Acessibilidade / Reportar erro

Política, gênero humano e direitos humanos na formação do pensamento de Karl Marx

Politics, Human gender, Human Rights in the formation of Karl Marx´s thought

Resumo

A partir dos escritos marxianos da Gazeta renana (1842), pretendemos analisar a formação do pensamento marxiano no que toca o tema da política e dos direitos humanos. Intentamos demonstrar que Marx passa de uma concepção ontopositiva do Direito e da política, em 1842, a uma concepção ontonegativa, no final de 1843. O percurso do autor começa com a defesa do Estado político como essenciais à sociabilidade e chega à crítica ao Estado como tal. Neste momento de sua obra, tem-se por essencial a tematização da oposição entre individualidade e generidade; se em um primeiro momento Marx busca o elemento universal da liberdade no Direito, na Crítica à filosofia do Direito de Hegel já enfoca a forma democrática de governo para, então, finalmente, em Sobre a questão judaica, contrapor-se com força a tais teses. O autor procura, então, defender que o indivíduo só se eleva ao patamar de um ser genérico ao recuperar para si suas forças próprias que apareciam estranhadas na política. O ponto de partida para a teoria marxiana passa a ser a crítica ao Direito, à política e à sociedade civil-burguesa.

Palavras-chave:
Marx; Sobre a questão judaica; Direitos humanos; Política; Gênero humano

Abstract

Based on the Marxian writings of the Rhenish Gazette (1842), we intend to analyze the formation of Marxian thought on the matter of politics and human rights. We try to demonstrate that Marx changes from an ontopositive conception of Law and politics, in 1842, to an ontonegative conception, at the end of 1843. The course of the author´s work goes from the defense of the political state as something essential to sociability to the criticism of the state as such. In this moment of his work, in which it is essential to thematize the opposition between individuality and the Human gender; if, at first, Marx seeks the universal element of freedom in law, in Critique to Hegel's philosophy of law he focuses on the democratic form of government, and then, finally, on the Jewish question, such theses. The author seeks, then, to defend that the individual only rises to the level of a generic being when it recovers for itself its own forces that appeared alienated in the politics. The departure point for Marx becomes the Critic of Law, Politics and Buourgeous Civil Society.

Keywords:
Marx; On a jewish question; Human rights; politcs; Human gender

Introdução

No presente artigo, pretendemos abordar o momento inicial de formação do pensamento marxiano. (Cf. CHASIN, 2009_________. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.) A partir daquilo que José Chasin chamou de análise imanente1 1 Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto - a formação ideal - em sua consistência autosignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado pelo investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz de entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por isso, de existir [...]”. (CHASIN, 2009, p. 26) , trataremos dos textos marxianos de 1842-43, tendo em conta a relação entre política, vida genérica (Gattungsleben), ser genérico (Gattungswesen) e sociedade civil-burguesa (bürgerliche Gesellschaft). Passaremos, essencialmente, pelos textos da Gazeta Renana, pela Crítica à filosofia do Direito de Hegel e por Sobre a questão judaica, textos em que a temática ganha mais destaque e em que também se delineiam alguns temas essenciais à obra marxiana. A abordagem marcada pela análise imanente justifica-se porque, com ela, é a partir do próprio texto, no caso, de Marx que emergem as determinações de seu pensamento. Mesmo que se tenha em mente que há uma gênese de tal formação ideal, e mesmo que sua função social precise ser destacada com cuidado, tanto gênese quanto função, isoladas da estrutura objetiva das formações ideais analisadas, podem aparecer de modo arbitrário em uma pesquisa séria. Assim, a análise imanente chasiniana (que tem suas raízes nas pesquisas de Lukács da Destruição da Razão) constitui um passo necessário no entendimento de obras, artigos, e contribuições de autores importantes. Em nosso caso, trataremos das obras que compõem o período formativo do itinerário de Karl Marx.

A análise do pensamento de Marx justifica-se, primeiro, devido ao caráter clássico do autor nas assim chamadas ciências humanas; não é exagero dizer que qualquer posicionamento com maior fôlego neste campo, seja discordando, seja concordando com o autor, precisa de um acerto de contas com Marx e com o marxismo. Outro ponto que remete à importância do estudo destes textos são as discordâncias sobre o estatuto de tais obras. Trataremos desta questão, mesmo que rapidamente, mais à frente. Ou seja, neste texto, pretendemos contribuir para um estudo cuidadoso da obra de Marx; e isto se justifica, de um lado, pela influência decisiva do autor nos debates sobre a política e os rumos da sociedade atual; doutro lado, tem-se um debate sério sendo traçado entre aqueles que abordam o tema e, por isso, uma contribuição que pretenda clarificar pontos deste embate pode ser de valor. Mesmo que a política em Marx já tenha sido debatida por outros autores, acreditamos que o tratamento imanente dos textos de Marx traz temáticas, como aquela atinente à religião e à concepção de gênero (Gattug) que, ou foram abordados de modo apressado, com remissão à concepção feuerbachiana, ou foram levados a um papel meramente secundário.

Deste modo, é necessário trazer um alerta sobre nosso tema. Antes de qualquer coisa, é bom destacar que, muito embora autores importantes, como Althusser (1979ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. Trad. Dirceu Lindoso. São Paulo: Zahar, 1979.), digam que a temática da relação entre indivíduo e gênero (Gattung) é marcada por incursões idealistas e feuerbachianas, acreditamos - acompanhados por autores como Lukács (2007_______. O jovem Marx e outros escritos filosóficos. Trad. Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007., 2012, 2013), Chasin (2009_________. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.), dentre outros - que se trata de algo bastante diverso. Isto se dá não só devido ao caráter, talvez, problemático da noção bacharelardiana, apropriada por Louis Althusser, de corte epistemológico.2 2 Lukács, por exemplo, diz que “certamente é uma estupidez historiográfica insistir sobre a contraposição entre jovem Marx e o Marx maduro.” (LUKÁCS, 1969, p. 56) Aqui, em verdade, não podemos entrar neste debate, por assim dizer, metodológico. Mas devemos destacar que a relação entre indivíduo e gênero, mesmo que por vezes a coisa não esteja colocada com as mesmas palavras, aparece como algo essencial a toda à compreensão de toda obra marxiana. (Cf. SARTORI, 2018SARTORI, Vitor Bartoletti. ACERCA DA INDIVIDUALIDADE, DO DESENVOLVIMENTO DAS FORÇAS PRODUTIVAS E DO “ROMANTISMO” EM MARX [PARTE I]. In: Revista Práxis Comunal n. 1, v. 1. Belo Horizonte: UFMG, 2018.) A tematização sobre a individualidade é muito presente em textos como os Grundrisse, Crítica ao programa de Gotha, Manuscritos etnológicos, dentre outros. E ela sempre vem acompanhada de um tratamento sobre a modificação e a transformação na sociabilidade e no elemento mais geral da conformação da sociedade; com isto, aquilo que aparece nos textos que vão até 1844 na figura do gênero, aparece também em outras categorias nos textos marxianos. Também é verdade que ela, explicitamente, aparece em textos como os Grundrisse, de modo que, por isso também, passar pela análise do termo - renegado pela tradição althusseriana - pode ser importante no estudo da obra de Marx.

Marx vem a dizer no Manifesto que, no comunismo: “no lugar da sociedade civil-burguesa antiga, com suas classes e antagonismos de classe, teremos uma associação na qual o desenvolvimento livre de cada um é a condição para o desenvolvimento livre de todos.” (MARX; ENGELS, 1998_________. O Manifesto Comunista. Trad. Maria Lucia Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998., p. 45)

De acordo com Marx, com a superação (Aufhebung) da sociedade civil-burguesa, deixa-se de ter a contraposição entre o desenvolvimento humano genérico (trazido aqui no desenvolvimento livre de todos) e o incremento da individualidade. As capacidades humanas, relacionadas por Marx ao incremento das forças produtivas, deixam, portanto, de se opor ao desenvolvimento mais geral dos homens e das mulheres com a superação do capitalismo.3 3 Segundo Marx e Engels, com o desenvolvimento histórico, “chegou-se a tal ponto, portanto, que os indivíduos devem apropriar-se da totalidade existente de forças produtivas, não apenas para chegar à autoatividade, mas simplesmente para assegurar a sua existência. Essa apropriação está primeiramente condicionada pelo objeto a ser apropriado - as forças produtivas desenvolvidas até formar uma totalidade e que existem apenas no interior de um intercâmbio universal. Sob essa perspectiva, portanto, tal apropriação tem de ter um caráter correspondente às forças produtivas e ao intercâmbio. A apropriação dessas forças não é em si mesma nada mais do que o desenvolvimento das capacidades individuais correspondentes aos instrumentos materiais de produção.” (MARX; ENGELS, 2007, p. 73) Para a discussão sobre a relação entre desenvolvimento humano genérico, forças produtivas e individualidade, Cf. SARTORI, 2018. No sistema capitalista de produção, o incremento das forças produtivas do trabalho se dá, em certo sentido, aviltando a personalidade dos homens, para que digamos com Marx, contrapondo-se ao “desenvolvimento multifacetado dos indivíduos”. (MARX, 2012, p. 33)

As forças produtivas, cujo incremento traz como potência o desenvolvimento livre de todos, dá-se no capitalismo na medida em que as potências sociais colocam-se como potências do capital e, assim, faz dos indivíduos agentes passivos.4 4 Diz Marx nas Teorias do mais-valor que “e assim o desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho e as condições desse desenvolvimento aparecem como ação do capital, em relação à qual o trabalhador individual tem mero comportamento passivo, e que em oposição a ele se exerce.” (MARX, 1980, p. 387) Tem-se a oposição entre potências genéricas, colocadas com o incremento das forças produtivas, e a individualidade como uma marca do modo de produção capitalista, ao menos depois que a manufatura emerge.5 5 Como diz Marx em O capital sobre as potências intelectuais da produção - que são forças produtivas -: “as potências intelectuais da produção, ampliando sua escala por um lado, desaparecem por muitos outros lados. O que os trabalhadores parciais perdem concentra-se defronte a eles no capital. É um produto da divisão manufatureira do trabalho opor-lhes as potências intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia e como poder que os domina. Esse processo de cisão começa na cooperação simples, em que o capitalista representa diante dos trabalhadores individuais a unidade e a vontade do corpo social de trabalho. Ele se desenvolve na manufatura, que mutila o trabalhador, fazendo dele um trabalhador parcial, e se consuma na grande indústria, que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a obriga a servir ao capital.” (MARX, 2013, p. 541) Isto é bastante importante para o nosso assunto: deixa claro que a tematização presente em 1842-1843 continua, de um modo ou doutro, sendo trazida à tona por Marx. A questão é: neste momento inicial de formação do pensamento marxiano, a principal temática é a política, ao passo que, depois, tem-se o enfoque na crítica da economia política. Destacamos aqui a questão para que fique claro que há um desenvolvimento do pensamento marxiano; mas, ao mesmo tempo, há, de certo modo uma continuidade na descontinuidade; para o que nos diz respeito aqui: a tematização do gênero em correlação com a política nas obras de 1843-1844 é de grande relevo para que se perceba como que, ao fim, o essencial ao autor vem a ser a análise da anatomia da sociedade civil-burguesa.

Em obras como A ideologia alemã, Marx aponta - já adentrando com mais cuidado na questão da divisão do trabalho, da propriedade, e, assim, da anatomia da sociedade civil-burguesa - que o desenvolvimento das forças produtivas traz consigo também “o desenvolvimento das capacidades individuais”. (MARX; ENGELS, 2007MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 73) Isto, no entanto, acontece à medida que se tem ainda, no modo de produção capitalista, diz-se - sobre o tema - nos Grundrisse: “a condição estranhada [Fremdartigkeit]” (MARX, 2011, p. 164)6 6 Diz Marx que se tem que “o grau e a universalidade do desenvolvimento das capacidades em que essa individualidade se torna possível pressupõem justamente a produção sobre a base dos valores de troca, que, com a universalidade do estranhamento do indivíduo de si e dos outros, primeiro produz a universalidade e multilateralidade de suas relações e habilidades.” (MARX, 2011, p. 164) Ou seja, a relação entre individualidade e gênero - seja ela vista na relação entre os indivíduos e a comunidade, seja vista na relação de cada um com todos - é essencialmente histórica e é bastante analisada por Marx, mesmo em sua obra posterior ao momento que abordaremos neste pequeno texto. Diz explicitamente o autor nos Grundrisse: “os indivíduos universalmente desenvolvidos, cujas relações sociais, como relações próprias e comunitárias, estão igualmente submetidas ao seu próprio controle comunitário, não são um produto da natureza, mas da história.” (MARX, 2011, p. 164) Os indivíduos universalmente desenvolvidos e as relações comunitárias estão, neste sentido, no centro da reflexão marxiana.7 7 Para uma análise detida sobre o tema, Cf. SARTORI, 2018.

O tratamento marxiano da questão afasta-se bastante do feuerbachiano por Marx trazer o caráter ativo - objetivo, processual e histórico - da conformação social da generidade. (Cf. LUKÁCS, 2013_________. Para uma ontologia do ser social II. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2013.) Mesmo que Marx continue debatendo com o autor da Essência do cristianismo durante bastante tempo, desde o início, diferencia-se deste. Com isso, aponta-se, mesmo que rapidamente, que a questão que trataremos aqui não está ausente na chamada obra madura do autor. Isso faz com que, do ponto de vista do entendimento da obra marxiana, quer se queira, quer não, seja importante compreender este momento de sua produção. No que diz respeito à relevância da temática para além da obra marxiana, há de se destacar que o autor traz nos textos que analisaremos apontamentos importantes sobre a política. Com isto, aproxima-se também de um tema de grande destaque nas abordagens dos séculos XX e XXI da realidade social. Assim, analisar a posição (Standpunkt) marxiana pode ser fundamental; não só por se tratar de um clássico. A conformação da teoria social contemporânea passa por um ajuste de contas com Marx, sendo importante se ter uma representação a mais adequada possível da obra deste grande autor do século XIX.

O tema também é bastante polêmico entre os marxistas (por exemplo, entre os althusserianos), sendo necessário que se explicite - a partir daquilo que José Chasin chamou de análise imanente - o modo pelo qual o próprio Marx traz as questões levantadas acima. Sem que se passe por uma análise dos textos de 1842, 1843 e 1844, corre-se o risco de imputar a Marx uma concepção específica sobre a política. Seja para se mostrar uma ruptura, uma cisão, ou para se demonstrar certa continuidade na descontinuidade, o tema é de relevo. Há um embate importante sobre a temática na obra do autor nestes anos mencionados. Acreditamos que, mesmo aqueles que discordam de Chasin e de Lukács, citados acima, podem se beneficiar da análise do próprio texto marxiano. As categorias marxianas da época precisam ser analisadas com bastante cuidado e em correlação com temas como a crítica à religião e a relação entre indivíduo e gênero. E, assim, é preciso que se comece com o primeiro tratamento sistemático de Marx sobre a política.

A Gazeta renana: Política, Direito e generidade

A contraposição ao privilégio é uma constante no tratamento marxiano do Direito. Mesmo em 1848, na Nova gazeta renana, o autor diz que com as revoluções do tipo europeu tem-se a vitória “do direito burguês sobre os privilégios medievais.” (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b a, p. 322). Que isto não resolva as desigualdades colocadas no campo social é algo que é claro a Marx depois de determinado momento (mais precisamente, no final de 1843). No entanto, em 1842, na Gazeta renana, o autor condena aqueles que, na Alemanha, “para salvarem as liberdades particulares do privilégio, proscrevem a liberdade universal da natureza humana”. (MARX, 1998, p. 200). Diz sobre isso ainda que, com egoísmo da sociedade civil-burguesa e da propriedade privada colocada em sua figura fundiária, “ninguém combate a liberdade, no máximo, combate a liberdade dos outros. Todas as formas de liberdade, portanto, tem existido sempre, uma vez como privilégio particular, outra como direito universal”. (MARX, 1998, p. 204). Justamente da junção da natureza humana com o Direito universal vem a equação marxiana que, em 1842, leva-o a um elogio aos direitos do homem. O elemento atrasado e contrário a uma concepção racional (e ligado à natureza humana) de Estado estaria presente justamente nos privilégios ao passo que a universalidade do Direito traria consigo a superação das vicissitudes (da miséria8 8 Em 1843, no texto Crítica da filosofia do Direito de Hegel - introdução Marx fará duras críticas àquilo que, na literatura marxista, ficaria conhecido como “miséria alemã”. (Cf. LUKÁCS, 1959) , podemos dizer) da Alemanha. Ao tratar do localismo das dietas e da unidade centralizada da província na Alemanha, diz o autor alemão que “os privilégios das dietas não são direitos da província. Muito antes os direitos da província cessam precisamente ali onde se tornam privilégios das dietas”. (MARX, 1998, p. 195) Marx, assim contrapõe-se ao elemento particularista das dietas, marcadas pelo domínio dos proprietários fundiários, com o elemento universal do Direito. Diante do aspecto pessoal, ligado a determinada religião, particularista e irracional, Marx - contra Savigny - defende as codificações jurídicas, dotadas da universalidade, e diz: “as leis são muito mais as normas positivas, claras e universais, nas quais a liberdade adquire existência impessoal, teórica e independente do arbítrio individual. Um código de leis é a bíblia da liberdade de um povo.” (MARX, 1998, p. 210)

Contra o domínio da religião no medievo, em que se tem uma espécie de “democracia da não-liberdade”, tem-se, com um Estado racional, a bíblia da liberdade de um povo. A liberdade não está em textos sagrados. As normas positivas, colocadas pelo Estado, pelos homens, e não por qualquer Deus, que trariam a liberdade à tona. A questão da religião, assim, aparece com uma tonalidade crítica. Os problemas normalmente resolvidos no campo religioso, em verdade, teriam sua resolução racional na política. A bíblia da liberdade não seria a bíblia sagrada, mas as leis positivas do Estado racional. Se a liberdade chegou a aparecer na religião em algum momento, ela, no momento em que Marx fala, já estaria disponível, em uma forma racional, no Direito.

No que se nota algo importante: nos textos da Gazeta renana, Marx enxerga na política - que é aquela a positivar as normas jurídicas por meio do Estado - algo que pode suprassumir (aufheben) o elemento teológico, e que traz a superação (Aufhebung) da religião. Há uma relação íntima entre política, Direito e religião, portanto. É o Estado racional aquele em que o caráter universal do Direito conflui com uma figuração estatal da liberdade; nele, aquilo que aparecia antes no campo religioso pode se exteriorizar de modo racional. A liberdade já teria aparecido em forma menos desenvolvida na religião; agora, ela teria sua sede natural e racional na política e no Direito.

Assim, para Marx, falar de uma cidadania meramente individual seria uma contradição em termos. A comunidade na qual os indivíduos se conformam enquanto tais não seria tanto aquela da religião, mas do Estado. Tanto é assim que, diz Marx, “o direito do cidadão individual é uma tolice, se o direito do Estado não é reconhecido” (MARX, 1998_________. O Manifesto Comunista. Trad. Maria Lucia Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998., p. 219). Há, assim, uma clara valorização da política, e da esfera pública estatal em detrimento do elemento da sociedade civil-burguesa.

O Estado, inclusive, teria como função primordial colocar-se acima da propriedade privada, que, se não regulamentada racionalmente, estaria intimamente ligada ao privilégio, não se tendo propriamente uma conformação moderna da liberdade, mas a existência ainda medieval e teológica desta. A propriedade fundiária, assim, seria considerada essencialmente irracional pelo autor.

Marx, no limite, considera o “Estado como um organismo no qual a liberdade jurídica, ética e política devem alcançar a própria realização, e no qual o cidadão singular, obedecendo às leis do Estado, obedece somente às leis naturais da sua própria razão, da razão humana. Sapienti sat” (MARX, 1998_________. O Manifesto Comunista. Trad. Maria Lucia Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998., p. 244). E, para isso, seria essencial a filosofia. Ela teria o papel que outrora teve a teologia (no medievo), podendo levar os homens “a considerar o Estado com olhos humanos e a desenvolver suas leis naturais a partir da razão e da experiência, e não a partir da teologia”. (MARX, 1998, p. 243) A filosofia superaria o elemento teológico, trazendo a compreensão acerca da maneira pela qual a razão poderia se colocar na história, tendo sua exteriorização (Äusserung) no Estado. Marx busca, nos textos da Gazeta renana, uma conformação moderna da Estado e da sociedade. Neste ímpeto, a política é central e ela vem a se sobrepor ao papel que antes era exercido pela religião; o autor alemão é explícito sobre a necessidade da crítica ao elemento teológico: mesmo neste período de 1842, em que a obra marxiana ainda não está sobre os próprios pés, o autor mostra-se essencialmente contrário ao elemento teológico. Ao tratar deste elemento, diz que “a filosofia nada mais tem feito na política do que a física, a matemática, a medicina e qualquer outra ciência têm feito no interior de sua esfera.” (MARX, 1998, p. 243). A valorização marxiana da filosofia e da política, portanto, vem com sua crítica à religião e ao Estado confessional.

O Direito, por sua vez, teria um papel importante nisto. Com suas características universais, contrapor-se-ia não só ao privilégio, mas ao elemento teológico. Vê-se, assim: há uma contraposição ao privilégio que se baseia numa concepção antiteológica e racional de política, que redunda em uma defesa da universalidade do Direito. Este último é o Direito posto pelo Estado, que deve acompanhar o desenvolvimento da própria natureza humana, colocada no Direito humano.

A questão é bastante meandrada, no entanto. Há, segundo Marx, uma ligação entre tais aspectos, os costumes, a conformação política do Estado e os direitos humanos:

Pelos chamados costumes dos privilegiados entende-se os costumes contra o direito. Seu nascimento data do período no qual a história da humanidade fazia parte da história natural, e, como atestam as lendas egípcias, todos os deuses se escondiam sob aspecto animal. A humanidade aparecia despedaçada em determinadas raças animais, cuja relação não era a igualdade, mas a desigualdade, uma desigualdade fixada por leis. O mundo da não-liberdade comporta direitos da não-liberdade. Enquanto o direito humano é a existência da liberdade, o direito animal é a existência da não-liberdade. O feudalismo, em sentido lato, é o reino espiritual animal, o mundo da humanidade dividida em oposição ao mundo da humanidade diferenciada, cuja desigualdade nada mais é do que a difração da igualdade. Nos países do feudalismo ingênuo, nos países em que rege a divisão em castas, onde, no verdadeiro sentido da palavra a humanidade é compartimentada, e os membros nobres, livremente orgânicos do grande santo, do santo Humano, são serrados, despedaçados e violentamente dilacerados, encontramos também a adoração do animal, a religião animal em sua forma originária, uma vez que o homem considera sempre, como sua suprema essência, o que é sua essência verdadeira. A única igualdade que emerge da efetiva vida dos animais é a igualdade do animal com os outros da mesma espécie, a igualdade de determinada espécie consigo mesma, porém não a igualdade do gênero animal. O gênero animal por si se manifesta apenas no comportamento hostil das diversas espécies animais, que fazem valer suas características próprias e diferenciais umas contra as outras. É no estômago do animal feroz que a natureza tem preparado o campo de batalha da unificação, a forja para a íntima fusão, o órgão de conexão das diversas espécies animais. Do mesmo modo, no feudalismo cada raça se alimenta da raça inferior, até aquela que, igual a um pólipo crescido na leiva, possui apenas os muitos braços para colher os frutos da terra para as raças superiores, enquanto ela mesma come poeira. Enquanto no reino animal da natureza os zangões são mortos pelas abelhas operárias, no reino do espírito animal as abelhas operárias são mortas pelos zangões e por meio do próprio trabalho. Quando os privilegiados pelo direito legal apelam ao próprio direito consuetudinário, querem impor, em vez do conteúdo humano, a forma bestial do direito, que agora é degradado à mera máscara animalesca. (MARX, 1998_________. O Manifesto Comunista. Trad. Maria Lucia Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998., p. 258)

Marx parte do elemento imediato do costume para mostrar como que, em sua figura ligada aos privilégios, ele contrapõe-se ao elemento universal do Direito. Tal imediatez do privilégio estaria relacionada a um aspecto animal, em que os Deuses manifestavam certa confusão entre a história natural e a história da humanidade. No momento em que o Estado não teria uma figura racional, o costume seria igualmente irracional. No que é preciso que se afirme: para Marx, em 1842, o costume não é inelutavelmente irracional.

No texto sobre o furto da lenha, por exemplo, o autor alemão defende que o costume dos pobres, inclusive, anteciparia a racionalidade do Direito universal, havendo uma espécie de direito consuetudinário dos pobres.9 9 Diz Marx: “Enquanto os direitos consuetudinários dos nobres são costumes contra o conceito de direito racional, os direitos consuetudinários da pobreza são direitos contra o costume do direito positivo. Seu conteúdo não se opõe à forma legal, resiste muito mais contra a própria ausência de forma. A forma da lei não se opõe aos mesmos, mas eles ainda não a alcançaram” (MARX. 1998, p. 259) (Cf. MARX, 1998_________. O Manifesto Comunista. Trad. Maria Lucia Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.)

Este último, inclusive, colocar-se-ia contra o Direito posto que não tivesse atingido - devido à sua ligação com o privilégio - o patamar da razão e da universalidade. À desigualdade fixada por leis, seria preciso contrapor a universalidade do Direito, mesmo que ele ainda não estivesse colocado como Direito posto. Para isso, seria preciso uma defesa do elemento humano contra o animal. Se o mundo da não-liberdade tem como correlato direitos da não-liberdade, haveria de se ter a defesa do Direito humano. Ele traria consigo a natureza humana contra a desigualdade animal, bem como a universalidade da cidadania contra o particularismo feudal.

É interessante notar aqui o posicionamento de Marx na caracterização do feudalismo. Tratar-se-ia do reino animal do espírito, em que se teria o mundo da humanidade dividida. A superação do feudalismo estaria em uma humanidade unitária, mas diferenciada, em que a desigualdade é um momento da igualdade; nas palavras do autor alemão, ela “nada mais é do que difração da igualdade”. A humanidade dividida, em sua face ingênua, apareceria nas castas; ter-se-ia a humanidade compartimentada. Ali, haveria, inclusive, adoração animal, uma religião animal. A igualdade, neste campo, seria a igualdade da espécie, e não a igualdade do gênero. Ou seja, tem-se um comportamento hostil das espécies de animais, uma diante das outras; o gênero animal, assim, traz consigo um repúdio à diferença, uma batalha dos diferentes entre si. No campo das relações humanas, este tipo de conduta seria típica do feudalismo, segundo Marx (em 1842). As diferenças entre os homens, então, constroem-se na busca por colocar-se como uma espécie de raça superior.

Justamente isto que seria reafirmado ao se defender os privilégios. O caráter universal do Direito liga-se à racionalidade do Estado e ao modo pelo qual o gênero se expressa - na unidade da diferença - no Direito humano, nos direitos do homem. Se há privilegiados pelo Direito legal, este não atingiu a universalidade racional do gênero; pode e deve ser sobrepujado; é uma forma de Direito posto que não traz consigo a universalidade do Direito e a racionalidade do Estado. Marx, portanto, não defende qualquer Direito legal em 1842: traz a ligação necessária entre a liberdade, a igualdade colocada em sua figura genérica (relacionada às desigualdades colocadas como momentos da igualdade), racional e universal. O tratamento efetivamente universal da pessoa não se colocaria mais no plano da religião cristã, mas na política. A resolução das questões da época só poderia ser política. O “Estado político”, que daria a tônica dos textos de 1843, seria essencial.

Crítica à filosofia do Direito de Hegel, democracia e generidade

O ano de 1842 é marcado pela crítica marxiana à propriedade fundiária, ao privilégio e ao reino animal do espírito, colocado na feudalidade. A defesa do Direito humano traz consigo a contraposição a tudo isto, que precisaria ser sobrepujado em uma figura racional do Estado. Em 1843, Marx vai mais longe. Em sua crítica a Hegel, não busca mais, essencialmente, a expressão da razão no Estado. Deixa de insistir que “um Estado que não é a realização da liberdade racional é um Estado imperfeito.” (MARX, 1998_________. O Manifesto Comunista. Trad. Maria Lucia Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998., p. 243) Ele começa a traçar as determinações particulares dos Estados, a partir das formas de governo, das constituições. Traz também sua relação com a sociedade civil-burguesa. Ou seja, deixa-se de contrapor o conceito (Begriff) de Estado à efetividade deste para buscar a diferença específica nas formas de Estado, bem como na forma de relação deste com a sociedade civil-burguesa. Isto o leva a dois campos de estudo: de um lado, tem-se a relação entre sociedade civil-burguesa e Estado. Neste campo, o autor compreende, que, em verdade, há em Hegel uma inversão entre sujeito e predicado: na realidade, seria a sociedade civil-burguesa o sujeito, e o Estado o predicado. (Cf. DE DEUS, 2014DE DEUS, Leonardo. Jovem Marx, 50 anos. Ouro Preto: UFOP, 2014.)10 10 A questão remete à chamada crítica à especulação. (Cf. CHASIN, 2009) Doutro lado, há a tematização das formas de governo, tendo-se, em Marx, uma contraposição à defesa hegeliana da monarquia, na figura da democracia. Tais enfoques, em consonância com a condição histórica do seu tempo, fazem com que haja mudanças substantivas no tratamento marxiano de nosso tema, ao mesmo tempo em que alguns lineamentos são comuns. Para analisar com cuidado tal aspecto, vale a pena olharmos o que diz sobre os privilégios e a sociedade civil-burguesa na Crítica à filosofia do Direito:

Frequentemente se disse que, na Idade Média, cada forma de direito, de liberdade, de existência social, aparece como um privilégio, como uma exceção à regra. Nesse caso, não se pode desconsiderar o fato empírico de que esses privilégios todos aparecem na forma da propriedade privada. Qual é o fundamento geral dessa coincidência? Que a propriedade privada é a existência genérica do privilégio, o direito como exceção. (MARX, 2005_________. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005., p.124).

A forma pela qual a propriedade privada é ligada ao egoísmo estaria, portanto, tal qual em 1842, relacionada a uma figura feudal da propriedade, aquela fortemente presente na propriedade fundiária. Marx, no entanto, em 1842, não é um crítico da propriedade privada como um todo; antes, ataca sua forma fundiária, relacionada aos privilégios e ao domínio pessoal. A liberdade, na Gazeta renana, precisaria expressar-se universalmente, ou seja, no Direito. A propriedade privada medieval seria a existência genérica do privilégio ao passo que a regulamentação estatal das relações de propriedade - ou seja, a suprassunção do particularismo da sociedade civil-burguesa no Estado - representaria a existência genérica da liberdade em forma de Direito. Marx vê, tanto na Gazeta renana como agora, o Direito como o portador tanto da razão estatal quanto da generidade que pode superar (aufheben) a necessidade colocada como base do medievo. No entanto, há de se notar que, na passagem de 1843, Marx já remete ao “fundamento geral” da relação entre propriedade privada e privilégios; ou seja, o autor, agora, valoriza o que chama de “fato empírico”; e, acredita que nele haveria uma ligação - não só no medievo, mas também na sociedade civil-burguesa - entre propriedade privada e privilégios. Neste sentido, pode-se dizer: passa-se da crítica da propriedade fundiária à crítica do princípio da propriedade privada moderna.

Aquilo que dividiria a existência genérica dos homens colocar-se-ia, assim, também na propriedade privada como tal. Deste modo, seria preciso superar (aufheben) até mesmo o domínio representativo e moderno das leis, que poderia trazer justamente o reconhecimento deste princípio.

Marx, assim, ruma, já em 1843, à análise da sociedade civil-burguesa, que precisaria ser transformada. A solução do autor, neste ponto de sua obra, também é essencialmente política. Mas a sede da política não estaria no Estado - que, modernamente, seria a expressão do estranhamento (Entfremdung) do indivíduo diante de seu ser genérico (Cf. DE DEUS, 2014DE DEUS, Leonardo. Jovem Marx, 50 anos. Ouro Preto: UFOP, 2014.) - mas na própria sociedade civil-burguesa, conformada como sujeito, e não predicado da politicidade.11 11 O termo politicidade é destacado por José Chasin e remete à colocação do Estado e do Direito diante da sociedade civil-burguesa. Cf. CHASIN, 2009. Em verdade, neste sentido, o autor alemão dirá que a própria sociedade passa a ser, efetivamente, política.

A sociedade civil[-burguesa] é sociedade política real. E então é um absurdo colocar uma exigência que deriva apenas da concepção do Estado político enquanto existência separada da sociedade civil, uma exigência que deriva apenas da representação teológica do Estado político. Nessa situação, desaparece totalmente o significado do poder legislativo como poder representativo. O poder legislativo é, aqui, representativo no sentido em que toda função é representativa: o sapateiro, por exemplo, é meu representante na medida em que satisfaz uma necessidade social, assim como toda atividade social determinada, enquanto atividade genérica, representa simplesmente o gênero, isto é, uma determinação de minha própria essência, assim como todo homem é representante de outro homem. Ele é, aqui, representante não por meio de uma outra coisa, que ele representa, mas por aquilo que ele é e faz. (MARX, 2005_________. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 133-134).

A sociedade política real, que é valorizada por Marx na época, estaria, em verdade, na sociedade civil-burguesa, e não no Estado. No que, novamente, aparece a problemática da relação entre teologia e política: seria valorizar uma concepção teológica colocar o Estado político como algo apartado da sociedade civil-burguesa; o estranhamento do Estado diante da sociedade representaria uma concepção teológica da política. E o autor alemão procura superar tal representação. O Estado político, se quisesse se colocar como tal, deveria trazer laços reais e efetivos com a sociedade, de modo que haveria de se romper com a representação que parta da oposição entre Estado e sociedade civil-burguesa. A concepção marxiana de política, na época, traz, portanto, uma crítica à moderna representação estatal. No lugar dela, procura justamente trazer uma concepção de representação em que ganha destaque a relação entre indivíduo e gênero.

Ao tratar do poder legislativo, ele diz que este seria representativo. Isto se daria, no entanto, não devido a uma determinação abstrata, mas na medida em que a atividade genérica dos homens não traria consigo a contraposição e a separação, mas uma relação mútua entre os indivíduos, suas essências e o seu ser genérico. Não haveria, assim, a mediação necessária de uma outra coisa além dos próprios indivíduos em sua atividade social determinada. Esta, deste modo, passaria a ser também atividade genérica. A representação, assim, não é vista como problemática em si. Em sua forma teológica, ela traz a separação dos indivíduos e a atividade estranhada; já em sua forma política, a representação traria consigo uma relação de mútuo enriquecimento entre indivíduos e o gênero. Nota-se: novamente, a relação entre política e religião vem à tona. Porém, se antes isto culminava na defesa do Estado racional enquanto sujeito, agora, tem-se a essência do Estado político com sua verdadeira sede na sociedade civil-burguesa, na sociedade política real.

A superação do elemento teológico, na Crítica à filosofia do Direito de Hegel, significa a supressão da oposição entre sociedade civil-burguesa e Estado na sociedade política real. Não seria necessária a mediação de uma outra coisa para que os homens se relacionem entre si e com o gênero. E, neste sentido, diz-se na obra mencionada que aquilo que os homens são e fazem traz a representação da essência e do ser genérico humano, trata-se daquilo que eles são e que fazem.

A defesa do Estado político, portanto, só seria possível enquanto defesa da sociedade política real.12 12 Aqui não podemos tratar da questão, mas seria interessante analisar até que ponto esta posição de Marx, que ainda está marcada por uma determinação ontopositiva da politicidade, não se assemelha à formulação gramsciana sobre a relação entre sociedade civil e Estado. A resolução das questões decisivas aos homens, assim, deixa de se colocar em um corpo transcendente e passa a ser trazida à imanência da sociedade. Trata-se de uma análise do Estado que muito se aproxima da análise marxiana do estranhamento religioso. (Cf. DE DEUS, 2014DE DEUS, Leonardo. Jovem Marx, 50 anos. Ouro Preto: UFOP, 2014.) E tal conformação da relação sociedade civil-burguesa/Estado, segundo Marx, somente seria possível com uma figura de governo específica, a democracia. Criticando Hegel, diz o autor:

Hegel parte do Estado e faz do homem o Estado subjetivado; a democracia parte do homem e faz do Estado o homem objetivado. Do mesmo modo que a religião não cria o homem, mas o homem cria a religião, assim também não é a constituição que cria o povo, mas o povo a constituição. A democracia, em um certo sentido, está para as outras formas de Estado como o cristianismo para as outras religiões. O cristianismo é a religião χατ’ εξοχην, a essência da religião, o homem deificado como uma religião particular. A democracia é, assim, a essência de toda constituição política, o homem socializado como uma constituição particular; ela se relaciona com as demais constituições como o gênero [Gattung] com suas espécies, mas o próprio gênero [Gattung] aparece, aqui, como existência e, com isso, como uma espécie particular em face das existências que não contradizem a essência. A democracia relaciona-se com todas as outras formas de Estado como com seu velho testamento. O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem, é a existência humana, enquanto nas outras formas de Estado o homem é a existência legal. Tal é a diferença fundamental da democracia. (MARX, 2005_________. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 50)

Haveria uma verdadeira antítese entre a concepção hegeliana e a maxiana de política. Para o primeiro, o homem só se colocaria em sua existência autêntica enquanto exteriorização (Äusserung) do Estado. O homem, assim, seria o Estado subjetivado. E aí estaria, novamente, presente a inversão especulativa hegeliana; o autor da Filosofia do Direito faria do Estado sujeito e dos homens predicados. (Cf. DE DEUS, 2014DE DEUS, Leonardo. Jovem Marx, 50 anos. Ouro Preto: UFOP, 2014.) A defesa marxiana da democracia, por outro lado, faria do Estado uma forma de objetivação (Vergegenstandlichung) do homem. O Estado, assim, seria o predicado da atividade humana e da sociedade política; assim como a religião teria se contraposto enquanto uma potência estranhada aos indivíduos, o mesmo se daria na representação teológica do Estado político. E, para Marx, trata-se justamente de, com a democracia, superar tal figura estatal.

A crítica marxiana à religião, assim, na Crítica à filosofia do Direito de Hegel, redunda na defesa de uma concepção de política que se ligue à sociedade civil-burguesa enquanto sociedade política real, tendo-se o Estado como a expressão desta sociedade. Trata-se, assim, da crítica à moderna concepção de representação estatal, em que o Estado se expressa de modo estranhado.

Ou seja, neste momento da obra de Marx, o problema da conformação do Estado não é somente a feudalidade, mas a própria representação teológica, que também é moderna. Marx, assim, traz uma crítica ao Estado moderno. Procura como solução a democracia, que não se confundiria com o domínio das leis, e que redundaria numa concepção de representação alternativa à usual.

As formas de governo (as constituições13 13 Aqui, Marx remete ao sentido aristotélico de constituição. ) não seriam aquelas a criar um povo; antes, o oposto seria verdade. Tal qual a religião é uma criação humana, assim ocorreria com as constituições específicas. No que Marx traz uma analogia entre as distintas formas de governo e as religiões: o cristianismo traria consigo a expressão mais universal do gênero em sua forma religiosa; ele traria a essência da religião, o próprio homem enquanto ser genérico deificado como uma religião particular.14 14 Devemos destacar que tal temática é bastante visível em O capital também. Nesta obra, diz Marx: “para uma sociedade de produtores de mercadorias, cuja relação social geral de produção consiste em se relacionar com seus produtos como mercadorias, ou seja, como valores, e, nessa forma reificada [sachlich], confrontar mutuamente seus trabalhos privados como trabalho humano igual, o cristianismo, com seu culto do homem abstrato, é a forma de religião mais apropriada, especialmente em seu desenvolvimento burguês, como protestantismo, deísmo etc.” (MARX. 1996, p. 153-154) Algo similar dar-se-ia com a democracia em relação às formas de governo. Ela seria a essência de todas as constituições. Na democracia, ter-se-ia a própria vida genérica expressa; tratar-se-ia de uma forma de governo que traz uma correlação não antagônica entre existência social e essência política. A resolução das questões pungentes da época de Marx estaria, segundo Crítica à filosofia do Direito de Hegel, nesta equação não antagônica entre a vida genérica e a representação política. Indivíduo e gênero estariam em meio a uma forma de existência genérica na democracia.

A superação da representação teológica da política significaria também a crítica à hipostasia do momento legal. E aqui se tem algo importante: uma concepção racional do Direito era o essencial para Marx em 1842. Aqui, a coisa muda de figura: o próprio domínio da lei é visto enquanto expressão do mútuo entranhamento entre indivíduo social e comunidade política. Na Gazeta renana, o domínio da lei trazia consigo o elemento racional, universal e relacionado à liberdade. Agora, o domínio da lei liga-se ao estranhamento dos homens diante de suas próprias potências sociais. Por isso, a defesa marxiana da democracia diz que a lei precisa existir em razão do homem, e não o oposto. A lei seria a objetivação da vida genérica: a existência humana. A diferença da democracia diante de outras formas de governo seria trazida à tona ao passo que a lei seria a simples existência humana, e não os homens uma subjetivação da existência legal. A defesa marxiana da democracia, portanto, é a defesa da política colocada na sociedade civil-burguesa. Mas isto se dá de um modo bastante peculiar: o Estado aparece como mera expressão da sociedade política real e da existência genérica, e não mais como uma potência estranhada. A relação entre essência e existência, bem como entre forma e conteúdo, estaria expressa na adequação entre as partes e o todo, entre os indivíduos e seu ser genérico. A democracia seria o gênero das formas de governo, das constituições, tal qual o cristianismo expressaria o elemento genérico da religião:

Na democracia nenhum momento recebe uma significação diferente daquela que lhe cabe. Cada momento é, realmente, apenas momento do dêmos inteiro. Na monarquia, uma parte determina o caráter do todo. A constituição inteira tem de se modificar segundo um ponto fixo. A democracia é o gênero da constituição [Verfassungsgattung]. A monarquia é uma espécie e, definitivamente, uma má espécie. A democracia é conteúdo e forma. A monarquia deve ser apenas forma, mas ela falsifica o conteúdo. (MARX, 2005_________. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 49).

Para Marx, a democracia seria o gênero das constituições porque o universal e o particular aparecem em unidade concreta, e não em antagonismo nela: o homem político, inclusive, deixa de se apresentar em oposição ao privado.15 15 Diz Marx: “todas as demais formas estatais são uma forma de Estado precisa, determinada, particular. Na democracia, o princípio formal é, ao mesmo tempo, o princípio material. Por isso ela é, primeiramente, a verdadeira unidade do universal e do particular. Na monarquia, por exemplo, na república como uma forma de Estado particular, o homem político tem sua existência particular ao lado do homem não político, do homem privado. A propriedade, o contrato, o matrimônio, a sociedade civil aparecem, aqui (Hegel desenvolve de modo bastante correto estas formas abstratas de Estado, mas ele crê desenvolver a ideia de Estado), como modos de existência particulares ao lado do Estado político, como o conteúdo com o qual o Estado político se relaciona como forma organizadora, como entendimento que determina, limita, ora afirma, ora nega, sem ter em si mesmo nenhum conteúdo.” (MARX, 2005, p. 50) Na monarquia, procurar-se-ia que uma parte tente determinar o todo justamente ao passo que o monarca estaria em uma posição privilegiada, distinta de todo o gênero, “ele deve ser a pessoa especificamente distinta de todo o gênero [Gattung], de todas as outras pessoas.” (MARX, 2005_________. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 60)16 16 Na citação em sua integridade, Marx é bastante ácido quanto à questão: “a hereditariedade do príncipe resulta de seu conceito. Ele deve ser a pessoa especificamente distinta de todo o gênero [Gattung], de todas as outras pessoas. Qual é, então, a diferença última, precisa, de uma pessoa em relação a todas as outras? O corpo. A mais alta função do corpo é a atividade sexual. O ato constitucional mais elevado do rei é, portanto, sua atividade sexual, pois por meio dela ele faz um rei e dá continuidade a seu corpo. O corpo de seu filho é a reprodução de seu próprio corpo, a criação de um corpo real.” (MARX, 2005, p. 60). Enquanto na democracia os momentos relacionam-se com o dêmos todo (este último aparece como portador do gênero), na monarquia haveria um ponto fixo baseado na personalidade do monarca. Segundo Marx, assim, a democracia é conteúdo e forma enquanto a monarquia é mera forma que falsifica o conteúdo, sendo dependente de um ponto que supostamente se coloca acima do ser genérico dos homens. Na monarquia, portanto, tem-se uma representação teológica enquanto a democracia traria consigo a representação política.

A argumentação hegeliana seria essencialmente especulativa. Ter-se-ia uma unidade falseada entre o monarca e o gênero. Enquanto a monarquia se basearia em uma pessoa estranhada do gênero, a democracia traria consigo as pessoas concretas em sua atividade e vida genéricas. Diz Marx sobre tal contraposição, explicitando o caráter errôneo da concepção hegeliana:

A personalidade do Estado é real somente como uma pessoa, o monarca. Assim, porque a subjetividade é real apenas como sujeito, e o sujeito apenas como Uno, a personalidade do Estado só é real como uma pessoa. Bela conclusão. Hegel poderia concluir, do mesmo modo: pelo fato de o homem singular ser um Uno, o gênero humano [Menschengattung] é apenas Um único homem. A personalidade exprime o Conceito como tal, a pessoa contém simultaneamente a realidade deste último, e o Conceito só é Ideia, verdade, com essa determinação. A personalidade, sem a pessoa, é certamente apenas uma abstração; mas a pessoa só é a ideia real da personalidade em sua existência genérica [Gattungsdasein], como as pessoas. (MARX, 2005_________. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 48).

A concepção hegeliana traria consigo divagações que somente seriam possíveis com uma certa preponderância da forma lógica sobre a realidade efetiva. Para Marx, por outro lado, a filosofia - que, aqui também, contrapõe-se a uma concepção teológica - não poderia adotar tal procedimento: “momento filosófico não é a lógica da coisa (Sache), mas a coisa da lógica.” (MARX, 2005_________. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 39) A ideia hegeliana, de acordo com Marx, deixa de conformar-se como ideia real e fica no plano da abstração. Isso, para o nosso tema, explicita-se na medida em que a pessoa do monarca parece representar o gênero todo somente por meio de um artifício logicista entre sujeito, uno e gênero humano. Diz Marx que “Hegel dá à sua lógica um corpo político; ele não dá a lógica do corpo político.” (MARX, 2005, p. 67). Marx procura estabelecer uma “crítica verdadeiramente filosófica”. (MARX, 2005, p. 108). Para tanto, indica que “a crítica verdadeiramente filosófica da atual constituição do Estado não indica somente contradições existentes; ela esclarece essas contradições, compreende sua gênese, sua necessidade” e complementa “compreender não consiste, como pensa Hegel, em reconhecer por todo parte as determinações do Conceito lógico, mas em empreender a lógica específica do objeto específico” (MARX, 2005, p.108). A crítica hegeliana, assim, não seria ainda verdadeiramente filosófica.

Ela permaneceria ainda presa a uma concepção, no limite, teológica. Somente assim seria possível a defesa de uma concepção de personalidade em que a pessoa é somente uma abstração, e em que as pessoas - a própria dêmos - são meros predicados das formas de governo e do Estado. Para Marx, a ideia real de pessoa apareceria somente na democracia, figura política esta que traria consigo a existência genérica das pessoas, em que a unidade entre indivíduo e gênero não representa o apartar do público diante do privado, mas a vida e a atividade genérica dos homens. Deve-se notar também que, com isto, Marx é um crítico da religião e do elemento teológico; no entanto, ainda utiliza a analogia com a religião, em alguns momentos, como algo positivo: basta pensar na relação entre cristianismo e democracia. Se é certo que isto se dá na medida em que a política seria aquela a suprassumir (aufheben) o elemento universal da noção cristã de pessoa, igualmente verdadeiro é que, em Sobre a questão judaica, a crítica à religião aparecerá de modo muito mais radical.

Sobre a questão judaica, crítica à religião e à política

Na Crítica à filosofia do Direito de Hegel, portanto, o problema não é mais a oposição entre a lei que expressa o universal racional e a regulamentação de tonalidade feudal. A própria representação estatal é colocada em xeque. A concepção marxiana de democracia, portanto, trazia uma defesa da politicidade ligada à sociedade política por meio da atividade genérica do homem. O Estado, assim, desde que subordinado à sociedade política, poderia expressar a unidade entre indivíduo e gênero de modo não mais estranhado. O central à compreensão marxiana, assim, foi tanto a relação entre sociedade civil-burguesa e Estado quanto a tematização da democracia. O projeto marxiano, no entanto, apoiava-se na possibilidade de a sociedade civil-burguesa conformar-se, imediatamente, como uma sociedade política real. Pressupunha-se também que superar o elemento teológico - com a filosofia - seria dar força ao político. Em sua forma democrática, a constituição do corpo político traria consigo a superação do antagonismo entre essência política e existência social. Em Sobre a questão judaica, no entanto, a questão se modifica. E, novamente, a relação entre sociedade civil-burguesa e Estado aparece no centro das preocupações marxianas.

O Estado político pleno constitui, por sua essência, a vida do gênero humano em oposição à sua vida material. Todos os pressupostos dessa vida egoísta continuam subsistindo fora da esfera estatal na sociedade [civil-]burguesa, só que como qualidades da sociedade burguesa. Onde o Estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o homem leva uma vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na realidade, na vida concreta; ele leva uma vida celestial e uma vida terrena, a vida na comunidade política, na qual ele se considera um ente comunitário, e a vida na sociedade civil burguesa, na qual ele atua como pessoa particular, encara as demais pessoas como meios, degrada a si próprio à condição de meio e se torna um joguete na mão de poderes estranhos a ele. A relação entre o Estado político e a sociedade [civil-]burguesa é tão espiritualista quanto a relação entre o céu e a terra. (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b b, p. 40)

Uma figura que estava praticamente ausente na análise marxiana de 1842-1843 era a vida material. Agora, ela aparece com proeminência. A contraposição entre sociedade civil-burguesa e Estado, que aparecia suprassumida (aufgehoben) na compreensão da primeira como sociedade política real, agora está presente doutro modo: trata-se da oposição entre Estado político pleno (que já passa a ser criticado por Marx) e a vida material. Os pontos de partida são bastante distintos.

Duas questões merecem destaque de imediato: de um lado, o modo pelo qual a vida do gênero humano aparece contraposta, no Estado político, à sociedade civil-burguesa; doutro lado, passa a se ter como aspecto central desta sociedade justamente a vida material.17 17 Aqui, neste momento em que a obra marxiana coloca-se sobre os próprios pés, já se tem - mesmo que ainda sem um conhecimento aprofundado acerca da economia política, que começaria em 1844, nos Manuscritos - algo que se aproxima do que Marx disse no famoso prefácio de 1859: “minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência em suas totalidades, condições estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século 18, compreendia sob o nome de ‘sociedade civil-burguesa’. Cheguei também à conclusão de que a anatomia da sociedade civil-burguesa deve ser procurada na economia politica.” (MARX, 2009, p. 47)

O Estado político não se mostra mais como algo resolutivo, mas como parte do problema. De acordo com Marx, os pressupostos da vida egoísta são retirados da vida estatal na sociedade civil-burguesa (ou seja, na sociedade capitalista18 18 Importante notar que, neste momento da obra marxiana, a expressão sociedade civil-burguesa já se torna também sinônimo de sociedade capitalista. ) e são transpostos como qualidades desta sociedade mesma. Com o Estado, pois, não se teria a superação da oposição entre a existência social e a essência política; em verdade, tem-se uma mudança decisiva à compreensão marxiana: a essência da política mesma estaria na natureza antagônica da existência social civil-burguesa. Há, portanto, em Sobre a questão judaica, se compararmos com a Crítica à filosofia do Direito de Hegel, uma inversão no entendimento marxiano: a sociedade política, enquanto sociedade civil-burguesa, não levaria à superação alguma. Em verdade, com ela, tem-se uma vida dupla: de um lado o homem aparece como cidadão e pessoa moral, doutro, como burguês e indivíduo egoísta.

O Estado político pleno seria fruto justamente da emancipação política, que teria ocorrido em sua forma mais perfeita tanto nos Estados Unidos quanto na França e, diz Marx: “a emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade civil-burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, a cidadão, a pessoa moral.” (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b b, p. 54) O indivíduo, assim, em sua vida concreta, divide-se entre conformar-se como ente comunitário e como pessoa particular. Tal questão coloca-se não só na consciência e na mente, mas na própria realidade efetiva da sociedade civil-burguesa. E, por esta razão, não mais seria possível pensar a superação de tal vida dupla nos marcos da sociedade atual, marcada pela figura política da emancipação.

As consequências de tal posicionamento marxiano são importantes: a política aparece, não como resolutiva diante da sociedade civil-burguesa e da vida material, mas como dependente da manutenção das contradições destas. (Cf. CHASIN, 2009_________. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.) Na relação entre Estado e sociedade civil-burguesa, agora, tem-se as qualidades que supostamente poderiam ser superadas no primeiro como qualidades constitutivas da segunda. E esta última, em Marx, seria a base real do primeiro.

E neste ponto, novamente, como nos textos de 1842-1843, aparece a comparação com o campo religioso. A oposição entre comunidade política e vida material se explicitaria tal qual aquela entre a vida celestial e a terrena. Agora, porém, a política não aprece como algo que supera o elemento teológico ao trazer a resolução dos problemas sociais. Antes, o Estado aparece tal qual a vida celestial: ao passo que a última seria indissolúvel da existência da vida terrena, o primeiro seria intimamente dependente da existência da sociedade civil-burguesa. A política poderia trazer a resolução das questões de uma época da mesma maneira que a religião; ou seja, isto, em verdade, não seria real e efetivamente possível. A vida celestial traria uma espécie de imagem invertida da vida terrena do mesmo modo que o Estado traria na comunidade política uma imagem invertida da pessoa particular, que usa os demais como meios e, ao fim, submete-se a poderes estranhos.

Neste ponto, tem-se outra questão muito importante: o estranhamento do indivíduo diante do gênero não tem mais uma resolução em uma forma distinta de relação entre sociedade civil-burguesa e Estado; antes, tais poderes estranhos fazem parte da própria vida civil-burguesa, sendo, segundo Marx, necessária a supressão da sociabilidade marcada pela emancipação política.

Com isto, tanto o Estado político quanto a sociedade que o acompanha são problematizados e questionados profundamente por Marx; tal qual o céu não poderia se opor à terra, o Estado político não poderia se opor às vicissitudes da forma de sociabilidade civil-burguesa. A impotência estatal diante das contradições que marcam as relações materiais equivaleria àquela da religião diante dos problemas profanos. A crítica à religião passa a ser acompanhada da crítica à política.

Marx é explícito quanto ao tema, dizendo sobre a relação entre sociedade civil-burguesa e Estado em seu Sobre a questão judaica, do final de 1843:

A antítese entre os dois é a mesma, e o Estado político a supera da mesma maneira que a religião supera a limitação do mundo profano, isto é, sendo igualmente forçado a reconhecê-la, produzi-la e deixar-se dominar por ela. Na sua realidade mais imediata, na sociedade [civil-]burguesa, o homem é um ente profano. Nesta, onde constitui para si mesmo e para outros um indivíduo real, ele é um fenômeno inverídico. No Estado, em contrapartida, no qual o homem equivale a um ente genérico, ele é o membro imaginário de uma soberania fictícia, tendo sido privado de sua vida individual real e preenchido com uma universalidade irreal. (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b b, p. 40-41)

A religião e o Estado político superam as suas limitações (quanto ao mundo profano e à sociedade civil-burguesa, respectivamente) do mesmo modo: reconhecendo-as, produzindo-as e se deixando dominar por elas. Ou seja, aquilo que era visto antes - na Gazeta renana e na Crítica à filosofia do Direito de Hegel - em meio à possibilidade de superação por meio da política, não o é mais. Em Sobre a questão judaica, a crítica à política se liga à crítica à religião na medida em que tanto o céu quanto o Estado são incapazes de resolver as contradições que os fundamentam. A vida dupla que leva o homem é reconhecida pelo Estado e pela religião, que se deixam dominar por esta. O homem aparece como um indivíduo real e, ao mesmo tempo, como um fenômeno inverídico na sociedade civil-burguesa ao passo que, no Estado, ele se mostra como um ser genérico somente à medida que a relação entre indivíduo e gênero é essencialmente estranhada. De um lado, tem-se o indivíduo real - que aparece como um fenômeno inverídico -, doutro, o membro imaginário de uma soberania fictícia. Esta soberania só se conforma como tal quanto reconhece como sua base e se deixa dominar por aquilo que supostamente deve controlar. O ser genérico, deste modo, explicita-se no Estado político somente enquanto uma universalidade irreal e estranhada.

Em finais de 1843, portanto, Marx não enxerga no Estado político a possibilidade de superação das vicissitudes de sua época. Antes, a política, tal qual a religião, seria dependente daquilo que acredita poder superar. Mesmo que ambas as esferas expressem o caráter antagônico da própria sociabilidade, elas não seriam resolutivas.19 19 Como diz Marx sobre a religião: “a miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo. A supressão [Aufhebung] da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real. A exigência de que abandonem as ilusões acerca de uma condição é a exigência de que abandonem uma condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, pois, em germe, a crítica do vale de lágrimas, cuja auréola é a religião.” (MARX, 2005, p. 145-146) No mesmo momento que Sobre a questão judaica, em Crítica a filosofia do Direito de Hegel - introdução, diz Marx algo importante ao nosso tema: que é necessário perceber, “a crítica do céu transforma-se, assim, na crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do direito, a crítica da teologia, na crítica da política.” (MARX, 2005_________. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005., p. 146)

A partir de então, crítica ao Direito e à política passam a estar na agenda marxiana. Com base nisto, diz Chasin que, “graças, portanto, a interdependência entre sociedade civil[-burguesa] e Estado, tendo o capital como centro organizativo de ambos, se põe e repõe o efetivo anel autoperturbador.” (CHASIN, 1999CHASIN, José. Ensaios Ad Hominem, Tomo III- Política. Santo André: Ensaio, 1999, p. 102) Tal anel autoperpetuador faz com que Estado e sociedade civil-burguesa sejam determinações de reflexão (Reflexionsbestimmungen). (Cf. CHASIN, 2009) O modo de conformação desta relação se dá no que Marx chamou de emancipação política, em que o Estado se coloca como laico, mas em que a religião passa longe de ser superada:

O homem se emancipa politicamente da religião, banindo-a do direito público para o direito privado. Ela não é mais o espírito do Estado, no qual o homem - ainda que de modo limitado, sob formas bem particulares e dentro de uma esfera específica - se comporta como ente genérico em comunidade com outros homens; ela passou a ser o espírito da sociedade [civil-]burguesa, a esfera do egoísmo, do bellum omnium contra omnes [da guerra de todos contra todos]. Ela não é mais a essência da comunidade, mas a essência da diferença. Ela se tornou expressão da separação entre o homem e sua comunidade, entre si mesmo e os demais homens - como era originalmente. Ela já não passa de uma profissão abstrata da perversidade particular, do capricho privado, da arbitrariedade. [...]Todavia, não tenhamos ilusões quanto ao limite da emancipação política. A cisão do homem em público e privado, o deslocamento da religião do Estado para a sociedade [civil-]burguesa, não constitui um estágio, e sim a realização plena da emancipação política, a qual, portanto, não anula nem busca anular a religiosidade real do homem. (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b, p. 41)

A relação entre Direito, política e religião remente ao fato de que, na emancipação política, a religião sai do Direito público e vai ao Direito privado. Ou seja, não se supera a religião ou o elemento teológico. Ele é transposto para o seio da sociedade civil-burguesa justamente na medida em que, com o Estado laico, não há uma religião oficial. O movimento apontado por Marx é aquele em que a religião deixa de ser uma esfera na qual o ser genérico do homem se expressa de modo estranhado; ela, segundo Sobre a questão judaica, diretamente, expressa o egoísmo e a guerra de todos contra todos.

A religião, assim, depois da emancipação política plena, não aparece mais como algo passível de ser compreendido como uma universalidade irreal; ela já se aproxima muito mais das vicissitudes da vida civil-burguesa. Diz Marx, neste sentido, que ela não manifesta mais a essência da comunidade. Antes, ela traz consigo a separação entre o homem e a comunidade, ou seja, o estranhamento do indivíduo perante o gênero. Religião e política têm sua verdade no espírito da sociedade civil-burguesa; mas o autor alemão vê na política uma contraposição muito mais clara a elementos da vida da sociedade atual se comparada com a religião. O estranhamento do indivíduo diante do gênero, por sua vez, é reconhecido oficialmente no Direito, trazendo a centralidade do Direito privado e da vida civil-burguesa na emancipação política. Este seria o resultado desta emancipação. Nota-se que Marx vê a política com mais potencialidades que a religião; no entanto, as raízes reais de ambas estão nas relações materiais e no particularismo da vida civil-burguesa.

A realização plena da emancipação política não traria o homem como ser genérico. Traria a cisão do homem em público e privado, e o reconhecimento desta vida dupla como base da atividade estatal. Tal separação está expressa tanto na religião, com a oposição entre céu e terra, quanto na política, na contraposição entre cidadão e burguês. A emancipação política traz o deslocamento da religião do Estado para a sociedade civil-burguesa; e isto não supera o elemento teológico e a religião; antes, traz o locus mais adequado à religiosidade real do homem. Para Marx, isso significa que continua-se a reconhecer, produzir e deixar-se dominar por potências estranhadas; com a politicidade, portanto, a impotência diante dos poderes sociais estranhados é elevada a princípio; em um texto do início de 1844, nas Glossas marginais, diz Marx, no mesmo contexto de Sobre a questão judaica (Cf. CHASIN, 2009_________. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.), que “quanto mais unilateral, isto é, quanto mais perfeito é o intelecto político, tanto mais ele crê na onipotência da vontade e tanto mais é cego frente aos limites naturais da vontade” (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b c, p. 62) e complementa “e, consequentemente, tanto mais é incapaz de descobrir a fonte dos males sociais.” (MARX, 2010 c, p. 62) A resolução religiosa, bem como a política, acreditaria ser resolutivas somente ao passo que não são e não poderiam ser.

Assim, na medida mesma em que pretendem se contrapor a sua base real, a política, bem como a religião, fica às cegas diante da fonte real das mazelas sociais. A isto se acrescenta que, então, a religião já está no campo privado, aquele da sociedade civil-burguesa, em que se tem o egoísmo e a guerra de todos contra todos. Ou seja, Marx traz explicitamente a religião como algo com menos potência que a política, embora reconheça a impotência de ambas as esferas.

Em Sobre a questão judaica, diz Marx que há, efetivamente, uma tentativa política de contraposição à sociedade civil-burguesa no seio desta própria sociedade. No entanto, na melhor das hipóteses, cair-se-ia em contradição trazendo-se, mesmo que de modo meandrado, a restituição dos princípios que regem a vida civil-burguesa, como teria acontecido na revolução francesa.

Nos momentos em que está particularmente autoconfiante, a vida política procura esmagar seu pressuposto, a sociedade [civil-]burguesa e seus elementos, e constituir-se como a vida real e sem contradição do gênero humano. No entanto, ela só consegue fazer isso caindo em contradição violenta com suas próprias precondições de vida, ou seja, declarando a revolução como permanente, e, em consequência disso, o drama político termina tão necessariamente com a restauração da religião, da propriedade privada, de todos os elementos da sociedade burguesa, quanto a guerra termina com a paz. (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b b, p. 42)

A vida política, efetivamente, tenta se contrapor aos elementos da sociedade civil-burguesa, tenta esmagá-los. Ela, sinceramente, procura colocar-se na realidade efetiva como uma vida real sem contradições com o gênero. No entanto, segundo Marx, ela é a expressão desta contradição.

As precondições de vida da política estão na própria sociedade civil-burguesa. Aquilo que é mobilizado na politicidade é a essência da vida civil-burguesa. Em meio a um anel auto perturbador, tenta-se colocar para além da relação necessária entre Estado e a sociabilidade civil-burguesa. A tentativa de voltar uma universalidade irreal contra a realidade inverídica só poderia levar ao voluntarismo, que, sinceramente, coloca-se como um drama político. No que se devem destacar dois pontos neste momento: primeiramente, percebe-se que, segundo Marx, o problema da política não está em sua insinceridade ou em algum desvio de rota. O próprio caminho do Estado político é aquele da pressuposição das vicissitudes da sociedade civil-burguesa como base. Em segundo lugar, é preciso notar que, neste momento específico - anterior a 1848 - Marx trata da melhor expressão possível do Estado político. E isto significa tanto que a questão pode se colocar de modo muito mais grosseiro; tanto é assim que, podemos destacar aqui, é exatamente isso que vai acontecer no momento posterior do desenvolvimento do modo de produção capitalista. (Cf. LUKÁCS, 1959LUKÁCS, György. El Asalto a la Razón. Trad. Wenceslau Roces. México: Fondo de Cultura Econômica, 1959.)

Posteriormente, a busca sincera por se contrapor, e esmagar, os elementos da sociedade civil-burguesa dá espaço àquilo que em O capital Marx chamou de “espadachinharia mercenária”. (MARX, 1996_________. O Capital, Livro I, Volume I. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe São Paulo: Nova Cultural, 1996., p. 136)20 20 A passagem trata da economia política, mas relaciona-se à política também: “a burguesia tinha conquistado poder político na França e Inglaterra. A partir de então, a luta de classes assumiu, na teoria e na prática, formas cada vez mais explícitas e ameaçadoras. Ela fez soar o sino fúnebre da economia científica burguesa. Já não se tratava de saber se este ou aquele teorema era ou não verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo, subversivo ou não. No lugar da pesquisa desinteressada entrou a espadacharia mercenária, no ugar da pesquisa científica imparcial entrou a má consciência e a má intenção da apologética.” (MARX, 1996, p. 135-136) Em Sobre a questão judaica, tem-se, portanto, o melhor dos casos do drama político. Aqui, para que se remeta à dicção do 18 Brumário, tem-se ainda o drama na forma de tragédia, e não de farsa. A figura do cidadão acredita efetivamente se contrapor ao burguês, mesmo que seja somente um momento da realidade efetiva deste. A cidadania, neste contexto, ainda tem uma feição, no limite, democrático revolucionária. (Cf. LUKÁCS, 2007_______. O jovem Marx e outros escritos filosóficos. Trad. Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.) Posteriormente, em 1848, na Nova Gazeta Renana, ao falar das revoluções que têm por base a sociedade civil-burguesa e que se colocaram, principalmente, na França, diz Marx algo que - embora produzido em um momento posterior àquele que analisamos aqui - pode ilustrar bem o que estamos dizendo:

O proletariado e as frações das classes médias não pertencentes à burguesia ou não tinham ainda interesses distintos da burguesia, ou ainda não formavam classes ou frações de classe desenvolvidas de modo independente. Por conseguinte, onde elas se opuseram à burguesia, como por exemplo de 1793 a 1794 na França, não lutaram a não ser pela imposição dos interesses da burguesia, embora não ao modo da burguesia. Todo o terror da França não foi nada mais do que uma maneira plebeia de acabar com os inimigos da burguesia, o absolutismo, o feudalismo e o espírito pequeno-burguês. (MARX, 1993MARX, Karl. A burguesia e a contra-revolução. Trad. Livía Cotrim. São Paulo: Ensaio, 1993., p. 55-56)

Na passagem, algumas questões que não aparecem explicitamente em Sobre a questão judaica são proeminentes, como os meandros das lutas de classe. Esta análise pormenorizada dos antagonismos classistas ainda não está presente no final de 1843.21 21 Aqui não poderemos tratar do desenvolvimento posterior da obra marxiana. No entanto, podemos dizer que acreditamos que a análise do autor se aprofunda e é mais detalhada. Isto se dá, no entanto, sem que haja uma contraposição entre o “jovem Marx” e um “Marx maduro”. No entanto, há de se notar que o modo pelo qual a política aparece como se resolutiva fosse (sem nunca poder ser), em sua melhor expressão - que é, no limite, revolucionária - está na passagem também. Na medida mesma em que as camadas não burguesas, naquele momento, tentavam se contrapor aos interesses burgueses, realizavam estes últimos, mesmo que de modo não burguês. O drama político das revoluções anteriores a 1848 é este. Por vezes, buscou-se sinceramente esmagar os elementos da sociedade civil-burguesa. No entanto, a realidade da propriedade privada e da religião se impuseram nas revoluções políticas, que dão ensejo, na melhor das hipóteses, à emancipação política plena.

Contra esta, em 1843, Marx defende a emancipação humana22 22 A noção não é retomada por Marx posteriormente. Mas há claramente uma continuidade temática na contraposição entre revolução política e social, presente tanto nas Glossas marginais quanto nos textos sobre a situação política de sua época, principalmente, aqueles sobre a França. Cf. MUSETTI, 2015. , relacionada à modificação substantiva das bases sociais da sociedade e à supressão da contradição entre indivíduo e gênero. Diz o autor que, mesmo que de modo contraditório, a emancipação política “encara a sociedade [civil-]burguesa, o mundo das necessidades, do trabalho, dos interesses privados, do direito privado (Privatrecht), como o fundamento de sua subsistência.” (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b b, p. 53) E no Direito privado subsiste explicitamente tanto o burguês - o indivíduo egoísta, portador da propriedade privada - quanto a religiosidade do homem. Por isso, Marx é explícito ao dizer que, caso se queira superar as vicissitudes da sociedade civil-burguesa, nem o Estado político nem a religião são as bases de sustentação. Diz o autor ainda, neste sentido, que é preciso ir além da forma de sociabilidade colocada na ordem mundana até agora existente: “a revolução política representa um enorme progresso. Porém, não constitui a forma final de emancipação humana, mas é a forma final desta emancipação dentro da ordem mundana até agora existente.” (MARX, 2001. p. 24)

O autor de O capital, assim, traz à tona a necessidade do que, posteriormente, já em 1844, nas Glossas marginais, chamará de revolução social, em oposição a uma revolução meramente política. (Cf. MUSETTI, 2015MUSETTI, Felipe Ramos. Marx e a constituição da república francesa de 1848. In: Verinotio: Revista on line de filosofia e ciências humanas, ano X, n. 19. Rio das Ostras: UFF, 2015. www.verinotio.org.
www.verinotio.org...
)

Marx diz, em Sobre a questão judaica, algo muito importante ao nosso tema ao relacionar religião, democracia, política e os fundamentos da vida civil-burguesa. Ao tratar do assunto, ele diz:

Os membros do Estado político se constituem como religiosos mediante o dualismo de vida individual e vida como gênero, de vida em sociedade [civil-]burguesa e vida política; o homem se constitui como religioso, quando se comporta em relação à vida estatal, que se encontra além de sua individualidade real, como se esta fosse sua verdadeira vida; ele é religioso, na medida em que, nesse caso, a religião representa o espírito da sociedade burguesa, a expressão da divisão e do distanciamento entre as pessoas. A democracia política é cristã pelo fato de que nela o homem - não apenas um homem, mas cada homem - é considerado um ente soberano, o ente supremo, ainda que seja o homem em sua manifestação inculta, não social, o homem em sua existência casual, o homem assim como está, o homem do seu jeito corrompido pela organização de toda a nossa sociedade, perdido para si mesmo, alienado, sujeito à dominação por relações e elementos desumanos, em suma: o homem que não chegou a ser um ente genérico real. Na democracia, a quimera, o sonho, o postulado do cristianismo, ou seja, a soberania do homem, só que como ente estranho e distinto do homem real, tornou-se realidade, presença palpável, máxima secular. (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b b, p. 45)

O dualismo da vida individual e a do gênero, novamente, é atacado por Marx. Diante deste fato, o autor de Sobre a questão judaica aponta que o comportamento dos membros do Estado político é comparável ao dos religiosos. Diante de um problema colocado na própria realidade da sociedade civil-burguesa, procura-se uma solução colocada no céu estatal. Tal qual a religião busca resolver os problemas profanos no campo celeste, os membros do Estado político não seriam capazes de ir à raízes das coisas. A comparação de Marx vai mais fundo, porém.

Em Sobre a questão judaica, Marx critica duramente aquilo que tomava como solução até pouco tempo atrás, a democracia. Nesta, segundo o autor alemão, o homem é considerado soberano, certamente. Mas isto se daria tal qual no cristianismo: tomando-se por base o homem perdido para si mesmo, estranhado, que não chegou à condição de ser genérico. A democracia seria a figura mais elevada da politicidade assim como o cristianismo da religiosidade. Ambos, porém, teriam por base a existência casual do homem e o homem corrompido pela organização social. Tanto a religião como a política procurariam uma espécie de reconciliação entre indivíduo e gênero, mas, em verdade, elas têm como seu fundamento o mútuo estranhamento e contraposição entre estes dois polos. No que, neste ponto, é importante destacarmos: Marx está criticando as formas mais universais de religião e de política; para ele, trata-se de formas sociais que, ao mesmo tempo, expressam e se contrapõem à divisão e ao distanciamento entre os homens.

Este caráter dúbio é muito importante para a compreensão do tema: de tempos em tempos, parece que basta vontade para que se possa apropriar de um lado da coisa em detrimento doutro. Isto é vedado por Marx, cuja compreensão da dialética impede que simplesmente se contraponha um lado ao outro, não se podendo buscar preservar o “lado bom” em detrimento do “lado mal”.23 23 Marx, posteriormente, em 1847, criticaria Proudhon justamente neste ponto: “vejamos agora que modificações o Sr. Proudhon impõe à dialética de Hegel ao aplicá-la à economia política. Para o Sr. Proudhon, toda categoria econômica tem dois lados - um bom, outro mau. Ele considera as categorias como o pequeno burguês considera os grandes homens da história: Napoleão é um grande homem; fez muita coisa boa mas, também, fez muita coisa má. O lado bom e o lado mau. A vantagem e o inconveniente, tomados em conjunto, constituem, para o Sr. Proudhon, a contradição em cada categoria econômica. Problema a resolver: conservar o lado bom, eliminando o mau.” (MARX, 1989, p. 107-108) No caso da política, isto se dá até mesmo porque, como mencionado, tanto mais perfeito seria o intelecto político, mais unilateral e mais incapaz de descobrir a fonte das mazelas sociais na própria sociabilidade. No caso da religião, há muito tempo, já não passa pela cabeça do autor alemão a busca de uma religiosidade alternativa; antes, desde 1842 ao menos, é profundamente crítico quanto à religião, buscando superá-la real e efetivamente.

A política, em sua figura democrática, tornaria realidade o postulado do cristianismo. A soberania do homem torna-se real, é secularizada; mas isto ocorre de modo essencialmente estranhado. As contradições que, na Crítica da filosofia do Direito de Hegel, pareciam poder ser resolvidas dentro da forma estatal já não poderiam sê-lo. O Estado político é algo muito dúbio porque, não só ele pode se contrapor a elementos da sociedade civil-burguesa; ele parece ser capaz de fazer utopias e quimeras tornarem-se uma presença palpável. E isto realmente ocorre.

No entanto, e aí está a questão central ao nosso tema, de acordo com Marx, a efetividade disto se dá na separação entre o ente soberano e o homem real. Para que retomemos o que dissemos acima: trata-se da contraposição entre o cidadão e o burguês. Em meio ao Estado político, parece que sempre se trata de aproximar o máximo possível, e progressivamente, o burguês do cidadão; no entanto, talvez, o movimento, na sociedade civil-burguesa, seja o inverso: aquele de aproximação do cidadão ao burguês. (Cf. LUKÁCS. 2007_______. O jovem Marx e outros escritos filosóficos. Trad. Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.) Um dos principais modos pelos quais tal questão foi pensada passou pelos direitos do homem, aqueles mesmos que Marx havia elogiado fortemente em 1842, contra o reino animal do espírito. Aqui, no entanto, como já se nota, tal solução está fora de questão. Os dualismos que marcavam o texto marxiano de 1842 (direito humano x reino animal do espírito, Estado racional x propriedade fundiária, Direito universal x privilégio), agora, são tomados como parte da própria sociedade civil-burguesa, e só poderiam ser pensados dentro desta sociabilidade. Ou seja, em Sobre a questão judaica, Marx deixa de pensar os polos opostos colocados na ordem mundana até então existente como aqueles que poderiam trazer a resolução dos problemas sociais: tanto em Crítica à filosofia do Direito de Hegel - introdução, quanto no texto que agora analisamos, abre-se uma possibilidade ao autor, a da crítica à própria forma de sociabilidade, da ordem mundana então existente. A evolução do pensamento de Marx, assim, anda junto com sua evolução política, certamente. Para que fique clara a questão, vale analisar a posição de Marx sobre os direitos humanos em Sobre a questão judaica:

Portanto, nenhum dos assim chamados direitos humanos transcende o homem egoísta, o homem como membro da sociedade burguesa, a saber, como indivíduo recolhido ao seu interesse privado e ao seu capricho privado e separado da comunidade. Muito longe de conceberem o homem como um ente genérico, esses direitos deixam transparecer a vida do gênero, a sociedade, antes como uma moldura exterior ao indivíduo, como limitação de sua autonomia original. O único laço que os une é a necessidade natural, a carência e o interesse privado, a conservação de sua propriedade e de sua pessoa egoísta. (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b b, p. 50)

Marx coloca os direitos humanos no solo da sociedade civil-burguesa, em que as necessidades, o interesse privado, a pessoa egoísta e a propriedade colocam-se como determinações de reflexão. Por mais que estes direitos procurem se contrapor a elementos desta forma de sociabilidade, eles viriam a reconhecê-los como sua base real. A liberdade estaria perfeitamente circunscrita, de tal modo que um homem seria visto como um limite ao outro, tal qual na propriedade privada24 24 Diz Marx sobre o direito humano à liberdade: “a liberdade equivale, portanto, ao direito de fazer e promover tudo que não prejudique a nenhum outro homem. O limite dentro do qual cada um pode mover-se de modo a não prejudicar o outro é determinado pela lei do mesmo modo que o limite entre dois terrenos é determinado pelo poste da cerca. Trata-se da liberdade do homem como mônada isolada recolhida dentro de si mesma. […] No entanto, o direito humano à liberdade não se baseia na vinculação do homem com os demais homens, mas, ao contrário, na separação entre um homem e outro. Trata-se do direito a essa separação, o direito do indivíduo limitado, limitado a si mesmo. A aplicação prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à propriedade privada.” (MARX, 2010 b, p. 48-49) ; a igualdade se colocaria diante de indivíduos contrapostos e proprietários25 25 Diz Marx sobre o direito humano à igualdade: “a égalité, aqui em seu significado não político, nada mais é que igualdade da liberté acima descrita, a saber: que cada homem é visto uniformemente como mônada que repousa em si mesma.” (MARX, 2010 b, p. 49) ; a propriedade26 26 Como aponta Marx, “o direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar a seu bel prazer (à son gré), sem levar outros em consideração, independentemente da sociedade, de seu patrimônio e dispor sobre ele, é o direito ao proveito próprio. Aquela liberdade individual junto com esta sua aplicação prática compõem a base da sociedade burguesa. Ela faz com que cada homem veja no outro homem, não a realização, mas, ao contrário, a restrição de sua liberdade. Mas, acima de tudo, ela proclama o direito humano, ‘de jouir et de disposer à son gré de ses biens, de ses revenus, du fruit de son travail et de son industrie’.” (MARX, 2010 b, p. 49) seria o momento preponderante dos direitos humanos, em que a segurança a aparece para garantir justamente aquilo em torno do qual se organiza esta última.27 27 Sobre a segurança, diz-se: “a segurança é o conceito social supremo da sociedade [civil-]burguesa, o conceito da polícia, no sentido de que o conjunto da sociedade só existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade.” (MARX, 2010 b, p. 49)

Ou seja, ao mesmo tempo em que os direitos humanos se contrapõem à efetividade de determinados elementos da sociedade civil-burguesa, eles expressam e não podem escapar das bases reais sobre as quais tais elementos estão assentados. Nestes direitos também se tem a expressão do estranhamento entre indivíduo e gênero; a vida do gênero (a sociedade)28 28 Note-se que Marx não está simplesmente mimetizando uma terminologia de Feuerbach; antes, o autor traz um desenvolvimento original do tema da generidade. Trata-se de uma abordagem que enfoca, sobretudo, o caráter social, histórico e ativo da noção. ; é pensada em oposição ao indivíduo isolado. Assim, tem-se justamente o ponto com o qual começamos nosso texto aparecendo em destaque; vimos, assim, o modo pelo qual a oposição entre vida individual e genérica é central para a compreensão da relação entre religião e política de 1842 até o final de 1843. Como mencionamos acima, acreditamos que isto se dá, mesmo que, por vezes, com uma dicção diferente, durante toda a obra marxiana. Aqui, porém, tem-se - juntamente com Crítica à filosofia do Direito de Hegel - introdução - a emergência do pensamento propriamente marxiano. (Cf. CHASIN, 2009_________. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.) Com isto, tem-se uma nova compreensão quanto à relação entre as potências sociais, a política e a religião. Ao passo que as duas últimas, antes, eram vistas como esferas superiores de expressão da vida genérica, agora, elas aparecem como uma espécie de universalidade irreal. Mesmo que a política seja reconhecida como superior à religião (o Estado político é fruto da emancipação política e instaura o Estado laico), ela deixa de ser vista como a chave da questão:

Toda emancipação é redução do mundo humano e suas relações ao próprio homem. A emancipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da sociedade burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, a cidadão, a pessoa moral. Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas ‘forces propres’ [forças próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si mesmo a força social na forma da força política. (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b b, p. 54)

Marx é direto ao dizer que “a revolução política é a revolução da sociedade [civil-]burguesa.” (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b b, p. 50). A emancipação política traria consigo a duplicação da vida, tendo-se como constitutiva de si a oposição entre o burguês e o cidadão.

Com ela, ter-se-ia a oposição entre indivíduo e gênero transposta na contradição entre o homem individual real e a pessoa moral. O autor alemão, por sua vez, defende uma forma de emancipação que traga consigo a superação da oposição entre indivíduo e suas vidas e atividade genéricas. Tratar-se-ia da emancipação que Marx chamou de humana e que consistiria no fato de o indivíduo real, o homem individual da vida empírica estar colocado em uma relação de mútuo enriquecimento com as suas próprias potências sociais, tornando-se, assim, um ser genérico.

Isto só seria possível quando as forças sociais não se colocassem mais como políticas. Marx termina a questão judaica justamente trazendo isto à tona: seria preciso organizar e reconhecer as próprias forças como tais, e não em um ente (o Estado) estranhado. Para tanto, trata-se de não mais separar a força social na forma da força política. Tem-se, portanto, que o percurso que vai de 1842 ao final de 1843 é aquele em que se passa e adentra na análise da relação entre indivíduo e gênero. Com isso, tem-se por necessário compreender os liames entre religião e política, que marcam o modo pelo qual desenvolve-se o Estado político em sua plenitude.

É necessário também compreender que tal plenitude significa que, com a emancipação política, tem-se o locus mais adequado para a reprodução das vicissitudes da sociedade civil-burguesa, embora não o único. Trata-se, assim, de um percurso que se consolida com a passagem da crítica à religião e à teologia para a crítica à política e ao Direito. Marx, a partir de então, é um crítico ao Direito e traz consigo as marcas da determinação ontonegativa da politicidade.

Uma breve nota sobre a determinação ontonegativa da politicidade

Procuramos tratar acima de alguns dos principais temas recorrentes no período que vai de 1842 a 1843. Somos levados, assim, à conclusão segundo a qual o desenvolvimento da teoria marxiana chega a uma determinação ontonegativa da politicidade. Mesmo que tal tese já tenha sido defendida por José Chasin (1999CHASIN, José. Ensaios Ad Hominem, Tomo III- Política. Santo André: Ensaio, 1999, 2009), acreditamos que, ao passar pelos anos de 1842 e 1843, bem como, pela relação da temática com os meandros da religião e da política - tema tratado, no que toca a Crítica da filosofia do Direito de Hegel por Leonardo de Deus (2014) - trouxemos uma relevante contribuição ao debate da obra marxiana. Ela só foi possível devido a esforços conjuntos, como aqueles de Eidt (1998) e, mais recentemente, de Pereira Neto (2018) e Palu (2019PALU, Marco Aurélio. Estado, democracia e gênero humano: a crítica de 1843 e a fundação do pensamento marxiano. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: UFMG, Faculdade de Direito, 2019.); tal artigo, assim, coloca-se em continuidade com os trabalhos orientados por José Chasin e, posteriormente, por Ester Vaisman. No que, sobre este aspecto, é bom que se desfaçam algumas incompreensões que geralmente vem acompanhadas da percepção segundo a qual há uma filiação “chasiniana” nas teses defendidas. A primeira delas diz respeito a uma análise que estaria detida nos anos de 1843-44 e se ateria a estes anos somente. Pelo que vimos acima, o tema da política é central também em 42.

Com isso, claro, não refutamos a crítica normalmente dirigida àqueles que defendem que há em Marx uma determinação ontonegativa da politicidade. Afinal, este seria um “problema” do “jovem Marx”. Ocorre, porém, que em textos posteriores a 1845 (marco de tal ruptura, para seus defensores, como Althusser), há uma posição por parte de Marx no mesmo sentido que tratamos acima.

Após falar, em 1847, na Miséria da filosofia, que “a organização dos elementos revolucionários como classe supõe a existência de todas as forças produtivas que poderiam se engendrar no seio da sociedade antiga” (MARX, 1989MARX, Karl. Miséria da filosofia. Trad. José Paulo Netto. São Paulo: Global, 1989, p. 159), aponta Marx sobre revolução:

Isto significa que, após a ruína da velha sociedade, haverá uma nova dominação de classe, resumindo-se em um novo poder político? Não. A condição da libertação da classe laboriosa é a abolição de toda classe, assim como a condição da libertação do terceiro estado, da ordem burguesa, foi a abolição de todos os estados e de todas as ordens. A classe laboriosa substituirá, no curso do seu desenvolvimento, a antiga sociedade civil[-burguesa] por uma associação que excluirá as classes e seu antagonismo, e não haverá mais poder político propriamente dito, já que o poder político é o resumo oficial do antagonismo na sociedade civil[-burguesa]. (MARX, 1989MARX, Karl. Miséria da filosofia. Trad. José Paulo Netto. São Paulo: Global, 1989, p. 160)

Marx diz: não se trata de organizar uma nova dominação de classe, que se colocaria como um novo poder político. Trata-se da supressão da sociedade civil-burguesa e de todo poder político propriamente dito. O autor, assim, muito depois de 1843, é bastante explícito: falar de política, depois de determinado ponto, é falar da sociedade civil-burguesa, tratando-se de suprimir tanto esta forma de sociedade quanto o Estado, ou seja, a política. E destacamos: na obra posterior à Sobre a questão judaica, não há a possibilidade de dissociar política de Estado. Na Miséria da filosofia, o autor é explícito: com a revolução, não haveria mais poder político propriamente dito.

Para que deixemos mais explícita a questão, podemos mencionar um texto que é conhecido de todo aquele que se dedicou minimamente ao estudo da obra marxiana. Dizem Marx e Engels no Manifesto Comunista, de modo aberto e explícito:

Quando, no curso do desenvolvimento, desaparecerem os antagonismos de classes e toda a produção for concentrada nas mãos dos indivíduos associados, o poder público perderá seu caráter político. O poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra. (MARX; ENGELS,1998_________. O Manifesto Comunista. Trad. Maria Lucia Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998., p. 59)

Marx fala dos indivíduos associados29 29 Sobre a noção de indivíduos associados e de “modo de produção associado” - Marx fala em O capital que “as empresas capitalistas por ações tanto quanto as fábricas cooperativas devem ser consideradas formas de transição do modo de produção capitalista ao modo associado, só que, num caso, a antítese é abolida [aufgehoben] negativamente e, no outro, positivamente” (MARX, 1986 a, p. 334) - Cf. SARTORI, 2019. ; eles estão colocados como tais na medida em que “no lugar da sociedade civil-burguesa antiga, com suas classes e antagonismos de classe, teremos uma associação na qual o desenvolvimento livre de cada um é a condição para o desenvolvimento livre de todos.” (MARX; ENGELS, 1998_________. O Manifesto Comunista. Trad. Maria Lucia Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998., p. 45). Ou seja, não se trata mais de uma sociedade dividida em classes e, portanto, com o poder público colocado na figura da política. A política não se confunde com o exercício da atividade pública, ou com o poder público. Ela relaciona-se com o Estado e tem suas bases em uma sociedade marcada pelo antagonismo classista.

O fim das classes sociais, para Marx, significa também o fim da política. Tanto a citação da Miséria da filosofia quanto a do Manifesto trazem isto à tona de modo direto e sem rodeios. Em ambas as passagens, é possível se notar uma continuidade quanto a Sobre a questão judaica: trata-se da necessidade da crítica da política, e não só da forma burguesa da política. Em todos estes textos, a política é inseparável do Estado, que, por sua vez, depende da existência da sociedade civil-burguesa e, portanto, das classes sociais. Do ponto de vista marxiano, dizer que a política é ineliminável significa dizer que a estrutura classista da sociedade é algo que não pode ser retirado de cena. E, se assim for, trata-se de uma espécie de “fim da história”, mesmo que defendida com tintas contrárias a Fukuyama.

Outra questão importante diz respeito ao significado da determinação ontonegativa da politicidade. Significaria isto que a política é um campo a ser deixado à burguesia e a seus aliados? Se ela não é resolutiva, isso quer dizer que o papel dos marxistas é não se envolver em qualquer aspecto da política? Pelo que dissemos acima, há de se perceber que isto não é verdade. Mas é preciso que se explicite a questão. Ela remete àquilo que Chasin chamou, em Marx, de metapolítica (Cf. CHASIN, 2009_________. Contribuição à Crítica da Economia Política. Trad. Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2009.) e que traz consigo, ao mesmo tempo, a impossibilidade de se resolver politicamente e no campo do Estado os problemas sociais - pois a política é um resumo das contradições da sociedade civil-burguesa - e a necessidade de a resolução dos problemas sociais passar pela política. Marx, sobre o tema, aponta no começo de 1844 que “toda a revolução dissolve a velha sociedade; neste sentido é social. Toda a revolução derruba o velho poder; neste sentido, é política.” (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b c, p. 77).

Ou seja, tem-se um ato político, que traz a dissolução e a destruição, mas que não é construtivo por si só, remetendo à superação das classes sociais e, portanto, quer se queira, quer não, da política. Não se suprime a esfera pública, ou a deliberação pública, ou a organização e a associação dos indivíduos: estas mediações, para Marx, não necessariamente são políticas. É preciso que isto seja explicitado; diz o autor alemão:

A revolução em geral - a derrocada do poder existente e a dissolução das velhas relações - é um ato político. Por isso, o socialismo não pode efetivar-se sem revolução. Ele tem necessidade deste ato político na medida em que tem necessidade da destruição e da dissolução. No entanto, logo que tenha início a sua atividade organizativa, logo que apareça seu próprio objetivo, a sua alma, então o socialismo se desembaraça do seu revestimento político. (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b c, p. 78)

A política, em Marx, é extremamente necessária para que se pense na ruptura do anel auto perturbador que se coloca entre sociedade civil-burguesa e Estado. O ato político revolucionário, no entanto, é aquele de dissolução e destruição da ordem mundana até então existente. A atividade organizativa que vem após a ruptura com tal ordem, no autor alemão, já poderia se desembaraçar do revestimento político. Há dois pontos a se levantar quanto a isto: o primeiro deles é a extrema similitude deste texto, de 1844, com aqueles de 1847 e 1848 citados acima. O outro diz respeito ao fato segundo o qual Marx não nega que se tenha, com as classes sociais, a necessidade da luta política. Pelo contrário. No entanto, o autor de O capital traz como indissolúveis as classes sociais, a política e a sociedade civil-burguesa. Neste sentido, parte-se da existência das classes sociais, e das potencialidades negativas da classe trabalhadora em específico. Assim, busca-se uma sociedade sem classes, e não um socialismo proletário. A luta contra a sociedade capitalista é política também, e parte do elemento econômico - trata-se da luta de classes -; mas a potência desta luta é negativa: dissolução e destruição dos entraves da sociedade civil-burguesa. Ou seja, trata-se de uma luta política que é capaz de se desvencilhar da forma política, de trazer à tona a possibilidade de um poder público que perde seu caráter político. Justamente a isto José Chasin chamou de metapolítica. Ao que nos parece, isto se deu seguindo o texto marxiano.

Considerações Finais

Intentamos ter passado, no que toca a relação entre política, gênero e direitos humanos, pelo momento formativo do pensamento marxiano. Esperamos ter demonstrado que tal tema é de grande relevo para a compreensão do pensamento marxiano, sendo acompanhado por outro, aquele da relação entre crítica à religião, à política e ao Direito. Pelo que dissemos, tem-se que, desde 1842, Marx é bastante crítico quanto ao papel que a teologia e a religião têm a ocupar em uma sociedade e em um Estado modernos. No entanto, vimos que o momento que vai de 1842 ao final de 1843 é aquele em que, progressivamente, a crítica à política vem sendo estabelecida. Em um primeiro momento, na Crítica à filosofia do Direito de Hegel, com o questionamento da representação moderna, que ainda traria elementos teológicos; mas, em Sobre a questão judaica, com a crítica ao próprio Estado, que passa a ser visto como indissolúvel justamente daquilo que pretende, na melhor das hipóteses, combater. Ou seja, o movimento de formação da obra marxiana é aquele em que, em um primeiro momento, tem-se a crítica da religião, do Direito e da política abrindo espaço para a crítica da sociedade civil-burguesa, cuja anatomia, depois viria a dizer Marx, está justamente na economia política.

A relação entre indivíduo e gênero também foi muito importante àquilo que tratamos. Na Gazeta renana, ela aparecia de modo harmônico em uma figura racional e universal do Direito e do Estado (que estariam relacionados ao Direito humano); na Crítica à filosofia do Direito de Hegel, a solução anterior já é rechaçada, expressando o Estado representativo moderno justamente o mútuo estranhamento entre indivíduo e gênero. A manifestação da atividade e da vida genéricas seria possível somente com uma sociedade política, colocada na figura da democracia. Em Sobre a questão judaica, por fim, o tom de Marx muda; quando os interesses materiais entram na equação entre sociedade civil-burguesa e Estado de modo mais pungente, vem a ficar clara a natureza ilusória da comunidade estatal; neste ponto, não é mais a política que vem a ser capaz de resolver os problemas sociais, nem os direitos humanos a se contrapor ao particularismo da sociabilidade civil-burguesa. Não é mais esta sociedade que deveria se tornar política com a democracia; o autor alemão percebe-se desta impossibilidade e analisa a duplicação que atinge o homem, separado em cidadão e burguês, em uma existência comunitária, moral, genérica e ilusória, de um lado, e doutro, no egoísmo vil do proprietário marcado pela guerra de todos contratos. Ou seja, o movimento dos textos de 1842 a 1843 vai de uma crítica vigorosa ao provincianismo de um estado que ainda não se colocaria como um Estado político pleno, ao rechaço do próprio Estado político.

Marx, com isto, busca uma situação em que “o conflito entre a existência sensível individual e a existência do gênero terá sido superado” (MARX, 2010_________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b c, p. 60); e isto só seria possível por meio da superação da emancipação política, com a emancipação humana. Tratar-se-ia da revolução social, que se coloca politicamente para dissolver e destruir, mas que se consolida já se desfazendo de sua roupagem política. Isto seria extremamente necessário pois, como apontaram Marx e Engels no Manifesto, em verdade, “o poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra.” (MARX; ENGELS,1998, p. 59)

Uma sociedade sem classes seria uma sociedade sem um poder político propriamente dito. Pelo que vimos, isto viria acompanhado também da necessária crítica à sociedade civil-burguesa (e à sua anatomia), à religião, ao Direito e à política.

Referências bibliográficas

  • ALTHUSSER, Louis. A favor de Marx. Trad. Dirceu Lindoso. São Paulo: Zahar, 1979.
  • CHASIN, José. Ensaios Ad Hominem, Tomo III- Política. Santo André: Ensaio, 1999
  • _________. Marx: Estatuto Ontológico e Resolução Metodológica. São Paulo: Boitempo, 2009.
  • DE DEUS, Leonardo. Jovem Marx, 50 anos. Ouro Preto: UFOP, 2014.
  • LUKÁCS, György. El Asalto a la Razón. Trad. Wenceslau Roces. México: Fondo de Cultura Econômica, 1959.
  • _________. Para uma ontologia do ser social II. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • _______. O jovem Marx e outros escritos filosóficos. Trad. Carlos Nelson Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007.
  • MARX, Karl. A burguesia e a contra-revolução. Trad. Livía Cotrim. São Paulo: Ensaio, 1993.
  • _________. Contribuição à Crítica da Economia Política. Trad. Florestan Fernandes. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
  • _________. Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005.
  • _________. Gazeta Renana. Trad. de Celso Eidt. IN.: EIDT, Celso. O Estado racional: lineamentos do pensamento político de Karl Marx nos artigos da Gazeta Renana (1842 - 1843). Belo Horizonte, 1998.
  • _______. Glosas Críticas Marginais ao Artigo “O Rei da Prússia e a Reforma Social” de Um Prussiano. Trad. Ivo Tonet. São Paulo: Expressão Popular, 2010 c.
  • _________. Grundrisse. Trad. Mario Duayer. São Paulo: Boitempo, 2011.
  • MARX, Karl. Miséria da filosofia. Trad. José Paulo Netto. São Paulo: Global, 1989
  • _________. Nova gazeta renana. Trad. Lívia Cotrim. São Paulo: Educ, 2010 a.
  • _________. O Capital, Livro I. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • _________. O Capital, Livro I, Volume I. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe São Paulo: Nova Cultural, 1996.
  • _________. O capital, livro III, tomo I. Trad. Regis Barbosa e Flávio R. Kothe São Paulo: Nova Cultural, 1986.
  • _________. Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider. São Paulo, Boitempo, 2010 b
  • _________. Sobre a Questão Judaica. In: Manuscritos Econômico-filosóficos. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2001.
  • _________. Teorias da mais-valia. Trad. Reginaldo Sant´Anna. São Paulo: Civilização brasileira, 1980.
  • MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Ideologia alemã. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2007
  • _________. O Manifesto Comunista. Trad. Maria Lucia Como. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
  • MUSETTI, Felipe Ramos. Marx e a constituição da república francesa de 1848. In: Verinotio: Revista on line de filosofia e ciências humanas, ano X, n. 19. Rio das Ostras: UFF, 2015. www.verinotio.org
    » www.verinotio.org
  • PALU, Marco Aurélio. Estado, democracia e gênero humano: a crítica de 1843 e a fundação do pensamento marxiano. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: UFMG, Faculdade de Direito, 2019.
  • PEREIRA NETO, Murilo. A posição de Marx quanto ao Direito nos escritos de 1837-1843. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte: UFMG, Faculdade de Direito, 2018.
  • SARTORI, Vitor Bartoletti. ACERCA DA INDIVIDUALIDADE, DO DESENVOLVIMENTO DAS FORÇAS PRODUTIVAS E DO “ROMANTISMO” EM MARX [PARTE I]. In: Revista Práxis Comunal n. 1, v. 1. Belo Horizonte: UFMG, 2018.
  • ________. Sociedades capitalistas tardias, o livro III de O capital e a dialética entre trabalho e as figuras econômicas concretas. In: Revista de estudos organizacionais, V. 6, N.1. Rio de Janeiro: UFF, 2019.
  • 1
    Como diz Chasin: “tal análise, no melhor da tradição reflexiva, encara o texto - a formação ideal - em sua consistência autosignificativa, aí compreendida toda a grade de vetores que o conformam, tanto positivos como negativos: o conjunto de suas afirmações, conexões e suficiências, como as eventuais lacunas e incongruências que o perfaçam. Configuração esta que em si é autônoma em relação aos modos pelos quais é encarada, de frente ou por vieses, iluminada ou obscurecida no movimento de produção do para-nós que é elaborado pelo investigador, já que, no extremo e por absurdo, mesmo se todo o observador fosse incapaz de entender o sentido das coisas e dos textos, os nexos ou significados destes não deixariam, por isso, de existir [...]”. (CHASIN, 2009, p. 26)
  • 2
    Lukács, por exemplo, diz que “certamente é uma estupidez historiográfica insistir sobre a contraposição entre jovem Marx e o Marx maduro.” (LUKÁCS, 1969, p. 56)
  • 3
    Segundo Marx e Engels, com o desenvolvimento histórico, “chegou-se a tal ponto, portanto, que os indivíduos devem apropriar-se da totalidade existente de forças produtivas, não apenas para chegar à autoatividade, mas simplesmente para assegurar a sua existência. Essa apropriação está primeiramente condicionada pelo objeto a ser apropriado - as forças produtivas desenvolvidas até formar uma totalidade e que existem apenas no interior de um intercâmbio universal. Sob essa perspectiva, portanto, tal apropriação tem de ter um caráter correspondente às forças produtivas e ao intercâmbio. A apropriação dessas forças não é em si mesma nada mais do que o desenvolvimento das capacidades individuais correspondentes aos instrumentos materiais de produção.” (MARX; ENGELS, 2007, p. 73) Para a discussão sobre a relação entre desenvolvimento humano genérico, forças produtivas e individualidade, Cf. SARTORI, 2018.
  • 4
    Diz Marx nas Teorias do mais-valor que “e assim o desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho e as condições desse desenvolvimento aparecem como ação do capital, em relação à qual o trabalhador individual tem mero comportamento passivo, e que em oposição a ele se exerce.” (MARX, 1980, p. 387)
  • 5
    Como diz Marx em O capital sobre as potências intelectuais da produção - que são forças produtivas -: “as potências intelectuais da produção, ampliando sua escala por um lado, desaparecem por muitos outros lados. O que os trabalhadores parciais perdem concentra-se defronte a eles no capital. É um produto da divisão manufatureira do trabalho opor-lhes as potências intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia e como poder que os domina. Esse processo de cisão começa na cooperação simples, em que o capitalista representa diante dos trabalhadores individuais a unidade e a vontade do corpo social de trabalho. Ele se desenvolve na manufatura, que mutila o trabalhador, fazendo dele um trabalhador parcial, e se consuma na grande indústria, que separa do trabalho a ciência como potência autônoma de produção e a obriga a servir ao capital.” (MARX, 2013, p. 541)
  • 6
    Diz Marx que se tem que “o grau e a universalidade do desenvolvimento das capacidades em que essa individualidade se torna possível pressupõem justamente a produção sobre a base dos valores de troca, que, com a universalidade do estranhamento do indivíduo de si e dos outros, primeiro produz a universalidade e multilateralidade de suas relações e habilidades.” (MARX, 2011, p. 164)
  • 7
    Para uma análise detida sobre o tema, Cf. SARTORI, 2018.
  • 8
    Em 1843, no texto Crítica da filosofia do Direito de Hegel - introdução Marx fará duras críticas àquilo que, na literatura marxista, ficaria conhecido como “miséria alemã”. (Cf. LUKÁCS, 1959)
  • 9
    Diz Marx: “Enquanto os direitos consuetudinários dos nobres são costumes contra o conceito de direito racional, os direitos consuetudinários da pobreza são direitos contra o costume do direito positivo. Seu conteúdo não se opõe à forma legal, resiste muito mais contra a própria ausência de forma. A forma da lei não se opõe aos mesmos, mas eles ainda não a alcançaram” (MARX. 1998, p. 259)
  • 10
    A questão remete à chamada crítica à especulação. (Cf. CHASIN, 2009)
  • 11
    O termo politicidade é destacado por José Chasin e remete à colocação do Estado e do Direito diante da sociedade civil-burguesa. Cf. CHASIN, 2009.
  • 12
    Aqui não podemos tratar da questão, mas seria interessante analisar até que ponto esta posição de Marx, que ainda está marcada por uma determinação ontopositiva da politicidade, não se assemelha à formulação gramsciana sobre a relação entre sociedade civil e Estado.
  • 13
    Aqui, Marx remete ao sentido aristotélico de constituição.
  • 14
    Devemos destacar que tal temática é bastante visível em O capital também. Nesta obra, diz Marx: “para uma sociedade de produtores de mercadorias, cuja relação social geral de produção consiste em se relacionar com seus produtos como mercadorias, ou seja, como valores, e, nessa forma reificada [sachlich], confrontar mutuamente seus trabalhos privados como trabalho humano igual, o cristianismo, com seu culto do homem abstrato, é a forma de religião mais apropriada, especialmente em seu desenvolvimento burguês, como protestantismo, deísmo etc.” (MARX. 1996, p. 153-154)
  • 15
    Diz Marx: “todas as demais formas estatais são uma forma de Estado precisa, determinada, particular. Na democracia, o princípio formal é, ao mesmo tempo, o princípio material. Por isso ela é, primeiramente, a verdadeira unidade do universal e do particular. Na monarquia, por exemplo, na república como uma forma de Estado particular, o homem político tem sua existência particular ao lado do homem não político, do homem privado. A propriedade, o contrato, o matrimônio, a sociedade civil aparecem, aqui (Hegel desenvolve de modo bastante correto estas formas abstratas de Estado, mas ele crê desenvolver a ideia de Estado), como modos de existência particulares ao lado do Estado político, como o conteúdo com o qual o Estado político se relaciona como forma organizadora, como entendimento que determina, limita, ora afirma, ora nega, sem ter em si mesmo nenhum conteúdo.” (MARX, 2005, p. 50)
  • 16
    Na citação em sua integridade, Marx é bastante ácido quanto à questão: “a hereditariedade do príncipe resulta de seu conceito. Ele deve ser a pessoa especificamente distinta de todo o gênero [Gattung], de todas as outras pessoas. Qual é, então, a diferença última, precisa, de uma pessoa em relação a todas as outras? O corpo. A mais alta função do corpo é a atividade sexual. O ato constitucional mais elevado do rei é, portanto, sua atividade sexual, pois por meio dela ele faz um rei e dá continuidade a seu corpo. O corpo de seu filho é a reprodução de seu próprio corpo, a criação de um corpo real.” (MARX, 2005, p. 60).
  • 17
    Aqui, neste momento em que a obra marxiana coloca-se sobre os próprios pés, já se tem - mesmo que ainda sem um conhecimento aprofundado acerca da economia política, que começaria em 1844, nos Manuscritos - algo que se aproxima do que Marx disse no famoso prefácio de 1859: “minhas investigações me conduziram ao seguinte resultado: as relações jurídicas, bem como as formas do Estado, não podem ser explicadas por si mesmas, nem pela chamada evolução geral do espírito humano; essas relações têm, ao contrário, suas raízes nas condições materiais de existência em suas totalidades, condições estas que Hegel, a exemplo dos ingleses e franceses do século 18, compreendia sob o nome de ‘sociedade civil-burguesa’. Cheguei também à conclusão de que a anatomia da sociedade civil-burguesa deve ser procurada na economia politica.” (MARX, 2009, p. 47)
  • 18
    Importante notar que, neste momento da obra marxiana, a expressão sociedade civil-burguesa já se torna também sinônimo de sociedade capitalista.
  • 19
    Como diz Marx sobre a religião: “a miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração, assim como o espírito de estados de coisas embrutecidos. Ela é o ópio do povo. A supressão [Aufhebung] da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real. A exigência de que abandonem as ilusões acerca de uma condição é a exigência de que abandonem uma condição que necessita de ilusões. A crítica da religião é, pois, em germe, a crítica do vale de lágrimas, cuja auréola é a religião.” (MARX, 2005, p. 145-146)
  • 20
    A passagem trata da economia política, mas relaciona-se à política também: “a burguesia tinha conquistado poder político na França e Inglaterra. A partir de então, a luta de classes assumiu, na teoria e na prática, formas cada vez mais explícitas e ameaçadoras. Ela fez soar o sino fúnebre da economia científica burguesa. Já não se tratava de saber se este ou aquele teorema era ou não verdadeiro, mas se, para o capital, ele era útil ou prejudicial, cômodo ou incômodo, subversivo ou não. No lugar da pesquisa desinteressada entrou a espadacharia mercenária, no ugar da pesquisa científica imparcial entrou a má consciência e a má intenção da apologética.” (MARX, 1996, p. 135-136)
  • 21
    Aqui não poderemos tratar do desenvolvimento posterior da obra marxiana. No entanto, podemos dizer que acreditamos que a análise do autor se aprofunda e é mais detalhada. Isto se dá, no entanto, sem que haja uma contraposição entre o “jovem Marx” e um “Marx maduro”.
  • 22
    A noção não é retomada por Marx posteriormente. Mas há claramente uma continuidade temática na contraposição entre revolução política e social, presente tanto nas Glossas marginais quanto nos textos sobre a situação política de sua época, principalmente, aqueles sobre a França. Cf. MUSETTI, 2015.
  • 23
    Marx, posteriormente, em 1847, criticaria Proudhon justamente neste ponto: “vejamos agora que modificações o Sr. Proudhon impõe à dialética de Hegel ao aplicá-la à economia política. Para o Sr. Proudhon, toda categoria econômica tem dois lados - um bom, outro mau. Ele considera as categorias como o pequeno burguês considera os grandes homens da história: Napoleão é um grande homem; fez muita coisa boa mas, também, fez muita coisa má. O lado bom e o lado mau. A vantagem e o inconveniente, tomados em conjunto, constituem, para o Sr. Proudhon, a contradição em cada categoria econômica. Problema a resolver: conservar o lado bom, eliminando o mau.” (MARX, 1989, p. 107-108)
  • 24
    Diz Marx sobre o direito humano à liberdade: “a liberdade equivale, portanto, ao direito de fazer e promover tudo que não prejudique a nenhum outro homem. O limite dentro do qual cada um pode mover-se de modo a não prejudicar o outro é determinado pela lei do mesmo modo que o limite entre dois terrenos é determinado pelo poste da cerca. Trata-se da liberdade do homem como mônada isolada recolhida dentro de si mesma. […] No entanto, o direito humano à liberdade não se baseia na vinculação do homem com os demais homens, mas, ao contrário, na separação entre um homem e outro. Trata-se do direito a essa separação, o direito do indivíduo limitado, limitado a si mesmo. A aplicação prática do direito humano à liberdade equivale ao direito humano à propriedade privada.” (MARX, 2010 b, p. 48-49)
  • 25
    Diz Marx sobre o direito humano à igualdade: “a égalité, aqui em seu significado não político, nada mais é que igualdade da liberté acima descrita, a saber: que cada homem é visto uniformemente como mônada que repousa em si mesma.” (MARX, 2010 b, p. 49)
  • 26
    Como aponta Marx, “o direito humano à propriedade privada, portanto, é o direito de desfrutar a seu bel prazer (à son gré), sem levar outros em consideração, independentemente da sociedade, de seu patrimônio e dispor sobre ele, é o direito ao proveito próprio. Aquela liberdade individual junto com esta sua aplicação prática compõem a base da sociedade burguesa. Ela faz com que cada homem veja no outro homem, não a realização, mas, ao contrário, a restrição de sua liberdade. Mas, acima de tudo, ela proclama o direito humano, ‘de jouir et de disposer à son gré de ses biens, de ses revenus, du fruit de son travail et de son industrie’.” (MARX, 2010 b, p. 49)
  • 27
    Sobre a segurança, diz-se: “a segurança é o conceito social supremo da sociedade [civil-]burguesa, o conceito da polícia, no sentido de que o conjunto da sociedade só existe para garantir a cada um de seus membros a conservação de sua pessoa, de seus direitos e de sua propriedade.” (MARX, 2010 b, p. 49)
  • 28
    Note-se que Marx não está simplesmente mimetizando uma terminologia de Feuerbach; antes, o autor traz um desenvolvimento original do tema da generidade. Trata-se de uma abordagem que enfoca, sobretudo, o caráter social, histórico e ativo da noção.
  • 29
    Sobre a noção de indivíduos associados e de “modo de produção associado” - Marx fala em O capital que “as empresas capitalistas por ações tanto quanto as fábricas cooperativas devem ser consideradas formas de transição do modo de produção capitalista ao modo associado, só que, num caso, a antítese é abolida [aufgehoben] negativamente e, no outro, positivamente” (MARX, 1986 a, p. 334) - Cf. SARTORI, 2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2019
  • Aceito
    23 Fev 2020
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com