Resumo
Em termos normativos, a dignidade humana costuma apresentar duas implicações imediatas: (a) todo ser humano não deve ser tratado de determinadas formas pelo simples fato de se tratar de seres humanos; e (b) determinadas formas de vida não correspondem ao ideal de vida de nossa comunidade. O objeto formal deste estudo consiste em discutir o sentido desta ideia de dignidade humana como oposição à noção de humilhação no contexto dos direitos institucionais (políticos e jurídicos). Dois conceitos de dignidade humana serão contrapostos. O primeiro, absoluto/necessário e formal/transcendental, compreende a dignidade humana a partir do pensamento: “Porque os seres humanos possuem dignidade, os seguintes direitos são válidos.”. O segundo, contingente e material, corresponde ao desenvolvimento da seguinte assertiva: “Para que os seres humanos possam viver com dignidade, precisamos respeitar os seguintes direitos.”. A hipótese principal consiste na defesa da dignidade como o direito de não ser humilhado, sendo a humilhação a experiência da incapacidade ou ausência de poder para autodeterminar-se.
Palavras-chave: Dignidade humana; Humilhação; Forma de vida
Abstract
In normative terms, human dignity usually implies two consequences: (a) human beings cannot be treated in some particular ways due to their condition as humans; and (b) some forms of life do not correspond to the ideal life of our community. This study consists in discussing the meaning of this idea of human dignity in contrast to the concept of humiliation in the context of institutional, i.e. political and legal, rights. Two concepts of human dignity will be discussed. The first absolute/necessary and formal/transcendental concept implies the proposition “because human beings have dignity, the following cluster of rights is valid.” Conversely, the second contingent and material concept corresponds to the thought “for being able to live in dignity, we must respect the following rights.” This paper claims that human dignity should be understood as the right to be protected from humiliation. Humiliation is the experience of incapacity or absence of self-determination.
Keywords: Human dignity; Humiliation; Form of life
1 Introdução: domínios da dignidade humana1
O conceito de dignidade humana – ou, para fins deste texto, apenas dignidade – está diretamente associado a narrativas sobre como a nossa forma de vida pode ser colocada, fundamentalmente, em questão através de ações (intencionais) de outros indivíduos, coletividades e instituições.2 É justamente por isso que, por um lado, é possível descrever uma ação ou tratamento de alguém como indigno, como, por exemplo, quando desrespeitamos a identidade, a condição social ou o cargo (e.g., professora, magistrada etc.) de uma pessoa. Por outro lado, do ponto de vista normativo, a dignidade impõe o respeito a determinados direitos, considerados fundamentais e inalienáveis, como, por exemplo, os direitos humanos.
Dessa forma, o primeiro passo para qualquer estudo sobre a fundamentação da dignidade3 como valor moral ou político consiste em definir qual conceito de dignidade é o mais adequado para solução de desacordos morais ou políticos.4 Os conceitos de dignidade que serão analisados no âmbito deste estudo são: (a) conceito absoluto de dignidade: “Porque os seres humanos possuem dignidade, vale o seguinte conjunto de direitos.”; e (b) conceito contingente de dignidade: “Para que os seres humanos possam viver com dignidade, vale o seguinte conjunto de direitos.” (Weber-Guskar, 2017, p. 212).5
A preocupação deste estudo em discutir o conceito absoluto e contingente de dignidade advém de uma antinomia, aqui denominada antinomia da dignidade (Neuhäuser, 2017, p. 315).6 De um lado, a dignidade deve esclarecer por que todos os seres humanos possuem os mesmos direitos humanos e por que esses direitos são inalienáveis. Isto significa, nos termos acima estabelecidos: “Porque os seres humanos possuem a mesma dignidade, eles possuem os mesmos direitos fundamentais.”; “Porque a dignidade é inalienável, os direitos também são inalienáveis.”. Por outro lado, deparamo-nos com um outro uso de dignidade, que não corresponde a esse caráter absoluto, quando, por exemplo, a dignidade de um policial é ferida em razão de comentários à sua atividade policial. A partir desse uso específico do termo “dignidade”, surge um outro conceito contingente, o qual não fundamenta direitos iguais e inalienáveis, mas, sim, um respeito relativo à personalidade. Dessa forma, os resultados das reflexões deste estudo devem ser compreendidos como uma tentativa de propor uma primeira aproximação à solução dessa antinomia.
No domínio específico da moralidade institucional7, MacCrudden (2008, p. 265) parece ter identificado as três dimensões essenciais da dignidade humana: (a) uma dimensão ontológica, que compreende o valor e o significado do ser humano para fins, por exemplo, de direito à vida; (b) uma dimensão relacional, a dizer, quais formas de tratamento jurídico não correspondem ao respeito ao valor do ser humano; e, por fim, (c) a relação entre cidadão e Estado, a qual compreende as possíveis interferências injustificadas nas liberdades fundamentais. Cada uma dessas dimensões pode significar uma violação específica à dignidade humana. Para fins deste estudo, a discussão se concentrará nas duas últimas dimensões da dignidade humana.
A tendência dos argumentos que apelam à dignidade para justificar determinadas ações em qualquer desses domínios é a de associarem tal conceito a três propriedades fundamentais: independência (Unabhängigkeit), indisponibilidade (Unverlierbarkeit) e incomensurabilidade (Unverrechenbarkeit) (Weber-Guskar/Brandhorst, 2017, p. 10). Hodiernamente, compreende-se a dignidade – amiúde, com referência à filosofia moral de Kant – como uma qualidade ou propriedade de todo ser humano, a qual está ligada a um direito ou pretensão a um tratamento especial. Dessa forma é como, e.g., o artigo primeiro da Lei Fundamental (Grundgesetz) da Alemanha é normalmente compreendido: “A dignidade do ser humano é intocável (unantastbar). Respeitá-la e protegê-la é obrigação de todo Poder estatal” (trad. nossa).8
A questão que se coloca é se os direitos jurídicos podem ser justificados a partir do valor9 de dignidade humana. A mesma questão pode ser estendida para os direitos humanos e sua relação com a dignidade humana: os direitos humanos podem ser justificados com base no valor da dignidade humana? Em outros termos, a dignidade humana pode ser um critério para fundamentação de direitos? Direitos podem ser fundamentados a partir de um conteúdo específico do valor da dignidade humana?
Na contramão da tendência de emprego do conceito absoluto ou necessário, este estudo busca defender um conceito contingente de dignidade humana no âmbito dos direitos jurídicos como forma de responder à pergunta fundamental acerca do papel do valor da dignidade na fundamentação e determinação do significado de direitos.
A estrutura da argumentação segue a seguinte orientação. Em primeiro lugar, é necessário discutir o sentido de dignidade humana no domínio dos direitos jurídicos. Para tanto, discutir-se-á o que significa falar sobre dignidade humana a partir de uma gramática de direitos institucionais e do problema da sobering truth de Hart. Em seguida, a associação entre dignidade humana e humilhação será estabelecida com base na linguagem ordinária. Para que a ideia de dignidade associada à humilhação faça sentido, é preciso “limpar o terreno” da dignidade humana, afastando duas outras concepções muito influentes no discurso moral, a saber, a ideia de dignidade humana, de um lado, como natureza do ser humano e, por outro lado, como aspecto transcendental e formal do discurso de direitos. Ao cabo, a definição de dignidade humana no contexto de instituições políticas passará a ser algo como: “dignidade é o direito de não ser humilhado.”. Não se trata de qualquer humilhação, dado que alguém pode ser humilhado sem ter sua dignidade afetada. Mas, sim, de uma humilhação que coloca em xeque a nossa própria forma de vida.
2 A verdade nua (sobering truth) e o seu controle através da dignidade humana: primeiro sentido de dignidade humana no contexto da moralidade política e do direito
Direitos são uma espécie de standards ou padrões de comportamento enunciados na forma de relações jurídicas (obrigações, poderes, liberdades, pretensões etc.) verdadeiras ou falsas (Hohfeld, 1917; Edmundson, 2006; Eleftheriadis, 2008). Tais direitos, no domínio da moralidade política e do direito, só podem ser justificados com referência a fatos institucionais ou normativos, pois a sua legitimidade – ou a correção de uma exigência da coletividade para com o indivíduo – depende da justificação da existência desses fatos institucionais:
A realidade dos seres humanos é uma que não compreende apenas fatos físicos puros e realidades, mas, também, fatos institucionais. Na forma de uma definição preliminar, estes são fatos que dependem da interpretação das coisas, eventos e partes de comportamento por meio da referência a alguma estrutura normativa. (...) Eu tenho em meu bolso discos metálicos com a efígie de um rosto humano sobre um lado. Os discos são diferentes em tamanho e cor, e nas marcas que possuem. Eles são moedas e eu os uso para comprar jornais e outras coisas desse tipo. (...)
Interpretação de coisas e de seu uso sob a luz das regras relevantes é o que faz com que esses objetos físicos possuam o significado que possuem. (...) (MacCormick, 2007, pp. 11–12; trad. minha).
Direitos políticos e jurídicos são fatos normativos ou institucionais em contraposição a fatos brutos, pois existem apenas no plano de ações humanas com significado interpretativo ou valorativo (MacCormick, 2007, pp. 31–32). Não há, por conseguinte, como justificar direitos sem apresentar razões institucionais. Em última instância, isto significa dizer que a existência ou justificação de uma pretensão ou obrigação política ou jurídica depende de uma combinação entre fatos sociais, como, e.g., uma Constituição, uma Lei federal ou um ato administrativo, e valores, como, por exemplo, a dignidade humana, a soberania popular ou a equidade (Greenberg, 2004).
Como pode ser depreendido do modo como direitos se justificam em sociedades contemporâneas, é um fato incontroverso a ideia de que uma ordem política pode também funcionar perfeitamente bem sem necessariamente levar em consideração ou fazer referência a todos os membros da comunidade, individualmente considerados. Os fatos institucionais existem mesmo após a morte ou ausência daqueles indivíduos que os reconheceram em princípio. Não se trata, provavelmente, de um problema exclusivo do nosso tempo, mas, sim, de uma consequência de qualquer ordem política baseada em estruturas ou instituições sociais. Em contraponto a ordens sociais baseadas em consenso, tradição ou costumes, as estruturas e instituições sociais são, por gradação, menos dependentes da concordância de todos os membros da prática social (MacCormick, 2007, pp. 14–16).
Essa forma institucional de viver em comunidade possui suas vantagens e desvantagens. As vantagens são claras: flexibilidade com relação à alteração das normas sociais e segurança na aplicação do poder coercitivo do Estado. A principal desvantagem consiste no fato de que essas citadas vantagens são alcançadas, frequentemente, em detrimento a uma parcela da população. Os seres humanos, em situações normais de institucionalidade, são descartáveis. H. L. A. Hart (1961, pp. 201–2) caracteriza esse fenômeno como uma verdade nua (sobering truth):
Esses fatos doloridos da história humana são suficientes para mostrar que, embora a sociedade para ser viável precise oferecer aos seus membros um sistema de tolerância, ela não precisa, infelizmente, oferecer isto a todos. (...)
Reflexão acerca desse aspecto das coisas revela uma verdade nua: a passagem de uma forma simples de sociedade, na qual as regras primárias de obrigação são as únicas formas de controle social, para o mundo jurídico com legislador, cortes, oficiais e sanções centralizadas e organizadas produz um terreno sólido a certo custo.
Ou seja, uma verdade nua da nossa condição civil consiste na independência normativa das instituições sociais ante os seres humanos, indivíduos e grupos. É transparente que apenas algumas pessoas – sempre cada vez menos, em razão da automatização da nossa vida – precisam aceitar a ordem normativa para que ela continue a existir.
Uma tentativa do período pós-Segunda Guerra Mundial de controlar – mas nunca de superar – essa verdade institucional é conhecida como dignidade humana. A nossa vida do tipo institucional é extremamente frágil e permanece em constante perigo em razão da prescindibilidade do ser humano. A incorporação do conceito de dignidade a nível institucional, como, e.g., no caso de Constituições e tratados internacionais, corresponde à tentativa de colocar esse perigo em constante xeque-mate. Os exemplos mais notórios, no âmbito internacional, dessa tentativa são a Carta das Nações Unidas de 1945 e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (Pfordten, 2016, pp. 43–44).
3 Dignidade humana como conceito de status
Destarte, pode-se questionar se e de que modo a dignidade humana significa uma humanização da gramática de direitos institucionais. Isto pode ser verdade, caso a dignidade humana esteja em condições de colocar a verdade institucional de Hart em xeque.
A característica decisiva dessa compreensão da gramática institucional de direitos no que concerne à verdade nua (sobering truth) em comento consiste na ideia de que todas as dimensões ganham a sua validade com referência a um fato social, que pode ser formado sem necessariamente pressupor todos os afetados pelas relações criadas. A tarefa da dignidade humana, sob esse viés, compreende a criação de uma dependência mínima entre os fatos sociais e os afetados pelas relações constituídas, impedindo a continuidade de práticas políticas e jurídicas de desrespeito à pessoa.
Para fins de verificação do cumprimento dessa função da dignidade humana, parte-se do pressuposto de que a gramática de direitos subjetivos pressupõe uma justificação institucional envolvendo, necessariamente, a seguinte estrutura lógica: (a) uma regra de entrada, (b) uma regra de saída e (c) uma unidade de diferentes ações na forma das relações de pretensão, obrigação, permissão etc. (Hage, 2009; Sartor, 2009). O valor da dignidade precisa atuar em um desses momentos para garantir o respeito ao ser humano.
3.1 Dignidade humana como regra de entrada e de saída da condição de ser humano
A primeira possibilidade consiste em tratar a dignidade humana como regra de entrada e de saída, ou seja, o mero status de “ser digno” faz com que um indivíduo passe a ser considerado como possuidor ou detentor de determinados direitos, de forma análoga a alguém que compra um imóvel passe a ser um proprietário. Pela mera referência à dignidade, poderíamos fundamentar um conjunto de pretensões e outras relações jurídicas sem necessariamente fazer referência a um fato social, como, e.g., uma Constituição ou uma lei. Uma possível manifestação histórica dessa ideia é a jurisprudência acerca do mínimo existencial em diversos países, como, por exemplo, na Alemanha. O mero fato da dignidade humana cria uma pretensão jurídica de todo indivíduo qua ser humano a um mínimo de recursos para viver, independentemente da positivação de tal direito. Em outros termos, trata-se do pensamento vinculado ao conceito absoluto de dignidade humana, pois a dignidade é tratada como algo dado ou cognoscível aprioristicamente. O pensamento por trás dessa ideia pode ser assim formulado: “Porque os seres humanos possuem dignidade, vale o seguinte conjunto de direitos.”.
O primeiro argumento contrário a essa concepção de dignidade humana é que ela pressupõe um sujeito ou imagem de ser humano apriorística, sem levar em consideração diversas características ou propriedades que podem alterar significativamente o conjunto de direitos derivado do valor da dignidade humana. Existem seres humanos, que, por exemplo, não possuem a capacidade de se relacionar consigo mesmo e com outros do modo pressuposto por essa imagem, como, e.g., as crianças ou seres humanos com algum tipo de deficiência de cognição (Wedelstaedt, 2017, pp. 253–54). Eles não são sujeitos em sentido estrito, caso essa imagem de ser humano, que apela para determinadas capacidades específicas idealizadas, prevaleça.
Corrobora com essa crítica o estudo de Martha Nussbaum (2007), que critica soluções construtivistas para determinação dos critérios de justiça, na forma, por exemplo, da posição original de John Rawls (2005). Pois, tal concepção de justiça faz com quem determinados grupos de seres humanos e suas respectivas necessidades básicas, como as pessoas com deficiência, as mulheres ou os povos tradicionais, se tornem invisíveis no domínio da moral e da política. E, ainda nessa esteira, uma fundamentação metafísica com base na diferença entre homo noumenon e homo phaenomenon, tal qual proposta por Kant (1991, 550), não ajuda muito, na minha visão, a superar esse problema. Trata-se, mesmo nessa hipótese, da dignidade do ser humano em abstrato, da dignidade do ser humano na medida em que ela seja uma pessoa e possua razão ou juízo moral (Brandhorst, 2017, p. 134).
Um outro problema desse argumento consiste na autovaloração de certas qualidades ou propriedades dos seres humanos. É, no mínimo, questionável a assertiva de que seres humanos possuem mais valor ou são um fim em si mesmo em comparação com outros animais e seres vivos pelo simples fato de possuírem linguagem, ou melhor, um tipo especial de linguagem: “(...) ainda que outros animais se comuniquem, somente o ser humano percebe sua fala como algo ‘objetivo’, que se aparta dele e passa a fazer parte do ambiente, não constitui um prolongamento de si, porém algo sobre o que ele não tem controle.” (Adeodato, 2014, p. 9) É discutível por que determinadas características tornam os seres humanos superiores na scala naturae.
O questionamento supra da antropologia filosófica encontra suas raízes na crítica de Friedrich Nietzsche ao que ele denomina de moral europeia e sua necessária vinculação ao Cristianismo (Brandhorst, 2017, p. 114). No que concerne ao conceito de dignidade como responsável pela ideia de um valor intrínseco do ser humano, assevera Nietsche: “Ah, a crença na sua dignidade, na sua singularidade, na sua incomensurabilidade na escala dos seres vivos – ele se transformou em animal, animal sem similar, sem superior e sem reserva, ele, que em sua crença primitiva, era semelhante a Deus (>filho de Deus<, >Homem-Deus<) (...)”10 (Nietzsche, 1999, p. 404; trad. nossa). Isto significa: o ser humano é um animal; como animal, ele é parte da natureza; e, como parte da natureza, o ser humano não pode possuir nenhuma pretensão a mais por dignidade com base em sua semelhança a Deus ou posição especial no cosmos. Se alguém ainda acredita que possui dignidade e, por conseguinte, uma posição especial no cosmos, segundo Nietzsche, isso nada mais é do que uma consequência da moral europeia ou cristã, de que o ser humano é singular e especial em razão de ser imagem e semelhança de Deus: sem o fundamento da fé cristã, todo o edifício europeu da moral se corrói. Mais uma vez, a moral moderna com sua crença secular na dignidade substitui a crença religiosa, cujas raízes estão na ideia neoplatônica e escolástica de uma scala naturae, a dizer, na ideia de uma ordem cósmica, perfeita e divina (Brandhorst, 2017, p. 117).
3.2 Conteúdo da dignidade humana
3.2.1 Conceito formal da dignidade humana: direito a direitos
É possível superar – ou ignorar? – as objeções de Nietzsche, se nós partimos do pressuposto de que o fato da dignidade humana não depende de características ou propriedades específicas do ser humano. Trata-se do abandono da busca de uma causa natural para a existência ou não de dignidade humana e aceitação da independência do argumento moral no sentido de que um juízo moral verdadeiro não pode ter como fundamento um fato bruto ou natural (Dworkin, 2011, pp. 70–75). Os seres humanos possuem dignidade por uma razão exclusivamente moral.11 Nós vivemos com a intuição de que nós, no dia a dia, atribuímos dignidade aos seres humanos, sem perguntar por características específicas. A dignidade pertence a todo ser humano, independentemente das suas capacidades e características naturais, porque faz parte de uma convicção moral nossa que cada ser humano deve ser tratado com igual respeito e consideração.12
No domínio dos direitos ou da moralidade institucional, esse conteúdo da dignidade pode ser compreendido como um direito de todo ser humano a ser reconhecido como sujeito de direito: “Porque os seres humanos possuem dignidade, devem ser reconhecidos como sujeitos de direito”. Esta ideia é, com muitas ressalvas, extremamente popular nos dias de hoje, porquanto coloca a dignidade humana em conjugação com uma série de conceitos, os quais têm a ver com o reconhecimento do ser humano como sujeito de direito, a dizer, possuidor de direitos e deveres. Trata-se da concepção de dignidade humana a partir da ideia de “direito a ter direitos” (“ein Recht, Rechte zu haben”) (Arendt, 1949, p. 760).
Nesse contexto, em contraposição a outras ideias, desenvolvidas ao longo da história para garantir o reconhecimento de seres humanos como pessoa, como, por exemplo, a ideia de associações de operários no século XVIII e o nacionalismo no século XIX, a dignidade humana possui uma vantagem enorme, uma vez que o reconhecimento de alguém como pessoa jurídica não depende de ela ser operária ou cidadã. Todos os seres humanos como seres humanos possuem dignidade. Disso se deduz que todos os seres humanos possuem direito a direitos independente da sua nacionalidade ou profissão. A desvantagem também é óbvia: não é claro quais direitos podem ser deduzidos do conceito de dignidade humana. Afirmar que porque alguém possui dignidade, ela deve ser considerada sujeito de direito, não possibilita qualquer conclusão acerca de quais direitos devem ser reconhecidos, a não ser que outros valores estejam associados a essa ideia. Trata-se de um puro formalismo ético para utilizar uma expressão de Max Scheler (2014). O conceito de dignidade humana, compreendido dessa forma, passa a ser relativamente vazio em comparação com outros conceitos políticos, como o de cidadão ou operário. A dignidade, nesse sentido de um direito a ter direitos, é formal demais para justificar direitos e cumprir com a sua função de criar obstáculos para os mecanismos institucionais que funcionam sem consideração das pessoas envolvidas.
3.2.2 Autodeterminação
Uma possível solução para o problema, acima referido, do formalismo da dignidade humana é, normalmente, associada ao conceito moderno da autodeterminação (Selbstbestimmung), sobretudo, com uma constante referência problemática a Kant13. Autodeterminação se relaciona, nesse contexto, com o conceito de autonomia em contraposição ao conceito de heteronomia no âmbito da deliberação prática, a dizer, na justificação da execução ou não de uma determinada ação. Trata-se da liberdade de decidir sobre si mesmo, ou seja, sem determinação externa acerca dos seus próprios interesses ou de determinar os seus próprios fins (Pfordten, 2016, p. 55).
O principal problema da dignidade humana na forma de autodeterminação no sentido de um poder ou competência normativa consiste no fato de que não é claro para que alguém, afinal, precisa do conceito de dignidade humana nesse contexto. A aceitação do ser humano como persona moralis já carrega consigo a ideia de autodeterminação como poder ou competência normativa de acordo com a gramática de direitos (Pavlakos, 2007, pp. 141–58). Quando a dignidade é interpretada dessa forma, i.e., como um mero desdobramento da ideia de autodeterminação, o conceito de dignidade parece ser um mero aglomerado de direitos subjetivos sem qualquer valor específico que determine quais direitos devem fazer parte desse conjunto.
Além disso, a partir desse entendimento de dignidade, não há uma clara compreensão de sob quais condições ocorrem violações à dignidade humana. Desde que não implique a negação do direito fundamental à justificação das decisões políticas14, a negação, por exemplo, do direito ao voto como direito político é, sem dúvida, uma limitação à autodeterminação, conquanto possa não se tratar, necessariamente, ao mesmo tempo, de uma ofensa à dignidade humana – podendo ser, no entanto, uma clara violação aos direitos humanos internacionais.15 Nem toda inobservância de uma lei moral (Kant 2012, p. 9) significa per se uma violação à dignidade humana.16
4 Dignidade, forma de vida e humilhação
Por tudo que foi exposto, é questionável se o conceito de dignidade humana pode ser apresentado como uma tentativa de solução para o problema da necessária humanização das instituições jurídicas, a dizer, para o problema levantado por Hart das vítimas do sistema jurídico. Uma possibilidade, acima analisada, consiste na ideia de tratar a dignidade humana como autodeterminação e, consequentemente, como conceito de status. Todavia, como visto, esta representação não conduz necessariamente a uma melhor compreensão da dignidade humana como mecanismo de combate aos desvirtuamentos das instituições sociais.
Parece que chegamos a um beco sem saída: ou a dignidade humana passa a ser um conceito vazio, como no caso da ideia de “direito a ter direitos”, ou ela é tão vaga que não permite nenhuma consequência aparente para a modificação da verdade nua no campo da vida institucional.
Minha sugestão, nesse contexto, seria discutir um conceito contingente de dignidade humana, associado à ideia de forma de vida e de humilhação. A contingência da dignidade está relacionada com dois pontos fundamentais (Weber-Guskar/Brandhorst, 2017, pp. 17–28):
-
a
Contingência de fundamentação: a dignidade humana como imagem do ser humano em uma comunidade política particular é fundamentada sem referência necessária a uma esfera transcendental ou transcendente do discurso ético, moral ou político.17
-
b
Contingência do significado: a dignidade humana pode ser interpretada de modo distinto a depender do caso e, sobretudo, da posição jurídica em jogo. Dessa forma, não existe um ponto arquimediano para determinação do conteúdo da dignidade. Esta precisa ser pensada em meio às praticas sociais de uma determinada comunidade política, a fim de elucidar o que é a experiência da humilhação profunda que coloca em risco toda forma de vida.
A aceitação desses pressupostos conduz ao segundo conceito, aqui, analisado de dignidade: “Para que os seres humanos possam viver com dignidade, vale o seguinte conjunto de direitos.”. A dignidade, destarte, passa a ser associada diretamente a um modo de vida ou forma de vida, a qual, caso seja aceita e a depender do status jurídico do sujeito envolvido no plano institucional, justifica determinados direitos jurídicos.
4.1 Narrativas sobre humilhação extrema
O conceito contingente de dignidade humana está diretamente associado a narrativas ou imagens sobre como a nossa forma de vida pode ser colocada fundamentalmente em questão através de ações (intencionais) de outros indivíduos, coletividades e instituições. O modo como tais narrativas ou imagens se apresentam modifica o nosso olhar sobre a dignidade humana e, por conseguinte, as características de tal conceito. A apresentação, abaixo, de algumas narrativas para introduzir o conceito de dignidade segue, de certa forma, a ideia de imagem de mundo (Weltbild)18:
94. Mas não tenho a minha imagem de mundo porque me certifiquei da sua correção; também não é porque dela estou convencido. Ela é antes o pano de fundo herdado da tradição e sobre o qual diferencio entre verdadeiro e falso. (Wittgenstein, 2012)
95. As proposições que descrevem essa imagem de mundo poderiam pertencer a um tipo de mitologia. E o seu papel é semelhante ao das regras de um jogo, e o jogo também pode ser aprendido puramente na prática, sem qualquer regra explícita. (Wittgenstein, 2012)
O pano de fundo, portanto, da noção de contingente de dignidade pode ser apreendido a partir de certas narrativas. Por conseguinte, a tese, por trás dessas narrativas, é que a dignidade pode ser associada a uma forma específica de humilhação.19
Uma imagem que pode ser claramente associada à dignidade humana vem da narrativa de Shin Dong-hyuk, em seu “Scape from Camp 14”, sobre uma criança que nasceu e cresceu em um campo de concentração na Coreia do Norte (Harden, 2015). A única forma de casamento permitida neste campo de concentração era uma espécie de “casamento por merecimento”. Os guardas do campo selecionavam presos exemplares em virtude do seu comportamento e trabalho e os colocava em contato para manter relações amorosas e sexuais, muitas vezes, diante dos demais prisioneiros. As crianças, nascidas dessa relação, eram educadas pelos próprios guardas do campo de concentração para que trabalhassem como agentes infiltrados junto aos prisioneiros, especialmente, como delatores dos seus próprios pais. Este tipo de vivência, principalmente para crianças, possui um forte impacto na sua capacidade para a sociabilidade e amizade depois de uma possível, mas improvável, fuga do campo de concentração.
Nos anos após fugir do campo de concentração, Shin aprendeu que muitas pessoas associam “carinho”, “segurança” e “afeto” com as palavras “mãe”, “pai” e “irmão”. Esta não era propriamente a sua experiência. Os guardas o ensinavam que ele era prisioneiro em virtude dos “pecados” dos seus pais. Isto porque as crianças eram ensinadas no campo de concentração a ter vergonha do seu próprio sangue, supostamente, traidor. Ao mesmo tempo, eles poderiam apagar tal culpa ou pecado através do trabalho árduo e de delações sobre o comportamento dos seus pais (Harden, 2015). Das crianças nascidas no campo de concentração na Coréia do Noite foi retirado o significado fundamental das noções de família e amizade, tornando-as, até certo ponto, incapazes de viver em nossa sociedade. Trata-se de uma manifestação daquilo que se denomina sujeito apolítico, visto que as crianças nascidas sob tais condições se tornam incapazes de desenvolver laços sociais e, possivelmente, carecem da emoção política fundamental da empatia (Nussbaum, 2013).
É igualmente a partir dessa imagem de estranheza extrema e forçada com relação à linguagem, a qual impossibilita associações mais básicas da nossa forma de vida, que Herta Müller parece indicar as sequelas mais atrozes dos regimes totalitários no século passado:
A confiança instintiva na língua materna infelizmente pode ser abalada. Após o extermínio dos judeus no nazismo, Paul Celan teve de viver com o fato de sua língua materna alemã ser a língua dos assassinos de sua mãe. Mesmo nesse espaço extremamente adverso, Celan não pôde desvencilhar-se dela. Pois na primeira de todas as palavras que Celan pronunciou quando aprendeu a falar, essa língua já estava fincada. Ela era a fala que crescera para dentro da cabeça e teve de continuar sendo. Mesmo quando cheirava a chaminé de campo de concentração. (Müller, 2013, p. 29).
Se levarmos a sério a ideia de que a linguagem não apenas medeia a realidade, mas, também, a constitui, uma das formas mais básicas – talvez, a que se apresentou no século XX como mais fundamental – de violação à dignidade é aquela que nos retira a familiaridade com a nossa própria língua: “Quando na vida nada mais está em ordem, as palavras também despencam. Pois todas as ditaduras, seja de direita ou de esquerda, ateístas ou divinas, empregam a língua a seu serviço.” (Müller, 2013, p. 32).
Os pensamentos diretamente associados com o conceito de dignidade humana a partir dessas imagens de humilhação, provocadas por regimes totalitários do presente e do passado, podem ser formulados da seguinte forma: “Algo assim não deve ser feito a seres humanos! Eles são, afinal, seres humanos!” (Steinfath, 2017, p. 287). Trata-se dos conceitos de “desumanização” e, em especial, de “humilhação”. Estes pensamentos significam, em primeiro lugar, a convicção de que nenhum ser humano pode ser tratado de um determinado modo, visto que se trata, afinal, de um ser humano. Logo após este pensamento, passamos a fundamentar que determinados modos de vida no sentido de formas de tratamento e condução de vida não correspondem ao ideal de vida da nossa sociedade, o que implica, em termos deônticos, obrigações e proibições.
4.2 O direito de não ser humilhado
Em termos conceituais, o que significam as imagens de humilhação acima apresentadas? Qualquer humilhação é uma violação à dignidade humana? Quais as características das humilhações que podem gerar infração à dignidade?
Antes de apresentar uma primeira aproximação a essas questões, é importante destacar um pressuposto metodológico acerca do conceito de humilhação.20 Em que pese o estudo busque justificar um conceito contingente de dignidade associado ao de humilhação, não se trata de uma proposta baseada em um conceito descritivo de humilhação. A ideia não é dizer que, porque alguém se sente humilhado, ela tem determinados direitos. Ao contrário, a humilhação é associada à degradação de uma forma de viver em sociedade. Em outros termos, o argumento não se baseia em uma noção de “sentir-se humilhado” ou “estar humilhado”, mas, sim, de “ser humilhado”.21
Não é objeto deste estudo apresentar um mapa de todas as hipóteses de violações à dignidade humana com base na ideia de humilhação. Como dito acima, o conceito contingente de dignidade humana exige um estudo de figuras no discurso de direitos e hipóteses específicas para determinação das suas formas de violação, como, por exemplo, a violação da dignidade de uma criança, de uma mulher, de um trabalhador, de um professor, entre outros. Dessa forma, é preciso primeiro determinar o status de quem fala para, posteriormente, aplicar o valor da dignidade como limitador das ações institucionais.
Não obstante, é possível afirmar que o núcleo dessa experiência de humilhação é a experiência da incapacidade ou ausência de poder para se autodeterminar (Bieri, 2015). A ausência do poder de realizar o seu próprio desejo. Não de qualquer desejo, mas, sim, de um desejo fundamental para a nossa própria vida. Este pode ser um desejo vinculado ao exercício de uma profissão, de acesso à educação, da liberdade de ir e vir e de se expressar, de constituir uma família etc.
Ao mesmo tempo, para que seja uma experiência real de violação à dignidade humana, a incapacidade provocada por alguém deve ser realizada de tal forma que o agente demonstre que ele está no poder, isto é, que ela nos tornou impotentes numa determinada situação. É o caso de relatos durante o regime nazista na Alemanha, quando judeus precisavam limpar as ruas com escovas de dentes sob o comando sádico de oficiais da SS. Este núcleo da experiência da humilhação está associado com a ideia de incapacidade, i.e., impossibilidade de autodeterminar-se, a qual é provocada por um agente de forma ostensiva.
Por fim, para que se possa falar realmente de violação à dignidade humana, a violência que nos torna incapazes precisa ser efetivamente realizada com instituto de demonstrar o poder de alguém sobre nós e, amiúde, tendo o agente o prazer de demonstrar tal poder.22 O caso de violência sexual, como, e.g., o estupro, é um claro exemplo de uma violação que envolve todos os elementos acima indicados.23
Assim, a dignidade humana compreende, em um significado derivado, o direito de não ser humilhado. Humilhação envolve a demonstração de controle de alguém sobre os nossos desejos de forma ostensiva e, amiúde, com demonstração clara de prazer em nos tornar submissos. O que isso envolve, em última instância, é a exclusão da nossa autoridade de decidir sobre a nossa própria vida, ou seja, o poder de decidir livremente e de maneira autônoma. O direito de não ser humilhado envolve, por conseguinte, a ideia moderna de autodeterminação, sem, contudo, incidir nos mesmos problemas levantados acima, e, nesse sentido, com uma clara dimensão social, a qual compreende a dignidade associada a relações intersubjetivas no contexto de práticas institucionais (Honneth, 2015, p. 86).
Por que, então, essa visão proposta acerca da dignidade não conduz aos mesmos problemas já apontados da autodeterminação idealista? Este é o caso em virtude do reconhecimento da contingência (da fundamentação e do significado) do conceito de dignidade humana. De um lado, a dignidade humana não é compreendida como algo absoluto, mas, sim, como parte de uma determinada forma de vida (Lebensform), a dizer, de uma forma democrático-liberal da vida política. O compartilhamento de uma determinada forma de vida possibilita compreensão de situações em que somos privados dos nossos direitos mais fundamentais.
O conceito de “forma de vida” (Lebensform) de Wittgenstein é decisivo nesse contexto, pois a humilhação é a colocação em xeque de uma forma específica de vida em sociedade. Wittgenstein (2015, § 19) aceita, por um lado, uma variedade de formas de vida, quando afirma, e.g., que imaginar uma linguagem é imaginar uma forma de vida. Esta noção de forma de vida poderia dar azo à ideia de uma pluralidade infinita de formas de humilhação, dependentes de cada cultura, o que impossibilitaria o cumprimento da função normativa do conceito de dignidade humana. Por outro lado, Wittgenstein também aceita a ideia de uma forma comum de vida para toda a humanidade, a qual consiste em convicções (Überzeugungen), que não podem ser colocadas em xeque, sob pena de tornar incompreensíveis as nossas atividades humanas24: “Assim, tu dizes, portanto, que a concordância entre os seres humanos decide o que é certo ou o que é errado? – Certo e errado é o que os seres humanos dizem; e os seres humanos estão de acordo na linguagem. Isto não é nenhuma concordância de opiniões, mas, sim, de forma de vida.”25 (Wittgenstein, 2015, § 241; trad. nossa).
No contexto desse último sentido de forma de vida, existe um tipo de forma de vida que pode ser considerada natural. Certos jogos de linguagem dependem de fatos muito gerais da natureza. Uma população completa de daltônicos terá certamente outros conceitos de cor distintos dos nossos, mesmo que empregue a mesma língua portuguesa. Um outro sentido de forma de vida é o de forma de vida como modo de vida, o qual as pessoas podem ou não compartilhar. Este é o conceito de forma de vida empregado como pressuposto para compreensão da dignidade como experiência de humilhação. O que pertence a um jogo de linguagem é toda uma cultura. A linguagem também reflete aquilo que os participantes tomam por importante ou não. 26
É esse último sentido normativo de forma de vida que interessa a este estudo: a humilhação, destarte, é a ação de violar as convicções mais fundamentais acerca da nossa vida em comunidade. A fundamentação da dignidade, nesse contexto, consiste em identificar quais valores são essenciais para os seres humanos e sua vida em comum. E isto pode ser feito por meio de uma investigação acerca de como os seres humanos são. De fato, isto pode ser relativamente contingente, pois o modo como nós somos pode ser, completamente, diferente em um outro mundo sob outras condições. Ao mesmo tempo, todavia, não é relativamente contingente para aqueles e aquelas que estão neste mundo sob estas condições.
Por outro lado, pretensões ou direitos em sentido amplo não podem ser fundamentados com referência exclusiva ao valor da dignidade humana, pelo menos, no campo da moralidade jurídica. O campo da moralidade institucional, conforme discutido alhures, exige constante referência a fatos sociais ou institucionais (como, e.g, uma lei ou Constituição), sem os quais as pretensões não podem ser consideradas fundamentadas (Greenberg, 2004). Tal exigência se dá também pelo respeito à própria noção de dignidade como poder de autodeterminar-se, a dizer, por meio da igual consideração a todos os participantes da comunidade política. Por conseguinte, não é o mero apelo a uma forma de vida ou a uma experiência de humilhação que gera per se direitos. Estes, no âmbito da moralidade institucional, sempre dependem de fatos sociais para serem justificados.
Destarte, os direitos institucionais com referência à dignidade nos possibilitam colocar um freio à tentativa do Governo ou de outras pessoas de colocar-nos em situação de humilhação, ou seja, de nos retirar o poder de decidir sobre a nossa própria vida, nossos desejos, pelo mero prazer de nos colocar em tal situação. As instituições passam, em última instância, a serem responsáveis não só pela consideração de alguém qua pessoa moral ou jurídica, mas, ademais, de levar em consideração a experiência da humilhação em suas ações para definir o modo digno de tratamento a ser dispensado.
Essa noção contingente de dignidade humana tem a potencialidade de justificar decisões históricas, como, e.g. o famoso caso da proibição do lançamento de anões – pessoas com nanismo – como esporte, i. e., a proibição de utilizar determinadas pessoas como objetos (e.g., bola) de uma prática esportiva. Neste caso específico, pessoas com nanismo são contratadas para serem arremessadas durante horas diante de um público como uma forma de entretenimento esportivo. Nas concepções tradicionais de dignidade, como, e.g., uma versão kantiana com apelo à autodeterminação da vontade, a justificação de uma proibição a essa prática se torna complexa pelo fato de os anões terem tido a oportunidade de expressar a sua vontade ao celebrar um contrato, autorizando que outras pessoas os arremessem, exclusivamente, para diversão de um público. Nessa hipótese, eles teriam exercido definitivamente a sua autodeterminação no momento da concordância ou do contrato de trabalho ou prestação de serviço, mesmo havendo possibilidade de arrependimento posterior.
Ao contrário, na concepção aqui defendida, com base no direito de não ser humilhado, embora o consentimento seja elemento importante para autodeterminação, ele não é suficiente. Pois, a prática do arremesso de anões é realizada com o único e exclusivo intuito de transformar uma pessoa em mero objeto do prazer de outras pessoas envolvidas com a atividade. A dizer, trata-se de um entretenimento que se consubstancia no exercício do poder de subjugar outrem e no prazer em retirar da pessoa a sua capacidade de autodeterminar suas vontades. Naquele momento do entretenimento, as pessoas se divertem pelo mero fato de que um outro ser humano está impossibilitado de determinar por si os seus desejos, sendo os seus movimentos sujeitos completamente à vontade de outrem. Trata-se de uma experiência grave de humilhação, que coloca em xeque toda a nossa forma (liberal-democrática) de vida.
5 Considerações Finais
Há duas inclinações, diretamente associadas, no tratamento do conceito de dignidade humana no campo da filosofia moral. A primeira é a tendência de considerar a dignidade humana como um conceito absoluto ou necessário, o qual pode ser fundamentado de modo apriorístico e possui, portanto, significado prévio a qualquer consideração da realidade (natural ou social). A segunda consiste em associar esse conceito absoluto de dignidade as características de independência (Unabhängigkeit), indisponibilidade (Unverlierbarkeit) e incomensurabilidade (Unverrechenbarkeit) com relação ao valor do ser humano. Como resultado dessas duas tendências, passa a imperar o seguinte pensamento no campo da filosofia moral: “Porque os seres humanos possuem dignidade, vale o seguinte conjunto de direitos”.
Conforme restou discutido ao longo do estudo, o conceito absoluto ou necessário de dignidade encontra problemas sérios para que possa ser considerado válido, pelo menos, no domínio da moralidade política e do direito.
O primeiro desdobramento do conceito absoluto de dignidade humana é aquele que vincula este conceito a um conjunto de características naturais, pertencentes a todo ser humano. Nesse contexto, em primeiro lugar, a dignidade, assim formulada, precisaria pressupor uma imagem específica de ser humano com fundamento apriorístico. Tal imagem excluiria, decerto, indivíduos que não possuem determinadas características, como, por exemplo, a capacidade de se relacionar consigo mesmo e com outros. Em segundo lugar, há a objeção, postulada por Nietzsche, de que a dignidade humana é uma forma secularizada e injustificada de autovalorização do ser humano ante os demais seres vivos. É, nesse sentido, discutível por que determinadas qualidades naturais tornam os seres humanos privilegiados, superiores ou com valor em si mesmo na scala naturae.
Outro desdobramento do conceito absoluto de dignidade humana consiste na tentativa de definir esse conceito de modo meramente formal, a dizer, como um mero “direito a ter direitos” ou “direito a ser reconhecido como sujeito de direito”. Tal concepção conduz a um formalismo ético, incapaz de proporcionar soluções para desacordos sociais e, ademais, de criar obstáculos materiais para o abuso do poder das instituições.
Por fim, o apelo ao valor da autodeterminação (Selbstbestimmung) como forma de justificar e definir o significado de dignidade humana, sem considerações sociais e institucionais, gera indeterminação conceitual. Isto é, não resta claro, pelo simples apelo à autodeterminação, como a dignidade deve ser compreendida em casos controversos no campo da moral e da política. Ademais, sem considerações sociais, a autodeterminação, como valor determinante da dignidade, pode conduzir igualmente a contradições, na medida em que conduz à ideia de que toda violação à lei moral é per se uma violação à dignidade.
A solução proposta pelo estudo é a adoção de um conceito contingente de dignidade humana a partir do seguinte pensamento: “Para que os seres humanos possam viver em dignidade, vale o seguinte conjunto de direitos”. A dignidade, destarte, passa a ser associada diretamente a uma forma comum de vida, a qual, caso seja aceita e a depender do status jurídico do sujeito envolvido no plano institucional, justifica determinados direitos.
O direito de não ser humilhado é uma das dimensões mais importantes do conceito contingente de dignidade humana, sendo a humilhação a experiência da incapacidade ou ausência de poder para autodeterminar-se. A autodeterminação, diferente do que ocorre no contexto do conceito absoluto de dignidade, passa a ser compreendida a partir da experiência da humilhação e do pressuposto de uma forma de vida compartilhada, abrindo caminho para compreensão da dignidade em diversos domínios do discurso de direitos morais e institucionais e em diálogo com as narrativas ordinárias e científicas de desrespeito e humilhação.
A proposta deste estudo é a de indicar um outro caminho para a fundamentação da dignidade humana a partir da compreensão de experiências graves de humilhação. Naturalmente, essa proposta traz consigo dificuldades em razão do próprio conteúdo histórico e aberto da noção de humilhação. Não obstante, ao mesmo tempo, ela torna transparente outras formas ainda invisíveis de violação à dignidade, que envolvem, sobretudo, o reconhecimento social de grupos vulneráveis e, até mesmo, o papel das emoções na nossa vida em sociedade.
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Versões deste estudo foram apresentadas, previamente, no 11. Deutsch-japanisches Ethik-Colloquium na Universidade de Duisburg-Essen (Alemanha) e no II Congresso de Direito Constitucional e Filosofia Política na Universidade Federal do Paraná. Agradeço ao público pelas críticas aos argumentos apresentados. Parte deste estudo foi financiado pela Fundação Konrad Adenauer. Por fim, agradeço a Lorena Bulhões pela correção ortográfica do texto.
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Não traçarei uma diferença precisa, aqui, entre coletividades e instituições, mas penso que estas são fruto de um processo de formalização daquelas. No mesmo sentido: MacCormick, 2007.
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Não é adequado, no entanto, discutir “dignidade humana” em abstrato, seja porque só podemos identificar o significado e sentido de um conceito na sua forma proposicional (Frege, 1962, pp. 24–26), seja porque o gênero do discurso ou jogo de linguagem, no qual o conceito é empregado, modifica o seu valor de verdade (Wittgenstein, 2015, §7). Falar de dignidade no contexto da proibição do trabalho análogo ao escravo no Brasil não é o mesmo que falar de dignidade no âmbito dos direitos sexuais das mulheres na Índia.
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Utilizo “desacordo” no sentido de “desacordo teórico” de Ronald Dworkin (1986; 2008).
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“Absoluto” ou “necessário” é aquilo que não pode ser de outra forma ou cujo contrário é impossível, enquanto “contingente” significa aquilo que pode ser de outra forma ou cujo contrário é possível.
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Do ponto de vista da história das ideias, essa antinomia tem origem nos escritos de Cícero e Kant. Acerca disso: Pfordten, 2016, pp. 15-20; 32-26.
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No que concerne ao domínio (linguístico) em que este conceito pode ser discutido, a dignidade humana é passível de ser compreendida, entre outros, no âmbito da ética, moral ou moralidade pessoal e política ou moralidade institucional. Na ética, a dignidade se relaciona com o que significa ter uma vida digna para um indivíduo, a dizer, com a sua concepção de viver de forma digna. A moral ou a moralidade pessoal, por seu turno, compreende as relações entre, pelo menos, dois sujeitos e a quais ações um sujeito é obrigado para com o outro em razão do reconhecimento deste como pessoa (moral) e da sua dignidade. Isto é, a moral compreende as minhas obrigações morais em relação a uma outra pessoa em razão da sua dignidade. Já a política, ou mais precisamente, a moralidade institucional, representa o domínio dos direitos de comunidade política ante um indivíduo. Significa discutir quais ações podem ser exigidas dos indivíduos por uma coletividade com pretensão de autoridade soberana sem ferir a sua dignidade. Em síntese, a ética compreende o espaço do “eu” (primeira pessoa do singular); a moral, do “tu” (segunda pessoa do singular); e a política discute a esfera do “nós” (primeira pessoa do plural).Direitos jurídicos podem, no entanto, ser diferenciados de direitos políticos: “Direitos jurídicos são aqueles que as pessoas estão autorizadas a exigir por meio de um pedido, sem outra intervenção legislativa, em instituições adjudicativas, as quais orientam o poder executivo de delegados ou policiais.” (Dworkin 2011, p. 406) (trad. minha). Acerca disso: Eleftheriadis, 2008.
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Acerca disso: Brugger, 1999, pp. 253–84.
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“Valor” está sendo utilizado, aqui, no sentido de proposições ou razões na esteira de Dworkin (2011) e Greenberg (2004).
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“Ah, der Glaube an seine Würde, Einzigkeit, Unersetzlichkeit in der Rangabfolge der Wesen ist dahin, - er ist Thier geworden, Thier, ohne Gleichniss, Abzug und Vorbehalt, er, der in seinem früheren Glauben beinahe Gott (>Kind Gottes<, >Gottmensch<) war (…)”.
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Aqui, o termo “moral” está sendo utilizado no sentido de um fundamento para uma justificação da execução ou não de uma ação em particular, ou seja, no sentido de razão prática em contraposição à razão teórica. Acerca disso: (Nida-Rümelin 2009, p. 99; Nino 1985, p. 126)
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Pode-se afirmar que essa resposta é evasiva, pois não responde à dimensão ontológica da dignidade, i.e., à essência ou natureza do ser humano. Ou seja, parte de uma intuição acerca do nosso modo de vida, mas não responde por que alguém teria razões para reconhecer ser como ser humano. Como deixei claro na introdução, a dimensão ontológica da dignidade não é o objeto específico deste estudo. Porém, como forma de dar uma resposta provisória ao questionamento, tenho dúvidas se é, de fato, função do conceito de dignidade servir como razão para o reconhecimento de um ser como pessoa ou se isto não seria, ao contrário, um pressuposto para o valor da dignidade humana.
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Acerca disso: Forst, 2010.
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Em sentindo contrário, Stephan Kirste (2016) defende uma fundamentação dos direitos humanos com base no conceito absoluto de dignidade humana e, ademais, uma necessária vinculação entre direitos humanos e democracia. As duas teses conjugadas parecem gerar um argumento contraintuitivo de que qualquer violação a direitos políticos em um regime democrático geraria uma violação imediata à dignidade humana.
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É por essa razão que, por exemplo, nem todo dano moral é uma violação da dignidade humana, embora um dano moral possa significar uma violação a uma norma moral.
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Nos termos colocados por Dworkin (2011, p. 25) e Williams (2006, pp. 25–33), seria uma proposta não-arquimediana para a compreensão da dignidade humana, a dizer, o conteúdo da dignidade não depende de uma ideia externa ao próprio discurso moral para a sua determinação.
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No mesmo sentido de valorizar as narrativas no âmbito da filosofia política: Nussbaum, 2013 p. 2.
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Agradeço ao revisor anônimo ou revisora anônima por essa observação.
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Para uma visão psicológica do conceito de humilhação, ver: Pollmann, 2005.
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Coloquei a expressão “amiúde” para indicar a possibilidade de que esse elemento subjetivo não seja passível de identificação no caso de violações institucionais, sem um agente específico vinculado.
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“Se basearmos nossos padrões de comparação sobre uma tal abordagem, afigura-se razoável iniciar a partir de um tipo de desrespeito que concerne à integridade física de uma pessoa. Essas formas de maus-tratos nas quais é retirada de uma pessoa, mediante a força, qualquer oportunidade de dispor livremente sobre seu próprio corpo, representam o mais fundamental tipo de degradação pessoal, pois qualquer tentativa de apreensão de controle do corpo de uma pessoa contra sua vontade, independentemente da intenção dos envolvidos, provoca um certo grau de humilhação que, por comparação com outras formas de desrespeito, tem um impacto mais profundo e destrutivo sobre um relacionamento do indivíduo para consigo mesmo. O que é essencial sobre essas formas de lesões físicas, como exemplificado por tortura ou estupro, não é a dor crua vivida pelo corpo, mas a relação dessa dor com a sensação de estar indefeso e à mercê de outro sujeito a ponto de estar sendo privado de todo sentimento de realidade.” (Honneth, 2010, p. 119)
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No mesmo sentido: Nida-Rümelin 2009; Wedelstaedt 2017.
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“»So sagst du also, dass die Übereinstimmung der Menschen entscheide, was richtig und was falsch ist?« - Richtig und falsch ist, was Menschen sagen; und in der Sprache stimmen die Menschen überein. Dies ist keine Übereinstimmung der Meinungen, sondern der Lebensform.”.
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26
Acerca disso: Whiting, 2017.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
16 Set 2019 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2019
Histórico
-
Recebido
01 Maio 2018 -
Aceito
20 Ago 2018