alargada” justificaria a autonomia do direito mencionado, com lastro, ainda, lastro em três aspectos da Constituição, compreendidos de forma integrada: a dignidade da pessoa humana; o reconhecimento da centralidade do Habeas Data para proteger materialmente o direito à autodeterminação informativa; e o compromisso de renovar a força normativa do direito à intimidade em face de novos cenários verificados com o desenvolvimento da tecnologia (Ibid., p. 79). Extrai-se do voto do Ministro a necessidade da constitucionalização da proteção de dados em um cenário tecnológico em que os riscos para a privacidade e a dignidade humana ganham nova monta diante das possibilidades de coleta e tratamento de dados para fins diversos.

À semelhança da decisão do STF, Wimmer e Moraes (2022WIMMER, Miriam; MORAES, Thiago Guimarães. Quantum Computing, Digital Constitutionalism, and the Right to Encryption: Perspectives from Brazil. Digital Society, v. 1, n. 12, p. 1-22, 2022.) se utilizam da moldura do constitucionalismo digital para discutir um possível incremento das proteções constitucionais à privacidade, em particular diante dos potenciais usos de tecnologias quânticas. Com base na necessidade de identificação de subconjuntos de direitos que sirvam para adaptar o direito à privacidade ao contexto online, os autores debatem as possíveis respostas do constitucionalismo digital a tak cenário - Em especial, um possível “direito ao encriptamento” - enquanto tecnologia “instrumental ao desfrute de direitos humanos, em particular privacidade, liberdade de expressão e o direito de reunião” (Ibid., p. 5).

Tais conceituações do constitucionalismo digital não são incompatíveis com a noção clássica de constitucionalismo. De certa forma, elas se limitam a reconhecer o acréscimo de um novo tema na agenda do constitucionalismo tradicional. Não se trata de um uso propriamente inovador, mas do reconhecimento de que o constitucionalismo é um fenômeno dinâmico que tende historicamente a enfrentar novos desafios e anexar novas agendas e conteúdo. Nesse sentido, o constitucionalismo digital corresponde à incorporação de um determinado domínio normativo às constituições - a exemplo do que ocorreu com fenômenos históricos que resultaram no surgimento dos constitucionalismos social, econômico e ambiental20 20 A respeito da evolução do constitucionalismo social, do econômico, e do ambiental, v., por todos, respectivamente, AYALA, 1997; CAIRO ROLDAN, 1998; O’GORMAN, 2017. .

No terceiro grupo de abordagens recentes do constitucionalismo digital, identificamos o seu uso como uma moldura teórica para os possíveis meios (estatais e não estatais) de aplicação do direito em tecnologias digitais. Conforme mencionado anteriormente, o constitucionalismo digital é particularmente popular como uma das representações das abordagens teóricas voltadas à mitigação da concentração de poder das plataformas digitais. A presunção aqui é de que o predomínio de práticas autorregulatórias, bem como as limitações das iniciativas de regulação estatal, permitiu que esses modelos de negócios se desenvolvessem com poucas moldagens no sentido do interesse público. Entre a ineficiência da aplicação dos quadros regulatórios existentes e a ausência de previsões legais referidas às práticas inovadoras, as plataformas digitais teriam se desenvolvido à margem de responsabilidades legais e sociais em relação a como esses espaços são constituídos e como o exercício de poder em seu âmbito pode ser limitado (SUZOR 2018______. Digital Constitutionalism: Using the Rule of Law to Evaluate the Legitimacy of Governance by Platforms. Social Media + Society, v. 4, n. 3, p. 1-11, 2018., 2).

Nesse sentido, a operacionalização do selo acaba englobando uma variedade de mecanismos, de naturezas distintas, cuja implementação se justifica na transposição dos valores do constitucionalismo liberal ocidental para as relações estabelecidas em meios digitais. Conforme apontado por Golia (2022GOLIA, Angelo Jr. The Critique of Digital Constitutionalism. Max Planck Institute for Comparative Public Law & International Law (MPIL), Research Paper No. 2022-13, 2021. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=4145813>. Acesso em: 18 out. 2022.
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?...
, p. 2), esses valores são entendidos como uma matriz ótima, cujos princípios básicos devem ser inseridos no ambiente digital. Mais raras são as abordagens que acessam criticamente as premissas do constitucionalismo apontadas pela teoria do direito e política liberal (GOLIA 2022GOLIA, Angelo Jr. The Critique of Digital Constitutionalism. Max Planck Institute for Comparative Public Law & International Law (MPIL), Research Paper No. 2022-13, 2021. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=4145813>. Acesso em: 18 out. 2022.
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?...
, p. 3).

No trabalho de Suzor (2018______. Digital Constitutionalism: Using the Rule of Law to Evaluate the Legitimacy of Governance by Platforms. Social Media + Society, v. 4, n. 3, p. 1-11, 2018., p. 2), o constitucionalismo digital figura como “um projeto que visa articular e realizar parâmetros e legitimidade para governança na era digital”. Implica, assim, a avaliação dos mecanismos internos de governança das plataformas privadas com base nos “princípios do Estado de Direito”. Em sua abordagem, consentimento, previsibilidade e equidade processual são considerados princípios procedimentais do Estado do Direito que materializam a ideia de “boa governança” (Ibid., p. 2)21 21 Conforme explica o autor, “[t]he rule of law framework provides a lens through which to evaluate the legitimacy of online governance and therefore to begin to articulate what limits societies should impose on the autonomy of platforms. For the governance of platforms to be legitimate according to rule of law values, we should expect certain basic procedural safeguards. First, decisions must be made according to a set of rules, and not in a way that is arbitrary or capricious. Second, these rules must be clear, well understood, and relatively stable, and they must be applied equally and consistently. Third, there must be adequate due process safeguards, including an explanation of why a particular decision was made and some form of an appeals process that allows for the independent review and fair resolution of disputes. These are the fundamental minimum procedural standards for a system of governance to be legitimate, and platforms currently perform very poorly on these measures.” (SUZOR, 2018, p. 2). . Sem se comprometer com um tipo específico de mecanismo, Suzor defende a adoção de processos de monitoramento, justificação e aperfeiçoamento das formas que as plataformas influenciam o comportamento de seus usuários.

Referindo-se a iniciativas regulatórias recentes, Giovanni de Gregorio (2022) identifica um constitucionalismo digital no que é, de fato, um modelo regulatório avançado no âmbito da União Europeia. Refere-se, notadamente, ao Regulamento Europeu de Serviços Digitais, como “reação a novos poderes digitais”, após o período em que a regulação do bloco teria, no seu entendimento, negligenciado e esquecido “o papel do constitucionalismo e do direito constitucional na proteção dos direitos fundamentais e na limitação do aumento e consolidação de poderes unnacountable que abusam dos valores constitucionais” (DE GREGORIO, 2022DE GREGORIO, Giovanni, Digital Constitutionalism in Europe: Reframing Rights and Powers in the Algorithmic Society. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2022., p. 3). Em suma, o constitucionalismo digital assume aqui a face de um constitucionalismo europeu, voltado para plataformas digitais, que se consubstanciaria via controle judicial e toda sorte de estratégia regulatória recentemente implementada na UE em diversos âmbitos - incluindo, por exemplo, proteção de dados, moderação de conteúdo e ordenação algorítmica. Em sentido semelhante, Floridi (2021FLORIDI, Luciano. The European Legislation on AI: A Brief Analysis of its Philosophical Approach. Philosophy & Technology, v. 34, p. 215-222, 2021., p. 220) relaciona o constitucionalismo digital ao desenvolvimento europeu de “uma esfera informacional onde seus cidadãos podem viver e trabalhar melhor e de forma mais sustentável”. Engloba em um “hexagrama” legislativo (FLORIDI, 2021FLORIDI, Luciano. The European Legislation on AI: A Brief Analysis of its Philosophical Approach. Philosophy & Technology, v. 34, p. 215-222, 2021., p. 220) iniciativas distintas que abordam diferentes dimensões da expansão de tecnologias digitais, i.e., o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), o Regulamento de Serviços Digitais (DSA), o Regulamento de Mercados Digitais, o Regulamento de Governança de Dados, o Regulamento de Inteligência Artificial e a proposta legislativa para a regulação de um Espaço Europeu de Dados de Saúde22 22 Os Regulamentos, incluindo as propostas relativas a Serviços Digitais e a Dados de Saúde, podem ser consultados no site da União Europeia (EUROPEAN UNION, [s.d.]). .

Outro exemplo da elasticidade do constitucionalismo digital, ainda no âmbito das aplicações focadas em meios, é a sua associação às iniciativas institucionais na esfera autorregulatória. Exemplo popular desses arranjos é o Comitê de Supervisão do Facebook, também conhecido pela denominação em língua inglesa “Oversight Board”. O Comitê foi criado pela empresa Meta em 2019, com o objetivo de prover uma segunda instância decisória para as decisões de moderação de conteúdo postado por usuários tomadas pelo site (OVERSIGHT BOARD, [2019]). Financiado pela própria empresa, o Comitê foi instituído como uma entidade administrativamente independente da Meta. As revisões de decisões são feitas por conselheiros considerados experts no setor, sendo a referência normativa das decisões as “Regras da Comunidade” da própria empresa (KLONICK, 2020KLONICK, K. The Facebook Oversight Board: Creating an Independent Institution to Adjudicate Online Free Expression. The Yale Law Journal, v. 129, p. 2418-2499, 2020., p. 2476). A estrutura do Comitê de Supervisão do Facebook é objeto de análise acadêmica, em especial no que toca o seu potencial para de fato incrementar a proteção à liberdade de expressão online (HAGGART; KELLER, 2021HAGGART, Blayne; KELLER, Clara Iglesias. Democratic legitimacy in global platform governance. Telecommunications Policy, v. 45, n. 6, p. 1-17, 2021., p. 7). Por ora, interessa-nos a forma como a sua pretendida essência de incremento de legitimidade procedimental deu espaço à difusão de metáforas constitucionais. A despeito das suas limitações de escopo e vinculação, o Comitê de Supervisão é frequentemente referido como a “Suprema Corte” do Facebook, ou associado a fenômenos constitucionais (OVIDE, 2021OVIDE, Shira. Facebook Invokes Its ‘Supreme Court’. The New York Times, 22. jan. 2021. Disponível em: <https://www.nytimes.com/2021/01/22/technology/facebook-oversight-board-trump.html>. Acesso em: 20 out. 2022.
https://www.nytimes.com/2021/01/22/techn...
; GRADONI, 2021GRADONI, Lorenzo. Constitutional Review via Facebook’s Oversight Board. Verfassungsblog, 10 fev. 2021. Disponível em: <https://verfassungsblog.de/fob-marbury-v-madison/>. Acesso em: 20 out. 2022.
https://verfassungsblog.de/fob-marbury-v...
; GOLIA, 2021______. Beyond Oversight: Advancing Societal Constitutionalism in the Age of Surveillance Capitalism. Papers SSRN, 26 mar. 2021. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/abstract=3793219>. Acesso em: 20 out. 2022.
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), como a “Suprema Corte Online”, a despeito das críticas que já se encontram na literatura (COWLS et al., 2022COWLS, Josh et al. Constitutional metaphors: Facebook’s “supreme court” and the legitimation of platform governance. New Media & Society, v. 00, n. 0, p. 1-25, 2022.). Miloš e Pelic (2022MILOŠ, Matija; PELIĆ, Toni. Constitutional Reasoning There and Back Again: The Facebook Oversight Board as a Source of Transnational Constitutional Advice. In: DE POORTER, J. et al. (Eds). European Yearbook of Constitutional Law 2021: Constitutional Advice, vol. 3. [s.l.]: Springer & T.M.C. Asser Press, The Hague, 2022, p. 197-223.) referem o Comitê de Supervisão à moldura teórica provida pelo constitucionalismo digital, como parte de uma “busca expansiva por reverter a cumplicidade da lei no desenvolvimento de um capitalismo informacional” (Ibid., p. 198). No entanto, a aplicações diversas do constitucionalismo digital não necessariamente revertem essa cumplicidade. Pelo contrário, a apropriação da carga simbólica do constitucionalismo pra o âmbito das soluções gestadas e operadas pelas próprias plataformas digitais arrisca o efeito contrário, a legitimação dessas estruturas23 23 Ponto que será aprofundado na próxima seção. . Por ora, cabe apontar que os equilíbrios de poder imbuídos nas iniciativas regulatórias voltadas para plataformas digitais e fundadas em legitimidade processual são condicionados pelos atores responsáveis por essas iniciativas. Ausente das análises técnicas esse tipo de nuance, o constitucionalismo digital torna-se um invólucro com maior potencial para dissimular e fortalecer tais poderes do que o contrário.

Em termos distintos, as inconsistências no constitucionalismo digital já foram apontadas por outros autores. Celeste, por exemplo, argumenta pela reconciliação das diferenças conceituais na ideia de uma “ideologia que adapta os valores do constitucionalismo contemporâneo à sociedade digitalizada” (CELESTE, 2019aCELESTE, Edoardo. Digital constitutionalism: a new systematic theorisation. International Review of Law, Computers & Technology, v. 33, n. 1, p. 76-99, 2019a., 77). Ainda no sentido de uma abordagem ideológica do constitucionalismo digital, Golia (2021______. Beyond Oversight: Advancing Societal Constitutionalism in the Age of Surveillance Capitalism. Papers SSRN, 26 mar. 2021. Disponível em: <https://papers.ssrn.com/abstract=3793219>. Acesso em: 20 out. 2022.
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, 11) o propõe como um “discurso constitucional que, ao mesmo tempo, investiga e contribui para moldar as relações socialmente construídas dos indivíduos às suas condições reais de existência, direta ou indiretamente mediadas pelas tecnologias digitais”. Tal definição amplia a proposta de Celeste, no sentido de criar um ponto de convergência para as diferentes linhas de pesquisa que tratam das limitações de natureza constitucional das tecnologias digitais. Nesse sentido, mais do que os valores e linguagem constitucional, o constitucionalismo digital deveria se pautar das maneiras como a tecnologia molda e afeta a existência de indivíduos, atores coletivos e sistemas sociais.

É possível argumentar que essa variedade de teorias partilha das mesmas preocupações sobre a conformidade das redes sociais com os valores e finalidades das proteções constitucionais. Contudo, a análise crítica evidencia que elas possuem implicações distintas; cada uma delas tem relevância para a ação de atores distintos, inspirando assim parâmetros variados de legitimidade. Ainda, diferenciá-las tem relevância especial para a avaliação de seus limites, bem como riscos e contradições nas aplicações que promovem do termo “constitucionalismo”, análise que inspira a próxima seção.

4. Constitucionalismo digital: limites, contradições e riscos

A discussão sobre os limites e possibilidades da noção de constitucionalismo digital envolve predominantemente dois grupos de problemas. Um primeiro, que versa sobre o valor explicativo e a correção normativa de dilatar o conceito de constituição para abarcar formas jurídicas em muitos aspectos distintas daquelas que orientaram o constitucionalismo forjado pela teoria política moderna. Um segundo, que gira em torno dos riscos e efeitos que o alargamento do conceito de constitucionalismo e os usos recentes da categoria constitucionalismo digital compreendem. Essas duas linhas de análise aparecem, na maior parte das vezes, interligadas e superpostas. Ao longo do presente tópico, analisaremos esses dois ângulos de forma conjugada.

No primeiro eixo crítico, a questão a ser enfrentada envolve sobretudo a viabilidade teórica da apropriação das credenciais simbólicas do constitucionalismo moderno para descrever e analisar os fenômenos políticos e sociais que se operam fora do contexto dos estados nacionais. Trata-se de uma discussão que não é nova na teoria constitucional. A oposição ao uso do repertório conceitual e do vocabulário da tradição constitucionalista para qualificar a regulação de poderes supranacionais públicos e privados é um dos eixos das variadas oposições às doutrinas do pluralismo constitucional, do constitucionalismo global e do constitucionalismo societal. Como destacou Marcelo Neves (2009______. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009., p. 4-5), “a constituição em sentido moderno depende, no plano estrutural, de amplos pressupostos e exige, no nível semântico, clareza conceitual”, razão por que não pode ser “caracterizada como mera metáfora, desvinculada de certas implicações estruturais”. Para o autor “o uso inflacionário do termo tornou-o muito vago, perdendo o seu significado histórico, normativo e funcional” (2014, p. 202). As aplicações variadas do constitucionalismo digital, tratadas no tópico anterior, são exemplares do esvaziamento e banalização do conceito de constitucionalismo, em especial no que se confundem, por exemplo, com a ideia de regulação setorial ou até de autorregulação.

Partindo de uma perspectiva ancorada na tradição moderna, os atores não estatais são estruturalmente inaptos à constitucionalização, porque lhes faltariam os elementos essenciais para operar funcional e simbolicamente como constituições. Entre os autores contemporâneos, um exemplo paradigmático da defesa do conceito tradicional de constitucionalismo é a formulada por Dieter Grimm (2010GRIMM, Dieter. The Achievement of Constitutionalism and its Prospects in a Changed World. In: DOBNER, Petra; LOUGHLIN, Martin (Eds.). The Twilight of Constitutionalism? Oxford, NY: Oxford University Press, 2010, p. 3-22.), que rejeita a ideia de que a constituição possa ser concebida fora dos limites territoriais dos estados. De acordo com o autor (GRIMM, 2010GRIMM, Dieter. The Achievement of Constitutionalism and its Prospects in a Changed World. In: DOBNER, Petra; LOUGHLIN, Martin (Eds.). The Twilight of Constitutionalism? Oxford, NY: Oxford University Press, 2010, p. 3-22., p. 9), cinco características definidoras da constituição não estão simultaneamente presentes nos sistemas transnacionais e privados: i) o fato de ser um sistema de normas que expressam uma decisão política; ii) sua finalidade orientada à instituição e regulação do poder público; iii) a circunstância de não reconhecer fundamentos ou meios extraconstitucionais do exercício do poder; iv) sua origem na vontade popular como fonte legítima do poder, escorada na distinção entre poder constituinte e poder constituído; e v) seu caráter supremo sobre as demais fontes normativas.

São também exemplares o amplo repertório de críticas às teorias do pluralismo constitucional, desenvolvidas fundamentalmente no campo das análises de sua aplicação ao funcionamento da União Europeia. Em termos gerais, o pluralismo constitucional vê o direito comunitário como uma organização normativa na qual inexiste instituição dotada de autoridade final, sendo a hierarquia substituída pela “heterarquia” (WALKER, 2002WALKER, Neil. The Idea of Constitutional Pluralism. The Modern Law Review, v. 65, n. 3, p. 317-359, 2002.; KRISCH, 2010KRISCH, Nico. Beyond Constitutionalism. The Pluralist Structure of Postnational Law. Oxford: Oxford University Press, 2010.). As críticas a tal doutrina vão desde a afirmação de sua incongruência teórica, sintetizada na afirmação de Martin Loughlin no sentido de que “o pluralismo constitucional é um oximoro” (LOUGHLIN, 2014LOUGHLIN, Martin. Constitutional pluralism: An oxymoron? Global Constitutionalism, v. 3, n. 1, p. 9-30, 2014., p. 23), até a contestação de sua conveniência operacional, que se ampara na ideia de que o pluralismo não apenas é logicamente infactível, como também apresenta riscos importantes para a eficácia do direito e para o funcionamento da democracia. Na perspectiva da correção teórica, podem ser enumeradas exemplificativamente as críticas no sentido de que o pluralismo i) inviabiliza a função ordenadora do sistema normativo ao deixar em aberto a definição da autoridade final (CRUZ, 2016); ii) promove uma aplicação seletiva e desigual das normas jurídicas (KELEMAN, 2018; KELEMEN; PECH, 2019______; PECH, Laurent. The uses and abuses of constitutional pluralism: Undermining the rule of law in the name of constitutional identity in Hungary and Poland. Cambridge Yearbook of European Legal Studies, v. 21, p. 59-74, 2019.); e iii) admite um grau muito elevado de incerteza jurídica, que inviabiliza a aplicação das premissas do estado de direito (CRUZ, 2016, p. 370). No flanco dos riscos práticos que a teoria encerra, Daniel Keleman e Laurent Pech destacam que a ausência de um sistema de fechamento do sistema jurídico o torna particularmente vulnerável ao desenvolvimento do autoritarismo (KELEMAN, 2018; KELEMEN; PECH, 2019). Segundo essa linha de pensamento, autoridades de governos iliberais como os da Hungria e Polônia encontraram nos conceitos de pluralismo constitucional e identidade constitucional a vantagem de conferir aparência de respeitabilidade às suas reformas autocráticas. Cruz (2016), também avaliando os efeitos práticos da teoria, afirma que a “heterarquia” preconizada pelo pluralismo constitucional abre um largo espaço de interpretação e manipulação, podendo ser usado como instrumento para reabrir debates políticos por meio do direito, enfraquecendo os já precários processos políticos da União.

Vale também mencionar algumas leituras críticas do constitucionalismo societal que são representativas de inconsistências e dificuldades semelhantes. No que se refere à conformidade dessa teoria com a ideia de constituição e constitucionalismo, Marcelo Neves (2009______. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.) rejeita a ideia “constituições civis globais” como expressão da fragmentação e de “aldeias jurídicas globais”. Para além da oposição mais geral aos “usos arbitrariamente metafóricos” do conceito de constituição (Ibid., p. 3), Neves pontua que o significado adotado no constitucionalismo societal é ampliado de forma particularmente expressiva, abarcando a “racionalidade dos sistemas mundiais que independem da democracia em sua reprodução”. Em relação à lex mercatoria, destaca que esta “põe o direito a serviço do dinheiro ou o torna um meio desse” (Ibidem, p. 112), comprometendo sua aptidão para “desenvolver um tratamento igual/desigual juridicamente consistente”. Em linha análoga, Christodoulidis explicita que o constitucionalismo societal gera um duplo risco: um constitucional, consubstanciado no fato de que o “afastamento consciente e incessante de qualquer débito com os sistemas políticos ou estatais ameaça minar seu fundamento constitucional e colocá-lo em queda livre” (CHRISTODOULIDIS, 2013CHRISTODOULIDIS, Emilios. On the politics of societal constitutionalism. Indiana Journal of Global Legal Studies, v. 20, n. 2, p. 629-663, 2013., p. 632). O segundo perigo, mais insidioso, é o de captura pelo mercado, já que as “constituições civis” são submetidas a imperativos funcionais de mercado, que fazem que qualquer resposta às crises possa ser silenciada ou cooptada.

Uma das debilidades mais relevantes das teorias que invocam constitucionalismo(s) fora do Estado, porém, é o seu largamente debatido défice de legitimidade democrática, que já foi admitido como “o calcanhar de Aquiles” dos regimes transnacionais (TEUBNER, 2018______. Quod omnes tangit: Transnational Constitutions Without Democracy? Journal of Law and Society, v. 45, p. S5-S29, 2018., p. S7). A questão, aqui, diz respeito não apenas à operacionalidade empírica das instâncias privadas e transnacionais como espaços de deliberação e participação, mas ao fato de serem desprovidas dos elementos fundacionais que acompanham a dimensão ideal e (muitas vezes) real do constitucionalismo, manifestada na dicotomia poder constituinte versus poderes constituídos. Temos, aqui, um ponto central dos conflitos e vazios legais aos quais o constitucionalismo digital se propõe como solução. Num campo empírico em que atores privados operando infraestruturas pervasivas elaboram unilateralmente regras que se aplicam a bilhões de usuários, a legitimidade democrática também se apresenta como a vulnerabilidade dos debates sobre regulação privada, híbrida ou multissetorial. Como apontaram Haggart e Keller (2021HAGGART, Blayne; KELLER, Clara Iglesias. Democratic legitimacy in global platform governance. Telecommunications Policy, v. 45, n. 6, p. 1-17, 2021.), além da dificuldade de remeter a legitimidade democrática a um entendimento comum, uma das tendências desses debates é negligenciar que as soluções oriundas da regulação estatal representam ganhos democráticos relevantes.

O constitucionalismo digital como predominantemente incorporado na discussão recente é, em larga medida, uma expressão específica das escolas de pensamento antes abordadas. Desta forma, as críticas dirigidas às teorias que o precedem também encontram pertinência, em graus diferentes, no campo epistêmico do constitucionalismo digital.

Em primeiro lugar, o próprio conceito de “constitucionalismo digital” é excessivamente dilatado. Conforme demonstrado na seção acima, ele designa fenômenos muito distintos entre si, e a mera confusão conceitual é suficiente para tornar questionável seu valor como teoria explicativa e de legitimação. Além disso, dentre as acepções atuais que ele engloba encontram-se ideias opostas, como a regulação estatal voltada para a desconcentração de poder das plataformas e instrumentos autorregulatórios implementados pelas próprias, cuja eficácia em minimizar essa concentração é questionável. Ainda que houvesse unidade material entre os princípios fundadores dessas iniciativas - por exemplo, se tanto a regulação estatal como a autorregulação implementassem mecanismos de promoção de devido processo na moderação de conteúdo -, o equilíbrio de poderes talhado nesses arranjos continuaria assimétrico. Regras elaboradas e implementadas por um agente privado em suas próprias atividades são imbuídas de racionalidades regulatórias e possuem efeitos potenciais distintos das obrigações regulatórias fundadas na coerção estatal.

Não se trata, assim, de preconizar um purismo semântico ou de desconhecer que há novos fenômenos que os conceitos tradicionais não são aptos a descrever. O problema, aqui, reside em saber o que as nomenclaturas ocultam e o que revelam. É necessário perquirir se as flexibilizações conceituais trazem embutidas mudanças filosóficas e ideológicas que, obscurecidas pela fluidez terminológica, deixam de ser devidamente diagnosticadas e enfrentadas. Isso fica claro quando analisamos a dilatação do conceito de constituição dentro do campo do constitucionalismo digital. Em sua maioria, ao tentar amenizar a concentração de poder privado nos espaços digitais, os usos do constitucionalismo digital acabam operando como teorias que conferem um verniz de legitimação a dinâmicas de poder assimétricas. É importante ter em conta, por exemplo, que o poder das plataformas digitais pode ser entendido de formas diversas. Dentre outros, a literatura o associa à concentração econômica, à influência em fluxo de e acesso a dados pessoais e à reunião, em um mesmo agente, das funções de elaborar, aplicar e julgar o cumprimento de normas autorregulatórias (DIJCK; NIEBORG; POELL, 2019DIJCK, José van; NIEBORG, David; POELL, Thomas. Reframing platform power. Internet Policy Review, v. 8, n. 2, p. 1-18, 2019., p. 3; BELLI 2022BELLI, Luca. Structural power as a critical element of social media platforms’ private sovereignty. In: CELESTE, Edoardo; HELDT, Amélie; KELLER, Clara Iglesias (Eds.). Constitutionalising Social Media. Oxford: Hart Publishing, 2022.; COHEN, 2019COHEN, Julie E. Between Truth and Power: The Legal Constructions of Informational Capitalism. Oxford, NY: Oxford University Press, 2019., p. 2). À exceção dos usos relativos à incorporação do tema na agenda do direito constitucional, tanto os subsistemas principiológicos à margem estatal quanto os mecanismos regulatórios atualmente associados ao constitucionalismo digital têm potencial para gerar efeitos contrários aos pretendidos - que é justamente impedir essa concentração de poder. Enquanto os subsistemas podem evadir a atuação estatal em algum grau, os mecanismos regulatórios que impõem às plataformas, por exemplo, o cumprimento de procedimentos que garantam devido processo ou obrigações de transparência - ainda que no âmbito de obrigações regulatórias impostas pelo Estado - acabam por convalidar essa concentração de poder. No diagnóstico de Helberger (2020HELBERGER, Natali. The Political Power of Platforms: How Current Attempts to Regulate Misinformation Amplify Opinion Power. Digital Journalism, v. 8, n. 6, p. 842-854, 2020., p. 848), as tentativas regulatórias de inserir valores públicos na estrutura de poderosos agentes privados acabam por formalizar e reforçar o seu papel de “governantes” do discurso online e, por conseguinte, são aptas a reforçar o seu poder político.

Aqui, cabe lembrar que esse discurso de legitimação de poderes estabelecidos, muitas vezes privados, subverte as finalidades originárias do constitucionalismo, pois concebe a “constituição” como uma mera institucionalização da ordem posta das coisas, validando a atuação dos atores que já detém os poderes de fato, sem participação democrática. Tal abordagem corresponde a uma prática empregada por sistemas autocráticos a partir do século XX, que se apropriam da carga simbólica do uso da forma constitucional a fim de legitimar, estabilizar e cristalizar poderes previamente instalados. As constituições, em seu sentido normativo e garantista, não visam a formalizar e validar desequilíbrios pré-existentes, mas, sim, a operar como mecanismos de emancipação democrática, reformulando as correlações de forças e fundando novas ordens sociais e políticas.

Notas finais

Em sociedades cada vez mais fragmentadas, as constituições são ferramentas com potencial para funcionar como repositórios de sentidos comuns, de consensos mínimos e de garantias emancipatórias, mitigando as assimetrias de poder. As repetidas crises deflagradas pelo processo progressivo de globalização, pelas transformações nas dinâmicas de poder privado, pela crise climática e pelos embates culturais, entre outras mudanças, não são indicativas da obsolescência das constituições, mas, ao contrário, reforçam a indispensabilidade da sua funcionalidade democrática, da sua utilidade como veículos de formação de acordos entre grupos divergentes e como fórmula para a efetiva implementação de garantias essenciais de autonomia, igualdade e dignidade para as pessoas.

O desgaste que as transformações tecnológicas infligem às constituições não é sinal da necessidade de dilatar e esvaziar o conceito e o significado do constitucionalismo como sistema de ideias e como projeto. Muito pelo contrário, é a confirmação da necessidade de manter sua definição como estrutura essencial de deliberação e composição democrática, que funciona como espaço de absorção das divergências e como anteparo da cidadania.

À exceção das aplicações que o tratam como um processo de incorporação da agenda digital pelo constitucionalismo, ou até como uma ideologia, muitos dos usos do constitucionalismo digital contribuem para esse desgaste. Além disso, acabam por reforçar, em alguns casos, a própria concentração de poder que pretendiam mitigar. As ideias de constitucionalismo como mera autorregulação do poder privado ou até como qualquer iniciativa regulatória estatal voltada para as plataformas digitais não podem ser dissociadas de um contexto de crise democrática e regulatória. Em relação à última, o constitucionalismo digital acaba figurando como um recurso ao direito constitucional, onde a regulação se provou limitada. Quanto à crise democrática, ao invés de contribuir para a sua superação, como retoricamente quer sugerir, a camufla através de um uso do constitucionalismo dissociado de seus preceitos originais. A reconciliação com tais preceitos é uma agenda fundamental ao campo de pesquisa do direito digital.

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  • ERRATA

    p.2669
    Onde se lia:
    “no âmbito de seu voto na ADI 6529 MC (BRASIL, 2020, p. 78 do inteiro teor do acórdão)”
    Leia-se:
    “no âmbito de seu voto na ADPF 695 MC (BRASIL, 2020, p. 10 da decisão)”
    p.2671
    Onde se lia:
    “já mencionada ADI 6529 MC (BRASIL 2020)24, notadamente em relação à proteção constitucional da proteção de dados25. Nela, o Tribunal analisou a constitucionalidade do parágrafo único do artigo 4º da Lei nº 9.883/99, que prevê o fornecimento de dados dos órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência à Agência Brasileira de Inteligência (ABIN). Em decisão sob relatoria da Ministra Carmen Lúcia, o Tribunal conferiu interpretação conforme ao dispositivo impugnado afirmando que o fornecimento de dados deve, como está previsto na lei, ter a finalidade de integrar os dados e tornar eficiente a defesa das instituições e dos interesses nacionais. O voto do Ministro Gilmar Mendes também”
    Leia-se:
    “da já mencionada ADPF 695 MC (BRASIL 2020)26, notadamente em relação ao status constitucional da proteção de dados27. Nesse caso, a Corte decidiu sobre a possiblidade de compartilhamento de dados entre o Serviço Federal de Processamento de Dados - SERPRO e a Agência Brasileira de Inteligência - ABIN, na forma do Decreto 10.046/2019. Em 2022, o Tribuinal decidiu pela possibilidade de compartilhamento, desde que observados requisitos de necessidade, finalidade, razoabillidade, além de conformidade com a Lei Geral de Proteção de Dados. Foi na decisão da Medida Cautelar, em 2020, que o Ministro Gilmar Mendes”
    p.2682
    Onde se lia:
    “BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6529. Relatora Ministra Cármen Lúcia. Tribunal Pleno. Julgado em 11 out. 2021. DJe 22 out. 2021.”
    Leia-se:
    “BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 695. Relator Ministro Gilmar Mendes. Tribunal Pleno. Julgado em 24 jun. 2020.”
    Rodapé da p.2669
    Onde se lia:
    “decisão do STF na ADI 6529”
    Leia-se:
    “decisão do STF na ADPF 695”
  • 1
    Esse sentido de constituição restou cristalizado no art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão: “Toda sociedade em que não está assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separação de poderes não tem constituição”.
  • 2
    Enquanto nos Estados Unidos, já em 1803, a ideia de supremacia constitucional veio a firmar as bases do judicial review no julgamento do célebre Marbury v. Madison pela Suprema Corte, na Europa apenas no séc. XX - e mais intensamente no pós-guerra - foram estabelecidos sistemas de controle de constitucionalidade e aceita a ideia de que as normas constitucionais têm caráter jurídico.
  • 3
    Em sentido similar, Karl Loewenstein (1970______. Teoría de la Constitución. Barcelona: Ediciones Ariel, 1970., p. 214) afirma que “uma constituição democrática reveste sempre qualquer regime de uma certa respeitabilidade” (tradução livre).
  • 4
    A teoria da ação estatal (state action doctrine) foi formulada pela Suprema Corte dos Estados Unidos a partir dos anos 1940, no contexto da discussão sobre a possibilidade de aplicação de direitos civis nas relações jurídicas entre pessoas privadas. A Corte usa a teoria como parâmetro para afirmar que os direitos constitucionais incidem na esfera privada apenas nos casos em que há algum grau de participação do Estado na violação ao direito, ou quando os particulares desempenham papéis análogos aos estatais. A doutrina em questão é reflexo do modelo de constitucionalismo estadunidense, que tende a conceber a constituição como mero instrumento para assegurar aos indivíduos espaços livres da interferência estatal. Apesar de dominante na jurisprudência, há um amplo debate acadêmico sobre a referida doutrina. Sobre o tema, cf. PEREIRA, 2006PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006., p. 475-483; GLENNON; NOWAK, 1976GLENNON, Robert J.; NOWAK, John E. A Functional Analysis of the Fourteenth Amendment "State Action" Requirement. The Supreme Court Review, v. 1, p. 221-261, 1976.; MINOW, 2017MINOW, Martha. Alternatives to the state action doctrine in the era of privatization, mandatory arbitration, and the internet: directing law to serve human needs. Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review, v. 52, p. 145-167, 2017..
  • 5
    Baseada na obra de Giddens (1991GIDDENS, A. Modernity and Self-Identity: Self and Society in the Late Modern Age. Cambridge: Blackwell, 1991.), Hofmann (2019HOFMANN, Jeanette. Mediated democracy - Linking digital technology to political agency. Internet Policy Review, v. 8, n. 2, p. 1-18, 2019.) posiciona o reconhecimento da Internet, e dos próprios computadores, como oferta de novas possibilidades, em um período referido pelo autor como “modernidade tardia” (“late modernity”, na expressão original em inglês). Em meio a outras abordagens, a narrativa de Giddens sobre os anos finais do século XX reflete o fim de um período social estável que marcou o Norte global após a Segunda Guerra Mundial. Tal modelo seria caracterizado, dentre outros aspectos, por um estado fortalecido (que assumiu a responsabilidade pela prosperidade e estabilidade da economia, pelo bem-estar de seus cidadãos, incluindo a disponibilidade universal e a qualidade de suas infraestruturas públicas) e um alto nível de organização coletiva na forma de partidos políticos, sindicatos, associações comerciais e uma estratificação social estabilizada através de normas sociais amplamente compartilhadas. Essa “modernidade organizada” teria sido substituída pela “modernidade tardia” quando “normas culturais começaram a se diversificar, as identidades coletivas na forma de classes e partidos políticos perderam coesão, os mercados se expandiram cada vez mais além do Estado-nação e desafiaram o modelo de Estado-providência paternalista. A inovação econômica, a liberdade individual e a diversidade cultural tornaram-se referências em seu próprio direito e formaram uma força concorrente contra as regras e costumes dominantes.” (Ibid., p. 7).
  • 6
    Esse impedimento poderia se referir tanto à impossibilidade absoluta de aplicação do direito, quanto à necessidade de uma abordagem regulatória específica. Para estas e outras variações das teorias expecionalistas, v. KELLER, 2019______. Regulação nacional de serviços na Internet: exceção, legitimidade e o papel do Estado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019., cap. 3.
  • 7
    Nesse sentido, destaca-se o trabalho de Eric Goldman (2008GOLDMAN, Eric. The Third Wave of Internet Exceptionalism. Santa Clara Magazine, [s.l], 2008. Disponível em: <https://magazine.scu.edu/winter2008/afterwords.cfm>. Acesso em: 28 dez. 2018.
    https://magazine.scu.edu/winter2008/afte...
    ), que verifica três ondas de influência dessas ideias sobre a formulação de políticas públicas direcionadas à Internet. À primeira delas, identificada como “Utopia da Internet”, o autor associa as propostas regulatórias que dedicavam a ela tratamento distinto do que é aplicado a outras mídias, baseando-se na premissa de que a sua tecnologia única superaria os problemas estruturais das que a precederam. A segunda onda se referiria à “Paranoia da Internet”, um período em que a singularidade da Internet ainda é reconhecida, mas ao invés de inspirar um tratamento mais favorável, justificou proposições que tratavam os serviços prestados através dela de forma mais rigorosa (seria o caso das tecnologias de filtro de conteúdo, conhecidas por implementar mecanismos de censura privada com restrições desproporcionais a liberdade de expressão). Por fim, a terceira onda identificada seria a “Proliferação do Excepcionalismo”, quando o surgimento de cada nova tecnologia baseada na Internet inspirou regulações específicas a ela direcionadas. Aqui, ele identifica um movimento de multiplicação de quadros regulatórios específicos a serviços e enquadra as regulações direcionadas, por exemplo, a serviços de streaming e sites de redes sociais, que recebem tratamento próprio.
  • 8
    Os limites das ferramentas das democracias liberais para governar a Internet já foram reconhecidos pela literatura, principalmente em relação aos limites de atuação derivados da proteção das liberdades de comunicação e expressão. A legislação estatutária e as medidas administrativas promoveram uma série de mecanismos que têm sua legitimidade questionada (por restringirem desproporcionalmente as liberdades civis) ou se mostram pouco eficientes (pois os mecanismos implementados não são capazes de lidar com os danos que inspiraram sua implementação). Essas políticas vão desde bloqueios gerais de acesso à Internet até a filtragem mandatória de conteúdo e a atribuição de responsabilidade criminal a usuários. Além dos riscos à democracia que acompanham essas estratégias, elas também adiaram debates sobre estratégias regulatórias inovadoras que poderiam se aplicar às plataformas digitais. Por sua vez, as decisões judiciais, fóruns legítimos para a resolução de conflitos entre direitos, também se revelam limitada para conter determinados comportamentos online, por motivos diversos. Em especial, as características institucionais que moldam as competências do poder judiciário na separação democrática de poderes (como sua falta de especialização setorial e seletividade) podem resultar em decisões que não surtam os efeitos pretendidos nos espaços digitais. Nesse sentido, refere-se a KELLER, 2020KELLER, Clara Iglesias. Policy by judicialisation: the institutional framework for intermediary liability in Brazil. International Review of Law Computers & Technology, v. 35, p. 1-19, 2020..
  • 9
    Sobre os regimes de responsabilidade de intermediários, ver KELLER, 2019______. Regulação nacional de serviços na Internet: exceção, legitimidade e o papel do Estado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019., cap. 4 e KELLER, 2020.
  • 10
    Para uma análise detalhada dessas práticas e desse cenário, v. TUSIKOV, 2017TUSIKOV, Natasha, Chokepoints: Global Private Regulation on the Internet. Oakland, CA: University of California Press, 2017..
  • 11
    Ao tempo de encerramento deste texto, tais propostas são debatidas sob a tramitação do PL 2.630/2020.
  • 12
    No mesmo sentido, v. SANTANIELLO et al, 2018SANTANIELLO, Mauro et al. The language of digital constitutionalism and the role of national parliaments. The International Communication Gazette, v. 80, n. 4, p. 320-336, 2018..
  • 13
    Às vezes, até precedida de um processo deliberativo multissetorial, como é o caso, por exemplo, dos princípios acordados no âmbito da NET.Mundial.
  • 14
    Nesse sentido é também o diagnóstico de Luiz Fernando Marrey Moncau e Diego Werneck Arguelhes (2020MONCAU, Luiz Fernando Marrey; ARGUELHES, Diego Werneck. Marco Civil da Internet and Digital Constitutionalism. FROSIO, Giancarlo (Ed.). The Oxford Handbook of Intermediary Liability Online. Oxford: Oxford University Press, 2020, p. 190-213.).
  • 15
    De fato, o voto do Ministro reconhece a importância que os documentos que compõem o universo do constitucionalismo digital em conduzir a interpretação constitucional, inclusive na via judicial. As implicações da decisão do STF na ADI 6529, contudo, serão abordadas no segundo sentido de constitucionalismo digital aqui tratado.
  • 16
    Tradução livre da comum referência na literatura em língua inglesa a “Internet Bills of Rights”.
  • 17
    Incluindo novas formas de intermediação e, por conseguinte, de influência em fluxos de informação e atenção - através, por exemplo, da curadoria algorítmica. Sobre essas transformações, cf. JUNGHERR; SCHROEDER, 2021JUNGHERR, Andreas; SCHROEDER, Ralph, Disinformation and the Structural Transformations of the Public Arena: Addressing the Actual Challenges to Democracy. Social Media + Society, v. 7, n. 1, p. 1-13, 2021..
  • 18
    A Medida Cautelar foi parcialmente deferida e confirmada no julgamento da ação, no ano seguinte. Cf. BRASIL, 2021.
  • 19
    Que apenas ganhou status constitucional posteriormente, a partir da Emenda Constitucional 115/2022.
  • 20
    A respeito da evolução do constitucionalismo social, do econômico, e do ambiental, v., por todos, respectivamente, AYALA, 1997AYALA, Andoni Pérez Ayala. Los orígenes del constitucionalismo social: una aproximación desde una perspectiva histórico-comparativa. In: HERRERA, Miguel Angel García (Coord.). El constitucionalismo en la crisis del estado social. Leioa: Universidad del País Vasco, 1997, p. 333-372.; CAIRO ROLDAN, 1998CAIRO ROLDAN, Omar. El constitucionalismo económico y social: trayectoria y actualidad. Revista de Sociología Jurídica, Lima, n. 3, p. 165 e ss., n. 1998.; O’GORMAN, 2017O’GORMAN, Roderic. Environmental Constitutionalism: A Comparative Study. Transnational Environmental Law, v. 6, n. 3, p. 1-28, 2017..
  • 21
    Conforme explica o autor, “[t]he rule of law framework provides a lens through which to evaluate the legitimacy of online governance and therefore to begin to articulate what limits societies should impose on the autonomy of platforms. For the governance of platforms to be legitimate according to rule of law values, we should expect certain basic procedural safeguards. First, decisions must be made according to a set of rules, and not in a way that is arbitrary or capricious. Second, these rules must be clear, well understood, and relatively stable, and they must be applied equally and consistently. Third, there must be adequate due process safeguards, including an explanation of why a particular decision was made and some form of an appeals process that allows for the independent review and fair resolution of disputes. These are the fundamental minimum procedural standards for a system of governance to be legitimate, and platforms currently perform very poorly on these measures.” (SUZOR, 2018______. Digital Constitutionalism: Using the Rule of Law to Evaluate the Legitimacy of Governance by Platforms. Social Media + Society, v. 4, n. 3, p. 1-11, 2018., p. 2).
  • 22
    Os Regulamentos, incluindo as propostas relativas a Serviços Digitais e a Dados de Saúde, podem ser consultados no site da União Europeia (EUROPEAN UNION, [s.d.]).
  • 23
    Ponto que será aprofundado na próxima seção.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    22 Out 2022
  • Aceito
    23 Out 2022
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