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Reescrita como escrevivência: re(orí)entações para a perspectiva feminista do direito no Brasil

Rewriting as escrevivência: re(orí)entations for the feminist perspective of law in Brazil

Resumo

O artigo busca pensar o movimento de reescritas feministas no contexto brasileiro tendo três eixos de preocupação. O primeiro, se dedicará a levantar experiências de reescrita já realizadas (ainda que não com esse nome), sejam elas no enfrentamento direto na esfera jurisdicional, tal como realizado por Esperança Garcia, ou através de Tribunais Populares. O segundo, que tem preocupações ético-metodológicas como pontos de orientação, pretende levantar questões sobre como algumas iniciativas de reescritas têm sido realizadas no Brasil e algumas das implicações que já podem ser percebidas nessas iniciativas. Por fim, buscamos apresentar as reescritas feministas como forma de produção de justiça histórica para grupos historicamente violentados pelo Estado ou através da sua cumplicidade, na mobilização de categorias analíticas a partir do reenquadramento de suas bases históricas, epistêmicas e políticas, como temos percebido através da mobilização do pensamento de Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento e por juristas negras/os, que tem nos permitido falar em reescrevivências do direito. A partir desta análise busca-se verificar como a cultura jurídica brasileira é impactada pelas re(orí)entações historicamente protagonizadas pela insurgência histórica de mulheres negras.

Palavras-chave:
Reescritas Feministas; Escrevivência; Cultura Jurídica

Abstract

The purpose of this article is to reflect on the feminist rewriting movement in the Brazilian context along three lines. The first is dedicated to bringing up experiences of rewriting that have already taken place (though not under this name), whether in direct confrontation in the legal sphere, as carried out by Esperança Garcia, or through People's Courts. The second, guided by ethical-methodological concerns, aims to raise questions about how some rewriting initiatives have been conducted in Brazil and some of the implications that can already be seen in these initiatives. Finally, we seek to present feminist rewritings as a way of producing historical justice for groups that have been historically violated by the state or with its consent, in the mobilization of analytical categories through the reframing of their historical, epistemic, and political bases, as we have seen through the mobilization of the thought of Lélia Gonzalez and Beatriz Nascimento, among others, by black jurists, and which has allowed us to speak of “escrevivências” in law. This analysis aims to examine how Brazilian legal culture is influenced by the re(orí)entations historically led by the historical uprising of black women.

Keywords:
Feminist rewriting; Escrevivência; Legal culture

Introdução

A herança ancestral das mulheres negras marca (in)conscientemente a literatura de Conceição Evaristo, de modo que no lugar de personagens estereotipadas, o compromisso da autora é com a humanização daquelas cujas histórias se (con)fundem com as dela própria (EVARISTO, 2020aSÁ, Gabriela Barretto de. Direito à memória e ancestralidade: escrevivências amefricanas de mulheres escravizadas. 2020. 152 f. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2020.). Em suas palavras:

Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido. E, quando se escreve, o comprometimento (ou o não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência. (EVARISTO, 2020aSÁ, Gabriela Barretto de. Direito à memória e ancestralidade: escrevivências amefricanas de mulheres escravizadas. 2020. 152 f. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2020., s/p).

Nos posicionamos nos projetos de reescritas feministas desse lugar. Para nós, a oportunidade de reescreviver o direito (não apenas decisões judiciais ou institutos jurídicos) é assumida como modo de propiciar a humanização daquelas cujas histórias se (con)fundem com as nossas. E, sobretudo, de desenvolver um pensamento jurídico e práticas formativas que tomem tais experiências como ponto de oríentação1 1 Tal como explicitado em trabalhos anteriores (PIRES, 2021; PIRES e FLAUZINA, 2022), utilizamos a noção de oríentação para significar o que guia/referencia/oríenta, reúne intelecto/memória/pensamento, articulando presente/passado/futuro. Tal construção se realiza através do significado de orí para religiosidades de matrizes africanas. .

Assim como para Conceição Evaristo e outras mulheres negras, foram as palavras, não necessariamente os livros, que nos apresentaram ao mundo que conhecemos. Para Iya Beata de Yemonja, por exemplo, para aprender a ler, recorreu ao que tinha pela frente: jornais velhos usados para embrulhar peixes, o Almanaque Biotônico Fontoura, qualquer escrito ou até mesmo um papel jogado na rua, tornava-se fonte de conhecimento. A menina Beata prestava atenção em tudo, das preparações das comidas aos cantos entoados e às histórias que escutava enquanto a mãe penteava seu cabelo (BARBOSA, 2023BARBOSA, Jefferson. A Mãe do Mundo. Vida e Lutas de Mãe Beata de Yemanjá. Rio de Janeiro: Editora Malê, 2023.). Palavras escritas ou escutadas conformam os termos em que aprendemos a nomear o mundo, a senti-lo, a pensá-lo e a disputá-lo, em razão dos processos de silenciamento e de desqualificação de nossa capacidade de nomeação (SPIVAK, 1997SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Feminismo e desconstrução de novo: negociando com o masculinismo inconfesso. In: BRENNAN, Teresa (org.). Para além do falo: uma crítica a Lacan do ponto de vista da mulher. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Ventos, p. 277-304, 1997.). O epistemicídio (CARNEIRO, 2023CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de Racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.) que marca a cultura jurídica nacional (e tantas outras) negou nossas existências, silenciou os termos que mobilizamos para interpretar a realidade e nos posicionarmos no mundo, produziu uma lógica de controle e inviabilização de nossa vida plena não apenas em enunciados normativos, mas nos contornos e sentidos atribuídos hegemonicamente a muitos de seus institutos, e no modo como foram aplicados por meio de decisões judiciais.

Por isso, a necessidade de reescrever o direito; de trazer marcos históricos, conceituais, epistêmico-metodológicos e formativos que estejam em sintonia com os processos políticos, raciais, sexuais, culturais, econômicos e jurídicos que foram determinantes para integrar as violações a que estamos desproporcionalmente submetidas à própria racionalidade do cistema2 2 Seguimos a proposta feita por Mariah Rafaela Silva (2020) que mobiliza a expressão cistema para evidenciar o impacto do legado colonial na conformação de um sistema de domínio que se espraia do geográfico a técnicas de governo, a partir de concepções de corpo, raça, gênero e sexualidade que sustentam a distribuição desproporcional do poder e da violência ciscolonial. Com a noção de cistema jurídico, queremos chamar a atenção para os impactos da ciscolonialidade impostos e reproduzidos pelo direito. jurídico.

Reescreviver o direito demanda, ainda, a reescrita da formação jurídica. Esse reposicionamento nos impele a alterar práticas de ensino, aprendizagem e vivência; atualizar as fontes de referência; apurar a percepção de si, de com quem se interage e atribuir novos sentidos à interação; promover um ambiente de construção de caminhos possíveis de convivência, sem obliterar as violências que nossas posicionalidades impõem, independentemente de nossas intenções.

Esse artigo representa um dos esforços de compartilhar experiências de reescrita como escrevivência nas dimensões acima esboçadas. Na primeira parte, busca-se apresentar algumas formas de apreensão do direito em pretuguês, experimentadas em momentos históricos distintos por projetos de libertação que procuram responder aos desafios do tempo vivido. “O risco que assumimos aqui é o do ato de falar com todas as suas implicações” (GONZALEZ, 2020, p.77).

Na segunda parte, compartilharemos preocupações ético-metodológicas de propostas de reescritas e reescrevivências, com o objetivo de transbordar a dinâmica da denúncia, abrindo espaço para fabularmos caminhos de oríentação e de atuação, a partir de uma compreensão do direito como contracolonial e, por conseguinte, antirracista, anticapitalista, antisexista, anticapacitista e transformador.

Por fim, destacamos a necessidade da reescrita como produção de justiça histórica e, aliando a “pergunta pelas mulheres” à “retórica do quilombo”, evidenciamos o repertório jurídico insurgente que se espraia em práticas políticas e em modelos de formação que oferecem caminhos de respeito e de liberdade.

1. Escrevivência do direito em pretuguês

A análise da história do direito ao longo da diáspora africana resultante do comércio transatlântico de pessoas escravizadas revela que a cultura jurídica é marcada pela agência de mulheres negras e indígenas na disputa de sentidos sobre os usos da lei. Partindo de tal premissa, identificamos como a diáspora na Améfrica Ladina (re)cria e (re)oríenta a hermenêutica jurídica, ao ser agenciada para garantia de direitos expressos, vivenciados e negociados a partir da narrativa jurídica ladina que marca a história do direito e das relações raciais em Améfrica. Assim, compreendemos a experiência de reescrever o direito enquanto síntese das tecnologias ancestrais de reescritas de usos e sentidos do direito vigente ancestral (SÁ, 2020SÁ, Gabriela Barretto de. Direito à memória e ancestralidade: escrevivências amefricanas de mulheres escravizadas. 2020. 152 f. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2020.), enunciadas em pretuguês.

A compreensão do direito em pretuguês (PIRES, 2019PIRES, Thula. Direitos Humanos traduzidos em pretuguês. In: DUARTE, Evandro; SÁ, Gabriela; QUEIROZ, Marcos (Orgs.). Cultura Jurídica e Atlântico Negro: História e Memória Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. v. 1, p. 47-60., p.55) enquanto categoria analítica implica em assumir a centralidade da situação-limite que a condição de escrava nos obriga a perceber (HARTMAN, 2003HARTMAN, Saidiya V.; WILDERSON, Frank B. The position of the unthought. Qui Parle, v. 13, n. 2, p. 183-201, 2003.), ou da mulher escravizada apontada por Lélia Gonzalez como responsável pela “[...]cultura brasileira, cuja língua é o pretuguês” (GONZALEZ, 1980, p.205). Daí porque reconhecemos a cultura jurídica nacional como espaço costurado pelas mulheres racializadas como não brancas em Améfrica por meio de (re)escrevivências em pretuguês.

A disputa pela (re)oríentação dos sentidos do direito e da justiça pelas mulheres racializadas escravizadas na Améfrica Ladina é sintetizada pela atuação de Esperança Garcia , primeira advogada do Brasil3 3 Em 2017, a Comissão da Verdade da Escravidão Negra da Ordem dos Advogados do Brasil no Piauí (OAB-PI) publicou uma pesquisa intitulada “Dossiê Esperança Garcia: Símbolo de Resistência na Luta pelo Direito” (SOUSA, 2017). O documento subsidiou e integrou o processo de incidência para o reconhecimento, pela OAB-PI, de Esperança Garcia como a primeira mulher advogada piauiense. Em 25 de novembro de 2022, o Conselho Pleno da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Nacional reconheceu Esperança Garcia como a primeira advogada do Brasil. . Ao mobilizar a tecnologia de reescrita do direito colonial, Esperança Garcia insere na cultura jurídica as escrevivências partilhadas pelas mulheres escravizadas, negras e indígenas, que viviam na fazenda dos Algodões no interior do Piauí, em 1770, mas que ainda hoje é mobilizada no repertório de luta por direitos de comunidades tradicionais quilombolas e "faz configurar o âmbito da comunidade política brasileira instituída na CF/88 como campo permanente de disputa pelos sentidos da Constituição" (SOUSA, 2019SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de. Prefácio. Pertencimento territorial como liberdade: direito e política como unidade na resistência quilombola por pertencimento territorial. In GOMES, Rodrigo Portela. Constitucionalismo e quilombos: famílias negras no enfrentamento ao racismo de Estado. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. s/n., s/n):

Ao conseguir um provável apoio, Esperança Garcia utilizou a escrita como ferramenta para criticar as posturas dos inspetores das fazendas nacionais, sugerindo que os mesmos agissem de acordo com as regras jurídicas e religiosas dos colonizadores, que concediam aos súditos prerrogativas simples, como as de se conservarem cristãos, constituírem famílias e batizarem seus filhos nos preceitos do catolicismo. É nesse momento que Esperança Garcia deixa entrever suas qualidades de intérprete da escravidão e do direito português. (SOUSA et al., 2017SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de et all. Dossiê Esperança Garcia. Símbolo de Resistência na luta pelo direito. Teresina: EDUFPI, 2017., p.20)

Além de rasurar a narrativa hegemônica que silencia sobre a agência de mulheres negras e indígenas enquanto importantes interlocutoras e (re)escritoras do direito nacional, a carta de Esperança Garcia aponta para aquilo que consideramos enquanto patrimônio de escrevivências (SÁ, p.47, 2020SÁ, Gabriela Barretto de. Direito à memória e ancestralidade: escrevivências amefricanas de mulheres escravizadas. 2020. 152 f. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2020.), aqui entendido como dimensão integrante do importante legado civilizatório amefricano mobilizado nas disputas jurídicas. Assim, o pretuguês é forma de tradução e reescrita dos direitos, elaborada a partir das escrevivências ladinas de mulheres na diáspora.

Ao analisar a experiência do Projeto de Reescrita de Decisões Judiciais em Perspectivas Feministas no Brasil, Fabiana Severi (2023SEVERI, Fabiana et all. Reescrevendo decisões judiciais em perspectivas feministas: a experiência brasileira. Fabiana Cristina Severi (Org.). Ribeirão Preto: IEA/FDRP-USP, 2023., p. 45) destaca que "ao mesmo tempo em que a prática de reescrita de decisões perturba as certezas jurídicas que sustentam as decisões originárias, ela também pode aumentar os compromissos éticos e políticos entre acadêmicas e profissionais do sistema de justiça". Em diálogo com a autora, reafirmamos que, situar o protagonismo de mulheres negras e indígenas na ação de reescrita do direito deve ser premissa oríentadora para propostas teórico-metodológicas de reescrita de decisões judiciais em perspectiva feminista no contexto brasileiro. Ou seja, cumpre reconhecer que, muito antes da sistematização téorica de métodos jurídicos antirracistas e feministas, a experiência da diáspora africana na Améfrica Ladina forçou a elaboração de uma hermenêutica em pretuguês responsável por perturbar as certezas do controle social exercido pelo direito durante a vigência da escravidão formal e ante às suas distintas formas de reatualização.

Conceição Evaristo (EVARISTO, 2020bSÁ, Gabriela Barretto de. Direito à memória e ancestralidade: escrevivências amefricanas de mulheres escravizadas. 2020. 152 f. Tese (Doutorado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2020., p. 54) afirma que “a nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”. A nossa reescrita não se propõe a acomodar as violências estruturais ao que a abstração liberal-escravista propõe como métrica para o Estado Democrático de Direito. Daí o nosso argumento e aposta na escrevivência enquanto categoria analítica adequada para compreensão da reescrita do direito e da cultura jurídica como estratégia de denúncia e disputa normativa dos contratos raciais e sexuais cisheteronormativos que constituíram o direito ocidental. É dizer, Esperança Garcia mobilizou escrevivências suas e de suas companheiras ao peticionar direitos e prerrogativas que reivindicou ser destinatária, a partir da reoríentação inicial da sua condição de pessoa e não "de sujeito escravizado, despido de prerrogativas legais e jurídicas." (SOUSA et al., 2017SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de et all. Dossiê Esperança Garcia. Símbolo de Resistência na luta pelo direito. Teresina: EDUFPI, 2017., p.59).

Analisando as conclusões verificadas na experiência de reescrita de decisões judiciais, Fabiana Severi (2023SEVERI, Fabiana et all. Reescrevendo decisões judiciais em perspectivas feministas: a experiência brasileira. Fabiana Cristina Severi (Org.). Ribeirão Preto: IEA/FDRP-USP, 2023., p.56) aponta que "uma das evidências mais fortes produzidas pela nossa experiência diz respeito à baixa qualidade técnica das decisões judiciais brasileiras", realidade que culmina com a recorrência de decisões judiciais em que "as fundamentações originais reproduzem estereótipos variados que definem um desfecho para o caso bastante prejudicial às mulheres ou pessoas em vulnerabilidade envolvidas." (SEVERI, 2023SEVERI, Fabiana et all. Reescrevendo decisões judiciais em perspectivas feministas: a experiência brasileira. Fabiana Cristina Severi (Org.). Ribeirão Preto: IEA/FDRP-USP, 2023., p.56). A partir do diagnóstico apresentado pela autora, parece-nos oportuno refletir sobre a permanência do racismo e sexismo cisheteronormativo como marcadores que, a despeito das pretensões liberais de igualdade e imparcialidade, historicamente operam em desfavor de populações marginalizadas.

Neste sentido, destacamos a estratégia de atuação de Luiz Gama4 4 Quando encontramos referências a Luiz Gama (1830-1822) em livros e manuais de direito, normalmente ele nos é apresentado como rábula. Autodidata, nascido livre, escravizado e libertado, para ele o abolicionismo não se dava em abstrato e sua atuação nos tribunais é reconhecida por ter proporcionado em pleno período imperial - quando a escravidão integrava o regime jurídico de forma oficial - a libertação através do direito e centenas de pessoas escravizadas. Em 2015, a OAB reconheceu Luiz Gama como advogado, como forma de reparar a injustiça histórica de seu não reconhecimento como um dos principais advogados do país. Pesquisas recentes do historiador e jurista Bruno Rodrigues de Lima, pesquisador do Instituto Max Planck, revelam que a desqualificação de Luiz Gama como rábula passou a ocorrer anos após a sua morte, como forma do racismo decretar nossa morte social, mesmo quando a morte física já ocorreu. Através de documentos da época, Bruno Lima comprova que todos os documentos referiam-se à Gama como advogado. Naquele contexto, o exercício da advocacia não era restrito à bacharéis de direito, mas poderia ser exercido por quem tivesse o reconhecimento por notório saber. O pesquisador encontrou como a mais antiga dessas autorizações, expedida por um magistrado de São Paulo, um documento de 23 de dezembro de 1869, protocolado três dias antes. Suas autorizações eram sempre precárias, como era a liberdade de pessoas negras libertas naquele período, precisavam ser renovadas várias vezes. Nos registros encontrados, todos os pedidos de autorização para atuar como advogado foram deferidos, não há registros de negativas. A reescrita da biografia de Luiz Gama, alterando a narrativa oficial de desqualificação de sua atuação, se insere no processo de produção de uma cultura jurídica produzida por todas as pessoas que dela participaram. Mais informações sobre os resultados da pesquisa do referido pesquisador, ver em <https://www.dw.com/pt-br/documentos-in%C3%A9ditos-confirmam-que-luiz-gama-era-advogado/a-59756876>, acesso em 01 de setembro de 2023. ao questionar o desempenho e despreparo técnico dos magistrados do Brasil oitocentista através de textos de sua autoria publicados em jornais da época, como o caso do pardo Narciso publicado no Correio Paulistano em 02 de dezembro de 1870. Gama era o responsável pela defesa do direito de liberdade de Narciso e utilizando-se da imprensa como espaço de debate jurídico, questionou a decisão judicial de apreensão do seu cliente em favor do suposto proprietário, Raphael Tobias de Aguiar. Ao tentar mobilizar a opinião pública em prol do libertando, demonstrou como o exercício do que aqui nomeamos direito em pretuguês lançava mão de métodos e técnicas para disputar a justiça escravista, como verifica-se em palavras do próprio Luiz Gama: "nós temos a lei, e eu sei ter vontade!"(FERREIRA, 2020FERREIRA, Lígia Fonseca. Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro. Organização, introdução e notas de Ligia Fonseca Ferreira. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020., p. 65), argumentação que ilustra como a cultura jurídica nacional do Brasil oitocentista orientou as decisões dos agentes de justiça rumo à defesa do direito de propriedade, ainda que ausente documento comprobatório capaz de justificar a legalidade da decisão em desfavor do escravizado.

O Poder Judiciário do século XIX era composto por homens "[...]brancos e proprietários, duas qualidades que se inter-relacionavam e garantiam a presença no mundo dos homens de bem [...]" (SÁ, 2019, p.95), e esse contexto foi traduzido em decisões judiciais quase sempre orientadas pela cumplicidade em torno da defesa dos privilégios, ora formalizados pelo instituto do direito de propriedade, ora nem isso, como o caso revela. Atualmente, considerando dados sobre a composição do sistema de justiça, Fabiana Severi aponta que a maioria das decisões selecionadas pelo projeto de reescritas feministas reproduzem estereótipos de classe, raça e gênero: "As análises, então, produzidas pelas autoras acabam por borrar a aura de 'imparcialidade' e de 'sabedoria masculina' que paira sobre as cortes brasileiras." (SEVERI, 2023SEVERI, Fabiana et all. Reescrevendo decisões judiciais em perspectivas feministas: a experiência brasileira. Fabiana Cristina Severi (Org.). Ribeirão Preto: IEA/FDRP-USP, 2023., p.56).

Como representantes da reescrita do direito a partir do patrimônio afro-diaspórico de escrevivências, a atuação de Esperança Garcia e Luiz Gama deve servir para reoríentação da cultura jurídica nacional estruturalmente ancorada em uma "[...]moral colonial que rege os sentidos da liberdade, da igualdade, da cidadania, da propriedade e da nacionalidade na modernidade." (DUARTE; SÁ; QUEIROZ, 2019DUARTE, Evandro; SÁ, Gabriela; QUEIROZ, Marcos. Apresentação - Um mar de perguntas diante do saber jurídico: como re(inscrever) na cultura jurídica asdinâmicas sociais e políticas das lutas por direitos dos povos da diáspora africana? In: Cultura Jurídica e Atlântico Negro: história e memória constitucional, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. v.1, p. 1-14., p.08). Nesse necessário reajuste de rota, a perspectiva feminista do direito deve navegar por contranarrativas ao epistemicídio que silencia o potencial analítico oferecido pelo estudo da agência da população negra no desenvolvimento de métodos e técnicas para reescritas do(s) direito(s).

A relação de continuum que marca o legado colonial-escravista entre nós, tem como duplo as reiteradas formas de reexistência e reescrita que continuam sendo realizadas. Gostaríamos de destacar, como experiências de reescrita como escrevivência, também os Tribunais Populares. De acordo com Aline Maia Nascimento (2018NASCIMENTO, Aline Maia. De Winnie Mandela à Baixada Fluminense: Tribunais populares como estratégia de reagir à morte e confeccionar mundos habitáveis. Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos. v.15, n.28, pp. 19 - 34, 2018.,p. 20), podemos destacar:

o Tribunal Tiradentes, (re)editado desde a década de 1980, envolvendo questões de segurança nacional e anistia; o Tribunal Popular da 110 norte, organizado em 1987 sobre direito à moradia; o Tribunal Popular O Estado Brasileiro no Banco dos Réus, ocorrido em 2008, sobre crimes contra juventude negra; o Tribunal Popular Hidrelétricas do Madeira no banco dos réus, 10 realizado em 2017, organizada por movimentos sociais ligados ao campo no Brasil e na Bolívia; e mais recentemente o Tribunal Popular das Mulheres - Marielle Franco, 11 ocorrido em maio de 2018, julgando entre outras questões a cultura machista.

A autora, desenvolve mais detidamente uma experiência que igualmente consideramos fundamental destacar: o Tribunal Popular Winnie Mandela, ocorrido em 1988, a partir, sobretudo, da articulação da Comissão da Mulher Negra no Conselho Nacional de Direitos da Mulher. Diante da opção política por marcar a farsa da abolição (ou a falsa abolição) no ano de seu centenário, o Tribunal Popular Winnie Mandela julgaria os crimes cometidos pelo Estado contra a população negra, denunciando a um só tempo o mito da democracia racial no Brasil e o regime de apartheid na África do Sul.

O Conselho Nacional da Mulher estava vinculado ao Ministério da Justiça. O ministro Paulo Brossard tentou impedir a realização do Tribunal Winnie Mandela de muitas formas. A primeira proposta do tribunal popular era colocar em julgamento a Lei Áurea, o ministro não permitiu. Diante da recusa, o racismo entraria no banco dos réus. Sob a alegação de que “não há racismo no Brasil”, novo veto do ministro. Aline Nascimento (2018NASCIMENTO, Aline Maia. De Winnie Mandela à Baixada Fluminense: Tribunais populares como estratégia de reagir à morte e confeccionar mundos habitáveis. Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos. v.15, n.28, pp. 19 - 34, 2018.) resgata fala de Sueli Carneiro sobre esse momento afirmando que o Tribunal Winnie Mandela foi um marco nas negociações com o Governo Federal e que a sua realização só foi possível em razão da firmeza das conselheiras. O ministro concordou com a realização do tribunal, desde que colocasse em julgamento apenas “o tema genérico do preconceito racial” (NASCIMENTO, 2018NASCIMENTO, Aline Maia. De Winnie Mandela à Baixada Fluminense: Tribunais populares como estratégia de reagir à morte e confeccionar mundos habitáveis. Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos. v.15, n.28, pp. 19 - 34, 2018., p. 22).

O cartaz de divulgação do tribunal convidava para o “Julgamento do Século- uma história de vida e preconceito em que todos nós somos personagens: qual a situação atual da mulher negra no Brasil? Que mecanismos são utilizados pela sociedade para perpetuar os preconceitos raciais? Participe, quem vive neste século não tem como escapar deste tribunal”5 5 Imagem do cartaz disponível em <https://www.memoriaemovimentossociais.com.br/?q=pt-br/file/1101>, acesso em 01 de setembro de 2023. . A sessão do Júri aconteceu na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no salão nobre, que reproduzia a arquitetura dos tribunais. Na defesa, argumentava-se pela negação do racismo e pela nacionalidade como valor que regulava as relações sociais. Na acusação, os exemplos de violações cotidianas vivenciadas pelas mulheres negras iam demonstrando a alegação da subcidadania para a população negra que se manifestava através das legislações produzidas pela elite dominante, pelas aniquilações brutais ao longo da história brasileira, denunciando o mito da democracia racial (trans)nacionalmente, visibilizando ações de atenção e autocuidado para pessoas negras. (NASCIMENTO, 2018NASCIMENTO, Aline Maia. De Winnie Mandela à Baixada Fluminense: Tribunais populares como estratégia de reagir à morte e confeccionar mundos habitáveis. Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos. v.15, n.28, pp. 19 - 34, 2018.)

Mais recentemente, suplementando os expedientes processuais de participação do controle concentrado de constitucionalidade, como as audiências públicas, mães e familiares de vítimas de violência do Estado reescreveram a carta de Esperança Garcia, através da Sustentação Oral Popular6 6 Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=wlWWBpoZARA>, acesso em 02 de setembro de 2023. feita no âmbito da ADPF 635 (STF), confrontando a colonialidade jurídica dos órgãos do cistema de justiça e sua cumplicidade com as instituições que promovem a (In)Segurança Pública.

Não é incomum que tribunais populares sejam questionados quanto à sua “utilidade”. Se não é reconhecida a sua “validade jurídica”, de que valeria expor as violações de direitos naquele espaço? Qual a vantagem da sustentação oral popular se ela não se converteu em um instrumento processual com reconhecida “validade jurídica”? E, podemos reproduzir esses questionamentos para as experiências de reescritas. De que vale, por exemplo, reescrever uma sentença se o texto reescrito não tem “validade jurídica”?

Quando objetivamos alterar a cultura jurídica hegemônica, tais espaços nos oferecem um gigantesco aprendizado. A “ausência de validade jurídica” permite que sejam enunciadas violações sufocadas pelos instrumentos processuais e pelas práticas (extra)jurisdicionais dominantes. Com isso, expomos a violência dos procedimentos e da atuação do cistema de justiça e seu acumpliciamento com a (re)produção de muitas formas de violência. Mas, combinamos de transbordar a dimensão da denúncia. Tais experiências oportunizam, sobretudo, a formação de uma cultura jurídica que, enunciada em pretuguês, tira do abstrato os principais dilemas que impedem a atuação do direito enquanto instrumento de proteção e oferece um repertório ético-normativo-processual que reposiciona vítimas e agressores, ao tempo em que responsabiliza o Estado e suas instituições com tudo aquilo que (re)produzem.

Através dessas experiências buscamos evidenciar a disputa permanente por um modelo de direito e justiça que se comprometa com a proteção às mais variadas formas de ser e estar no mundo e em relação integral com a natureza. São mobilizadas normas e institutos jurídicos existentes, de modo a aproximá-los das práticas políticas em que foram forjados. Há espaço também para aprimorá-los e para que outras categorias e procedimentos possam ser desenvolvidos. São estratégias de incidência política, de formação jurídica e de disputa conceitual que alimentam a percepção crítica, informada e engajada que o mundo que nos foi dado a conhecer exige de nós.

2. Preocupações ético-metodológicas das reescritas e reescrevivências

No cenário teórico-metodológico que vem sendo explorado por distintas experiências de reescritas feministas no Brasil e em outras partes do mundo, há uma disputa que não se centra no campo do positivismo jurídico, mas que opta por leituras críticas acerca do direito. Algumas têm bases estruturalistas, pós-estruturalistas e outras decoloniais, algumas das quais ancoradas na leitura decolonial de base afro-diaspórica.

Em termos gerais, podemos posicionar os projetos de reescrita como sendo aqueles que buscam evidenciar o impacto que o racismo patriarcal cisheteronormativo enseja na formulação de decisões judiciais, apresentando formas de decisão que ultrapassam as matrizes de dominação que têm promovido a (re)produção das hierarquias ciscoloniais entre nós. Nas palavras de Fabiana Severi, as reescritas têm demonstrado “que os efeitos discriminatórios produzidos pelo direito nem sempre são decorrência direta de uma lei ou da falta dela, mas sim de padrões de raciocínio judicial ou das visões de mundo de quem julga” (2023, p.39).

Trata-se de iniciativas que para além da denúncia do direito, enquanto parte fundamental de manutenção da ciscolonialidade, abre possibilidade para que sejam apresentados caminhos de oríentação que nos ofereçam marcos históricos, conceituais e metodológicos de atuação de um direito contracolonial e, por conseguinte, antirracista, anticapitalista, antisexista, anticapacitista e transformador.

Sem pretender esgotar os distintos caminhos metodológicos que vêm sendo traçados, vamos indicar alguns que têm sido explorados em algumas experiências de reescrita feminista no contexto brasileiro. Um deles, trabalhado no Rio de Janeiro, que foi nomeado como método transfeminista de reescrita (GOMES, CARVALHO e FRANZONI, 2023GOMES, Camilla de Magalhães; CARVALHO, Claudia Paiva; FRANZONI, Julia Ávila. Método Transfeminista de Reescrita de Decisões Judiciais: perspectivas teóricas e caminhos para sua aplicação. Revista Direito Público, Brasília, Volume 20,n. 106, 95-117, abr./jun. 2023.), conformou uma leitura a contrapelo das decisões a partir de perspectivas situadas, com propostas de feministas decoloniais e o esquema teórico do transfeminismo. O método que também parte da “pergunta pela mulher” é impregnado pelas concepções anteriormente enunciadas e passa a ter centralidade também para a proposta desenvolvida no Pará por Luanna Tomaz e Samara Siqueira, quando analisam julgados de crimes raciais perguntando pela mulher negra (SOUZA e SIQUEIRA, 2023SOUZA, Luanna Tomaz; SIQUEIRA, Samara Tirza Dias. A pergunta pela mulher negra nos crimes raciais julgados no Tribunal de Justiça do Estado do Pará. Revista Direito Público, Brasília, Volume 20,n. 106, 118-140, abr./jun. 2023.). O método da posicionalidade, desenvolvido por Katharine Barlett (2020) é igualmente o ponto de ancoragem para as análises desenvolvidas por Karyna Sposato, Matheus Silva e Lídia Abreu (2023SPOSATO, Karyna Batista; SILVA, Matheus de Souza; ABREU, Lídia Nascimento Gusmão. A aplicação da Lei Maria da Penha para mulheres trans: aportes da teoria crítica feminista e do método da posicionalidade. Revista Direito Público, Brasília, Volume 20,n. 106, 141-160, abr./jun. 2023.), em Sergipe; bem como por André Demetrio, Ela Wiecko e Nayara Magalhães (2023DEMETRIO, André; CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de; MAGALHÃES, Nayara Teixeira. Questões parentais judicializadas: entre dores, loucuras, provas e direitos. Revista Direito Público, Brasília, Volume 20,n. 106, 326-350, abr./jun. 2023.), no Distrito Federal.

Explorando os aportes do feminismo decolonial, no Paraná, Ana Claudia Abreu e Natália Souza repercutem a metodologia de análise de gênero proposta por Alda Facio, que propõe as seguintes diretrizes: 1) tomar consciência da subordinação feminina; 2) identificar no texto as distintas formas em que o sexismo se manifesta; 3) constatar qual é a mulher que está presente ou invisibilizada no texto; 4) apontar qual é a concepção ou estereótipo de mulher que sustenta o texto; 5) analisar a decisão considerando a influência e os efeitos dos outros componentes do fenômeno legal; 6) ampliar e aprofundar a tomada de consciência do que é o sexismo e coletivizar a análise com distintos grupos de pessoas solidárias e conscientes de seus privilégios (2023, p.165-166).

De outro modo, mas seguindo a oríentação decolonial, a inter-historicidade e a antropologia por demanda de Rita Segato são desenvolvidas por Natália Damazio (2023) que busca aporte epistêmico também em Maria Lugones e Ochy Curiel. Podemos explorar os aportes metodológicos de Ochy Curiel (2020LUGONES, Maria. Subjetividade escrava, colonialidade de gênero, marginalidade e múltiplas opressões. In Políticas de Resistência: Homenagem à María Lugones. MARIM, Caroline Izidoro; CASTRO, Susana de. (Orgs). Porto Alegre, RS: Editora Fundação Fênix, 2020. p.87-98.) e aproximá-lo da experiência das reescritas para que não reproduzam colonização discursiva e violência epistêmica, enfrentando as seguintes perguntas: 1) quais são os pontos de vista considerados em sua investigação?; 2) quanto estamos impondo de gênero quando estudamos o impacto de distintos processos sobre mulheres racializadas como não brancas, sobretudo mulheres negras e indígenas?; 3) quanto estamos reproduzindo de colonialidade de poder, ser e saber, quando reduzimos raça, classe, gênero e sexualidade a meras categorias analíticas ou descritivas?; 4) quem são os sujeitos e objetos desta reescrita?; 5) há espaço para produzir uma etnografia dos sujeitos e das práticas sociais, considerando os lugares e as posições da produção dos privilégios?

Para nós, é central também que nossas preocupações ético-metodológicas estejam voltadas às reescritas, mas também ao que significaria envolver em rede um grupo de pessoas comprometidas com processos de libertação e garantia de vida para todas as formas de ser e estar no mundo e em relação integral com a natureza. Nesse sentido, nos valemos dos aportes de Amina Mama quando se dedica a levantar a questão “O que significa fazer pesquisa feminista em contextos africanos?” (2023), aplicando seus apontamentos para o processo de reescrita do direito que tem conformado entre nós uma comunidade política plural em feminismos, em posicionalidades e influências teórico-metodológicas e formativas.

Fazendo uma leitura das preocupações de Amina Mama, em diálogo com a necessidade de inserir as mulheres desproporcionalmente afetadas pelo racismo patriarcal cisheteronormativo no processo de produção e desenvolvimento das reescritas, levantamos como um primeiro desafio o de enfrentar o apagamento e a apropriação das contribuições das mulheres que temos como interlocutoras, algo que já foi anteriormente alertado por Ochy Curiel, que nos obriga a refletir se nossas práticas reforçam, de alguma maneira e com qual intensidade, a colonização discursiva ou a violência epistêmica.

É nesse mesmo sentido que Amina Mama nos leva a repensar como fazemos (no nosso caso, as reescritas), mas sobretudo, as implicações de cada conduta. Adaptando reflexão correlata realizada por Thula Pires e Andréa Gill sobre o texto de Amina Mama (2023PIRES, Thula; GILL, Andréa. Abrindo caminhos: um diálogo entre o pensamento de Amina Mama e Lélia Gonzalez. Amina Mama e Lélia Gonzalez. Thula Pires, Andréa Gill (Orgs.) - Ed. bilíngue. Coleção Conversas A(me)fricanas. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2023. p. 15-32., p. 30), nos perguntaríamos: Por quê, para quê, e para quem (re)escrevemos decisões judiciais e o próprio direito? O que significa fazê-lo dentro ou fora das universidades? Como avaliar a sua relevância diante das demandas e agendas por descolonização e projetos coletivos de afirmação do bem viver e da liberdade plena?

Se a inclusão for a chave que orienta as reescritas, teremos marcos históricos, teóricos e metodológicos que não terão a possibilidade de colocar em questão as escolhas que marcam a colonialidade jurídica que nos constituiu, abrindo tão somente a possibilidade para que sujeitas, ainda na condição de outras, atuem no processo de reescrita e ampliem nossas percepções. De outro modo, defendemos que em territórios de herança colonial-escravista, como os nossos, para além da lógica de inclusão e diversidade, no âmbito dos debates, das reformas curriculares e das reescritas, é preciso deslocar o centro e as margens como medidas de valor, refazendo a estrutura de relações que posicionam sujeito e objeto de conhecimento e de intervenção social, cultural, econômica e em todas as esferas da vida. A partir de uma leitura decolonial de base afrodiaspórica, Amina Mama nos obriga a uma pausa para pensar sobre o significado dos nossos fazeres e saberes, de modo coletivo e relacional, em contexto ampliado.

Amina Mama traz uma noção de ética que implica nossas práticas de percepção, escuta e registro, de como nos relacionamos e trocamos. Seu chamado nos convoca a resistir à capitalização individualista do trabalho, que se vale de uma noção de subjetividade atrelada à propriedade intelectual privada.

Pensar o fazer da reescrita a partir do comum, reoríentando permanentemente as suas bases, tanto epistêmicas quanto políticas e metodológicas, coloca em jogo a relação entre quem produz a reescrita e sobre quem se produz o conhecimento e a ação política delas derivadas. A intenção que temos ao produzir a reescrita é confrontada com os efeitos gerados pelo que produzimos. E, como ponto de partida e contínuo retorno, Amina Mama nos convida a resistir ao isolamento e alimentar ideias que têm a possibilidade de desafiar o poder (PIRES e GILL, 2023PIRES, Thula; GILL, Andréa. Abrindo caminhos: um diálogo entre o pensamento de Amina Mama e Lélia Gonzalez. Amina Mama e Lélia Gonzalez. Thula Pires, Andréa Gill (Orgs.) - Ed. bilíngue. Coleção Conversas A(me)fricanas. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2023. p. 15-32., p. 30). Essas seriam algumas das preocupações ético-metodológicas que ancoram o que projetamos como reescrevivência do direito.

3. Reescritas como justiça histórica

Beatriz Nascimento situa a centralidade da organização dos quilombos enquanto sistema alternativo responsável pela retórica oríentadora do movimento negro no Brasil. Essa proposta de "correção de nacionalidade" (1985, p.47) é aqui considerada como reivindicação de direito à memória e justiça histórica frente às narrativas oficiais. Em sentido semelhante ao método jurídico feminista da "pergunta pela mulher" (BARTLETT, 2020BARTLETT, Katharine T. Métodos Jurídicos Feministas. Tecendo fios das Críticas Feministas ao Direito no Brasil II: Direitos Humanos Das Mulheres e Violências: volume 1, Os Nós De Ontem: Textos Produzidos Entre Os Anos De 1980 E 2000. Fabiana Cristina Severi; Ela Wiecko Volkmer de Castilho; Myllena Calasans de Matos, organizadoras. Ribeirão Preto: FDRP/USP, 2020.), argumentamos que a “pergunta pelas mulheres” e a "retórica do quilombo" podem oríentar a reescrita do direito através da denúncia de violências epistêmicas perpetuadas pela colonização discursiva que estrutura o direito no Brasil e silencia sobre o repertório jurídico insurgente desenvolvido durante os séculos de demandas por liberdades na Améfrica Ladina.

Dentre as escrevivências contra-coloniais que foram mobilizadas durante o surgimento do movimento negro brasileiro na década de 1970, merece atenção a disputa em torno da narrativa histórica acerca do processo de abolição e pós-abolição da escravidão no Brasil:

Com a publicação do artigo no Jornal do Brasil em novembro de 1974, o Grupo Palmares do Rio Grande do Sul, do qual participava entre outros o poeta Oliveira Silveira, sugeria que a data de 20 de novembro, lembrando o assassinato de Zumbi e a queda do Quilombo dos Palmares, passasse a ser comemorada como data nacional contrapondo-se ao 13 de maio. (NASCIMENTO, 1985NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência cultural negra. Revista Afrodiáspora, 3 (6-7), 41-49, 1985., p.47)

A retórica quilombola/quilombista reescreve a história da liberdade no Brasil e posiciona o quilombo como instituição reoríentadora do direito a partir "[...] da concepção que o africano já tinha de nação." (NASCIMENTO, 1989, p.149). Como sinalizamos anteriormente com o Tribunal Popular Winnie Mandela, a denúncia sobre o 13 de maio de 1888 como a data da "falsa abolição" (MNU, 1988) foi reiterada em protestos por todo o país no marco do centenário da abolição e, ao mesmo tempo, representou a reescrita da narrativa nacional ancorada no protagonismo da Princesa Isabel ao assinar a Lei Áurea, bem como denunciou os limites da efetividade da lei de 1888 na garantia da cidadania da população negra, demarcando o pós-abolição como problema jurídico.

Aqui também reiteramos que a prática das reescritas de decisões judiciais em perspectiva feminista deve considerar o pós-abolição como problema jurídico, o que implica em compreender que o enfrentamento à colonialidade jurídica deve incluir estratégias para promover justiça histórica frente a permanência de marcadores interseccionais de opressão como fundamentos da cultura jurídica nacional. Neste movimento de saída da repressão das senzalas (NASCIMENTO, 1989, p.149), não apenas para os quilombos mas também para os tribunais e demais espaços onde se tecem as disputas em torno do direito, experiências como o processo do reconhecimento de Esperança Garcia e Luiz Gama como advogada(o), rasuram a cultura jurídica nacional nas suas hermenêuticas coloniais centradas no protagonismo heróico de homens brancos de superior erudição que seguem esculpidos em bustos e estátuas integrados ao patrimônio de faculdades de direito e instituições do sistema de justiça.

O reconhecimento póstumo de Esperança Garcia como advogada ocorreu em 2017 como resultado das ações desenvolvidas pela Comissão Estadual da Verdade da Escravidão Negra da Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, seccional Piauí, presidida pela advogada e professora Maria Sueli Rodrigues de Sousa. A comissão elaborou o dossiê "Esperança Garcia: símbolo de resistência na luta pelo direito" onde são apresentados os fundamentos que evidenciam a natureza jurídica da carta escrita por Esperança Garcia em 06 de setembro de 1770, "[...] em razão de haver os elementos técnicos de uma petição: qualificação; pedido e razão de pedir, contando, ainda, com endereçamento ao governador da província, que era o representante legal do rei de Portugal." (SOUSA, 2021SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de. Reparação da escravidão negra como justiça de transição para repactuar a nação Brasil. In SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de. Vivências constituintes: sujeitos desconstitucionalizados. Teresina: Avant Garde, 2021. p. 232-257., p.209). Seguindo o caminho iniciado pela OAB-PI, em novembro de 2022 o Conselho Federal da OAB reconheceu Esperança Garcia como primeira advogada do Brasil e, em maio de 2023 foi inaugurado um busto de Esperança Garcia na sede do Conselho Federal da OAB.

A reflexão sobre a validade jurídica do ato de reconhecimento póstumo conferido à Esperança Garcia nos remete ao debate que iniciamos na primeira parte do artigo, sobre a validade das experiências de reescritas de decisões judiciais em perspectivas feministas. Neste ponto, coincidimos com entendimento da professora Maria Sueli Rodrigues de Sousa (2021SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de. Reparação da escravidão negra como justiça de transição para repactuar a nação Brasil. In SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de. Vivências constituintes: sujeitos desconstitucionalizados. Teresina: Avant Garde, 2021. p. 232-257., p.222), ao considerar que a ausência de políticas para integrar as pessoas negras e indígenas à comunidade política brasileira, exige ações de reparação que contribuam com a construção de uma memória coletiva contra-colonial, que reconheça a agência da população amefricana enquanto elemento fundamental para (orí)entar "[...] uma repactuação de nação, ressignificando o artigo 5º que nos garante igualdade política de igual pertencimento" (SOUSA, 2021SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de. Reparação da escravidão negra como justiça de transição para repactuar a nação Brasil. In SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de. Vivências constituintes: sujeitos desconstitucionalizados. Teresina: Avant Garde, 2021. p. 232-257., p. 239).

O impacto causado pelo reconhecimento de Esperança Garcia como advogada é refletido ainda no âmbito acadêmico através de diversas iniciativas que re(orí)entam o cenário das faculdades de direito a partir da referência de que a primeira advogada do Brasil é uma mulher negra escravizada. Esta narrativa obriga a revisão da cultura jurídica nacional marcada pela naturalização da violência causada pela presença-permanência de signos do passado cisheteropatriarcal fundante da estrutura jurídica do Brasil pós-independência e pós-abolição. A reescrita do direito em pretuguês insere as escrevivências das populações racializadas como contra-narrativa que reivindica o direito à memória, rompendo com a perpetuação da história jurídica nacional centrada no protagonismo de homens brancos:

[...]Por isso prossigo.
persigo acalentando
nessa escrevivência
não a efígie de brancos brasões,
sim o secular senso de invisíveis
e negros queloídes, selo originário,
de um perdido
e sempre reinventado clã.
(EVARISTO, 2017EVARISTO, Conceição. Poemas da Recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017.,p.106)

Como exemplo da re(orí)entação das faculdades de direito a partir das escrevivências e "negros queloídes" (EVARISTO, 2017EVARISTO, Conceição. Poemas da Recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2017.,p.106) que constroem a nossa história, destacamos a renomeação do auditório da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), antigo Auditório Joaquim Nabuco e, desde 2021, renomeado como Auditório Esperança Garcia. A campanha pela renomeação do auditório foi iniciativa de distintos grupos de pesquisa da UnB e coletivos estudantis da graduação e pós-graduação, dentre os quais destacamos o Maré - Núcleo de Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro. Criado como grupo de pesquisa em 2015, o Maré é organizado em torno de três linhas de pesquisa: 1) criminologia e racismo; 2) história e constitucionalismo; 3) epistemologia, cultura e expressividades negras. As linhas são desenvolvidas pelas pesquisas de estudantes de graduação, mestrado e doutorado, que discutem a centralidade da relação entre direito e relações raciais, nos termos apresentados por Dora Lúcia Bertúlio na dissertação de mestrado "Direito e relações raciais: uma introdução crítica ao racismo", defendida em 1989 no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD-UFSC), e aqui considerado como incontornável marco teórico do campo de conhecimento Direito e Relações Raciais.

Importante destacar que as políticas de ações afirmativas para ingresso no Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB (PPGD-UnB) também foram implementadas em 2015, consolidando o Maré como espaço de aquilombamento intelectual, marcado pela interdisciplinaridade e pelo protagonismo estudantil na universidade pública. Tendo a teoria do Atlântico Negro de Paul Gilroy como eixo que (orí)enta e estimula o diálogo com movimentos sociais e intelectuais da diáspora negra, o grupo vem promovendo eventos internacionais e intercâmbios acadêmicos com o objetivo de ampliar o repertório teórico-conceitual para pensar o direito e a raça em perspectiva atlântica:

O próprio nome do grupo visa expressar essas trajetórias e uma certa perspectiva de se enxergar a história, pois, ao enfatizar o movimento e os ziguezagues das experiências negras, metaforizado nos ventos marítimos que regulam os fluxos das marés, o fundamento teórico do grupo se baseia em reler e reescrever a narrativa moderna tendo como centro a agência e as contribuições intelectuais da população negra. Rasuram-se, assim, os locais de vítima, de passividade ou de objetificação. (DUARTE; SÁ; QUEIROZ, 2019DUARTE, Evandro; SÁ, Gabriela; QUEIROZ, Marcos. Apresentação - Um mar de perguntas diante do saber jurídico: como re(inscrever) na cultura jurídica asdinâmicas sociais e políticas das lutas por direitos dos povos da diáspora africana? In: Cultura Jurídica e Atlântico Negro: história e memória constitucional, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019. v.1, p. 1-14., p.04)

Como resultado dos movimentos do Maré, vale mencionar a disciplina de graduação "Direito, Relações Raciais e Diáspora Africana", ofertada desde 2017 por professores voluntários, estudantes de mestrado e doutorado integrantes do grupo. Nos fluxos da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, o projeto de extensão Centro de Documentação Quilombola “Ivo Fonseca” foi iniciado em 2020 contando com professores e integrantes do Maré, em parceria com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), com o objetivo de sistematizar acervo sobre a história quilombola em diálogo com a história jurídica e política do país.

Ainda no âmbito das práticas formativas nos espaços universitários, referenciamos também o “Direito em Pretuguês: Grupo de Pesquisa em Estudos Ladino-Amefricanos e Afrodiaspóricos”, criado em agosto de 2017, junto ao Programa de Pós-Graduação em Teoria do Estado e Direito Constitucional da PUC-Rio e ao Núcleo Interdisciplinar de Reflexão e Memória Afrodescendente (NIREMA, PUC-Rio). O grupo reúne pesquisadoras e pesquisadores vinculados e parceiros(as), ativistas do movimento de mulheres negras e LGBTQIAPN+, que desenvolvem pesquisas e incidência política no campo do direito e da teoria sócio-racial brasileira.

Os trabalhos desenvolvidos se integram ao que enunciamos em termos de reescrita como escrevivência, compartilhando as influências teóricas desenvolvidas no primeiro tópico do artigo e as preocupações ético-metodológicas trazidas no segundo tópico deste trabalho. A articulação com os movimentos sociais está presente desde o início do grupo, seja na elaboração conjunta de documentos para compor o processo de incidência política dos movimentos, através de projetos de extensão ou no desenvolvimento de pesquisas que buscam fomentar a complementaridade dos conhecimentos produzidos dentro e em relação com a academia jurídica brasileira.

Do ponto de vista das práticas formativas, destacamos uma iniciativa diretamente relacionada às discussões até aqui enunciadas. Atuamos, a partir de 2018, no Curso “A Teoria e as Questões Políticas da Diáspora Africana nas Améfricas”, desenvolvido em parceria com Criola (Organização de Mulheres Negras) e o Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia (Riverside). O curso se constitui como espaço dedicado à reflexão feminista e antirracista para, por e com mulheres negras. O curso, que tem como fundadores, por exemplo, a pensadora e ativista Lucia Xavier e o professor e ativista João Costa Vargas, acontece anualmente há dezesseis anos e busca aprimorar a intervenção política de ativistas, ampliando a circulação de marcos históricos, conceituais e metodológicos produzidos na diáspora africana.

Tendo como objetivo central fortalecer processos políticos, são trabalhados temas geralmente excluídos dos debates públicos e acadêmicos, reposicionando o pensamento de mulheres negras da diáspora como pontos de oríentação para o enfrentamento dos desafios do tempo presente. Ativistas e pensadoras da diáspora africana participam na facilitação da formação, que é impulsionada pelas inquietações das participantes, que produzem distintas formas de intervenção sobre o terror racial e sexual que marca a atuação dos Estados-nacionais sobre a população negra, nas mais distintas regiões do mundo. Com distintas influências teóricas, somos convidadas a fomentar a atuação em rede, fortalecer as iniciativas que já estão em desenvolvimento e fabular tantas quanto sejam necessárias para confrontar os processos de desumanização que inviabilizam nossa existência plena.

Nos dois últimos anos, em 2022 e 2023, duas foram as perguntas-guias que oríentaram a formação: 1) como o terror sexual contra mulheres negras se estrutura e é estruturado na formação social do Brasil e da diáspora negra? Mais do que tomar o estupro como conduta ou tema, o convite foi para percebê-lo como eixo organizativo das relações intersubjetivas e institucionais constituídas pela ciscolonialidade; 2) Em diálogo com pessoas imersas em esforços organizativos locais e internacionais de pessoas negras, como projetos de coletividade oferecem alternativas ao genocídio e ao terror sexual que definem a experiência negra?

No início do curso foi solicitado que as pessoas apresentassem propostas de intervenção, levando em conta suas áreas de atuação e incidência. Ao final, a turma teve a oportunidade de refazer as propostas, a partir da sua articulação com outra proposta do grupo ou em razão das discussões promovidas. Nem todas as pessoas envolvidas eram da área do direito, o que consideramos um ganho, na medida em que as reescritas que propomos incidem sobre diferentes áreas do conhecimento e de atuação. Nesse sentido, a formação jurídica em pretuguês se beneficia do aporte de outras áreas, ao tempo em que as questões trazidas pelos demais campos amplia a capacidade de comunicação do(s) direito(s)7 7 Para ter acesso às diferentes publicações de Criola, ver: <https://criola.org.br/multiversidade/?doing_wp_cron=1696284637.1805338859558105468750>, acesso em 10 de setembro de 2023. .

Um outro esforço que merece menção e que dialoga intimamente com a trajetória do grupo Direito em Pretuguês, é o grupo de pesquisa Motim, liderado pela professora Ana Flauzina da Universidade Federal da Bahia. Dentre as principais marcas do grupo, estão a da interdisciplinaridade e a da íntima conexão das práticas de pesquisa e extensão. As áreas de atuação do grupo Motim estão centradas nos pilares da Educação, do Direito e da Arte. Portanto, há uma abertura não só para a exploração de temas relevantes para o enfrentamento do genocídio negro no Brasil, como uma busca por uma linguaguem diferenciada ao fazê-lo. No edital para a chamada de estudantes interessado(as/es) em participar do grupo, percebemos essa dinâmica:

Trata-se, portanto, de um grupo que demanda uma abertura para a leitura, a criatividade e a disponibilidade em se testar novos formatos de produção de conhecimento. Além da discussão em profundidade de material teórico, serão exercitadas práticas de corpo, voz e performance; experimentos com audiovisual e outras expressões artísticas que possam potencializar a divulgação dos achados da pesquisa.8 8 Edital disponível em <http://www.ppgd.direito.ufba.br/pt-br/edital-para-selecao-de-participantesgrupo-de-pesquisa-motim-0>, acesso em 12 de outubro de 2023.

Essa aposta na exploração de fazeres diferenciados, a partir da perspectiva de mulheres negras, resulta em pesquisa e ações extensionistas que merecem ser destacadas. Do ponto de vista da pesquisa, assim como pautado no curso “A Teoria e as Questões Políticas da Diáspora Africana nas Améfricas”, há um interesse em se estudar a questão do estupro como um dado estruturante do projeto de terror de Estado construído em torno da população negra no Brasil. Além do levantamento de dados e de bibliografia pertinentes ao tema, o grupo tem buscado construir performances artísticas que possam ampliar a maneira como vemos e nos implicamos politicamente com a questão do estupro no Brasil. Há também um interesse em se produzir material a ser trabalhado no âmbito das escolas públicas, como demanda de se transpor os achados da pesquisa para fora dos muros encastelados da Universidade.

No que se refere às ações de extensão, o grupo estruturou o BROCOU, curso preparatório para o Enem, como uma experiência piloto no segundo semestre de 2023. O projeto contou com expressiva adesão de estudantes secundaristas oriundos das escolas públicas de Salvador e região metropolitana e de estudantes negros/as/es da UFBA engajados/as/es em participar como professores/as. Trata-se de iniciativa importante e historicamente vinculada aos esforços dos movimentos negros em ampliar o acesso das pessoas negras à educação e uma oportunidade de se fomentar a articulação política de estudantes universitários negros(as/es) com um fazer comprometido com demandas de ordem coletiva. Percebe-se, portanto, uma nítida vinculação do grupo com práticas que honram a tradição amefricana.

Outra iniciativa que gostaríamos de evidenciar como articulada à proposta de reescrita como escrevivência teve como propulsora a professora Maria Sueli Rodrigues de Sousa9 9 A professora Maria Sueli Rodrigues de Sousa, professora Sueli ou a menina do Saco da Ema (povoado rural no município de Francinópolis, Piauí), como era conhecida, foi descrita por orientandas(os) como uma mulher negra, socióloga, advogada e professora de direito da Universidade Federal do Piauí (UFPI): “Ela nos dizia que ‘a gente deveria viver mais a mesa de bar. É onde a gente tem a liberdade de falar’. Para ela, a ordem é desobedecer os marcos da cultura eurocêntrica [...], de modo que toda descolonização política suscita uma desobediência política e epistêmica”. (VARÃO, DE SOUSA REGO e DE CARVALHO NETO, 2022, p.8). , na Universidade Federal do Piauí (UFPI), através do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania (DiHuCi). O grupo foi criado em 2010, desenvolvia pesquisas sobre os impactos de cinco barragens ao longo do Rio Parnaíba nos territórios de comunidades tradicionais quilombolas (grupo socioambiental) e sobre violência contra mulher e a lei Maria da Penha (grupo de gênero). Apesar dessa aparente divisão, os grupos tinham pontos de interação como os encontros de discussão, geralmente aos sábados de manhã. Além da diversidade temática, a pluralidade de seus integrantes e interdisciplinaridade chamava a atenção, participavam não apenas alunos da graduação em direito da UFPI, mas orientandos de mestrado e doutorado da professora Maria Sueli em outras áreas, principalmente das ciências sociais, advogados populares e estudantes de outras instituições.

O relato de um dos estudantes participantes do grupo, Rodrigo Portela Gomes10 10 O professor Rodrigo Portela Gomes nos concedeu entrevista no dia 12 de outubro de 2023. , que se integrou ao grupo em 2012, quando era estudante de graduação em direito do Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais Profº Camillo Filho (ICF), hoje professor universitário, destaca como principais aprendizados ao longo do processo formativo vivenciado no DiHuCi: 1) a estratégia coletiva da pesquisa, algo que o influenciou decisivamente e que procurou seguir nas suas experiências de mestrado, doutorado e agora como orientador; 2) estímulo à produção autoral arraigada (VARÃO, DE SOUSA REGO e DE CARVALHO NETO, 2022VARÃO, Lorena Lima Moura; DE SOUSA REGO, Natasha Karenina; DE CARVALHO NETO, Lourival Ferreira. MARIA SUELI RODRIGUES DE SOUSA: a trajetória de um pensamento desobediente. Abya-yala: Revista sobre Acesso à Justiça e Direitos nas Américas, v. 6, n. 2, p. 06 a 21, 2022.) ou construção do protagonismo e da afirmação de todas as pessoas participantes do grupo como pesquisadores, seja durante a realização de seminários e eventos, como na apresentação do grupo para o financiamento das pesquisas11 11 Sobre esse aspecto, Rodrigo Portela rememora a visita da equipe da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ) que era responsável pelo edital Pensando Direito, quando eram o único grupo majoritariamente de graduandos dentre os grupos financiados. ; 3) fazer pesquisa sem hierarquizar as funções exigidas na investigação. Além da coletividade das ações de pesquisa como a leitura, discussão, coleta e escrita, a professora Maria Sueli promovia meios para o protagonismo do grupo, principalmente nas ações de divulgação das pesquisas; 4) preocupação com a função social aos resultados dos estudos. Havia uma preocupação em retornar às comunidades sobre o que faziam enquanto grupo, algo como prestação de contas, mas também um momento de acolher, motivar e até mesmo convencer outras pessoas de que poderiam colaborar com a pesquisa; 5) fomentar a pesquisa militante, as investigações do DiHuCi tinham esse caráter político sempre ressaltado, para as(os) integrantes do grupo, de modo que entendessem como poderiam colaborar com a sociedade civil e movimentos sociais nas suas demandas por direitos e, também, para que soubessem com quem deveriam estabelecer esse compromisso político. Por isso, as pesquisas eram igualmente extensão popular. Participavam ativamente das redes de apoio de organizações sociais do Piauí, através de encontros, reuniões, marchas, audiências, romarias e gritos. A presença nas comunidades ou em outras instituições era um ato recorrente nas pesquisas do grupo, o que permitiu o engajamento na promoção dos direitos, além de uma reflexão crítica sobre sua formação; 6) por fim, destaca o processo de reconstrução do direito a partir dos saberes tradicionais, incentivando o processo criativo da crítica a partir dos clássicos nas ciências sociais, acessando distintas formas de conhecimento, sobretudo as construídas pelas comunidades que assessoraram. Se é possível sintetizar os múltiplos aprendizados:

A professora Sueli ensinou o caminho da autoria - da autorização em favor da criatividade epistêmica como método anti-opressão arraigado e comprometido com a transformação das relações sociais hegemônicas. Seguiremos, em comunidade, honrando sua memória, semeando resistências na academia e desobedecendo quando for possível. (VARÃO, DE SOUSA REGO e DE CARVALHO NETO, 2022VARÃO, Lorena Lima Moura; DE SOUSA REGO, Natasha Karenina; DE CARVALHO NETO, Lourival Ferreira. MARIA SUELI RODRIGUES DE SOUSA: a trajetória de um pensamento desobediente. Abya-yala: Revista sobre Acesso à Justiça e Direitos nas Américas, v. 6, n. 2, p. 06 a 21, 2022., p.20).

Nesse sentido, nos juntamos às demais experiências relatadas neste dossiê e que sinalizam a importância da interdisciplinaridade e da aproximação com os movimentos sociais nos processos de reescrita. Com a especificidade de trabalharmos com um grupo misto de pessoas ativistas com ou sem inserção acadêmica. O compromisso com a luta política pela promoção da liberdade e do bem-viver mostra que a necessidade das reescritas não se dá exclusivamente no âmbito acadêmico e que as iniciativas acadêmicas e ativistas têm muito a contribuir para a construção de uma sociedade efetivamente democrática, de forma cada vez mais interconectada.

Nas interfaces entre reflexão e intervenção vamos refazendo os caminhos que um dia instituíram uma separação frágil e artificial entre teoria e prática. Essas experiências têm proporcionado diferentes formas de intervenção e auxiliado na formação de distintas gerações de pessoas negras que passam a reescrever permanentemente suas ações, nas diferentes áreas em que atuam, fortalecendo sobretudo mulheres, adolescentes e meninas negras cis e trans para a reivindicação e o exercício pleno de seus direitos.

Considerações Finais

As reescritas feministas nos confrontam com a responsabilidade que temos, cada pessoa a partir de sua posicionalidade, com a (re)produção de violências estruturais ou com o fomento a espaços de promoção de respeito e liberdade. Nos convidam também a ampliarmos o repertório a partir do qual pensamos, refletimos e atuamos no mundo individual e coletivamente, na academia, nas práticas políticas e no tipo de formação jurídica que pretendemos construir. Nesse sentido, a partir do mergulho em práticas de reescritas tecidas em diferentes tempos e de formas distintas, tivemos como objetivo abordar o impacto de práticas de reescritas em três dimensões.

No primeiro momento, ao retomarmos as experiências de Esperança Garcia, Luiz Gama e dos Tribunais Populares, buscamos evidenciar modos de disputar a cultura jurídica a partir da agência, sobretudo, de mulheres negras na disputa de sentidos sobre os usos da lei. Reescreviver o direito, decisões judiciais ou institutos jurídicos em pretuguês significa tirá-los do abstrato e buscar sentidos de oríentação que humanizem aquelas(es) cujas histórias se (con)fundem com as nossas, perturbando as certezas que sustentam a suposta neutralidade do direito e de suas instituições jurisdicionais, de modo que os dilemas concretos e complexos da vida transbordem os limites do campo da “validade jurídica”. Antes mesmo da sistematização téorica de métodos jurídicos antirracistas e feministas, a experiência da diáspora africana na Améfrica Ladina forçou a elaboração de uma hermenêutica mobilizada contra o direito hegemônico, oferecendo categorias, argumentos e fluxos processuais que, a despeito da escravidão formal e diante das escravizações contemporâneas, renovam a aposta em sua dimensão emancipatória e libertadora.

No segundo momento, nos dedicamos a recuperar as preocupações ético-metodológicas que marcam o Projeto de Reescritas Feministas no contexto brasileiro. Partimos da premissa de que os efeitos discriminatórios produzidos pelo direito não são necessariamente explicados por expressões inscritas nas leis ou pela ausência de positivação, mas que ganham materialidade através de padrões de decisão ou pelas visões de mundo de quem julga. Em um esforço coletivo, feministas em rede vem produzindo uma leitura a contrapelo de decisões judiciais a partir de perspectivas situadas, amplificando a “pergunta pela mulher”, mobilizando aportes decoloniais, o esquema teórico do transfeminismo, entre outros.

A esses esforços nos juntamos e tomamos a “pergunta pelas mulheres” e a “retórica dos quilombos” para colocar em evidência a relação entre quem produz a reescrita e sobre quem se produz o conhecimento e a ação política delas derivadas. Dito de outra maneira, confrontamos a intenção que temos ao produzir a reescrita aos efeitos gerados pelo que produzimos. Nesse sentido, levantamos questões que devem nos acompanhar em cada (re)escrita: Por quê, para quê, e para quem (re)escrevemos decisões judiciais e o próprio direito? O que significa fazê-lo dentro ou fora das universidades? Como avaliar a sua relevância diante das demandas e agendas por descolonização e projetos coletivos de afirmação do bem viver e da liberdade plena? Ao nos questionarmos continuamente a partir de tais preocupações (e tantas outras), aceitamos o convite de Amina Mama de resistir ao isolamento e alimentar ideias que têm a possibilidade de desafiar a distribuição desproporcional do poder e da violência que tem inviabilizado nossa existência plena.

Por fim, argumentamos que a reescrita do direito em pretuguês como justiça histórica demonstra o potencial das escrevivências amefricanas para re(orí)entar a memória jurídica nacional e tensionar o epistemicídio que ainda determina os conteúdos programáticos dos cursos de graduação e pós-graduação em direito. Neste ponto, apresentamos experiências que impactam o ensino, a pesquisa e a extensão em universidades de distintas regiões do país e passam a inserir narrativas contra-coloniais no cenário jurídico nacional, rompendo com o silenciamento sobre a agência e protagonismo da população amefricana na construção do direito brasileiro. Em síntese, as experiências analisadas denunciam os limites do saber jurídico formal e a cumplicidade do sistema de justiça com a reprodução da desigualdade racial.

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  • 1
    Tal como explicitado em trabalhos anteriores (PIRES, 2021PIRES, Thula. Legados de Liberdade. Revista Culturas Jurídicas. Vol. 8, Núm. 20, mai./ago., 2021, p. 291-316.; PIRES e FLAUZINA, 2022), utilizamos a noção de oríentação para significar o que guia/referencia/oríenta, reúne intelecto/memória/pensamento, articulando presente/passado/futuro. Tal construção se realiza através do significado de orí para religiosidades de matrizes africanas.
  • 2
    Seguimos a proposta feita por Mariah Rafaela Silva (2020SILVA, Mariah Rafaela. Código da ameaça: trans; Classe de risco: preta. N-1 Edições. São Paulo, n.123, 2020. Disponível em: https://n-1edicoes.org/123. Acesso em: 15 out. 2020.
    https://n-1edicoes.org/123...
    ) que mobiliza a expressão cistema para evidenciar o impacto do legado colonial na conformação de um sistema de domínio que se espraia do geográfico a técnicas de governo, a partir de concepções de corpo, raça, gênero e sexualidade que sustentam a distribuição desproporcional do poder e da violência ciscolonial. Com a noção de cistema jurídico, queremos chamar a atenção para os impactos da ciscolonialidade impostos e reproduzidos pelo direito.
  • 3
    Em 2017, a Comissão da Verdade da Escravidão Negra da Ordem dos Advogados do Brasil no Piauí (OAB-PI) publicou uma pesquisa intitulada “Dossiê Esperança Garcia: Símbolo de Resistência na Luta pelo Direito” (SOUSA, 2017SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de et all. Dossiê Esperança Garcia. Símbolo de Resistência na luta pelo direito. Teresina: EDUFPI, 2017.). O documento subsidiou e integrou o processo de incidência para o reconhecimento, pela OAB-PI, de Esperança Garcia como a primeira mulher advogada piauiense. Em 25 de novembro de 2022, o Conselho Pleno da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Nacional reconheceu Esperança Garcia como a primeira advogada do Brasil.
  • 4
    Quando encontramos referências a Luiz Gama (1830-1822) em livros e manuais de direito, normalmente ele nos é apresentado como rábula. Autodidata, nascido livre, escravizado e libertado, para ele o abolicionismo não se dava em abstrato e sua atuação nos tribunais é reconhecida por ter proporcionado em pleno período imperial - quando a escravidão integrava o regime jurídico de forma oficial - a libertação através do direito e centenas de pessoas escravizadas. Em 2015, a OAB reconheceu Luiz Gama como advogado, como forma de reparar a injustiça histórica de seu não reconhecimento como um dos principais advogados do país. Pesquisas recentes do historiador e jurista Bruno Rodrigues de Lima, pesquisador do Instituto Max Planck, revelam que a desqualificação de Luiz Gama como rábula passou a ocorrer anos após a sua morte, como forma do racismo decretar nossa morte social, mesmo quando a morte física já ocorreu. Através de documentos da época, Bruno Lima comprova que todos os documentos referiam-se à Gama como advogado. Naquele contexto, o exercício da advocacia não era restrito à bacharéis de direito, mas poderia ser exercido por quem tivesse o reconhecimento por notório saber. O pesquisador encontrou como a mais antiga dessas autorizações, expedida por um magistrado de São Paulo, um documento de 23 de dezembro de 1869, protocolado três dias antes. Suas autorizações eram sempre precárias, como era a liberdade de pessoas negras libertas naquele período, precisavam ser renovadas várias vezes. Nos registros encontrados, todos os pedidos de autorização para atuar como advogado foram deferidos, não há registros de negativas. A reescrita da biografia de Luiz Gama, alterando a narrativa oficial de desqualificação de sua atuação, se insere no processo de produção de uma cultura jurídica produzida por todas as pessoas que dela participaram. Mais informações sobre os resultados da pesquisa do referido pesquisador, ver em <https://www.dw.com/pt-br/documentos-in%C3%A9ditos-confirmam-que-luiz-gama-era-advogado/a-59756876>, acesso em 01 de setembro de 2023.
  • 5
    Imagem do cartaz disponível em <https://www.memoriaemovimentossociais.com.br/?q=pt-br/file/1101>, acesso em 01 de setembro de 2023.
  • 6
    Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=wlWWBpoZARA>, acesso em 02 de setembro de 2023.
  • 7
    Para ter acesso às diferentes publicações de Criola, ver: <https://criola.org.br/multiversidade/?doing_wp_cron=1696284637.1805338859558105468750>, acesso em 10 de setembro de 2023.
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  • 9
    A professora Maria Sueli Rodrigues de Sousa, professora Sueli ou a menina do Saco da Ema (povoado rural no município de Francinópolis, Piauí), como era conhecida, foi descrita por orientandas(os) como uma mulher negra, socióloga, advogada e professora de direito da Universidade Federal do Piauí (UFPI): “Ela nos dizia que ‘a gente deveria viver mais a mesa de bar. É onde a gente tem a liberdade de falar’. Para ela, a ordem é desobedecer os marcos da cultura eurocêntrica [...], de modo que toda descolonização política suscita uma desobediência política e epistêmica”. (VARÃO, DE SOUSA REGO e DE CARVALHO NETO, 2022VARÃO, Lorena Lima Moura; DE SOUSA REGO, Natasha Karenina; DE CARVALHO NETO, Lourival Ferreira. MARIA SUELI RODRIGUES DE SOUSA: a trajetória de um pensamento desobediente. Abya-yala: Revista sobre Acesso à Justiça e Direitos nas Américas, v. 6, n. 2, p. 06 a 21, 2022., p.8).
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    O professor Rodrigo Portela Gomes nos concedeu entrevista no dia 12 de outubro de 2023GOMES, Camilla de Magalhães; CARVALHO, Claudia Paiva; FRANZONI, Julia Ávila. Método Transfeminista de Reescrita de Decisões Judiciais: perspectivas teóricas e caminhos para sua aplicação. Revista Direito Público, Brasília, Volume 20,n. 106, 95-117, abr./jun. 2023..
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    Sobre esse aspecto, Rodrigo Portela rememora a visita da equipe da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (SAL/MJ) que era responsável pelo edital Pensando Direito, quando eram o único grupo majoritariamente de graduandos dentre os grupos financiados.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    13 Out 2023
  • Aceito
    15 Out 2023
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