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Por uma desobediência não-civil para além do direito

For a non-civil disobedience beyond the law

Resumo

Buscou-se no presente artigo realizar uma crítica às tradições teóricas clássicas da desobediência civil que apresentam um profundo esforço argumentativo para compatibilizar as ações desobedientes com o direito. Visando romper os limites impostos à desobediência civil por tais tradições, o presente estudo propõe uma abordagem da desobediência política, pautada por um viés libertário que compreende os movimentos desobedientes em ação fora da esfera institucional do direito.

Palavras-chave:
Desobediência-civil; Desobediência não-civil; Direito

Abstract

This paper aims to comment on the classic theorical traditions of civil disobedience that present a deep, argumentative effort to reconcile disobedient actions with the law. Attempting to break the limits imposed on civil disobedience by such traditions, the present study proposes an approach to political disobedience, guided by a libertarian bias that includes disobedient movements in action outside the institutional spheres of the law.

Keywords:
Civil disobedience; Non-civil disobedience; Law

Pois é a decisão que traça no presente a maneira e a possibilidade de agir, de fazer um salto que não seja no vazio. Essa decisão é a de desertar, de sair das fileiras, de organizar-se, de fazer secessão, ainda que seja de modo imperceptível, mas, em todo caso, agora. A época é dos tenazes.

(COMITÊ INVISÍVEL, 2018, p. 20)

Introdução1 1 O presente artigo foi desenvolvido no Projeto de Pesquisa “Desobediência civil como prática constituinte e interpretação popular da Constituição: fundamentação jurídico-filosófica para estratégias não-violentas de luta por direitos em contextos de estado de exceção econômico” (CNPq)

O presente trabalho propõe uma análise do conceito de desobediência política assumindo como ponto de partida sua perspectiva civil e realizando, para tanto, o exame das tradições clássicas que o pensam, quais sejam, a tradição religiosa-espiritual, a tradição liberal e a tradição democrática. Nosso objetivo é demonstrar como tais delineamentos teóricos produzem a captura de movimentos de desobediência tanto por meio da sua vinculação ao direito quanto por meio de sua institucionalização. Dessa forma, na primeira seção do texto demonstramos algumas das razões pelas quais as ações de desobediência civil são praticadas, especialmente quando comparadas aos métodos tradicionais de controle e supervisão do poder político institucionalizado, i.e., do poder político do Estado. Explicamos também a natureza da desobediência civil e as possibilidades por ela apresentadas. Já na segunda seção, as teorias tradicionais da desobediência civil são exemplificadas, tomando-se como referência a classificação criada pelas autoras a partir da leitura dos principais marcos teóricos sobre o tema. Partindo dos escritos do Thoreau (2017THOREAU, David Henry. A Desobediência Civil. Trad. José Geraldo Couto. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.), analisamos como a desobediência política passa a ser tratada como civil, tornando-se uma forma de luta não-violenta baseada na ideia de retirada do consentimento e, consequentemente, do apoio aos governantes. Ainda na segunda seção apontamos também as diferenças entre a objeção de consciência e a desobediência civil. A terceira seção, por sua vez, demonstra a forma pela qual a desobediência civil é capturada pela teoria, fenômeno que, a despeito de popularizá-la dentro do espaço de debate da academia, a transforma em um mero instrumento de correção de problemas e injustiças pontuais. Na quarta seção é apresentada a classificação feita pelas autoras a partir dos trabalhos de Scheuerman (2018SCHEUERMAN, William E. Civil disobedience. Cambridge: Polity, 2018.) e Matos (2017MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Desobediência civil hoje: entre a desinstituição e o poder constituinte. In: GONTIJO, Lucas; MAGALHÃES, José Luiz Quadros; MORAIS, Ricardo Manoel de Oliveira. Rompimento democrático no Brasil: teoria política e crise das instituições públicas. Belo Horizonte: D’Plácido, pp. 205-257, 2017.), resultando na classificação das vertentes da desobediência civil entre as tradições religiosa-espiritual, liberal, constitucionalista e anarquista.

Ao final, concluímos que os limites teóricos impostos pelas autoras que estudam a desobediência civil em sua conceituação clássica e convencional a transformam em um caminho forçosamente institucional na luta por mudanças, limitando-a enquanto um direito, ou seja, uma realidade normativa concedida e externa àqueles que desejam construir a política a partir de suas práticas e experiências próprias. Para tanto, nos valemos do pensamento radical, no contexto do qual este trabalho procura se inserir, não seguindo, portanto, nenhuma metodologia estabelecida a priori. Trata-se de uma constante tentativa de “[...] pensar nosso tempo com nosso tempo [...]” (MATOS, 2014MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia radical e utopia: inapropriabilidade, an-arquia, a-nomia. Rio de Janeiro: Via Verita, 2014., p. 39), razão pela qual este artigo se esquiva das determinações que hierarquicamente decidem o que é científico e o que não é. Tal como o próprio pensamento radical, os métodos que o acompanham estão sempre em construção, nunca de fato constituídos. Apenas aceitando essa impermanência enquanto potência utópica pode-se pensar em um projeto capaz de se realizar enquanto prática libertária apta a romper com o que está posto, a fim de que se possa agir no mundo no tempo de agora (MATOS, 2014).

Dessa maneira, o presente artigo, tal como suas autoras, aposta em uma teoria anárquica do conhecimento. Como ensina Feyerabend (1997), o anarquismo é um excelente remédio para os problemas que acompanham a epistemologia e a filosofia. No processo de construção dos saberes, a perspectiva anarquista proporciona o livre desenvolvimento do conhecimento, desembaraçando-o das amarras e das obrigações que geralmente caminham ao lado das metodologias tradicionais. Consequentemente, a anarquista epistemológica não possui lealdade permanente a nenhuma instituição, método ou corrente de pensamento, colocando-se sempre aberta ao horizonte de possibilidades. Entendemos que tal posicionamento é particularmente profícuo quando se objetiva ir de encontro com a chamada “condição de coerência”, segundo a qual toda nova hipótese deve se ajustar às teorias dominantes, impossibilitando assim um saber realmente novo e questionador, (FEYERABEND, 1997) o que é visível com especial clareza nas ciências sociais aplicadas, que trabalham muitas vezes com ideias abstratas que rapidamente se tornam hábitos obrigatórios para o pensar.

Dessa maneira, o artigo não oferece nenhuma metodologia prévia e abstrata em relação a seu objeto. Ao contrário, ele aposta na construção de um método dialógico e não linear à medida em que a argumentação é gradativamente desenvolvida e elaborada por meio de referências e análises a textos e a acontecimentos históricos aos quais se dirigem os primeiros, todos eles indicados e debatidos criticamente ao longo do trabalho. Afinal, “[...] o método não é um conjunto de regras que se assume de antemão e guia de modo seguro e inescapável o pensar” (MATOS, 2014MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia radical e utopia: inapropriabilidade, an-arquia, a-nomia. Rio de Janeiro: Via Verita, 2014., p. 40). Assim, como já dito, as ideias se desenvolvem simultaneamente à construção de seu próprio caminho crítico-expositivo, ou seja, o “método”. O objetivo de tal aposta é que o método não seja autonomizado enquanto um instrumento apto a moldar o conteúdo de uma nova compreensão da desobediência não-civil. Ao contrário, ele deve compor essa teoria, fazendo parte dela sob um olhar crítico e sendo, obviamente, um método desobediente.

Tal proposta é sem dúvida arriscada. Mas o pensamento radical, as práticas políticas desobedientes e a própria democracia radical também o são. Todos eles representam a abertura ao porvir e ao lançar dos dados de ações desinstituintes que se recusam a aquiescer com o que é imposto, comandado e verticalmente decidido. Sob o risco de ser considerada como não científica ou até mesmo como não pertencente ao mundo acadêmico, a ideia de desobediência não-civil que se busca esboçar a partir deste trabalho procura se contrapor à teoria dominante da desobediência civil. Trata-se, portanto, de uma alternativa capaz de expandir o campo de análise (e de prática) de um conjunto de saberes situados, buscando evidenciar as propostas que dele podem ser extraídas e compartilhadas. Eis o convite an-árquico que fazemos às leitoras deste artigo, que se insere em um projeto de pesquisa coletivo muito mais amplo cujo comprometimento com o pensamento livre e a democracia radical pode ser aquilatado em outras das produções coletivas do nosso grupo de pesquisa.2 2 Cf. Estado de exceção, desobediência civil e desinstituição: por uma leitura democrático-radical do poder constituinte de Andityas Soares de Moura Costa Matos; Desobediencia civil como poder constituyente/desinstituyente: una nueva práctica política anticapitalista de Andityas Soares de Moura Costa Matos e Joyce Karine de Sá Souza; Civil disobedience as constituent power de Andityas Soares de Moura Costa Matos; e Ética e a dimensão (des)constituinte da desobediência civil: uma leitura a partir de Michel Foucault de Andityas Soares de Moura Costa Matos e Lorena Martoni de Freitas.

1. Sobre a desobediência civil

Ferramentas políticas institucionalmente legítimas, tais como eleições, plebiscitos, ações judiciais, programas de participação pública nas tomadas de decisões, por exemplo, não são necessariamente efetivas. Elas são, contudo, os métodos tradicionalmente usados no controle e na supervisão do poder político do Estado e das instituições que o compõem ou se põem ao seu lado, tal como o mercado. Cotidianamente esses métodos convencionais são utilizados por grupos de resistência e por indivíduos que procuram executar algum tipo de mudança na realidade em que vivem quando ainda acreditam na estrutura do sistema político no qual estão inseridos e nos procedimentos formais adotados pelo Estado.

Quando os métodos tradicionais de controle e/ou resistência ao poder político já não são suficientes para alterar o status quo ou para provocar mudanças concretas e efetivas em resposta às demandas da sociedade civil, a desobediência civil surge como uma possibilidade de luta não-violenta contra as mais variadas formas de opressões existentes. Enquanto ação não-violenta baseada na negação do apoio e do consentimento, a desobediência civil se revela uma alternativa de resistência eficaz, podendo ser utilizada como instrumento apto a modificar e produzir leis, decisões e políticas públicas. Segundo Hannah Arendt:

A desobediência civil aparece quando um número significativo de cidadãos se convence de que, ou os canais normais para mudanças já não funcionam, e que as queixas não serão ouvidas nem terão qualquer efeito, ou então, pelo contrário, o governo está em vias de efetuar mudanças e se envolve e persiste em modos de agir cuja legalidade e constitucionalidade estão expostas a graves dúvidas (ARENDT, 2006ARENDT, Hannah. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da república. 2. ed. Trad. José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 2006., p. 68).

Consequentemente, aquelas pessoas que estão convencidas da lentidão, da corrupção ou da ineficácia dos procedimentos legais de participação política ou de controle e resistência ao poder político buscam outras vias de atuação que não as convencionais. As dissidentes se empenham em buscar e construir caminhos alternativos que lhes retirem da posição de passividade.

A desobediência civil constitui-se como um movimento contestatório que se coloca em face do poder político exercido por uma autoridade, ou seja, em face do poder político estratificado que está, por sua própria configuração, fora do alcance daqueles que não preenchem suas condições de uso e acesso. Tradicionalmente, ela é compreendida como uma forma de protesto apta a produzir pressão naqueles que dominam posições de autoridade no que se refere à tomada de decisões políticas. Ela é empreendida, em geral, como recurso último, quando os instrumentos estatais institucionalmente legítimos não são capazes de satisfazer as demandas de determinado grupo, comumente minoritário em sentido social (e não necessariamente em sentido numérico).

A capacidade dos atores sociais de desafiarem o poder hierarquizado nas instituições da sociedade permite ao desobediente político romper com os mecanismos e dispositivos de opressão que, não raro, estão vinculados ao direito e ao Estado. Esse rompimento é caracterizado pela recusa em aquiescer com determinada ordem ou comando, seja ela de caráter legislativo ou administrativo.

Os desobedientes fazem valer sua participação no espaço público do debate, do dissenso e da ação, seja através do silêncio obstinado, de palavras ou canções, seja por meio da permanência física, do movimento coordenado, do agrupamento insistente que se recusa a esmorecer.

A desobediência civil pode assumir variadas formas tais como greves ilegais, ocupações de edifícios governamentais e oficiais, ocupações e violações de propriedades privadas, recusa em reconhecer determinada autoridade, obstruções de vias públicas etc. E as desobedientes que vão às ruas para protestar e manifestar procuram, com essas ações, a sua inserção no espaço político, em uma tentativa de fazer parte dos processos decisórios cujas consequências recaem diretamente sobre sua própria existência material.

Tradicionalmente, as demandas intentadas por meio da desobediência civil são parciais, distanciando-se da ideia de uma “tomada de poder” de caráter revolucionário. Via de regra, busca-se exercer pressão política sobre alguma autoridade ou então a inclusão dos manifestantes na esfera política institucionalizada. Em verdade, como sugerido pelos autores que trabalham a desobediência política sob a nomenclatura de civil (ARENDT, 2006ARENDT, Hannah. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da república. 2. ed. Trad. José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 2006.; ARROYO, 1996; DWORKIN, 2002DWORKIN, Ronald. A desobediência civil. In: DOWRKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Matins Fontes, 2002.; GANDHI, 1999GANDHI, Mohandas Karamchand. Autobiografia: minha vida e minhas experiências com a verdade. Trad. Humberto Mariotti. São Paulo: Palas Athena, 1999., HABERMAS, 1985HABERMAS, Jürgen. Civil Disobedience: Litmus test for the democratic constitutional state. Berkeley Journal of Sociology, v. 30, pp. 95-116, 1985.; KING, 1968KING Jr., Martin Luther. Grito da consciência. Trad. Vera Neves Pedroso. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1968., RAWLS, 2000RAWLS, John. Dever e obrigação. In: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. e WALZER, 1970WALZER, Michael. Obligations: essays on disobedience, war and citizenship. Cambridge: Harvard University, 1970.), as ações desobedientes são compreendidas, na maioria das vezes, como um instrumento de pressão política que objetiva o diálogo para a inclusão e para a concessão de direitos ou o reconhecimento de obrigações estatais.

Ainda que parcial,3 3 Parcial porque não pretende a construção de um espaço político novo, mas sim a inclusão de demandas na esfera política já existente mediante pressão política para que sejam ouvidas, consideradas e, esperançosamente, atendidas. a busca pela participação na esfera política é de fundamental importância e a ação de ir às ruas desobedecer normas, preceitos legais e até mesmo práticas sedimentadas4 4 Práticas sedimentadas podem ser compreendidas como aquilo que em um determinado momento é considerado como uma ordem “natural”. Elas são as práticas de articulação por meio das quais uma determinada ordem é estabelecida e mantida. É através das práticas sedimentadas que o significado das instituições sociais é dado (MOUFFE, 2015). Escrever um texto acadêmico utilizando-se simultaneamente dos gêneros feminino e masculino, por exemplo - como fazemos aqui - é uma ação contestatória (ainda que individual, na maioria das vezes) que busca evidenciar e romper com as práticas sedimentadas de uma língua escrita homogênea que, intencionalmente ou não, reflete as estruturas de uma sociedade patriarcal e machista. é um significativo mecanismo de fazer valer a vontade de indivíduos ou grupos que constantemente são colocados e expostos à situações de violência e precariedade (BUTLER, 2018BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Trad. Fernanda Siqueira Miguens. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.). Reunir-se em praças e ruas significa reivindicar a participação na esfera pública e estar no espaço do aparecimento social, no momento em que os seres humanos se reúnem na modalidade da fala e da ação para constituir o domínio político (ARENDT, 2007ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.). Todavia, tal modalidade de ação, ao se limitar à esfera do direito, traz algumas questões, as quais serão exploradas no decorrer deste texto, de modo a indicarmos a possibilidade de uma desobediência que não esteja atrelado à ordem estatal enquanto um direito.

2. As teorias tradicionais da desobediência civil

Sob o ponto de vista teórico, a desobediência civil passa a ser definida como tal a partir figura de Henry David Thoreau (2017THOREAU, David Henry. A Desobediência Civil. Trad. José Geraldo Couto. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.). Embora a expressão desobediência civil não tenha sido por ele cunhada (e tampouco por ele atribuída originalmente à sua obra),5 5 Ao contrário do que comumente se pensa, a expressão “desobediência civil”, título pelo qual o ensaio de Thoreau é conhecido até os dias de hoje, não foi uma escolha do próprio autor. Quando publicada pela primeira vez, Thoreau atribuiu à sua obra o título original de Resistência ao governo civil, uma escolha pertinente, considerando que o referido livro foi a reformulação de uma conferência por ele apresentada cujo título era A relação entre o indivíduo e o Estado. Nessa conferência Thoreau explicou as razões que o levaram a não pagar os impostos como forma de protesto contra as escolhas políticas do Estado de Massachusetts e do governo federal estadunidense, então envolvido com uma guerra imperialista contra o México, de forma a obter territórios (LAUDANI, 2013; SHEUERMAN, 2018 e THOREAU, 2017). são seus escritos que inspiraram, a partir de uma perspectiva conceitual, os mais variados movimentos de desobediência civil realizados durante o século XX, dentre os quais destacam-se a Marcha do Sal liderada por Mohandas Karamchand Gandhi (1951GANDHI, Mohandas Karamchand. Cartas ao Ashram. Trad. Jean Herbert. São Paulo: Hemus, 1951.; 1998 e 1999) e o Movimento por Direitos Civis dos negros, liderado por Martin Luther King Jr. (1963KING Jr., Martin Luther. Letter from Birmingham Jail. 1963. Disponível em <https://web.cn.edu/kwheeler/documents/Letter_Birmingham_Jail.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2018.
https://web.cn.edu/kwheeler/documents/Le...
e 1968).

Desde a publicação da referida obra, a desobediência que já não é mais simplesmente política, tendo se tornado sobretudo, civil, começa a ter seus contornos definidos com mais clareza e precisão teórica, passando a ser considerada uma forma de resistência legítima e organizada cujo fundamento se localiza na dissidência dos indivíduos em relação ao governo e às autoridades constituídas. Trata-se de uma forma de luta não-violenta baseada na ideia de retirada do consentimento e, consequentemente, do apoio dos governados aos governantes.

Thoreau (2017THOREAU, David Henry. A Desobediência Civil. Trad. José Geraldo Couto. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.) traz à tona a possibilidade e a potencialidade de resistir ao governo e às suas instituições por meio da desobediência. Retomando o tema do consentimento proposto por Lá Boétie (2017BOÉTIE, Étienne de La. Discurso sobre a servidão voluntária. Trad. Evelyn Tesche. São Paulo: Edipro, 2017.) ainda no século XVI, ele encara a passividade do cidadão, antes súdito e agora governado, como a conivência com as iniquidades promovidas por governos e governantes.

A ideia de consentimento levantada por Thoreau (2017THOREAU, David Henry. A Desobediência Civil. Trad. José Geraldo Couto. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.) revela a fragilidade do poder político hierarquizado, pois evidencia a fundamental importância da obediência na correspondência entre governantes e governados ou entre governo e governados. A partir dessa percepção, torna-se possível pensar a própria estrutura social ante um olhar mais arrojado e radical, que aceita a aposta e o desafio do ato de se arriscar e de construir a política em comunidade a partir da desobediência e da recusa.

É também com Thoreau (2017THOREAU, David Henry. A Desobediência Civil. Trad. José Geraldo Couto. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.) que a desobediência civil começa a se distanciar das outras formas de desobediência. A distinção entre as modalidades de desobediência é delineada pelo caráter político da desobediência civil. É esse caráter que vai distingui-la da objeção de consciência (RAWLS, 2000RAWLS, John. Dever e obrigação. In: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.), da desobediência criminosa (ARENDT, 2006ARENDT, Hannah. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da república. 2. ed. Trad. José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 2006.), dos crimes de consciência (DWORKIN, 2002DWORKIN, Ronald. A desobediência civil. In: DOWRKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Matins Fontes, 2002.) e da desobediência comum, que não se relaciona com a esfera política de determinada comunidade, mas sim com os interesses pessoais daquela ou daquele que desobedece.

As ações desobedientes carentes de intencionalidade política em geral são conceituadas como objeção de consciência. Trata-se de uma segmentação do direito de resistência perpetrada por aquela pessoa que considera moralmente inaceitável um dever jurídico a ela imposto, mas que não tenha nenhuma pretensão de modificar ou alterar a legislação vigente ou a decisão que deu origem à obrigação (ARROYO, 1996). A objeção de consciência é vista como uma forma de isenção legal a um dever geral pela qual o indivíduo procura obter a suspensão pessoal do âmbito de validade da lei (MARTÍN, 2017MARTÍN, Francisco Javier de Lucas. Discutir la (des)obediência. Almacén de Derecho. Dez. 2017. Disponível em <https://almacendederecho.org/discutir-la-desobediencia/>. Acesso em: 17 out. 2018.
https://almacendederecho.org/discutir-la...
).

Empreendida com o objetivo contestatório, a desobediência civil diferencia-se da desobediência criminosa e da objeção de consciência por sua natureza política, que revela a preocupação do desobediente ou das desobedientes com os problemas da comunidade enquanto tal. Se a desobediente não está preocupada com a alteração ou a revogação da lei ou do comando contestado em relação a todas aquelas que integram a sociedade, sua ação não possui natureza política, uma vez que seus propósitos se restringem aos seus próprios dilemas e demandas pessoais. Ensina MacFarlane:

Em sentindo amplo, portanto, a desobediência política abrange a performance de qualquer ato proibido pela lei ou pelo Estado, ou a não-performance de qualquer ato exigido pela lei ou pelo Estado, com o propósito de assegurar mudanças nas ações, políticas, leis, governos ou constituição do Estado, ou do sistema social e político a ele subjacente (MACFARLANE, 1971MACFARLANE, Leslie J. Polical disobedience. London: Macmillan Education, 1971., p. 13, tradução nossa).

Diferentemente da desobediência civil, a objeção de consciência é uma contestação individual ao cumprimento da ordem ou da obrigação legal em consonância com a consciência pessoal do sujeito e não devido à injustiça ou ao caráter iníquo que porventura a própria lei venha a apresentar para a sociedade. A natureza da “consciência” da objeção é de fundamental importância nesse contexto, pois ela permite distinguir quando o interesse próprio se torna a base para as ações desobedientes que forem realizadas (RAWLS, 2000RAWLS, John. Dever e obrigação. In: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.).

Assim também se posiciona Carlos Santiago Nino (1989NINO, Carlos Santiago. Ética y derechos humanos: un ensayo de fundamentación. Buenos Aires: Astrea, 1989.), que considera que o núcleo da desobediência política gira, sem dúvida, ao redor da concepção de uma ação que deve ser, necessariamente, politicamente motivada. Para o autor, é justamente o móbil de reformar e alterar as políticas públicas e a legislação vigente que distingue a objeção de consciência da desobediência civil, embora, para ele, ambas se caracterizem como desobediências jurídicas praticadas por razões morais. A desobediência política, pautada por seu núcleo político, é então “[...] uma quebra consciente da legalidade vigente com a finalidade de não tanto buscar uma dispensa pessoal a um dever geral de todos os cidadãos (objeção de consciência), mas sim de superar a norma transgredida por outra que é postulada em mais amplo acordo com os interesses gerais” (ARROYO, 1996, p. 165, tradução nossa).

Vale a pena evidenciar, não obstante, que a objeção de consciência pode ter consequências políticas relevantes. Para que isso ocorra, é necessário que ela se dê no âmbito coletivo, quando realizada por um conjunto de objetores de consciência e não por um único indivíduo. “Sem dúvida, mesmo tal forma de objeção de consciência pode se tornar politicamente significativa quando acontece de coincidir um certo número de consciências, e os objetores de consciência resolvem ir à praça do mercado e se fazerem ouvir em público” (ARENDT, 2006ARENDT, Hannah. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da república. 2. ed. Trad. José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 2006., p. 63).

Arendt (2006ARENDT, Hannah. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da república. 2. ed. Trad. José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 2006.) também procura estabelecer o elemento político da desobediência civil. Para a autora, é esse o componente que distingue a objeção de consciência da desobediência civil. O peso político, ou seja, o elemento político, está localizado precisamente nas decisões tomadas em prol da coletividade, no ato de se afirmar publicamente no espaço do debate e da ação. A autora afirma que basear-se em sua própria consciência a partir de um mandamento que determina o comportamento sem levar em conta as relações com as instituições humanas configura a objeção de consciência e não a desobediência civil.

Para que a desobediência se caracterize como civil, portanto, ela deve ser exercida no espaço público, ou seja, no espaço do debate, do dissenso e da ação. Ela deve ser empreendida pela desobediente com o objetivo de alterar ou corrigir certa injustiça ou ilegitimidade que esteja ocorrendo, devendo ser necessariamente pacífica.

3. A captura da desobediência política pela teoria

Embora a desobediência civil tenha o escopo de ser uma alternativa aos métodos institucionais, tradicionais e, consequentemente, legais de resistência e controle ao poder político, não raro as autoras e autores que se debruçam sobre o tema tendem a limitar a concepção do que seria a desobediência civil, o que resulta, intencionalmente ou não, em sua transformação em mais um dentre os métodos tradicionais acima mencionados.

Nesse sentido, a proposta teórica de desobediência política criada por Thoreau (2017THOREAU, David Henry. A Desobediência Civil. Trad. José Geraldo Couto. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.), fundamentada sob o prisma da radicalidade, é logo capturada. Transformada em civil, sua potencialidade é deixada em segundo plano dentro de um longo projeto teórico que se proporá a justificar e a legitimar movimentos que seriam melhor compreendidos em ação.

A tentativa de enquadramento da desobediência política nos ditames instituídos pela legislação e pelas permissões estatais a partir de sua definição teórica vai de encontro com a ideia de um movimento que preconiza exatamente sua força contra a autoridade (e quiçá legitimidade) do Estado. De forma semelhante, a imposição de delimitações teóricas às práticas de resistência desobediente desqualifica aquelas ações contestatórias que não deixam se tolher por tais restrições.

Desde os escritos de Thoreau (2017THOREAU, David Henry. A Desobediência Civil. Trad. José Geraldo Couto. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.), foram incontáveis os autores que se propuseram a estudar as questões concernentes ao tema da desobediência civil. Igualmente, são inúmeras as classificações criadas para enquadrar as ideias desses autores, cujas conceituações e singularidades podem variar desde uma proposta compreendida como constitucionalista até um panorama dito anarquista. Tais classificações são importantes porque ajudam a compreender as formulações teóricas que orbitam sobre as práticas desobedientes. Da mesma forma, elas auxiliam a esquematização de conceitos que hora convergem, hora divergem, indicando assim semelhanças e disparidades entre as propostas desses autores.

Não existe uma única classificação que apresente definições últimas (sejam elas radicais ou conservadoras, liberais ou constitucionalistas, religiosas ou seculares) dentre as várias formas possíveis de se conceber e compreender a desobediência civil. Em verdade, é possível afirmar que as diferentes vertentes propostas por pensadores teóricos e militantes às vezes se cruzam e até mesmo se intercalam ao longo da história. Ainda que as tradições da desobediência civil sejam, em princípio, categorizadas como antagonistas, todas elas formulam modelos e conceituações que acabam se sobrepondo, mesmo que diferencialmente, não sendo possível falar em uma divisão hermética e definitiva (MATOS, 2017MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Desobediência civil hoje: entre a desinstituição e o poder constituinte. In: GONTIJO, Lucas; MAGALHÃES, José Luiz Quadros; MORAIS, Ricardo Manoel de Oliveira. Rompimento democrático no Brasil: teoria política e crise das instituições públicas. Belo Horizonte: D’Plácido, pp. 205-257, 2017.).

Deve-se ter em mente que essas vertentes representam tipos ideais, ou seja, conquanto sejam indispensáveis para a compreensão da realidade, elas mantêm uma complexa e problemática relação com os movimentos sociais concretos. Além disso, vários exemplos de ações desobedientes combinam elementos de mais de uma vertente, não havendo linhas divisórias permanentes que separem e isolem cada uma delas (SCHEUERMAN, 2018SCHEUERMAN, William E. Civil disobedience. Cambridge: Polity, 2018.).

Matos (2017MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Desobediência civil hoje: entre a desinstituição e o poder constituinte. In: GONTIJO, Lucas; MAGALHÃES, José Luiz Quadros; MORAIS, Ricardo Manoel de Oliveira. Rompimento democrático no Brasil: teoria política e crise das instituições públicas. Belo Horizonte: D’Plácido, pp. 205-257, 2017.), a título de exemplo, propõe a divisão do projeto desobediente em duas tradições que, para o autor, permitem uma melhor compreensão da natureza da desobediência civil. A primeira, notadamente de caráter liberal, e a segunda, de caráter essencialmente constitucionalista.

Seguindo a classificação acima proposta, a tradição liberal de interpretação da desobediência civil se consolida a partir das décadas de 1950 e 1960, quando se desenrola o movimento de luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, liderado por Martin Luther King Jr. Atualmente, a tradição liberal tem como principais expoentes John Rawls (2000RAWLS, John. Dever e obrigação. In: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.) e Michael Walzer (1970WALZER, Michael. Obligations: essays on disobedience, war and citizenship. Cambridge: Harvard University, 1970.), para os quais a desobediência civil é uma forma de protesto coletiva ou individual, ilegal, tendencialmente não-violenta e que tem como objetivo a produção de pressão política a fim de que determinada lei, norma, decisão ou diretriz consideradas injustas sejam modificadas porque são contrárias a princípios que compõem o ordenamento jurídico ou porque são moralmente injustas (MATOS, 2017MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Desobediência civil hoje: entre a desinstituição e o poder constituinte. In: GONTIJO, Lucas; MAGALHÃES, José Luiz Quadros; MORAIS, Ricardo Manoel de Oliveira. Rompimento democrático no Brasil: teoria política e crise das instituições públicas. Belo Horizonte: D’Plácido, pp. 205-257, 2017.). A tradição liberal possui grande importância teórica por ter inserido o tema da desobediência civil nos debates políticos e jurídicos contemporâneos. Contudo, deve-se reconhecer que ela deixa de lado o sentido constitucional da desobediência civil ao “concebê-la enquanto simples protesto ou medida de pressão política. Para o liberalismo, o objetivo da desobediência civil é, em última análise, propiciar a negociação com o Estado para assim se alcançar um acordo” (MATOS, 2017, p. 207).

A tradição constitucionalista, que pode ser lida como uma derivação da tradição liberal, tem como principais expoentes autores como Ronald Dworkin (2002DWORKIN, Ronald. A desobediência civil. In: DOWRKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Matins Fontes, 2002.), Hannah Arendt (2006ARENDT, Hannah. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da república. 2. ed. Trad. José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 2006.) e Jürgen Habermas (1985HABERMAS, Jürgen. Civil Disobedience: Litmus test for the democratic constitutional state. Berkeley Journal of Sociology, v. 30, pp. 95-116, 1985. e 1997). Para esses autores, a desobediência civil pode ser compreendida como um mecanismo institucional, um instrumento político-jurídico que tem como escopo a proteção das garantias e direitos fundamentais. Parece que a tradição constitucionalista se adequa mais aos parâmetros do Estado Democrático de Direito, uma vez que

[...] pressupõe uma cidadania participativa e solidária, a qual não se identifica com sujeitos que somente são chamados a escolher periodicamente seus representantes. Ao contrário, lançando mão de movimentos não-violentos, mas questionadores de decisões e normas específicas do sistema político-jurídico, os cidadãos desobedientes se inserem em um complexo processo político e jurídico de interpretação da Constituição (MATOS, 2017MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Desobediência civil hoje: entre a desinstituição e o poder constituinte. In: GONTIJO, Lucas; MAGALHÃES, José Luiz Quadros; MORAIS, Ricardo Manoel de Oliveira. Rompimento democrático no Brasil: teoria política e crise das instituições públicas. Belo Horizonte: D’Plácido, pp. 205-257, 2017., p. 213).

Matos ainda afirma, a despeito da classificação teórica dupla, que o entendimento da desobediência civil deve ser radicalizado. Embora ele reconheça que a tradição constitucionalista ofereça grandes avanços em relação à tradição liberal, a desobediência civil deve ser concebida como uma expressão do que Matos considera como poder desinstituinte e não enquanto expressão constitucional do poder constituído.6 6 Para uma melhor compreensão do tema, cf. Desobediência civil hoje: entre a desinstituição e o poder constituinte (2017). O autor cria a expressão “desinstituinte” como um neologismo para se referir a um poder diferente da concepção de potência destituinte proposta por Giorgio Agamben. Matos propõe, com o termo, se referir à desconstrução de instituições reais e efetivas do poder constituído. A radicalização da desobediência civil, nesse sentido, deve ser um exercício concomitantemente teórico e prático, sob pena de ela se tornar mais um dentre os vários métodos de resistência e controle do poder político que são institucionalizados e, consequentemente, esvaziados.

Outra possibilidade de classificação das tradições da desobediência civil presente no debate contemporâneo acerca do tema é aquela proposta por Scheuerman (2018SCHEUERMAN, William E. Civil disobedience. Cambridge: Polity, 2018.). De acordo com o autor, é possível classificar a teoria desobediente dentro de quatro vertentes distintas: a) religiosa-espiritual; b) liberal; c) democrática; e d) anarquista.

A tradição religiosa-espiritual, representada pelos desobedientes Mohandas Karamchand Gandhi (1951GANDHI, Mohandas Karamchand. Cartas ao Ashram. Trad. Jean Herbert. São Paulo: Hemus, 1951.; 1998 e 1999) e Martin Luther King Jr. (1968KING Jr., Martin Luther. Grito da consciência. Trad. Vera Neves Pedroso. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1968.), concebe a desobediência civil como um dispositivo apto a se colocar contra o mal, tratando-se de uma forma de testemunho divino que exige de seus praticantes um comportamento espiritual adequado.

A tradição liberal, que tem como maior expoente Rawls (2000RAWLS, John. Dever e obrigação. In: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.), preconiza a libertação da desobediência civil do apelo religioso que até então lhe era concedido pela tradição religiosa-espiritual. Em consequência, sob o viés dessa tradição, a desobediência civil apenas faria sentido se interpretada a partir do olhar do pluralismo moderno, tornando-se um corretivo útil capaz de retificar as injustiças provocadas por maiorias políticas que constantemente comprometem os direitos das minorias naquilo que Rawls chama de “sociedades quase justas”.

A tradição democrática, por sua vez, surge como um desafio à tradição liberal, principalmente em relação ao conceito de democracia por ela apresentado, considerado por seus principais autores como demasiadamente estreito. As considerações acerca das democracias liberais concentram-se principalmente na ausência de inclusão por ela oferecida, que deixa de lado a relação entre igualdade e pluralismo (MARTÍN, 2013MARTÍN, Francisco Javier de Lucas. Desobediência e democracia: a hora da cidadania. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, v. 37, n. 1, pp. 58-72, jan./jun. 2013.). Essa tradição se baseia em teóricos como Hannah Arendt (2006ARENDT, Hannah. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da república. 2. ed. Trad. José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 2006.) e Jürgen Habermas (1985HABERMAS, Jürgen. Civil Disobedience: Litmus test for the democratic constitutional state. Berkeley Journal of Sociology, v. 30, pp. 95-116, 1985.; 1997), que entendem a proposta da tradição liberal como insuficientemente crítica em relação ao status quo político liberal, propondo, dessa forma, um amplo conceito de desobediência civil capaz de atingir e corrigir déficits democráticos, podendo também promover reformas políticas e sociais.

A tradição anarquista, por fim, coordenada e concretizada por militantes dentre as mais variadas gerações e pelas assim consideradas anarquistas filosóficas, tem como escopo superar as limitações das três abordagens anteriores que, embora às vezes pintadas sob o viés da radicalidade, acabam sempre se apresentando como possibilidades de correção de injustiças dentro da limitada perspectiva do Estado e das suas instituições políticas e jurídicas. Essa tradição se propõe a ser, dessa maneira, um desafio frente às concepções legalistas da desobediência civil, sempre atrelada às fronteiras estatais. A corrente anarquista é representada por autores como Chaim Guns (2009), David Graeber (2002GRAEBER, David. The new anarchists. New Left Review, v. 13, pp. 61-73, 2002. e 2009) e Alan John Simmons (1995, 2001, 2006 e 2016). É possível encontrar diversas conexões entre as classificações propostas tanto por Scheuerman (2018SCHEUERMAN, William E. Civil disobedience. Cambridge: Polity, 2018.) quanto por Matos (2017MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Desobediência civil hoje: entre a desinstituição e o poder constituinte. In: GONTIJO, Lucas; MAGALHÃES, José Luiz Quadros; MORAIS, Ricardo Manoel de Oliveira. Rompimento democrático no Brasil: teoria política e crise das instituições públicas. Belo Horizonte: D’Plácido, pp. 205-257, 2017.). A despeito do pluralismo conceitual que elas apresentam, existem elementos e objetivos em comum entre as tradições liberal e constitucionalista apresentada por Matos (2017) e as tradições religiosa-espiritual, liberal e democrática apresentadas por Scheuerman (2018). Em especial, há em comum entre elas o fato de todas compreendem a desobediência civil como um método de resistência a ser controlado e institucionalizado dentro de marcos impostos pelo Estado. Com isso, a desobediência civil apenas atuaria como instrumento de correção parcial e pontual dentro de um sistema que, sob esse ponto de vista, não precisaria ser repensando integralmente no tocante às suas próprias estruturas. À sombra dos autores analisados dentro dessas tradições, a desobediência política se assume imperiosamente como civil: um instituto capturado e instrumentalizado pelos dispositivos do Estado e pelas mais variadas teorias, incapaz de produzir algo além de reformas intrassistêmicas.

4. Uma nova classificação da desobediência civil

Adotando-se uma combinação entre as classificações acima demonstradas, o presente trabalho acata a divisão das tradições teóricas da desobediência civil entre a tradição religiosa-espiritual, a tradição liberal, a tradição constitucionalista e a tradição anarquista.

4.1. A tradição religiosa-espiritual

A primeira delas, representada por Gandhi (1951GANDHI, Mohandas Karamchand. Cartas ao Ashram. Trad. Jean Herbert. São Paulo: Hemus, 1951.; 1998 e 1999) e por King Jr. (1968KING Jr., Martin Luther. Grito da consciência. Trad. Vera Neves Pedroso. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1968.), tem como premissa a violação de leis imorais não apenas como um direito moral de cada um, mas, sobretudo, como uma obrigação divina. Dentro da tradição religiosa-espiritual é esperado que as violações às leis sejam executadas de maneira apropriada, o que exige de seus agentes uma firme disciplina e comprometimento moral. Essas exigências são percebidas tanto por Gandhi (1951; 1998 e 1999) como por King Jr. (1968) como elementos espirituais necessários à legitimidade da desobediência. A desobediência civil é compreendida, sob essa perspectiva, como um corretivo social capaz de promover mudanças em um mundo dividido entre o bem e o mal (SCHEUERMAN, 2018SCHEUERMAN, William E. Civil disobedience. Cambridge: Polity, 2018.).

Uma parte considerável da organização Movimento por Direitos Civis nas décadas de 1960 e 1970 nos Estados Unidos ocorreu dentro das igrejas. Embora King Jr. (1968KING Jr., Martin Luther. Grito da consciência. Trad. Vera Neves Pedroso. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1968.) apresente extensos argumentos a favor da estratégia e do planejamento quando da prática da desobediência civil, ele também percebe os movimentos sociais como resultado de inspiração divina. Nesse sentido, é possível afirmar que ele adaptou as ideias de Gandhi ao contexto e às condições do Estados Unidos da América à época.

A tradição religiosa-espiritual, assim como as tradições semelhantes que a sucedem, entende que a desobediência civil não se confunde com a comum violação à lei, distinguindo, dessa forma, o desobediente do criminoso. Essa discrepância é, para King Jr. (1963KING Jr., Martin Luther. Letter from Birmingham Jail. 1963. Disponível em <https://web.cn.edu/kwheeler/documents/Letter_Birmingham_Jail.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2018.
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), evidenciada pelo fato de que as ilegalidades cometidas pelos desobedientes não representam uma afronta ao ordenamento jurídico como um todo. Ao contrário, para ele, assim como também para Rawls (2000RAWLS, John. Dever e obrigação. In: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.), a desobediência civil representa o mais elevado respeito à lei. O respeito pela lei, por si só, não representa um problema para abrangência da desobediência civil. Contudo, ele restringe a possibilidade de se pensar um movimento desobediente que seja radical e que conteste, por exemplo, a ordem jurídica em sua estrutura total, especialmente quando ela se conecta sub-repticiamente a dimensões econômicas excludentes.

Para Gandhi (1999GANDHI, Mohandas Karamchand. Autobiografia: minha vida e minhas experiências com a verdade. Trad. Humberto Mariotti. São Paulo: Palas Athena, 1999.), a desobediência civil também deve ser entendida como uma violação consciente à lei, razão pela qual os desobedientes devem aderir a rigorosas normas morais e comportamentais. Essas normas constituem a exigência para que a desobediência seja considerada civil, uma vez que representam aquilo que é demandado por instâncias espirituais superiores. Tanto a justificativa quanto a fundamentação da teoria dos autores acima citados são baseadas em perspectivas religiosas. A despeito dessa divergência em relação às outras correntes da desobediência civil, Gandhi (1951; 1998 e 1999) e King Jr. (1963KING Jr., Martin Luther. Letter from Birmingham Jail. 1963. Disponível em <https://web.cn.edu/kwheeler/documents/Letter_Birmingham_Jail.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2018.
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e 1968) compõem não apenas o terreno teórico da desobediência civil, mas também, e precipuamente, a sua esfera prática. Ambos os autores eram exímios estrategistas e nessa qualidade delinearam a ideia de desobediência a partir de suas experiências reais, expandindo as fronteiras entre a prática e a teoria no exercício de sua militância.7 7 É razoável conjecturar, portanto, que o maior legado, tanto da Marcha do Sal quanto das experiências desobedientes do movimento por direitos civis norte-americano, tenha sido o exemplo da relevância e da gravidade do planejamento estratégico e da disciplina nos movimentos desobedientes de resistência. Isso não significa que tais movimentos sejam imunes a críticas, principalmente quando comparados aos movimentos de resistência contemporâneos, mas apenas sugere que eles podem ser estudados como grandes referências para a estruturação futura de ações desobedientes.

A tradição religiosa-espiritual, portanto, concentra em si a estrutura da desobediência civil, que é mantida por todas as tradições seguintes, ainda que com algumas modificações pontuais. O que a tradição liberal tenta fazer de realmente novo é a superação da justificativa e da fundamentação religiosa.

4.2. A tradição liberal

Tendo como ponto de partida as classificações de Scheuerman (2018SCHEUERMAN, William E. Civil disobedience. Cambridge: Polity, 2018.) e Matos (2017MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Desobediência civil hoje: entre a desinstituição e o poder constituinte. In: GONTIJO, Lucas; MAGALHÃES, José Luiz Quadros; MORAIS, Ricardo Manoel de Oliveira. Rompimento democrático no Brasil: teoria política e crise das instituições públicas. Belo Horizonte: D’Plácido, pp. 205-257, 2017.), o posicionamento de Rawls (2000RAWLS, John. Dever e obrigação. In: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.), Walzer (1970WALZER, Michael. Obligations: essays on disobedience, war and citizenship. Cambridge: Harvard University, 1970.) e mesmo Bedau (2002) acerca da desobediência civil encaixa-se acertadamente dentro da tradição liberal. Rawls (2000) e Walzer (1970), em especial, descrevem a desobediência civil a partir de elementos que comungam plenamente com o contexto de uma tradição que se delineia com contornos liberais, tanto de acordo com os critérios fornecidos por Sheuerman (2018) quanto por Matos (2017).

A começar pela construção de uma teoria que se desenvolve liberta das amarras espirituais, os projetos teóricos de Rawls e Walzer acerca da desobediência civil, embora construídos sob enquadramentos distintos, apresentam grande similitude. Não é possível conjecturar uma teoria uniforme, com perfeita equivalência entre ambos. Contudo, é inegável a presença de elementos correspondentes e até mesmo estruturalmente coerentes entre ambas as propostas. Tanto Walzer quanto Rawls se debruçam demoradamente sobre o conflito que perpassa o embate entre grupos minoritários e maiorias. Ambos os autores constroem suas ideias levando em consideração a importância do pluralismo político e a sua relação com sociedades que se propõem democráticas. Nessa conjuntura, o dissenso ganha especial destaque, principalmente quando manifestado por meio da desobediência civil. Esta, por sua vez, é analisada em comparação com a ineficácia dos instrumentos fornecidos pelos sistemas políticos tradicionais.

A restrita visão da desobediência como simples protesto também é compartilhada entre esses autores, que a compreendem com o objetivo de promover a negociação entre as desobedientes e o Estado. Sob essa perspectiva, a desobediência nada mais é do que uma medida de pressão política que tem como propósito um acordo que inclua as pautas dos dissidentes na agenda política e que vise a sua inclusão no plano da concessão de direitos garantidos pelo aparelho jurídico-legal do Estado. De forma semelhante, ambos os autores conjecturam a possibilidade de desobedecer como corretivo apto a retificar injustiças pontuais dentro de um sistema democrático razoavelmente estabelecido. Diferentemente de Walzer, no entanto, Rawls concebe a possibilidade de realização da desobediência civil apenas dentro de um regime quase-justo ou bem organizado, ou seja, em um Estado cuja estrutura básica da sociedade aproxima-se da justiça perfeita por ele descrita em sua obra e que teria como símiles na realidade a ideia de Estado de Direito. Essa concepção, não obstante, está fortemente ligada aos limites que ambos os autores estabelecem para a desobediência civil. Para eles, a desobediência não pode nunca se colocar contra as estruturas gerais pré-estabelecidas do Estado ou do sistema político. Ao contrário, ela deve sempre fidelidade, para Rawls (2000), e respeito, para Walzer (1970), tanto à lei quanto ao Estado.

As condições propícias para o desenvolvimento da prática desobediente propostas por Rawls (2000RAWLS, John. Dever e obrigação. In: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.) são particularmente estreitas. Sua insistência em restringir a desobediência civil a um Estado de quase-justiça simplesmente desconsidera o distanciamento entre a realidade dos sistemas constitucionais e o dito Estado de quase-justiça. Igualmente, determinar a fidelidade à lei como critério absoluto da desobediência civil beira o risível, já que a desobediência civil pressupõe, em sua essência, a violação a uma lei. Além de relegar inexoravelmente a desobediência civil ao plano teórico, sua potencialidade de ação é completamente limitada por Rawls. Os desobedientes conseguiriam, no máximo, alterar injustiças específicas dentro de um sistema jurídico-estatal que, de fato, é quase-justo apenas no imaginário de autores como Rawls.

4.3. A tradição constitucionalista

A vertente que sobrevém à tradição liberal é a constitucionalista. Denominada de democrática por Scheuerman (2018SCHEUERMAN, William E. Civil disobedience. Cambridge: Polity, 2018.), ela é definida principalmente pelos trabalhos de Arendt (2006ARENDT, Hannah. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da república. 2. ed. Trad. José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 2006.), Dworkin (2002DWORKIN, Ronald. A desobediência civil. In: DOWRKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Matins Fontes, 2002.) e Habermas (1985HABERMAS, Jürgen. Civil Disobedience: Litmus test for the democratic constitutional state. Berkeley Journal of Sociology, v. 30, pp. 95-116, 1985. e 1997). Tanto Matos (2017MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Desobediência civil hoje: entre a desinstituição e o poder constituinte. In: GONTIJO, Lucas; MAGALHÃES, José Luiz Quadros; MORAIS, Ricardo Manoel de Oliveira. Rompimento democrático no Brasil: teoria política e crise das instituições públicas. Belo Horizonte: D’Plácido, pp. 205-257, 2017.) quanto Scheuerman (2018) habilmente definem essa tradição a partir de critérios que muito se assemelham, ainda que a nomenclatura por eles fornecida seja discordante. Caso se pense em uma classificação que se constitua a partir de autores que percebem na desobediência civil a possibilidade de interpretação - política ou jurídica - da Constituição ou então que compreendam a desobediência civil de forma intrinsicamente relacionada à Constituição, essa categoria pode incluir de maneira coerente Dworkin (2002), Habermas (1985 e 1997) e Arendt (2006).

Por outro lado, ao se pensar em uma classificação que se defina como “democrática” a partir do que se compreende como democracia pluralista, seria incoerente incluir a abordagem feita por Dworkin (2002DWORKIN, Ronald. A desobediência civil. In: DOWRKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Matins Fontes, 2002.). Conforme a própria conceituação de Habermas (1997HABERMAS, Jürgen. O papel da sociedade civil e da esfera pública política. In: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. 2. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997., p. 59), “a teoria social do pluralismo insere-se no modelo normativo do liberalismo através de uma simples substituição: o lugar dos cidadãos e de seus interesses individuais é ocupado por organizações e interesses organizados”. Essa substituição é realizada tanto para Arendt (2006ARENDT, Hannah. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da república. 2. ed. Trad. José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 2006.), para quem os contestadores civis só podem atuar em coletividade, ou seja, a partir de grupos minoritários organizados, quanto pra Habermas (1997), para quem o poder social é exercido por organizações e interesses organizados. Dworkin (2002), ao contrário, mantém a firme convicção de que a desobediência civil pode, sem nenhum problema, ser uma ação praticada individualmente. Até mesmo porque, para o autor estadunidense, cada indivíduo possui a prerrogativa de agir, ainda que em desacordo com a lei, em consonância com suas próprias convicções de consciência.

Como não poderia deixar de ser, uma vez que seu trabalho é desenvolvido à luz das propostas de Rawls (2002), os contornos impostos à desobediência civil por Arendt (2006ARENDT, Hannah. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da república. 2. ed. Trad. José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 2006.) são estreitos e rígidos. No tocante à diferenciação entre contestadores civis e objetores de consciência, a filósofa impõe uma particular restrição ao definir quais seriam os grupos minoritários aptos a empreender a desobediência civil. Em suas palavras: “de qualquer modo, o caso é que estamos tratando aqui de minorias organizadas que sejam importantes demais, não somente em número, mas também em qualidade de opinião, para serem desprezadas sem risco” (ARENDT, 2006ARENDT, Hannah. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da república. 2. ed. Trad. José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 2006., pp. 69-70). Quem seria então legitimamente competente para declarar a importância ou a insignificância de um grupo minoritário? De modo semelhante, quem estaria apto a avaliar a qualidade da opinião daquele grupo? Caso fosse declarado que determinado grupo não é suficientemente organizado, a desobediência por ele empreendida seria qualifica como criminosa e não civil?

Para a autora, “imaginar as minorias contestadoras como rebeldes ou traidoras vai contra as palavras e o espírito de uma Constituição cujos idealizadores eram especialmente sensíveis aos perigos de um controle desenfreado pela maioria” (ARENDT, 2006ARENDT, Hannah. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da república. 2. ed. Trad. José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 2006., p. 70). São, obviamente, contornos problemáticos que têm o potencial de deslegitimar movimentos de resistência que, via de regra, já são colocados à margem da sociedade. Vale a pena lembrar ainda, que os fundadores da Constituição a que se refere Arendt são os chamados founding fathers dos Estados Unidos da América, uma minoria branca, rica e patriarcal que desprezava profundamente a maioria trabalhadora e pobre, bem como desconheciam qualquer significado político de mulheres e dos negros.

Dworkin (2002DWORKIN, Ronald. A desobediência civil. In: DOWRKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Matins Fontes, 2002.), por sua vez, reconhece a possibilidade do aproveitamento dos caminhos institucionais para modificar ou revogar determinada lei. Ele vê a desobediência civil como uma prática social que deve compor o sistema jurídico:

Quando afirmo que as pessoas sustentam concepções sobre o direito quando a lei é ambígua, e que tais concepções não são simplesmente previsões a respeito do que os tribunais irão esposar, não pretendo adotar nenhuma metafísica desse tipo. Pretendo apenas resumir, da maneira mais precisa possível, muitas das práticas que fazem parte do nosso processo jurídico (DWORKIN, 2002DWORKIN, Ronald. A desobediência civil. In: DOWRKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Matins Fontes, 2002., p. 331).

Habermas (1997HABERMAS, Jürgen. O papel da sociedade civil e da esfera pública política. In: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. 2. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.), desenvolve suas considerações sobre a desobediência civil dentro de sua teoria sobre o agir comunicativo e, por conseguinte, dentro do marco daquilo que o autor considera como democracia pluralista.8 8 De acordo com a teoria do pluralismo, “[...] o poder social vale como medida para a força de imposição de interesses organizados. Através de eleições gerais e da concorrência entre partidos, ele se transforma cada vez mais em poder político, distribuído entre o governo e as oposições. E este, por sua vez, é aplicado no quadro de competências distribuídas segundo a constituição, a fim de implementar as políticas nascidas do jogo de forças sociais, transformando-as em decisões obrigatórias. Numa linha descendente, o poder administrativo também é empregado para influenciar a formação da vontade parlamentar e o jogo de forças que regula os interesses organizados” (HABERMAS, 1997: p. 59). Para ele, a partir do consenso, a sociedade civil busca ser “capaz de modificar os parâmetros legais de formação da vontade política e exercer pressão sobre os parlamentos, tribunais e governos em benefício de certas políticas” (HABERMAS, 1997HABERMAS, Jürgen. O papel da sociedade civil e da esfera pública política. In: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. 2. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997., p. 103). São, afinal, movimentos que objetivam desenvolver formas de associações igualitárias e democráticas para promover mudanças institucionais a partir da pressão e da influência políticas. Segundo Habermas (1997, p. 106), “[...] a sociedade civil pode, em certas circunstâncias, ter opiniões públicas próprias, capazes de influenciar o complexo parlamentar (e os tribunais), obrigando o sistema político a modificar o rumo do poder oficial”. O autor deixa muito claro, portanto, que a atuação da sociedade civil deve ser necessariamente limitada:

Todavia, a sociedade civil não pode ser tida simplesmente como um ponto de fuga para o qual convergem as linhas de uma auto-organização da sociedade como um todo. Cohen e Arato insistem, com razão, que a sociedade civil e a esfera pública garantem uma margem de ação muito limitada para as formas não institucionalizadas de movimentos e de expressão da política. Eles se referem a uma “autolimitação” estruturalmente necessária da prática de uma democracia radical (HABERMAS, 1997HABERMAS, Jürgen. O papel da sociedade civil e da esfera pública política. In: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. 2. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997., p. 104).

Essa autolimitação se encontra na impossibilidade desses atores (associações, movimentos e organizações da sociedade civil) exercerem poder político propriamente dito. Sua única possibilidade de atuação se encontra na esfera da influência, seja da opinião pública, dos membros do parlamento ou de agentes governamentais. A única alternativa para participar do espaço político de alguma maneira - mesmo assim sem nunca exercer pode político efetivamente -, seria através da influência. Apenas assim essa participação ínfima no espaço político poderia assumir uma forma legítima e autorizada.

4.4. A tradição anarquista

Para Scheuerman (2018SCHEUERMAN, William E. Civil disobedience. Cambridge: Polity, 2018.) a tradição anarquista objetiva se distanciar ao máximo das propostas convencionais da desobediência civil. Segundo o autor, embora as ideias dessa tradição comportem múltiplas formas, é possível afirmar que todas elas rejeitam a figura do Estado moderno, considerando-o como fonte permanente de ilegitimidade e de cumplicidade no que se refere a parte considerável dos problemas sociais e das injustiças materiais que assolam o mundo.

Segundo o entendimento de Scheuerman (2018SCHEUERMAN, William E. Civil disobedience. Cambridge: Polity, 2018.), essa tradição pode ser desmembrada em duas perspectivas distintas. A primeira delas se refere ao anarquismo político, sendo representado por figuras históricas como Mikhail Alexandrovich Bakunin (2011aBAKUNIN, Mikhail Alexandrovich. Deus e o estado. Trad. Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Hedra, 2011a. e 2011b), Pjotr Kropotkin (2007KROPOTKIN, Pyotr Alexeyevich. O princípio anarquista e outros ensaios. Trad. Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Hedra, 2007.) e Emma Goldman (2007GOLDMAN, Emma. O indivíduo, a sociedade e o estado, e outros ensaios. Trad. Plínio Augusto Coêlho. São Paulo: Hedra, 2007.) e pelos militantes que tomam as ruas contemporaneamente objetivando a superação do Estado por uma ordem não estatal fundada em laços consensuais e voluntários. As anarquistas políticas realizam ações militantes ilegais a fim de destruir o Estado e suas instituições, pretendendo, assim, a concretização de organizações e comunidades espontâneas e autogovernadas. Em contrapartida, os anarquistas filosóficos se utilizam do argumento da ilegitimidade de estruturas hierárquicas de poder para combater a pressuposição moral de que os indivíduos devem obedecer ao Estado e às suas instituições. O anarquismo filosófico, nesse sentido, não compreende como justificativa suficiente para que os governados concedam sua obediência a mera promulgação de leis ou normas, ainda que se argumente que o processo legiferante seja legalmente constituído ou democraticamente instituído. A mera declaração de legalidade não satisfaz, como argumento, a justificativa para que um indivíduo tenha, a priori, a obrigação de obedecer a comandos legais.

Em última instância, o anarquismo filosófico considera que as configurações modernas de Estado são ilegítimas. Não porque os Estados representam violentos Leviatãs, mas sim porque nenhuma teoria política tenha, satisfatoriamente, apresentado uma justificativa definitiva que suporte a noção de que os governados tenham prima facie a obrigação de obedecer às leis e ao Estado. O anarquismo filosófico não concebe, nesse contexto, a resistência à autoridade legal como um imperativo geral ou uma obrigação (SIMMONS, 2009).

Scheuerman (2018SCHEUERMAN, William E. Civil disobedience. Cambridge: Polity, 2018.) oferece acentuadas críticas à tradição anarquista. Segundo o autor, se tal tradição se sobrepõe às demais, resta muito pouco do conceito de desobediência civil como este é comumente compreendido, uma vez que as anarquistas planejam desinstituir o Estado e o Direito e não o reformar. Scheuerman acerta ao dizer que a tradição anarquista concebe o Estado como uma instituição fundada à força e com violência, características essas que se perpetuaram ao longo dos séculos a partir de dispositivos cada vez mais sofisticados e menos evidentes, tal como o biopoder atual. Ao descrever os argumentos dessa tradição, Scheuerman alega, de forma coerente, que a lei e o direito são instrumentos de um poder que é, em sua natureza, coercitivo, e que ainda assim não consegue conter a violência do Estado: ao contrário, ambos atuam para sua majoração. Para os anarquistas, as mudanças necessárias à transformação social se encontram para além do direito e do Estado, ignorando o sentido normativo que a desobediência civil comporta em sua concepção convencional.

Embora o autor descreva cuidadosamente as razões que sustentam essa tradição, são precisamente as premissas sobre as quais repousam a vertente anarquista que constituem a primeira e principal crítica de Scheuerman (2018SCHEUERMAN, William E. Civil disobedience. Cambridge: Polity, 2018.). Segundo seu entendimento, tais premissas representam o “calcanhar de Aquiles” da vertente anarquista, uma vez que, para ele, elas são insustentáveis. Segundo o autor, o antilegalismo e o antiestatismo vinculados à tradição anarquista desconsideram as possibilidades democráticas dos Estados modernos, que podem promover, ainda que com suas imperfeições e incompletude, justiça social. Scheuerman (2018) entende que o anarquismo político não reconhece as possibilidades de produção política e social do Estado, incluindo a “vital função protetiva do direito”. Para o autor, a visão dos anarquistas políticos é demasiadamente reducionista na medida em que estes compreendem as instituições jurídicas como meros instrumentos coercitivos que favorecem apenas os poderosos e os privilegiados. O autor acredita que o direito oferece, afinal, uma proteção essencial àqueles ou àquelas que se encontram em situação de vulnerabilidade. Trata-se de uma inegável tentativa de compatibilizar a chamada democracia liberal, incluindo suas instituições e procedimentos, com uma prática verdadeiramente democrática. Segundo o entendimento do autor, embora o anarquismo político busque também justiça social e a concretização de igualdade material, até mesmo em uma sociedade mais igualitária o Estado e o direito seriam também necessários:

Sem simplificar indevidamente um assunto complexo, uma justificativa para o Estado parece direta e clara: o autogoverno repousa em ideais rigorosos (normativos) de igualdade básica e reciprocidade. Qualquer esforço realista para institucionalizar esses ideais exige não apenas regras e direitos legalmente instituídos, mas também obrigatórios. Para preservar a democracia, dificilmente precisamos do monstruoso e violento Leviatã descrito pelos críticos anarquistas. No entanto, uma possibilidade funcional e suficientemente bem coordenada de recurso à coerção do Estado continua a ser essencial (SCHEUERMAN, 2018SCHEUERMAN, William E. Civil disobedience. Cambridge: Polity, 2018., p. 91, tradução nossa).

A conclusão a que chega Scheuerman pode ser colocada ao lado das teorias tradicionais e convencionais que se dedicam à compreensão da desobediência civil. Teorias essas que, como descrito no início do presente trabalho, mantêm uma profunda convicção de que o Estado e suas instituições, sejam elas jurídicas ou políticas, têm o potencial de promover uma existência democrática. A desobediência civil teria, nesse contexto, um papel meramente reformador, destinado a corrigir as pequenas falhas de um mecanismo que, em sua totalidade, funciona adequadamente.

O que Scheuerman e os demais autores das vertentes tradicionais perdem de vista é a potência que a desobediência política - e não simplesmente “civil” - carrega em si. A proposição de uma vertente libertária não tem como objetivo a obrigatoriedade da realização revolucionária ou de uma desobediência que destrua o Estado. Ao contrário, ela apenas reivindica para si a potência de ser revolução, quando e se necessário, quando e se as desobedientes assim desejarem: potência do ser, potência do não-ser e potência do não-não-ser. Autores como Arendt (2006ARENDT, Hannah. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da república. 2. ed. Trad. José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 2006.), Arroyo (1996), Dworkin (2002DWORKIN, Ronald. A desobediência civil. In: DOWRKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Matins Fontes, 2002.), Gandhi (1999GANDHI, Mohandas Karamchand. Autobiografia: minha vida e minhas experiências com a verdade. Trad. Humberto Mariotti. São Paulo: Palas Athena, 1999.), Habermas (1985HABERMAS, Jürgen. Civil Disobedience: Litmus test for the democratic constitutional state. Berkeley Journal of Sociology, v. 30, pp. 95-116, 1985.), King (1968KING Jr., Martin Luther. Grito da consciência. Trad. Vera Neves Pedroso. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1968.), Rawls (2000RAWLS, John. Dever e obrigação. In: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.), Walzer (1970WALZER, Michael. Obligations: essays on disobedience, war and citizenship. Cambridge: Harvard University, 1970.) e também Scheuerman (2018) negligenciam a possibilidade de realização de uma prática democrática radical ao se pautarem sempre nas limitações atuais da democracia liberal e não na aposta em uma democracia radical.

Uma prática democrática real (e radical), tal como a sugerida por Rancière (2014RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014.), apenas pode se concretizar enquanto experiência an-árquica na qual a apropriação daquilo que é comum se torna impossível e a qual já não mais se constitui enquanto domínio normativo do direito (MATOS, 2014MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Filosofia radical e utopia: inapropriabilidade, an-arquia, a-nomia. Rio de Janeiro: Via Verita, 2014.). Todavia, o tema é complexo demais para ser desenvolvido aqui. Nosso objetivo precípuo neste artigo é demonstrar as limitações das teorias clássicas da desobediência civil, para depois, em um aprofundamento da pesquisa a ser realizado em outros textos, indicar com precisão vias alternativas.

Conclusão: por uma prática desobediente para além do direito

O presente trabalho se propõe a criticar os limites teóricos impostos pelos autores que estudam a desobediência civil em sua conceituação clássica e convencional. Dessa forma, os contornos da desobediência não-civil apresentados na conclusão encontram-se ainda em estado embrionário. Tais contornos são explorados com mais detalhes em outros trabalhos de ambas as autoras, sejam eles publicados, aguardado publicação ou ainda em elaboração.

Quando a desobediência é civil, ela se revela inexoravelmente como expressão do que constitui a alma do Direito (MARTÍN, 2017MARTÍN, Francisco Javier de Lucas. Discutir la (des)obediência. Almacén de Derecho. Dez. 2017. Disponível em <https://almacendederecho.org/discutir-la-desobediencia/>. Acesso em: 17 out. 2018.
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).9 9 Para o autor há uma profunda diferença entre desobediência civil e desobediência revolucionária. Enquanto a primeira sempre invoca um marco comum de legitimidade, como as Constituições, por exemplo, a fim de impugnar uma lei, um conjunto de leis, uma sentença ou uma decisão administrativa, a segunda impugna esse marco comum de legitimidade com o objetivo de com ele romper e de superar as regras de legitimidade vigentes (MARTÍN, 2017). Ela se torna um caminho forçosamente institucional pela luta por direitos quando os limites impostos pelo Estado, pela democracia representativa e pelas instituições jurídicas e legais se tornam demasiadamente onerosos ou até mesmo insuperáveis. Ela se torna, assim, um direito, sendo concedida e externa àqueles que, na verdade, constroem a política a partir das experiências práticas comuns nas ruas, nas ocupações dos espaços físicos, políticos, de afetos e, também, dos espaços de imaginação. Afinal, a desobediência, se é civil,

[...] constitui uma expressão genuína do espírito da democracia e do Direito e, assim diria Camus, do paradoxo no qual se debate o homem moderno, herdeiro do Iluminismo, sua opção pelo ideal de autonomia, mas escravizado pelas regras de um mundo que lhe é estranho e contra o qual ele se rebela (MARTÍN, 2017MARTÍN, Francisco Javier de Lucas. Discutir la (des)obediência. Almacén de Derecho. Dez. 2017. Disponível em <https://almacendederecho.org/discutir-la-desobediencia/>. Acesso em: 17 out. 2018.
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, p. 4, tradução nossa).

Embora essa tentativa de enquadramento da desobediência civil nos moldes de instituições estatais não obrigatoriamente se dê com o intuito de contê-la, fato é que sua concretização promove, inegavelmente, a circunscrição de seus resultados no rol de direitos que podem ser concedidos pelas estruturas que verticalmente concentram o poder político. A respeito da boa-fé em institucionalizá-la, vale ressaltar as palavras de Martín (2013MARTÍN, Francisco Javier de Lucas. Desobediência e democracia: a hora da cidadania. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, v. 37, n. 1, pp. 58-72, jan./jun. 2013., p. 67):

Assim, pois, em um Estado democrático a admissão formal da desobediência civil será um sintoma de auto-contenção, um reconhecimento dos limites do próprio Estado e do caráter processual das Constituições vigentes. Por isso algumas Constituições a admitem formalmente; e por isso se pode dizer, com razão, que a desobediência civil é precisamente a pedra de toque da democracia ou o mais evidente dos indicadores da maturidade das políticas democráticas. Tendo em conta a imperfeição e os déficits das democracias representativas realmente existentes, algo geralmente admitido, a desobediência civil pode ser considerada hoje em dia não como um sintoma de deslealdade frente à democracia, senão como uma forma excepcional de participação política na construção da democracia (MARTÍN, 2013MARTÍN, Francisco Javier de Lucas. Desobediência e democracia: a hora da cidadania. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás, v. 37, n. 1, pp. 58-72, jan./jun. 2013., p. 67).

Utilizando uma nova perspectiva como critério de classificação das tradições desobedientes, torna-se tangível a cisão entre as perspectivas religiosa-espiritual, liberal e democrática de Scheuerman (2018SCHEUERMAN, William E. Civil disobedience. Cambridge: Polity, 2018.), liberal e constitucionalista de Matos (2017MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Desobediência civil hoje: entre a desinstituição e o poder constituinte. In: GONTIJO, Lucas; MAGALHÃES, José Luiz Quadros; MORAIS, Ricardo Manoel de Oliveira. Rompimento democrático no Brasil: teoria política e crise das instituições públicas. Belo Horizonte: D’Plácido, pp. 205-257, 2017.) e a tradição anarquista, também analisada por Scheuerman (2018).

De um lado, é possível agrupar as tradições que demarcam as definições de desobediência civil precisamente no contexto estabelecido pelos limites do Estado e de suas instituições, com inúmeras tentativas de justificar os movimentos desobedientes a partir da identificação do conceito de legitimidade com o de legalidade. Nesse grupo estão inseridos os autores que propõem a legitimação da desobediência civil a partir de sua inserção no enquadramento jurídico-normativo delineado pelo Estado e seus aparelhos. Por outro lado, a tradição anarquista, com profundas raízes libertárias, se coloca indiferente à consideração de sua legitimidade ou ilegitimidade política, pois pressupõe que todo poder hierárquico é, prima facie, ilegítimo.

É proposta no presente trabalho uma nova possibilidade de considerar a desobediência política: uma desobediência que seja não-civil. Poder-se-ia sugerir, à título de nomenclatura, uma nova tradição de desobediência política que em seu próprio nome deixasse para trás suas amarras institucionais, ou seja, civil. Uma desobediência política para além das instituições, uma resistência desobediente que não se mantenha vinculada à obediência nem pela própria estrutura da palavra, segundo a qual uma (“civil”) nega a outra (“desobediência”). Tal como propõe Laudani (2012), essa seria uma desobediência que se constitui em si e por si mesma, não carecendo de nenhum elemento contrário que a transforme em oposto, em negação. Contudo, considerando que a mesma força que destrói é também a força que constrói, e considerando que é essencial à desobediência não-civil negar a captura que lhe é feita pelas instituições políticas e jurídicas e pelas tradições teóricas, faz-se imprescindível colocá-la como anti-institucional e antissistêmica e, portanto, como não-civil.

A negação possui em si não só o elemento negativo que representa a rejeição ou a resistência a alguma coisa. Ela não possui apenas o elemento de recusa e do abandono. A negação possui também elementos positivos que podem dar lugar ao novo, trazendo proveitos antes não vislumbrados. De fato, as negações “são gestos feitos contra instituições, e nesse sentido são ‘negativos’ - mas cada gesto negativo também sugere uma tática ‘positiva’ para substituir, em vez de apenas recusar, a instituição desprezada” (BEY, 2018BEY, Hakim. TAZ: zona autônoma temporária. Trad, Alexandre Barbosa de Souza. São Paulo: Veneta, 2018., p. 62).

Os movimentos desobedientes de caráter positivamente subversivo são fundamentais para o conceito radical de democracia, construído em conjunto e a partir de consensos precários e provisórios. Uma democracia que se propõe ser inexoravelmente horizontal, que Rancière (2014RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 9) chama de real, é “uma democracia em que a liberdade e a igualdade não seriam mais representadas nas instituições da lei e do Estado, mas seriam encarnadas nas próprias formas da vida material e da experiência do sensível”. Por meio do dissenso, tão essencial à democracia real quanto o consenso (conquanto sejam tanto precários quanto provisórios), os movimentos desobedientes fazem aflorar neles mesmos a função criativa com força maior do que a simples participação. Eles constroem e ressignificam os processos políticos.

As experiências desobedientes dos grupos minoritários expõem as posturas acríticas dominantes, resultado de construções políticas verticalizadas e concentradas, pautadas em hierarquias e divisões. Os protestos oriundos das consciências dissidentes organizados com base em movimentos sociais são um fator essencial de mobilização que pode desencadear a elaboração ou a reforma de uma norma jurídica (ARROYO, 1996). Mas, e possivelmente até de forma mais significativa, os movimentos desobedientes podem desencadear também a revisão das próprias estruturas que estabelecem formalmente dentro do quadro institucional do Estado a forma como a política é realizada e a maneira pela qual as armações hierárquicas e ilegítimas de poder são organizadas.

Métodos não institucionais, tal como a desobediência pensada para além do enclausuramento da sua condição de civil, permitem a reflexão e a revisão do caráter pretensamente legítimo das instituições do Estado. Os métodos não institucionais - que podem, justamente por sua natureza libertária, ser também anti-institucionais - questionam e desafiam a aptidão das instituições do Estado e de seus dispositivos para legitimar ou deslegitimar os métodos de controle do poder político, a resistência ao mesmo e a própria organização do poder político. Em última análise, a desobediência não-civil, em si mesma, rompe com seu estigma de ilegítima porque não considera relevante essa caracterização que lhe foi dada por um poder - Estado que se torna simplesmente estado - que é, para ela, ilegítimo.

A desobediência não-civil é um caminho, uma contingência que se coloca no cotidiano das pessoas por ser ela mesma vulgar, subversiva, informal e, consequentemente, possível. Ela não faz exigências e não impõe elementos constitutivos. Ela não é tolhida por normas jurídicas e tampouco pressupõe em sua essência o respeito incondicional ao direito ou à lei. Ela é gesto e, portanto, incapturável e não cooptável pelo mundo do direito e das normas. Ela não requer cerimônia, rito, convenção ou formalidade. Ela se recusa a ser reconhecida pelo campo jurídico para manter-se continuamente na esfera do político, podendo ser reforma, revolução ou algo para o que ainda não temos palavras. Ela não é um direito passível de normatização ou concessão. Ela não é modulada por possibilidades técnicas tidas por moderada. Ela é ação, experimentação, falha e perseverança. Ela é autonomia. Ela é a esperança do e no agora.

Para que a desobediência não-civil se manifeste no mundo, não é preciso uma minoria organizada, tal como exige Arendt (2006ARENDT, Hannah. Desobediência civil. In: ARENDT, Hannah. Crises da república. 2. ed. Trad. José Volkman. São Paulo: Perspectiva, 2006.), ou a observância de procedimentos formais, como preconiza Habermas (1985HABERMAS, Jürgen. Civil Disobedience: Litmus test for the democratic constitutional state. Berkeley Journal of Sociology, v. 30, pp. 95-116, 1985.). Muito menos é necessário que ela se exerça em um estado de quase-justiça, como demandado por Rawls (2002). A desobediência não-civil não deve respeito irrestrito às leis (KING Jr., 1963KING Jr., Martin Luther. Letter from Birmingham Jail. 1963. Disponível em <https://web.cn.edu/kwheeler/documents/Letter_Birmingham_Jail.pdf>. Acesso em: 22 jun. 2018.
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) e tampouco se constitui no quotidiano por sua civilidade (WALZER, 1970WALZER, Michael. Obligations: essays on disobedience, war and citizenship. Cambridge: Harvard University, 1970.).

As desobedientes reconhecem a ineficácia - e, em grande parte das ocasiões, a inutilidade - dos métodos tradicionais de controle do poder político e da própria maneira de se realizar a política. Elas assimilam a sua ausência de participação e procuram, através da desobediência não-civil, ou seja, por meio da violação de uma norma legal, fazer-se ouvir. Elas fecham as ruas em clara violação às leis de trânsito; ocupam prédios praticando crimes contra a propriedade privada; picham os muros, depredando o patrimônio; recusam-se a trabalhar e a produzir mesmo quando o poder judiciário torna suas greves ilegais; criam um espaço de resistência, um espaço que não é apenas uma porção de terra geograficamente delimitada, mas também uma zona de tempo, de afetos, de relações, de dissenso, de antagonismo, de imaginação e - porque não? - de esperança.

Assemelhando-se a uma zona autônoma temporária, a desobediência não-civil se faz e se refaz no dia a dia daqueles que desobedecem, daqueles que transformam seus movimentos, expressões, relações e manifestações cotidianas em gestos desobedientes; daqueles que rompem com a normalidade e com a ordem para transformar, cuidar e dissentir. Tal como o motim, a desobediência não-civil produz e afirma amizades, laços e possibilidades de agir que estão ao alcance da mão. Ela é a “suspensão momentânea da confusão: entre gases, as coisas são curiosamente claras e o real, enfim, legível. Difícil, então, não ver quem é quem” (COMITÊ INVISÍVEL, 2018, pp. 15-16). A desobediência não-civil é uma zona produtora de afetos, discussões e relações, diminuindo distâncias e proporcionando encontros entre corpos. Ela é “o lugar em que o coletivo se experimenta, se sente, se toca, se busca e, finalmente, ainda que apenas de modo pontual, se declara” (COMITÊ INVISÍVEL, 2018, p. 67).

Constituindo-se preponderantemente como prática e ação, ao campo teórico resta a análise despretensiosa da desobediência não-civil, sem o intuito de defini-la por completo em uma tentativa que transforma teóricos em profetas e palavras em sacralidade. Ao invés de elementos constitutivos, faz-se imprescindível pensar em elementos norteadores, pois não há autorização última a ser dada. A desobediência não-civil é, afinal, a expressão de qualquer um.

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  • SIMMONS, Alan John. Is there a duty to obey the law? Cambridge: Cambridge University, 2006.
  • SIMMONS, Alan John. Justification and legitimacy: essays on rights and obligations. Cambridge: Cambridge University, 2001.
  • SIMMONS, Alan John. On the edge of anarchy: Locke, consent, and the limits of society. Princeton: Princeton University, 1993.
  • THOREAU, David Henry. A Desobediência Civil. Trad. José Geraldo Couto. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
  • WALZER, Michael. Obligations: essays on disobedience, war and citizenship. Cambridge: Harvard University, 1970.
  • ZINN, Howard. Disobedience and democracy: nine fallacies on law and order. Chicago: Haymarket Books, 2013.
  • ZINN, Howard. The Zinn reader: writings on disobedience and democracy. New York: Seven Stories, 1997.
  • 1
    O presente artigo foi desenvolvido no Projeto de Pesquisa “Desobediência civil como prática constituinte e interpretação popular da Constituição: fundamentação jurídico-filosófica para estratégias não-violentas de luta por direitos em contextos de estado de exceção econômico” (CNPq)
  • 2
    Cf. Estado de exceção, desobediência civil e desinstituição: por uma leitura democrático-radical do poder constituinte de Andityas Soares de Moura Costa Matos; Desobediencia civil como poder constituyente/desinstituyente: una nueva práctica política anticapitalista de Andityas Soares de Moura Costa Matos e Joyce Karine de Sá Souza; Civil disobedience as constituent power de Andityas Soares de Moura Costa Matos; e Ética e a dimensão (des)constituinte da desobediência civil: uma leitura a partir de Michel Foucault de Andityas Soares de Moura Costa Matos e Lorena Martoni de Freitas.
  • 3
    Parcial porque não pretende a construção de um espaço político novo, mas sim a inclusão de demandas na esfera política já existente mediante pressão política para que sejam ouvidas, consideradas e, esperançosamente, atendidas.
  • 4
    Práticas sedimentadas podem ser compreendidas como aquilo que em um determinado momento é considerado como uma ordem “natural”. Elas são as práticas de articulação por meio das quais uma determinada ordem é estabelecida e mantida. É através das práticas sedimentadas que o significado das instituições sociais é dado (MOUFFE, 2015). Escrever um texto acadêmico utilizando-se simultaneamente dos gêneros feminino e masculino, por exemplo - como fazemos aqui - é uma ação contestatória (ainda que individual, na maioria das vezes) que busca evidenciar e romper com as práticas sedimentadas de uma língua escrita homogênea que, intencionalmente ou não, reflete as estruturas de uma sociedade patriarcal e machista.
  • 5
    Ao contrário do que comumente se pensa, a expressão “desobediência civil”, título pelo qual o ensaio de Thoreau é conhecido até os dias de hoje, não foi uma escolha do próprio autor. Quando publicada pela primeira vez, Thoreau atribuiu à sua obra o título original de Resistência ao governo civil, uma escolha pertinente, considerando que o referido livro foi a reformulação de uma conferência por ele apresentada cujo título era A relação entre o indivíduo e o Estado. Nessa conferência Thoreau explicou as razões que o levaram a não pagar os impostos como forma de protesto contra as escolhas políticas do Estado de Massachusetts e do governo federal estadunidense, então envolvido com uma guerra imperialista contra o México, de forma a obter territórios (LAUDANI, 2013LAUDANI, Raffaele. Disobediente in western polical thought: a genealogy. New York: Cambridge University, 2013.; SHEUERMAN, 2018 e THOREAU, 2017THOREAU, David Henry. A Desobediência Civil. Trad. José Geraldo Couto. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.).
  • 6
    Para uma melhor compreensão do tema, cf. Desobediência civil hoje: entre a desinstituição e o poder constituinte (2017). O autor cria a expressão “desinstituinte” como um neologismo para se referir a um poder diferente da concepção de potência destituinte proposta por Giorgio Agamben. Matos propõe, com o termo, se referir à desconstrução de instituições reais e efetivas do poder constituído.
  • 7
    É razoável conjecturar, portanto, que o maior legado, tanto da Marcha do Sal quanto das experiências desobedientes do movimento por direitos civis norte-americano, tenha sido o exemplo da relevância e da gravidade do planejamento estratégico e da disciplina nos movimentos desobedientes de resistência. Isso não significa que tais movimentos sejam imunes a críticas, principalmente quando comparados aos movimentos de resistência contemporâneos, mas apenas sugere que eles podem ser estudados como grandes referências para a estruturação futura de ações desobedientes.
  • 8
    De acordo com a teoria do pluralismo, “[...] o poder social vale como medida para a força de imposição de interesses organizados. Através de eleições gerais e da concorrência entre partidos, ele se transforma cada vez mais em poder político, distribuído entre o governo e as oposições. E este, por sua vez, é aplicado no quadro de competências distribuídas segundo a constituição, a fim de implementar as políticas nascidas do jogo de forças sociais, transformando-as em decisões obrigatórias. Numa linha descendente, o poder administrativo também é empregado para influenciar a formação da vontade parlamentar e o jogo de forças que regula os interesses organizados” (HABERMAS, 1997HABERMAS, Jürgen. O papel da sociedade civil e da esfera pública política. In: HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol. 2. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.: p. 59).
  • 9
    Para o autor há uma profunda diferença entre desobediência civil e desobediência revolucionária. Enquanto a primeira sempre invoca um marco comum de legitimidade, como as Constituições, por exemplo, a fim de impugnar uma lei, um conjunto de leis, uma sentença ou uma decisão administrativa, a segunda impugna esse marco comum de legitimidade com o objetivo de com ele romper e de superar as regras de legitimidade vigentes (MARTÍN, 2017MARTÍN, Francisco Javier de Lucas. Discutir la (des)obediência. Almacén de Derecho. Dez. 2017. Disponível em <https://almacendederecho.org/discutir-la-desobediencia/>. Acesso em: 17 out. 2018.
    https://almacendederecho.org/discutir-la...
    ).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2023

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2020
  • Aceito
    23 Jul 2021
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