Resumo
O presente texto estuda ‘o trabalho’ como atividade humana no mundo do ser social, sem que a prioridade seja a obtenção de riqueza ou uma consequência do modo de produção capitalista. A categoria, no nível de abstração proposto por Lukács, possui prioridade ontológica eis que possui maior capacidade de se articular com um número maior de outras determinações sociais. O próprio método dialético de Marx reforça o sentido ontológico da categoria trabalho de Lukács ao ser analisado como reflexo da realidade segundo a noção de tempo e de sociabilidade.
Palavras-chave: Trabalho; Ontologia; Ser social; Tempo de trabalho; Lukács
Abstract
The present paper studies ‘labor’ as human activity in the world of the social being, disconnected from its wealth priority or a simple consequence of the capitalist mode of production. The labor category, at the level of abstraction proposed by Lukács, has ontological priority, since it has more ability to articulate with a greater number of other social determinations. Marx`s own dialectic method reinforces the ontological sense of Lukács labor category by being analyzed as a reflex of the reality of sociability and notion of time.
Keywords: Labor; Ontology; Social beign; Time of work; Lukács
1. A Categoria Trabalho para Lukács
Lukács constrói, a partir de Marx, um conceito próprio de trabalho. Segundo Infranca (2014, p.11), se trata de um conceito dominante em toda sua obra mas que recebe uma síntese na Ontologia do ser social, e que precede outros conceitos como reprodução, totalidade, estranhamento e práxis.
A análise da categoria trabalho para Lukács não pode ser feita de forma idealista, na qual as categorias possuem “vida autônoma”, separadas e anteriores à sua própria manifestação na realidade. A categoria decorre da sua manifestação histórica nas relações sociais concretas, como formas de ser dessas sociedades. É assim que Lukács introduz a lógica materialista do mundo, pois a sua análise sobre o trabalho - objeto do presente texto - é um desdobramento do capítulo 5, do Livro I, de O Capital, de Karl Marx.
A atividade humana mais primitiva e primordial é o trabalho. Através dele o homem se relaciona com a natureza, transformando-a e transformando a si. Por meio do trabalho o homem interage com outros indivíduos, em busca de atender às suas necessidades, produzindo coisas úteis.
Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. (...) Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporeidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural como forma útil para a sua própria vida. Ao atuar por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modifica-la, ele modifica ao mesmo tempo a sua própria natureza.” (MARX, 2002, p. 142).
Essa atividade prática é fundamental para compreender toda e qualquer sociedade inserida na história, pois no trabalho se encontram os fundamentos materiais da sociedade.
A sociabilidade humana inaugura-se, nos primórdios do paleolítico, com o trabalho, expressão da relação do homem com a natureza para produzir coisas que satisfaçam suas necessidades vitais.
“(...) para viver, é necessário, antes de mais nada, beber, comer, ter um teto onde se abrigar, vestir-se etc. O primeiro fato histórico é, pois, a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material;” (MARX, ENGELS, 2007, p. 33).
Assim, todos os seres vivos interagem com a natureza e entre si de modo a garantir sua existência. Porém, o homem não produz apena para suprir sua necessidade física imediata, mas produz inclusive e mais propriamente quando liberado dessa necessidade de sobreviver; diferente do animal, o homem produz conscientemente (atividade autogovernada) e antecipando um fim (teleologicamente).
“Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de sua colmeia. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele constitui o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e, portanto, idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação na forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de atividade e ao qual tem subordinada sua vontade.” (MARX, 2002, pp.149-150).
É o trabalho que distingue o homem dos demais animais, fazendo-o humanizar a si e a natureza, imprimindo nela sua marca e produzindo nela modificações.
A atividade teleológica exprime a liberdade humana que transforma a natureza, inovando a realidade e criando o mundo no qual efetivamente vive. É neste ponto que a crítica ontológica é uma crítica da lógica materialista do mundo e da lógica de produção capitalista do trabalho em especial. Segundo Lukács o trabalho abstrato, por exemplo, somente existe no capitalismo.
Por outro lado, tal vontade livre e teleológica encontra limites na própria natureza e suas leis causais. Para que se concretize aquilo idealizado é necessário que o conhecimento da natureza tenha atingido um nível apropriado, v.g. como o sonho de voar, de Ícaro a Leonardo da Vinci, somente veio a ser alcançado por Santos Dumont.
Para produzir, os homens organizam-se socialmente e estabelecem relações sociais, que vão, elas mesmas, gerar novas necessidades e novos modos de satisfazer essas necessidades. O trabalho passa, então, a ser a cooperação entre pessoas, orientada (teleologicamente) à produção de coisas úteis para suprir as necessidades sociais. O trabalho, assim, é uma forma de práxis social que constitui a própria realidade, relacionando os aspectos subjetivos (vontade e teleologia) com os aspectos objetivos (causalidade, necessidade e natureza) da atividade humana social, e, transforma o próprio sujeito e o objeto.
Eis o caráter ontológico, essencial do trabalho na constituição do ser humano e da sociedade. Assim como o ser humano não pensa, porque quer, mas por uma condição racional que lhe é inerente, também o trabalho se dá por uma exigência indeclinável de seu ser social que é um ser voltado para a relação com o outro. Trabalho e cultura são então regidos por uma essencial complementaridade.
O trabalho constitui o princípio do processo de humanização do homem, permitindo sua passagem do estágio meramente animal para um estágio no qual emergem as características peculiares do ser humano, e, dentre elas, a teleologia como ato consciente e criativo (INFRANCA, 2014, p.30).
Lukács compreende que não é possível descrever todos os momentos de transformação do trabalho desde o homem animalesco até o atual. Recorre à categoria do “salto”, pois se somos capazes de descrever o estágio anterior e o sucessor, é impossível reconstituir o exato momento da passagem de um ao outro, senão idealmente.
“(...) encontra-se ‘a priori’ descartado qualquer experimento que possa nos fazer regressar ao momento de passagem da prevalência da vida orgânica para a sociedade. É precisamente a irreversibilidade ligada ao caráter histórico do ser social que nos impede de reconstituir por meio de experimentos o ‘hic et nunc’ desse estágio intermediário (...). O salto, porém, continua a ser um salto, e em última análise pode ser conceitualmente esclarecido apenas por meio do experimento ideal de que falamos.” (LUKÁCS, 2010, pp. 203-4)
Destacam-se, dentre essas transformações, releva compreender as novas formas (morfologias) do trabalho, da classe trabalhadora e a afirmação de que tais categorias permanecem centrais na análise da realidade social e sua organização.
Em cada período histórico para ter-se em conta como se reproduz a vida (individual e, sobretudo, social) é preciso verificar, antes de tudo, as formas estabelecidas de distribuição dos meios de produção e o tipo de divisão do trabalho numa dada sociedade.
A cada época, um determinado modo de produção está ligado a um modo de organização das relações sociais (religiosas, políticas, administrativas, financeiras, etc). Assim, a distribuição dos produtos numa sociedade somente pode ser compreendida quando se antevê como se distribuem os instrumentos de produção e como se distribuem os membros da sociedade pelos distintos gêneros de produção. Essa divisão do trabalho corresponde, em cada momento histórico, a formas de organizar as relações sociais.
Assim, a distribuição dos produtos numa sociedade somente pode ser compreendida quando se antevê como se distribuem os instrumentos de produção e como se distribuem os membros da sociedade pelos distintos gêneros de produção. Essa divisão do trabalho corresponde, em cada momento histórico, a formas de organizar as relações sociais.
Sendo um ser social, o homem converte todo trabalho humano em fato coletivo e desenvolve tanto a cooperação quanto a divisão social do trabalho (isto é, especialização de funções), o que ocorre ainda em tempos primitivos, com a verificação de um excedente produtivo que vem a ser ampliado, tornando possível a troca.
Lukács compreende que o sujeito histórico principal passa a ser o trabalhador. Porém essa compreensão se afasta da maneira idealista, feitichizada, porque se dá no contexto da práxis histórica. A historicidade em Lukács, assim como em Marx, torna-se o princípio, o fundamento do ser. Em ambos se supera o fundamento estático e transcendental parmenídeo, para se tornar num fundamento imanente, centrado na transformação contínua (INFRANCA, 2014, p. 27)
A [ontologia de Marx] vai além da dinâmica abstrata de um ´tudo flui` no sentido de uma dinâmica heraclitiana abstrata, e mostra que a nova ontologia pode e deve reduzir a antiquíssima oposição de princípios, insolúvel do ponto de vista lógico ou da teoria do conhecimento, de Heráclito ou dos eleatas, a uma cooperação contraditória e desigual dos dois momentos do processo irreversível do ser” (LUKÁCS, 2010, p. 328)
A partir de então o trabalho é fundamento da sociedade humana e produz valor de uso. Lukács vê a inter-relação entre homem-objeto e natureza e demostra a diferença entre o comportamento do trabalho com o do animal. Aparece a figura da produtividade do trabalho, com a jornada de trabalho e apropriação do tempo pelo capitalismo. Essa relação de trabalho-capital e tempo apropriado é central na visão de Lukács. Pois quanto mais um trabalhador produz, no sistema capitalista, maior é seu valor de uso, com a mesma intensidade (produtividade não se confunde com intensidade).
Num primeiro momento, produção e troca têm como finalidade apenas o uso, a manutenção do produtor de sua comunidade. Posteriormente, com a sofisticação das relações de produção e de especialização, as trocas são redimensionadas com o dinheiro, permitindo a produção de mercadorias e a acumulação de capital.
O desenvolvimento das forças produtivas possibilita novas e sucessivas divisões do trabalho até permitir que não produtores (pessoas, empresas, classes ou o Estado, por exemplo) passem a se apropriar privadamente de uma parcela do que é produzido pelo conjunto dos produtores diretos, desenvolvendo-se daí a divisão da sociedade em classes.
Neste passo, o trabalho gradativamente vai se separando de suas condições objetivas de realização, se afastando dos meios naturais com os quais se relaciona e dos quais se apropria. Isso ocorre, sobretudo, a partir das relações escravistas de produção e da entronização da propriedade privada da terra. É então que surge a exploração do trabalho alheio.
Desde as cidades-Estado antigas já se encontram os ofícios dos artesãos, mas foi na Idade Média que eles encontraram um peculiar desenvolvimento. Com o aumento da demanda, os artesãos ou mestres passaram primeiro a contratar mais auxiliares, para trabalharem sob suas ordens. Porém, o trabalho exigia um tempo de aprendizado, ao término do qual tornavam-se companheiros assalariados.
Posteriormente, os mestres tiveram que se unir através das corporações de ofício, autodisciplinadas por Estatutos progressivamente mais rígidos.
Em sendo os mestres os ocupantes do poder político nas cidades, o poder econômico das corporações fez-se estender por praticamente toda a atividade produtiva urbana, fazendo desaparecer a liberdade de iniciativa e de trabalho em face das regalias dos mestres de ofício. A disputa entre as cidades por companheiros qualificados acirra a crise do sistema corporativo, de cujas entranhas surge o liberalismo no séc. XVI.
As manufaturas já coexistiam com as corporações, e nelas o trabalho era desempenhado com menor exigência de domínio técnico do que no trabalho artesanal das corporações. O trabalho era manual ou em máquinas movidas pelo próprio trabalhador.
Fatores que definem o aumento de produtividade do trabalho são: a) maior habilidade do trabalho; b) ciência da tecnologia transformada em produção; c) maior volume dos meios de produção; d) maior domínio do meio ambiente e extração dos recursos naturais e frutos da terra. A Revolução Industrial, a partir do século XVIII, impõe definitivamente a indústria e, com ela, a consolidação econômica do capitalismo e sua ideologia de dominação.
A separação entre trabalhador e meios de produção (apropriados da natureza ou criados pelo homem) finalmente se completa sob o capitalismo, quando o produtor é reduzido a simples força de trabalho e a apropriação da natureza se reduz à propriedade privada dos meios de produção.
A mobilização das consciências encontra barreiras em uma sociedade que vive a expansão do capital. A captura do mundo ocorre na fetichização do objeto (LUKACS, 2013, p. 109). A separação entre trabalhador e meios de produção (apropriados da natureza) finalmente se completa sob o capitalismo, quando o produtor é reduzido a simples força de trabalho e a apropriação da natureza se reduz à propriedade privada dos meios de produção.
O desenvolvimento das forças produtivas chega à fase capitalista convertendo o trabalho em trabalho alienado. Subtraídos os meios de produção, resta ao trabalhador, para sobreviver, alienar sua força de trabalho, levando à última instância a estratificação social em classes detentoras e não detentoras dos meios de produção.
Desta forma, o capitalismo inverte a potencialidade do trabalho como elemento humanizador, reduzindo-o a instrumento de geração de riqueza privada. O trabalho, que inicialmente objetiva a condição humana na realidade física e social, passa a relaciona-se com essa realidade como alienação para outrem, cuja consequência é o estranhamento.
Ao invés de o trabalho servir para a autorrealização plena e livre do ser humano; ao invés de mediar sua própria individualidade e seu gênero criativo, sob o império do capital, o trabalho transforma-se justamente no oposto que castra a liberdade e a criatividade do homem, até lhe converter no animal mais inferior, mais bestializado.
No capitalismo o trabalho é além de alienado, estranhado, isto é, independente e hostil ao produtor (o trabalhador), como nos ensina Marx. Isso significa em síntese que:
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1) O trabalhador é estranho ao produto de seu trabalho; não se identifica com esse produto, que nem lhe pertence, nem possui nada de peculiar de sua marca individual. É simplesmente uma mercadoria transferida por ele para um terceiro. Assim se comporta em relação ao produto produzido por ele como também os demais produtos produzidos pelos outros trabalhadores, e, enfim, em relação a todos os objetos naturais do mundo externo. Estas coisas cada vez mais vão ditando o modo de ser das pessoas. Quanto mais o trabalhador produz, mais é dominado por essa profusão de produtos (mercadorias), pela baixa qualificação exigida para o seu trabalho e pela constante ilusão de um dia adquirir tais produtos, mas que potencializa a sua própria exploração.
“O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais sua produção aumenta em poder e em extensão. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata quanto maior o número de bens produz. Com a valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz apenas mercadorias; produz-se a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e justamente na mesma proporção com que produz bens” (MARX, 2004, p. 159).
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2) O trabalhador é estranho ao próprio trabalho. Uma vez que sua força de trabalho é convertida em mercadoria, tampouco a atividade de trabalhar está sob seu domínio. Ele a percebe como estranha a si próprio, e ao passar a maior parte do temo de sua vida no trabalho, ele passa a estranhar a própria vida, se alienando de si mesmo. Daí a ânsia constante pelo fim do expediente e o alívio na sua chegada, revelador do sofrimento que consiste o trabalho.
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3) O trabalhador é estranho à vida genérica do ser humano. Quando justamente a atividade vital e consciente, que o distinguiria dos demais animais torna-se apenas meio de subsistência para o trabalhador, este deixa de ser livre para desenvolver toda sua potencialidade criativa. Vive para trabalhar e trabalha para obter as condições mínimas que permitam continuar trabalhando: um pouco de comida, um lugar para dormir algumas horas, alguma roupa para se proteger do frio, etc. Em suma, supre minimamente suas necessidades biológicas, animais. A rigor ele só se sente livre em suas funções animais - comer, beber e procriar - e em suas funções humanas (no trabalho) se sente como um animal (MARX. 2004, p. 163).
O produtor direto, isto é, o trabalhador converte-se num simples apêndice da máquina, mera peça de fácil e barata reposição. O salário serve para conservar o trabalhador como qualquer outro instrumento produtivo. No mundo capitalista, o trabalho aparece como atividade externa, forçada, imposta compulsoriamente pelos ditames da sobrevivência, de tal modo que, “se pudessem, os trabalhadores fugiriam do trabalho como se foge de uma peste!” (MARX. 2004, p.168).
Por conseguinte, o trabalhador termina por tornar-se estranho aos outros trabalhadores e aos demais indivíduos. O processo de produção, que nasce da cooperação coletiva dos trabalhadores, aparece aos seus olhos como um poder alheio, sobre o qual não tem controle, não sabem de onde procede e que dirige seus atos e suas vontades. O próprio capitalista, senhor de sua riqueza, dela converte-se em escravo. A sociedade capitalista encerra as pessoas num crescente individualismo possessivo, desumaniza os homens, brutaliza-os ao naturalizar sua prescindibilidade para o capital.
Sem trabalho e sem salário, para o capital, o ser humano sequer existe. Suas relações são bestializadas, como animais que agem por instinto de sobrevivência.
Desta forma, é preciso salientar que a vida e a autorrealização humanas, individual e coletiva, não se resumem exclusivamente à esfera do trabalho.
Por abstração intelectual Lukács reconstrói a gênese das categorias do trabalho, o qual passa a ser universal enquanto o trabalho realiza o homem no sentido ético, humanizador, mas que as diversas formas históricas vão alienando. (LUKÁCS, 2013, p. 123).
2. A especificidade do ser social em Lukács.
Lukács se dispõe a analisar o ser social, a sociedade humana, desde uma perspectiva ontológica. Mas distingue sua perspectiva daquelas outras idealistas, seja em Aristóteles, Kant, Hegel e as demais. Na introdução da Ontologia do ser social deixa clara essa distinção:
“Portanto, só em Marx o problema adquire o seu justo perfil. Antes de tudo, ele vê com clareza que há toda uma série de determinações categoriais, sem as quais nenhum ser pode ter seu caráter ontológico concretamente apreendido. Por essa razão, a ontologia do ser social pressupõe uma ontologia geral. Porém, essa ontologia não pode ser de novo distorcida em teoria do conhecimento. Não se trata aqui de uma analogia ontológica com relação entre a teoria do conhecimento geral e os métodos específicos das ciências singulares. Trata-se, ao contrário, do fato de que aquilo que é conhecido numa ontologia geral nada mais é do que os fundamentos ontológicos gerais de todo ser.
(...) Entretanto, este é apenas o primeiro e indispensável pressuposto para a correta visualização do nosso problema, O próximo passo, dado por Marx, (...) consistiu em conferir uma posição central ao espelhamento dialético da realidade objetiva.
(...) O segundo pressuposto essencial para o conhecimento da especificidade ontológica do ser social consiste em entender o papel da práxis em sentido objetivo e subjetivo. (...) Em outras palavras, objetivamente o ser social é a única esfera da realidade na qual a práxis cumpre um papel de ‘conditio sine qua non’ na conservação e no movimento das objetividades, em sua reprodução e em seu desenvolvimento. E, em virtude dessa função singular na estrutura e na dinâmica do ser social, a práxis é também subjetiva e gnosiologicamente o critério decisivo de todo conhecimento correto (mais tarde consideraremos como essa concepção universal da práxis foi estreitada, tratada de modo puramente imediato e, assim, desfigurada na filosofia moderna, no pragmatismo e no behaviorismo).” (LUKACS, 2012, pp. 27-8)
No Pensamento vivido, Lukács comenta sobre um daqueles que seriam os principais defeitos de sua obra de juventude, História e consciência de classe, publicada em 1923: “o erro fundamental de todo o livro é que eu, na verdade, reconhecia apenas o ser social como ser e rejeitava a dialética da natureza” (LUKÁCS, 1999, p. 78). Com efeito, se pode ler em um dos momentos da obra que a:
“Restrição do método à realidade histórico-social é muito importante. Os equívocos surgidos a partir da exposição de Engels sobre a dialética baseiam-se no fato de que Engels - seguindo o mau exemplo de Hegel - estende o método dialético também para o conhecimento da natureza” (LUKÁCS, 2003, p. 69).
Há aqui uma preocupação com a difusão de certas passagens engelsianas que concebem a distinção entre o natural e o social como sendo apenas quantitativa e não qualitativa (cf. ENGELS, 1979, p. 85). A preocupação não é fora de propósito. De fato, o livro insere-se dentro de uma clara polêmica contra os “oportunistas” da Segunda Internacional que faziam invadir o positivismo no marxismo. Em repúdio a esse positivismo, História e consciência de classe terminou por excluir a possibilidade efetiva de qualquer dialética natureza (o que parecia então uma concessão ao método das ciências naturais).
Para Lukács é o devir do ser social, que tem no trabalho a protoforma do agir humano, que desenvolve valores ético-morais com o sucessivo afastamento das barreiras naturais que só podem se pôr a partir do desenvolvimento da própria praxis humana vital. Assim, o método materialista dialético captura essa determinação ontológica, esse sistema de valores éticos socialmente reais, fundados no trabalho.
“O tertium datur em relação a esses dois extremos só pode ser oferecido pelo método dialético. Somente por meio desse método se pode evidenciar que a gênese ontológica de uma nova especifica de ser já traz em si as suas categoriais decisivas - e por isso o seu nascimento significa um salto no desenvolvimento -, mas que essas categorias, de inicio, apenas estão presentes em si, e o desdobramento do em-si ao para-si deve ser sempre um longo e desigual e contraditório processo histórico”. (LUKÁCS, 2013, p. 110).
Como se sabe, Lukács supera os erros de seus anos de aprendizagem do marxismo com a leitura dos Manuscritos de 1844, escritos por Marx e publicados apenas em 1932.
Com eles à mão, Lukács reconheceu que a afirmação das mediações naturais não significa necessariamente a equalização entre a natureza e a sociedade. Nesse texto, Marx determina a condição ontológica do devir humano ao escrever que “o homem vive da natureza: quer dizer, a natureza é seu corpo, com o qual tem de manter-se em constante intercâmbio para não morrer” (MARX, 2004, p. 164). E, logo em seguida, sem fazer concessão teórica a nenhuma forma de positivismo, coloca o trabalho como a categoria diferenciadora entre o modo de ser social em face do ser natural:
“O animal identifica-se imediatamente com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É a sua própria atividade. Mas o homem faz da sua atividade vital objeto da vontade e da consciência. Possui uma atividade vital consciente. Ela não é uma determinação com a qual ele imediatamente coincide. A atividade vital consciente distingue o homem da atividade vital dos animais.” (MARX, 2004, pp. 164, 165).
Lukács retém a lição marxiana: a atividade vital consciente especifica o ser social (sendo sua protoforma) diante da natureza. Trata-se daquilo que Marx, em O capital, denominaria de “processo em que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material coma natureza” (MARX, 2002, p. 211). O impulso, a regulação e o controle de seu intercâmbio com a natureza são características peculiares à práxis humana.
No trabalho, o homem toma alguma coisa da natureza, o objeto do trabalho, e arranca-o de sua conexão natural, submete-o a um tratamento pelo qual as leis naturais são aproveitadas teleologicamente em uma posição humana de fins. Isso se intensifica ainda quando aparece na ferramenta uma ‘natureza’ teleologicamente transformada desse modo.
“Assim se origina um processo, submetido sem dúvida às leis da natureza, mas que, como tal processo, não pertence já à natureza, e no que todas as interações são naturais só no sentido que parte do objeto do trabalho, porém sociais no sentido que parte da ferramenta, do processo de trabalho. Este caráter ontológico impõe um selo ao ritmo que assim se origina. Enquanto que no animal se trata simplesmente de que a adaptação fisiológica ao ambiente pode em determinadas circunstâncias produzir algo rítmico, no trabalho o ritmo nasce do intercâmbio da sociedade com a natureza (LUKÁCS, 1982, I, p. 268).
Vê-se a clara distinção entre as legalidades dos dois modos de ser (natural e social).
Pouco antes no texto, Lukács explica que a relação entre o animal e a natureza circundante “é entre potências da mesma ordem de ser: por isso, os ritmos que se podem produzir nessa interação não se desprendem do mundo natural” (LUKÁCS, 1982, I, p. 268). Ao contrário, o homem impõe um “selo ontológico” no produto de seu trabalho. Nos Prolegômenos para uma Ontologia do Ser Social (“pequena ontologia”), Lukács observa o que está implícito na presente discussão: o trabalho humano cria uma objetividade nova, “que não se apresenta na natureza” (LUKÁCS, 2010, p. 18).
3. Consciência e reflexo da realidade em Lukács.
Com o pôr teleológico restrito ao trabalho e à práxis social, o estudo lukacsiano determina um importante momento dessa dinâmica ao dizer que a realização concreta de uma posição teleológica necessita de certo conhecimento da parcela da natureza com a qual se interage. Como é um ato consciente, o trabalho pressupõe um conhecimento concreto, ainda que necessariamente incompleto, das propriedades do objeto.
Trata-se de um conhecimento apropriado à atividade em questão. O operário toma consciência das metamorfoses imediatas do objeto (por exemplo, a cor e luminosidade nos metais incandescentes, na siderurgia) e isso basta para a execução de seu trabalho. Neste contexto, a ciência dos processos físico-químicos não é imprescindível.
Quando fala em conhecimento adequado à realidade, Lukács remonta-nos à categoria do reflexo ou espelhamento, mas não de um modo idealista.
“O espelhamento de que fala Lukács é um processo de reprodução mental dos objetos, e não de criação de objetos segundo modelos apartados dos próprios objetos. O trabalho, da forma como Lukács o compreende, não admite uma separação entre objetos e modelos mentais, que são sempre espelhamentos, e o trabalho é a tradução na realidade de fins que são, por sua vez, modelos mentais sob o controle da necessidade. (...) Com efeito, a impostação de um fim a ser realizado deve passar pelo conhecimento dos nexos naturais que serão empregados ao longo do processo laboral. O espelhamento das conexões causais naturais não encontra lugar apenas na ‘pesquisa dos meios’ - para usar a terminologia da ‘Ciência da Lógica’ hegeliana -, mas também na própria definição do fim a ser realizado e, por conseguinte, em sua realização.” (INFRANCA, 2014, p. 44)
A consciência reproduz refletidamente os atributos específicos ao objeto trabalhado. Essa categoria foi vulgarizada pelo materialismo mecanicista, sendo associada a uma fotocópia estanque do real. O novo papel da consciência, direcionada para o correto conhecimento dos meios naturais, em vista da finalidade laboral, implica o controle do lado emocional animal do ser humano (LUKÁCS, 2013, p. 79).
Em História e consciência de classe, Lukács rejeitava a teoria do reflexo. O reflexo, para o Lukács de 1923, parecia como a mera reprodução das “facticidades rígidas e reificadas da empiria”. Ainda impregnado de certo hegelianismo, Lukács defendia que a consciência proletária transcendia a imediatidade do capital, sendo capaz de objetivar uma realidade “superior” que seria, segundo História e consciência de classe, a verdadeira realidade. Desse modo, “o critério de correção de um pensamento é, com efeito, a realidade. Esta, porém, não é, mas vem a ser - não sem a contribuição do pensamento” (LUKÁCS, 2003, p. 403).
Eis o ponto de vista desenvolvido pelo último Lukács em sua própria noção do reflexo: a consciência não é um epifenômeno. Na natureza, a “resposta” do animal está determinada pela simples adaptação; no homem, ao contrário, a consciência reflete ativamente, impulsionando e controlando o intercâmbio com a objetividade natural - e da práxis em geral. Está escrito na Ontologia do ser social que há no trabalho uma relação entre dois pólos heterogêneos: de uma parte, a apreensão reflexiva, cada vez mais exata, da parcela do ser-precisamente-assim da realidade; de outra, o pôr em movimento de cadeias causais decorrentes do reflexo, da prévia-ideação, da busca dos meios para a execução da atividade. Essa distinção leva Lukács a concluir que “esta primeira descrição do fenômeno mostra como ambos os modos de considerar a realidade, mutuamente heterogêneos, cada um por si e em sua indissociável ligação, formam a base da especificidade ontológica do ser social” (LUKÁCS, 2013, p. 82).
Mediante a reprodução da realidade na forma de um reflexo consciente, consolida-se o distanciamento entre sujeito e objeto. Lukács considera a imagem refletida como uma forma particular de objetividade - que nasce com a nova modalidade de ser - mesmo que não seja materialmente real (cf. LUKÁCS, 2013, p. 84).
A consciência do operariado deveria então superar o reflexo do presente reificado e objetivar a realidade futura. A rejeição da noção de reflexo é uma consequência da identidade entre sujeito e objeto que consta em História e consciência de classe: de acordo com o Lukács de 1923, o reflexo estabeleceria teoricamente a dualidade insuperável no plano da reificação entre a consciência e o ser. Entretanto, como Lessa contesta, isso não significa que não seja possível uma outra concepção dessa categoria (cf. LESSA, 2002, p. 95).
Eis o ponto de vista desenvolvido pelo último Lukács em sua própria noção do reflexo: a consciência não é um epifenômeno.
Na natureza, a “resposta” do animal está determinada pela simples adaptação; no homem, ao contrário, a consciência reflete ativamente, impulsionando e controlando o intercâmbio com a objetividade natural - e da práxis em geral. Está escrito na Ontologia do ser social que há no trabalho uma relação entre dois pólos heterogêneos: de uma parte, a apreensão reflexiva, cada vez mais exata, da parcela do ser-precisamente-assim da realidade; de outra, o pôr em movimento de cadeias causais decorrentes do reflexo, da prévia-ideação, da busca dos meios para a execução da atividade. Essa distinção leva Lukács a concluir que “esta primeira descrição do fenômeno mostra como ambos os modos de considerar a realidade, mutuamente heterogêneos, cada um por si e em sua indissociável ligação, formam a base da especificidade ontológica do ser social” (LUKÁCS, 2013, p. 83).
Mediante a reprodução da realidade na forma de um reflexo consciente, consolida-se o distanciamento entre sujeito e objeto. Lukács considera a imagem refletida como uma forma particular de objetividade - que nasce com a nova modalidade de ser - mesmo que não seja materialmente real (cf. LUKÁCS, 2013, p. 82 e ss).
Para o bem da verdade, é necessário que se frise que são dois momentos heterogêneos, isto é, a reflexão subjetiva não apreende em sua totalidade o objeto, que, por sua vez, não se reduz apenas aos aspectos refletidos. Trata-se então da concretização da ruptura de Lukács com as antigas ideias que nortearam História e consciência de classe, especialmente a noção hegeliana da identidade entre sujeito e objeto.
No que diz respeito às bases inerentes ao desenvolvimento do ser social, Lukács determina suas tendências históricas que se realizam de modo desigual, contraditório e “independente da vontade e do saber que servira de fundamento às posições teleológicas” (LUKÁCS, 1978, 12). São elas:
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1) o movimento no sentido de diminuição do tempo de trabalho socialmente necessário para que os homens se reproduzam;
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2) o processo de reprodução torna-se gradualmente mais social (o “distanciamento das barreiras naturais”) e
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3) a conexão real cada vez mais intensa entre as diversas sociedades (LUKÁCS, 1978, pp. 12-3).
Essas tendências abstraídas por Lukács compõem a essência do desenvolvimento do ser social: “A continuidade da substância no ser social [...] é a continuidade do homem, de seu crescimento, de seus problemas, de suas alternativas” (LUKÁCS, 1979, p. 161). A anatomia da história atual evidencia o desprender paulatino dos homens de sua mera reprodução biológica desde os primórdios do salto ontológico; certamente, as tendências relatadas acima podem resumir-se a uma só expressão: o avanço da sociabilidade.
Precisamente esse estágio de desenvolvimento histórico, que representa um passo imenso no recuo das barreiras naturais (meramente animais), demonstra que o processo não é unilateral. A criação de um mercado mundial é uma contingência da dinâmica da produção capitalista, da “avidez” por força de trabalho e mercado consumidor para apropriação e realização da mais-valia. O avanço da sociabilidade é conduzido tendo a âncora da exploração de sobretrabalho. Além do que, o progresso da sociabilidade abarca os dois polos do processo de reprodução do ser social: a totalidade da sociedade e o homem. Marx descreve a dialética:
“O ato de reprodução em si não muda apenas as condições objetivas, isto é, transformando aldeias em cidades; regiões selvagens em terras agrícolas, etc., mas os produtores mudam com ele, pela emergência de novas qualidades, transformando-se e desenvolvendo-se na produção, adquirindo novas forças, novas concepções, novos modos de mútuo relacionamento, novas necessidades e novas maneiras de falar” (MARX, 2011, p. 494).
Na citação marxiana veem-se exibidos os fundamentos da constituição da individualidade. A singularidade e a generalidade “podem se elevar a pessoa humana e o gênero humano no ser social tão-somente de modo simultâneo, tão-somente no processo que torna a sociedade cada vez mais social” (LUKÁCS, 1978, p. 13).
Visto que Lukács propõe na Ontologia do ser social um princípio do homem e, ligado a ele, um princípio da história, considera que o trabalho serve de modelo para todo ato humano teleológico porque na dialética da estrutura interna do ato laboral se deflagra duas cadeias causais: o indivíduo e o ser histórico-social (INFRANCA, 2014, p. 35)
“Assim, surge entre o indivíduo e o ser social uma forma extremamente particular de relação dialética, através da qual o indivíduo, mesmo que preserve intacta toda a sua autonomia diante do processo social total - do qual necessariamente faz parte como ser também social, além de singular -, precisamente por isso adquire sua determinação, com base sobretudo na posição por ele assumida com respeito aos fundamentos do processo social, ou seja, ao trabalho e suas instâncias constituintes.” (INFRANCA, 2014, p. 35)
Conforme os Prolegômenos para uma ontologia do ser social, a singularidade apenas natural do homem singular correspondia ao estágio da reprodução espontaneamente biológica, que, no seu princípio, é superado por obra do trabalho (LUKÁCS, 2010, p. 57).
Uma vez que a individualidade é historicamente construída, Lukács estabelece:
“Antes de tudo, é já agora evidente que a individualidade do homem não pode de modo algum ser sua qualidade originária, inata, mas sim o resultado de um longo processo de socialização da vida social dos homens, assim como suas possíveis perspectivas, compreensível em sua verdadeira essência somente a partir da história. A gênese sócio-histórica determinada da individualidade humana deve ser posta energicamente no centro de tais análises mesmo porque tanto a ciência social quanto a filosofia da sociedade burguesa inclinam-se a ver na individualidade uma categoria basilar do ser do homem, o fundamento de tudo, que prescinde de vir a ser derivada (LUKÁCS, 2010, p. 66).
De outra parte, quanto menos é desenvolvida uma sociedade, quanto menos lhe é intrínseca a retração dos limites naturais, menor a variedade de questões objetivamente postas para seus membros individuais. A sua diferenciação resulta do desenvolvimento social. À proporção que avança a sociabilidade e a natureza cede espaço à intervenção das categorias sociais, o homem alcança níveis maiores de humanização, de individualidade, da mesma maneira que a generalidade ganha em complexos. A reprodução dos dois pólos da totalidade social é consecução das decisões alternativas dos homens em sua vida cotidiana. Com efeito, essa processualidade recebe determinações mais complexas com as seguintes palavras:
“[Os processos sociais] partem imediatamente de posições teleológicas, determinadas em sentido alternativo, feitas por homens singulares; todavia, dado o curso causal das posições teleológicas, essas desembocam num processo causal, contraditoriamente unitário, dos complexos sociais e de sua totalidade, e produzem conexões legais universais. Portanto, as tendências econômico-gerais que surgem por essa via são sempre síntese de atos individuais; tais atos recebem assim um caráter econômico-social tão explícito que os homens individuais, em sua maioria, sem terem necessariamente uma consciência clara a respeito, reagem às circunstâncias, constelações, possibilidades, etc., que são cada feita típicas, de um modo que também é tipicamente adequado a elas. A resultante sintética de tais movimentos se torna a objetividade do processo global”. (LUKÁCS, 1979, pp 95, 96).
Os homens objetivam-se teleologicamente. E a síntese de seus atos, no entanto, forma uma legalidade rigorosamente objetiva. Não é de se surpreender que Marx tenha abstraído esse processo de suas pesquisas. Quando analisa os efeito socioeconômicos da introdução de nova tecnologia no processo produtivo capitalista, Marx desvenda com exatidão o fato de que a história adquire o caráter de uma legalidade objetiva, embora parta de posições teleológicas individuais. Leiamos:
“O capitalista, que é o primeiro a introduzir as máquinas em um só ramo da produção, produz a mercadoria em um tempo de trabalho menor do que o universalmente necessário. O valor individual de sua mercadoria é, portanto, inferior ao seu valor social. Em consequência, enquanto a produção à máquina deste ramo da produção não se torne dominante em todas as partes, o capitalista pode vender esta mercadoria a um preço maior que seu valor individual, ainda que a venda a um preço inferior a seu valor social” (MARX, 1980, p. 148).
Quer dizer que a introdução primeira da novidade tecnológica permite ao capitalista individual um incremento na taxa de exploração da força de trabalho consumida em sua indústria. Todavia, a partir do momento em que a maquinaria estiver generalizada (graças à concorrência) para toda a produção social e, assim, os demais ramos detiverem a possibilidade de produzir sob os mesmos parâmetros, a sua vantagem dissolve-se. A tendência seria que a exploração de mais-trabalho conseguida por este primeiro capitalista passasse a ser socialmente generalizada; que se pense, por exemplo, nos artesãos que faliram no século XIX haja vista a sua impossibilidade de atingir o valor socialmente estabelecido a partir da revolução industrial. Obtém-se, desta maneira, a evolução processual das forças produtivas que, em um instante inicial, parte de posições teleológicas individuais e, em seguida, engendra uma conexão causal que se impõe como uma lei reiterativa.
4. Tempo no trabalho e alienação para Lukács
Embora o resultado cabal do processo seja em definitivo unitário, isso não quer dizer que haja convergência entre todas as ações individuais e o devir da totalidade social. O homem singular constrói a sua personalidade mediante as respostas dadas às questões postas e, em face da diversidade das demandas e das alternativas, supõe-se que a heterogeneidade seja um aspecto constituinte do devir dos homens singulares. Lukács nota que a individualidade pode mesmo exprimir-se a favor ou contra a determinada etapa da generalidade social da qual participa (LUKÁCS, 2010, p. 65). A heterogeneidade entre a ação de cada indivíduo e a concretização do gênero humano é assim manifesta. Por isso, o processo da generalidade universal e seu modo de apresentar-se na dinâmica prática da reprodução de seus exemplares singulares são apenas em definitivo unitários (LUKÁCS, 2010, p. 67). Isto é, no que diz respeito à realização genérica da humanidade, a sua síntese última estabelece-se como a unidade do diverso.
A contradição entre as evoluções singular e universal é um fenômeno necessário de épocas históricas em que a alienação ocorre tendencialmente.
A impossibilidade de generalização do processo de universalização do homem (humanização) para todos os seres singulares é consequência do atual estágio de desenvolvimento social, no qual o trabalhador é alienado de seu ser genérico, do produto de seu processo de objetivação. Esse entrave é notado por uma lei de tendência trans-histórica, em que o se busca cada vez maior ganho de tempo no trabalho.
Para o Capital o domínio do tempo é a mais crucial forma apropriação, pois para o capitalismo a economia do tempo é um fim estratégico, de um lado impede a redução da jornada de trabalho para a maioria da população e intensifica o processo produtivo dentro e fora da jornada convencional; de outro lado, orienta-se o gasto do tempo para o consumo, igualmente intensificado e difuso, se possível para todo tempo de vida1.
Dessa forma perde-se a humanidade pelo fato de que a sociabilidade do capital se revela cada vez mais indireta, ou seja, a relação social direta é entre as mercadorias e esta medeia a relação entre os homens. Portanto, produzir mercadoria é objetivar a relação social. Uma vez objetivada, coisificada, ela opera independentemente da vontade ou do controle do produtor. Em suma, na sociedade do capital o sentido da produção está perdido para o produtor no próprio ato da produção mercantil.
Marx e Engels dizem que, em estágios historicamente determinados, a multiplicação da força produtiva, que nasce da divisão do trabalho para daí se desenvolver na história, aparece aos indivíduos, por não se tratar de uma cooperação voluntária ou como um poder próprio e racionalmente planejado, senão como um poder alheio, estranho, situado à sua margem, que não sabem de onde procede e sequer para onde se dirige e que, portanto, não podem já dominar (MARX; ENGELS, 2007, p. 32).
Lukács, na Ontologia do ser social, apreende a determinação marxiana ao conceber a alienação como o momento em que o homem criador não se vê na gênese da objetivação, quando esta objetivação não produz a expansão da sociabilidade do homem. Ao contrário, a categoria é uma diminuição à humanização.
Oferece-se novamente outra ruptura da maturidade lukacsiana com História e consciência de classe. Neste livro, Lukács fazia equivaler às formas de objetivação às de alienação. Este é mais um dos resquícios hegelianos daquela obra já que o dialético idealista concebia qualquer processo de objetivação enquanto alienação do espírito. A “falsa identificação” entre as duas categorias distintas foi corrigida pelo célebre Prefácio de 1967:
“A objetivação é, de fato, um modo de exteriorização insuperável na vida social dos homens. Quando se considera que na práxis tudo é objetivação, principalmente o trabalho, que toda forma humana de expressão, inclusive a linguagem, objetiva os pensamentos e sentimentos humanos, então torna-se evidente que lidamos aqui com uma forma universal de intercâmbio dos homens entre si. Enquanto tal, a objetivação não é, por certo, nem boa nem má: o correto é uma objetivação, tanto quanto o incorreto; a liberdade, tanto quanto a escravidão. Somente quando as formas objetivadas assumem tais funções na sociedade, que colocam a essência do homem em oposição ao seu ser, subjugam, deturpam e desfiguram a essência humana pelo ser social, surgem a relação objetivamente social da alienação e, como consequência necessária, todos os sinais subjetivos de alienação interna. Essa dualidade foi ignorada na História e consciência de classe” (LUKÁCS, 2003, p. 27).
Lukács compreende que a objetivação é uma forma universal da existência da humanidade, o que a diferencia terminantemente das formas de alienação. A correta delimitação da categoria da alienação era imprescindível porque, na Ontologia do ser social, Lukács concebe o seu oposto, isto é, a exteriorização. Em seu turno, exteriorização é a retroação positiva da objetividade sobre o homem criador, quando não há obstáculos estranhos entre o homem e o produto de sua práxis. Ocorre no instante em que o reconhecimento do homem em sua prática cotidiana é efetivado, produzindo assim, em um só turno, o desenvolvimento tanto da individualidade quanto da generalidade.
Ambas as categorias - exteriorização e alienação - são retroações do predicado no sujeito; entretanto, o que as caracteriza diz respeito ao conteúdo desse movimento: a primeira gera a evolução da humanidade enquanto que a segunda reproduz a desumanidade - a “dualidade ignorada” em História e consciência de classe. O impulso a um ser social gradualmente mais genérico constitui a essência da exteriorização; exteriorizar-se significa dissolver a lacuna que possivelmente haja entre as aspirações singulares e o devir da própria generalidade.
Exteriorização é uma categoria que não consta originariamente na filosofia de Marx; é uma contribuição inovadora de Lukács à ontologia materialista do ser social. Lukács cinde o pôr teleológico em objetivação e sua exteriorização no sujeito. Assim, a teoria acerca do desenvolvimento do ser social ganha em fundamentação: com a categoria da exteriorização, Lukács consegue ilustrar como em determinadas situações históricas o avanço das forças produtivas não produz necessariamente o avanço da personalidade humana. Enquanto que a objetivação do trabalho é uma ação imperativa dada pela divisão do trabalho, exigindo do homem as capacidades apropriadas, a exteriorização sobre os trabalhadores é em princípio diversificada (LUKÁCS, 2013, p. 582).
Trata-se de um elemento chave para a compreensão do hiato entre o em si do gênero humano e o seu para si; apenas com a categoria da exteriorização (em contraste com a alienação), Lukács explica a relação histórica entre o desenvolvimento do gênero humano e a sua generalização para os indivíduos singulares - esta é, segundo ele, a “verdade mais profunda do marxismo” (cf. LUKÁCS, 1999, p. 170).
A história para Marx é a dimensão real, não transcendente, tampouco única e simples (INFRANCA, 2014, p. 61). Considerando que a história é também a evolução histórica das categorias (ressalte-se que também Lukács admite a historicidade das categorias), poder-se-ia reduzi-las, em termos epistemológicos e ontológicos à categoria da ‘relação’. O trabalho constitui relações e se constitui em relações: Ao buscar satisfazer necessidades relaciona o homem com a natureza, o sujeito ao objeto e o indivíduo à genericidade.
“A mediação aparece, no trabalho, sob a forma de cadeia de alternativas, e estas últimas implicam uma escolha. (...) O trabalho humano, assim, tem a prerrogativa de transformar concretamente a potência em ato, nasce no centro da luta pela existência, permanecendo substancialmente ligado a esse seu nascimento, mesmo quando assume formas nas quais a troca orgânica já se encontra mediada. A mediação social tem o poder de afastar o trabalho de sua gênese, tornando-o sempre mais diferente, do ponto de vista formal. (...) A dimensão original do homem foi apagada por obra do próprio homem, através do trabalho e de seu produto mais autêntico, isto é, o ser social.” (INFRANCA, 2014, p.69)
Assim, para Lukács, o trabalho analisado através do tempo histórico evidencia a transformação do sujeito que trabalha como consequência ontológica necessária do objetivo do trabalho (ser-propriamente-assim do trabalho) (LUKÁCS, 2013, p. 79)
5. Breves notas conclusivas
A historicização permitiria avaliar sua função e também a defasagem entre classes e status, compreendendo que a crítica da economia política é, antes de tudo, uma crítica da ideologia burguesa, logo, que existe uma interação entre formas de opressão e dominação sem que mecanicamente uma guarde primazia em relação às outras.
Isso já fica claro inclusive em Marx que já lobrigava a conversão da exploração da quantidade de trabalho pela qualidade de trabalho, na medida em que crescentemente se imbricasse com a elevação do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia o que necessariamente alteraria o modo de empregar a mão de obra.
Marx parece se referir, 150 anos antes, à revolução informática-telemática e ao tempo dedicado ao supérfluo, ao apontar para a contradição capitalista entre o desenvolvimento das forças produtivas e a manutenção das relações de produção:
“O trabalho não aparece mais tão envolvido no processo de produção quando o ser humano se relaciona ao processo de produção muito mais como supervisor e regulador. (...) Nessa transformação, o que aparece como a grande coluna de sustentação da produção e da riqueza não é nem trabalho imediato que o próprio ser humano executa nem o tempo que ele trabalha, mas a apropriação de sua própria força produtiva geral, sua compreensão e seu domínio da natureza por sua existência como corpo social. (...) O próprio capital é a contradição em processo, pelo fato de que procura reduzir o tempo de trabalho a um mínimo, ao mesmo tempo em que, por outro lado, põe o tempo de trabalho como única medida e fonte da riqueza. Por essa razão, ele diminui o tempo de trabalho na forma do trabalho necessário para aumentá-lo na forma do supérfluo.” (MARX, 2011, pp. 588-589).
Ao apropriar-se da dimensão cognitiva e intelectual do trabalho, o capital, ao revés de emancipar o trabalhador, aumenta os modos de controle e de subordinação, exigindo cada vez maior “envolvimento” e “cooperação” subjetivo e social do trabalhador, pressão que amplia-se pelo pavor de engrossar as fileiras do crescente subproletariado precarizado e dos desempregados.
Nas sociedades contemporâneas o trabalho torna-se uma compulsão. Tal compulsão torna-se um marco da sociabilidade nas sociedades capitalistas. Direito, na visão marxista existe, de um lado, para institucionalizar e controlar as contradições sociais (v.g. Direito Penal e Processual), e, de outro lado, para regular e naturalizar as trocas mercantis calcada na apropriação burguesa do capital (v.g. Direito Civil, Direito do Trabalho e Direito Empresarial). Ao cumprir sua função ideológica, naturaliza e dissemina a visão burguesa de Estado, de indivíduo (sujeito de direito), de propriedade, de família etc., aparecendo como neutro ante a lógica do capital.
É sintomático verificar que na medida em que a ordem jurídica agasalha novos direitos individuais, “reconhecendo” os distintos grupos no varejo das relações intersubjetivas, subtrai dos cidadãos, no atacado, seus direitos sociais e econômicos, conquistados pela luta dos trabalhadores.
Por fim, cumpre observar que a classe trabalhadora não é definida apenas pelas relações de produção, mas constitui-se num longo processo em que se combinam, dentre outros, as relações de propriedade, a divisão social e internacional do trabalho, a correlação de forças na luta política em torno dos interesses do trabalho e do capital, as relações com os aparelhos de Estado, as representações simbólicas e os discursos ideológicos.
Vivem-se tempos de obscurecimento da consciência de classe. A propaganda ideológica pós-moderna generaliza o fetichismo mercantil e a alienação consumista. Difundindo o reino do instantâneo, dos acontencimentos sem passado e sem futuro, da continuidade sem ruptura, somos condenados a viver para sempre no presente.
Porém, mesmo com a atomização e desterritorialização do processo de trabalho na nova empresa flexível, onde a subjetividade do trabalhador é capturada em virtudes empreendedoras, a ideologia hegemônica não conseguiu convencer totalmente que os trabalhadores desapareceram.
Para aqueles que proclamaram solenemente o fim da categoria social do trabalho, o recrudescimento da crise de acumulação do capital nesta quadra da história tem revelado que o sistema do capital precisa de maneira vital do trabalho e dos trabalhadores. Mais: os trabalhadores, a despeito de toda a dominação ideológica, experimentam, na práxis, que não podem conviver com esse poder que lhe arranca a humanidade e destrói todas as formas de vida no mundo.
Resgatar, então o sentido ontológico do trabalho é recriar em boa medida o sentido criativo da vida e da existência dos seres humanos em termos singulares e genéricos.
6. Referências Bibliográficas
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- ______. Grundrisse: Manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política Tradução Mario Duayer, Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.
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- SARTORI, Vitor Bartoletti. Lukács e a Crítica Ontológica ao Direito. São Paulo: Cortez, 2010.
- TERTULIAN, Nicolas. “O grande projeto da ética”. Ensaios, nº 1, tomo 1. São Paulo: Ensaios, 1999.
-
1
Marx demonstra na seção II do Livro 2 de O Capital que o aumento da produtividade, e, portanto, da acumulação capitalista se dá pela aceleração dos ciclos e da rotatividade das formas do capital, dai a necessidade de não apenas se aumentar a intensidade da produção (cujos processos se mostram cada vez mais em tempo real com o emprego da tecnologia mais atual) mas também o tempo de consumo das mercadorias se torna cada vez mais imediato, assim como os processos de fluxo do capital monetário (MARX, 2014, pp. 235-390).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Jun 2020 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2020
Histórico
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Recebido
21 Nov 2019 -
Aceito
31 Dez 2019